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BRASIL

RACISMO ›

“Comerciais como o da Perdigão evidenciam o racismo


estrutural”
Advogado aponta mensagem racista em campanha de Natal que associa
família negra à pobreza. Empresa de alimentos lamenta repercussão
negativa
BREILLER PIRES

São Paulo - 28 NOV 2018 - 12:03 BRST

Silvio Almeida, advogado, professor e presidente do Instituto Luiz Gama. DIVULGAÇÃO

A cada Chester vendido, a Perdigão promete doar outro para “uma


MAIS INFORMAÇÕES
família que precisa”. Apesar da causa nobre, o comercial de
divulgação da campanha cai no lugar comum de representar
pessoas negras como a “família que precisa” na ceia de Natal e, por
outro lado, atribuir a virtude da caridade a uma família branca. Para
Silvio Almeida, advogado, professor de Direito e presidente do
Dove se desculpa e
retira um anúncio Instituto Luiz Gama, que promove direitos da população negra e
acusado de racismo
minorias, a peça publicitária reflete as estruturas racistas da
sociedade brasileira, em que os negros são automaticamente
associados à condição da pobreza. Autor do livro O que é racismo
estrutural (Editora Letramento), o doutor em Filosofia e Teoria Geral

Racismo não dá
do Direito pela USP adverte que as empresas precisam adotar
descanso e impacta a políticas antirracistas permanentes para não seguir reproduzindo
saúde e o trabalho
preconceitos em seus discursos e produtos.
dos negros no Brasil

Pergunta. Qual mensagem o comercial da Perdigão emite ao


apresentar uma família negra como necessitada e outra, branca, como abastada e
caridosa?

Resposta. A desigualdade racial constitui o imaginário. Naturalmente, a propaganda se


utiliza desse imaginário para que as pessoas consumam. Comerciais como o da
Perdigão evidenciam o racismo estrutural da nossa sociedade. Ele apela para um
sentimento de caridade que se manifesta toda vez que nos deparamos com pobres. Em
30 segundos, precisa passar uma mensagem sucinta sobre compaixão que venda seu
produto. Sendo assim, a imagem mais rápida é a dos negros como pessoas que
merecem compaixão. Trata-se de uma visão tão arraigada, do negro em condição
inferior, que a empresa ignora até mesmo os possíveis efeitos negativos que essa
representação pode gerar sobre sua marca, incluindo a reação de pessoas brancas que
rejeitam esses estereótipos.

Chester Perdigão | Natal Família Silva


P. Como operam as engrenagens do racismo estrutural?

R. O racismo estrutural se materializa pelo próprio modo de ser da sociedade. A lógica


do Estado se molda a partir do individualismo, onde tudo se compra pelo dinheiro. Nesse
contexto, o racismo não é algo anormal. Ele está inserido na estrutura social. Todas as
áreas, da economia à política, estão atravessadas pelo racismo. E as instituições,
públicas e privadas, são os pilares de toda a estrutura. Logo, o racismo não é originário
das instituições. Elas apenas o reproduzem. Por isso também falamos de racismo
institucional, que engloba o meio corporativo. O fato de a sociedade ser racista não
significa que uma empresa tem de aderir à sua lógica racista. Pelo contrário, ela pode se
contrapor ao racismo. Com isso, não só agregaria valor ao seu produto, mas também se
estabeleceria com uma alternativa à sociedade.

P. De que forma as empresas podem evitar a reprodução de padrões racistas?

R. Partimos do princípio de que nossa sociedade é desigual e racista. Quando esses


meios de comportamento já estão constituídos, uma empresa só não é racista se for
antirracista. Isso vale também para os indivíduos e qualquer outra instituição. Como o
racismo ainda é muito presente em diversas esferas, é preciso adotar políticas
antidiscriminatórias permanentes e instituir mecanismos que estabeleçam
questionamentos às práticas sociais vigentes nas empresas. Elas não são obrigadas a
reproduzir o mundo como ele é. Elas podem melhorá-lo, ofertando coisas que
concorrentes não ofertam. Isso só acontece se forem capazes de mudar a forma como
estabelecem o relacionamento com o público e suas campanhas de publicidade.

P. Essa postura de enfrentamento ao racismo também implicaria em mudanças na


própria estrutura das empresas?

R. É fundamental subverter os espaços de comando, desnaturalizar as posições que


determinados grupos raciais ocupam. Precisamos questionar: onde estão os negros na
presidência de empresas, nas altas esferas do Judiciário, na gestão dos clubes de
futebol? O pensamento crítico é o caminho, mas o Estado não oferece condições
adequadas para se discutir essas questões.
P. Nesta semana, o goleiro Jefferson, do Botafogo, afirmou ao jornal O Globo que, por
ser negro, teve de “matar dois leões por dia” para triunfar no futebol. O que essa
expressão revela sobre a percepção dos negros sobre o racismo?

R. Uma fala como a do Jefferson só parece surpreendente para quem se propõe a negar
o racismo. Qualquer pessoa negra que não está no espaço previsto para ela tem de
matar dois leões por dia. Não podemos tratar exceções como meros exemplos de
superação. Não é admitido que o negro ocupe o lugar de representação da família rica.
Quando ele protesta contra essa condição de subalternidade que lhe é imposta, falam
em “vitimismo” ou “coitadismo”, que nada mais é que um discurso racista, em que o
negro, mesmo oprimido e explorado, tem de se manter resignado.

P. Por que muitas pessoas, geralmente brancas, falam em “consciência humana” – se


apegando a um argumento do ator Morgan Freeman – para desqualificar o Dia da
Consciência Negra?

R. Gente que se dedica a estudar a fundo as questões raciais acaba sendo deslegitimada
por pessoas que validam seus preconceitos amparadas na figura de um homem negro
importante. Considero equivocada a declaração do Morgan Freeman, mas, se
observarmos o vídeo com calma, percebemos que a fala está fora de contexto. Ele não
quer dizer que o racismo não existe. É uma maneira atabalhoada de pontuar que, em
linhas gerais, só se debate sobre consciência racial no mês da Consciência Negra. O
Morgan Freeman é um exemplo do negro que só serve aos brancos quando diz algo
aceitável para quem não reconhece o racismo como uma prática social.

PERDIGÃO SE MANIFESTA SOBRE CAMPANHA


Em nota enviada à reportagem, a assessoria de comunicação da BRF, companhia que
controla a Perdigão, lamenta a repercussão negativa do comercial:

“A Perdigão lamenta que a campanha publicitária de Natal tenha ofendido qualquer um de


nossos consumidores. Nunca foi essa a nossa intenção. Falar de generosidade é, para nós,
uma forma de união e agradecimento a todos os nossos consumidores, que há três anos
colaboram para o Natal de mais de 6 milhões de pessoas, independente de cor, gênero, raça
ou religião. É nisso que acreditamos.”
Adere a

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