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O cinema de Guy Debord

por Giorgio Agamben


(1995)

Esse texto é a transcrição – revisada por Agamben – de uma conferência pronunciada


no quadro de um seminário consagrado a Guy Debord, acompanhado de uma
retrospectiva de seus filmes, por ocasião da 6a Semana Internacional de vídeo em
Saint-Gervais, Genebra, em novembro de 1995. Texto integral, edições Hoëbeke, 1998,
coleção Arts & esthétique, (pp. 65 à 76), publicado com três outros artigos numa
coletânea intitulada: Agamben, Imagem e memória.

Meu objetivo é definir aqui certos aspectos da poética, ou melhor, da técnica


composicional de Guy Debord no domínio do cinema. Evito voluntariamente a fórmula “obra
cinematográfica”, pois foi ele mesmo quem rejeitou a possibilidade de servir-se dela a seu
propósito. “Considerando a história da minha vida, escreveu ele em In girum imus nocte et
consumimur igni [1978], não podia fazer aquilo que se chama de uma obra cinematográfica”.
Aliás, não apenas penso que o conceito de obra não é útil no caso de Debord, como sobretudo
me pergunto se hoje, cada vez que se quer analisar aquilo que se chama de obra, quer seja
literária, cinematográfica ou outra, não é necessário colocar em questão o seu próprio estatuto.
Em vez de interrogar a obra enquanto tal, penso que é preciso perguntar que relação existe
entre o que se podia fazer e o que foi feito. Certa vez, como estava tentado (e ainda estou) a
considerá-lo como um filósofo, Debord me disse: “Não sou um filósofo, sou um estrategista”.
Ele viu o seu tempo como uma guerra incessante em que toda a sua vida estava empenhada
numa estratégia. É por isso que penso ser preciso interrogar-se sobre qual é o sentido do
cinema nessa estratégia. Por que o cinema e não, por exemplo, a poesia, como tal foi o caso
para Isou, que tinha sido tão importante para os situacionistas, ou por que não a pintura, como
para um dos seus amigos, Asger Jorn?

Creio que isso se deve à ligação estreita que existe entre o cinema e a história. De onde
vem essa ligação, e de que história se trata?

Isto se deve à função específica da imagem e ao seu carácter eminentemente histórico. É


preciso especificar aqui alguns detalhes importantes. O homem é o único animal que se
interessa pelas imagens enquanto tais. Os animais interessam-se bastante pelas imagens, mas
na medida em que são enganados por elas. Pode-se mostrar a um peixe a imagem de uma
fêmea, e ele irá ejetar o seu esperma; ou mostrar a um pássaro a imagem de outro pássaro a
fim de capturá-lo, ele será enganado por ela. Mas, quando o animal se dá conta de que se trata

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de uma imagem, desinteressa-se totalmente. Ora, o homem é um animal que se interessa pelas
imagens uma vez que as tenha reconhecido enquanto tais. É por isso que se interessa pela
pintura e vai ao cinema. Uma definição do homem, do nosso ponto de vista específico, poderia
ser a de que o homem é o animal que vai ao cinema. Ele se interessa pelas imagens uma vez
que tenha reconhecido que não são seres verdadeiros. Outro ponto é que, como mostrou Gilles
Deleuze, a imagem no cinema (e não apenas no cinema, mas nos Tempos modernos em geral)
não é mais algo de imóvel, não é mais um arquétipo, quer dizer, algo fora da história: é um
corte ele próprio móvel, uma imagem-movimento, carregada enquanto tal de uma tensão
dinâmica. É essa carga dinâmica que se vê muito bem na fotos de Marey e de Muybridge que
estão na origem do cinema, imagens carregadas de movimento. É uma carga deste gênero que
via Benjamin naquilo que ele chamava de uma imagem dialéctica, que era para ele o elemento
mesmo da experiência histórica. A experiência histórica se faz pela imagem, e as imagens estão
elas próprias carregadas de história. Poder-se-ia considerar nossa relação com a pintura sob
este aspecto: não são imagens imóveis, mas antes os fotogramas carregados de movimento que
provêm de um filme que nos falta. Seria preciso restituí-las a esse filme (vocês terão
reconhecido o projeto de Aby Warburg).

Mas de que história se trata? É preciso esclarecer que não se trata aqui de uma história
cronológica, mas propriamente falando de uma história messiânica. A história messiânica
define-se antes de mais nada por dois caracteres. É uma história da Salvação, é preciso salvar
alguma coisa. E é uma história última, é uma história escatológica, na qual alguma coisa deve
ser consumada, julgada, deve se passar aqui, mas num outro tempo; deve, portanto, subtrair-se
à cronologia, sem sair para um outro lugar. É por essa a razão que a história messiânica é
incalculável. Na tradição judaica, há toda uma ironia do cálculo; os rabinos faziam cálculos
muito complicados para prever o dia da chegada do Messias, mas não paravam de repetir que
se tratava de cálculos proibidos, pois a chegada do Messias é incalculável. Mas, ao mesmo
tempo, cada momento histórico é aquele da sua chegada, o Messias sempre já chegou, está
sempre já aí. Cada momento, cada imagem está carregada de história, porque ela é a pequena
porta pela qual entra o Messias. É essa situação messiânica do cinema que Debord partilha com
o Godard das Histoire(s) du cinéma. Apesar da antiga rivalidade entre eles – de Godard, Debord
havia dito em 68 que ele era o mais tolo de todos os Suíços pró-chineses –, Godard reencontrou
o mesmo paradigma que Debord tinha sido o primeiro a traçar. Qual é esse paradigma, qual é
essa técnica de composição? Serge Daney, acerca das Histoire(s) de Godard, explicou que se
tratava da montagem: “O cinema procurava uma coisa, a montagem, e era dessa coisa que o
homem do século XX tinha uma necessidade terrível”. É o que mostra Godard nas Histoire(s) du
cinéma.

O carácter mais próprio do cinema é a montagem. Mas o que é a montagem, ou antes,


quais são as condições de possibilidade da montagem? Em filosofia, desde Kant, chama-se de
condições de possibilidade de alguma coisa os transcendentais. Quais são então os
transcendentais da montagem? Existem duas condições transcendentais da montagem, a
repetição e a parada. Isto, Debord não o inventou, mas ele o fez vir à luz, ele exibiu esses
transcendentais enquanto tais. E Godard fará o mesmo nas suas Histoire(s). Já não temos

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necessidade de filmar, basta-nos repetir e parar. Esta é uma nova forma epocal por relação à
história do cinema. Este fenômeno me impressionou bastante em Locarno em 1995. A técnica
composicional não mudou, é ainda a montagem, mas agora a montagem passa para o primeiro
plano, e mostram-na enquanto tal. É por isto que se pode considerar que o cinema entra numa
zona de indiferença em que todos os gêneros tendem a coincidir; o documentário e a narração,
a realidade e a ficção. Faz-se cinema a partir das imagens do cinema.

Mas voltemos às condições de possibilidade do cinema, a repetição e a parada (arrêt). O


que é uma repetição? Há na Modernidade quatro grandes pensadores da repetição:
Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger e Gilles Deleuze. Todos os quatro nos mostraram que a
repetição não é o retorno do idêntico, do mesmo enquanto tal que retorna. A força e a graça da
repetição, a novidade que ela traz, é o retorno em possibilidade daquilo que foi. A repetição
restitui a possibilidade daquilo que foi, torna-o de novo possível. Repetir uma coisa é torná-la
de novo possível. É aí que reside a proximidade entre a repetição e a memória. Pois a memória
não pode mais nos devolver tal qual aquilo que foi. Seria o inferno. A memória restitui ao
passado a sua possibilidade. É o sentido dessa experiência teológica que Benjamin via na
memória, quando dizia que a recordação faz do não realizado um realizado, e do realizado um
não realizado. A memória é, por assim dizer, o órgão de modalização do real, aquilo que pode
transformar o real em possível e o possível em real. Ora, se pensarmos nisso, essa é também a
definição do cinema. Não faz o cinema sempre isso, transformar o real em possível, e o possível
em real? Pode-se definir o já visto como o fato de “perceber algo do presente como se já tivesse
sido”, e o inverso, o fato de perceber como presente algo que já foi. O cinema tem lugar nessa
zona de indiferença. Compreende-se então porque o trabalho com imagens pode ter uma tal
importância histórica e messiânica, pois é uma forma de projetar a potência e a possibilidade
em direção ao que é por definição impossível, em direção ao passado. O cinema faz portanto o
contrário do que fazem as mídias. As mídias dão-nos sempre o fato, o que foi, sem a sua
possibilidade, sem a sua potência, dão-nos portanto um fato em relação ao qual se é impotente.
As mídias adoram o cidadão indignado mas impotente. É o mesmo objetivo do telejornal. É a
má memória, a que produz o homem do ressentimento.

Ao colocar a repetição no centro da sua técnica composicional, Debord torna de novo


possível aquilo que ele nos mostra, ou melhor, abre uma zona de indecidibilidade entre o real e
o possível. Quando ele mostra um trecho de telejornal, a força da repetição é tal que deixa de
ser um fato consumado, e volta a ser, por assim dizer, possível. Pergunta-se: “Como isto foi
possível?” – primeira reação –, mas ao mesmo tempo compreende-se que sim, tudo é possível,
mesmo o horror que nos fazem ver. Hannah Arendt definiu um dia a experiência final dos
campos como o princípio do “tudo é possível”. É também nesse sentido extremo que a
repetição restitui a possibilidade.

O segundo elemento, a segunda condição transcendental do cinema é a parada. É o


poder de interromper, a “interrupção revolucionária” de que falava Benjamin. É muito
importante no cinema, mas, mais uma vez, não somente no cinema. É o que faz a diferença
entre o cinema e a narração, a prosa narrativa, com a qual se tem a tendência a comparar o
cinema. A parada nos mostra, pelo contrário, que o cinema está muito mais próximo da poesia

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que da prosa. Os teóricos da literatura sempre encontraram muitas dificuldades para definir a
diferença entre a prosa e a poesia. Muitos elementos que caracterizam a poesia podem dar-se
na prosa (que, por exemplo, do ponto de vista do número de sílabas, pode conter versos). A
única coisa que se pode fazer na poesia e não na prosa são os cavalgamentos (enjambements) e
as cesuras. O poeta pode opor um limite sonoro, métrico, a um limite sintático. Não é somente
uma pausa, mas uma não-coincidência, uma disjunção entre o som e o sentido. É por isso que
Valéry pôde dar do poema, certa vez, esta definição tão bela: “O poema, uma hesitação
prolongada entre o som e o sentido”. É também por isso que Hölderlin pôde dizer que a cesura,
ao parar o ritmo e o desenrolar das palavras e das representações, faz aparecer a palavra e a
representação enquanto tais. Parar a palavra é subtraí-la do fluxo do sentido para exibi-la
enquanto tal. Poder-se-ia dizer a mesma coisa da parada tal como Debord a pratica, enquanto
constitutiva de uma condição transcendental da montagem. Poder-se-ia retomar a definição de
Valéry e dizer do cinema, pelo menos de um certo cinema, que ele é uma hesitação prolongada
entre a imagem e o sentido. Não se trata de uma parada no sentido de uma pausa, cronológica,
mas antes de uma potência de parada que trabalha a própria imagem, que a subtrai do poder
narrativo para a expor enquanto tal. É neste sentido que Debord nos seus filmes e Godard nas
suas Histoire(s) trabalham com essa potência da parada.

Estas duas condições transcendentais não podem nunca estar separadas, elas formam
em conjunto um sistema. No último filme de Debord, há um texto muito importante logo no
início: “Mostrei que o cinema pode se reduzir a esta tela branca, depois a esta tela preta”. O que
Debord quer dizer com isso, é justamente a repetição e a parada, indissolúveis enquanto
condições transcendentais da montagem. O preto e o branco, o fundo em que as imagens estão
tão presentes que não se pode mais vê-las, e o vazio onde não há imagem alguma. Existem aqui
analogias com o trabalho teórico de Debord. Se tomarmos, por exemplo, o conceito de “situação
construída” que deu seu nome ao situacionismo, uma situação é uma zona de indecidibilidade,
de indiferença entre uma unicidade e uma repetição. Quando Debord diz que é preciso
construir situações, trata-se sempre de alguma coisa que se pode repetir e também de alguma
coisa de única.

Debord o diz também no final de In girum imus nocte et consumimur igni, quando, em
vez da tradicional palavra “Fim”, aparece a frase: “A retomar desde o início”. Há aqui
igualmente o princípio que trabalha no próprio título do filme, que é um palíndromo, uma frase
que se volta sobre si mesma. Neste sentido, há uma palindromia essencial no cinema de
Debord.

Juntas, a repetição e a parada realizam a tarefa messiânica do cinema de que se falava.


Esta tarefa tem essencialmente a ver com a criação. Mas não é uma nova criação depois da
primeira. Não se deve considerar o trabalho do artista unicamente em termos de criação: pelo
contrário, no coração de todo ato de criação há um ato de des-criação. Deleuze disse um dia,
acerca do cinema, que cada ato de criação é sempre um ato de resistência. Mas o que significa
resistir? É antes de mais nada ter a força de des-criar o que existe, des-criar o real, ser mais
forte que o fato que está aí. Todo ato de criação é também um ato de pensamento, e um ato de

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pensamento é um ato criativo, pois o pensamento define-se antes de tudo pela sua capacidade
de des-criar o real.

Se tal é a tarefa do cinema, o que é uma imagem que foi assim trabalhada pelas
potências da repetição e da parada? O que muda no estatuto da imagem? É preciso repensar
aqui toda a nossa concepção tradicional da expressão. A concepção corrente da expressão é
dominada pelo modelo hegeliano segundo o qual toda a expressão se realiza através de um
medium, quer seja uma imagem, uma palavra ou uma cor, que no fim deve desaparecer na
expressão efetuada. O ato expressivo é consumado quando o meio, o medium, não é mais
percebido enquanto tal. É preciso que o medium desapareça naquilo que ele nos dá a ver, no
absoluto que se mostra, que se resplandece nele. Ao contrário, a imagem que foi trabalhada
pela repetição e pela parada é um meio, um medium que não desaparece naquilo que ele nos dá
a ver. É o que eu chamaria de um “meio puro”, que se mostra enquanto tal. A imagem dá-se a
ver ela própria em vez de desaparecer naquilo que ela nos dá a ver. Os historiadores do cinema
assinalaram como uma novidade desconcertante o fato de que, em Monika de Bergman (1952),
a protagonista, Harriet Andersson, fixa de repente o seu olhar na objetiva da câmera. O próprio
Bergman escreveu a propósito dessa sequência: “Aqui e pela primeira vez na história do
cinema estabelece-se de súbito um contato direto com o espectador”. Desde então, a
pornografia e a publicidade banalizaram esse procedimento. Estamos habituados ao olhar da
estrela de pornô que, enquanto ela faz aquilo que deve fazer, olha fixamente a câmara,
mostrando assim que se interessa mais pelos espectadores do que pelo seu partner.

Desde os seus primeiros filmes e de forma cada vez mais clara, Debord nos mostra a
imagem enquanto tal, isto é, e segundo um dos princípios teóricos fundamentais de A sociedade
do Espetáculo, enquanto zona de indecidibilidade entre o verdadeiro e o falso. Mas há duas
maneiras de mostrar uma imagem. A imagem exposta enquanto tal não é mais imagem de
nada, ela é, ela mesma, sem imagem. A única coisa da qual não se pode fazer uma imagem é, por
assim dizer, o ser imagem da imagem. O signo pode significar tudo, exceto o fato de que ele está
significando. Wittgenstein dizia que o que não se pode significar, ou dizer num discurso, o que é
de alguma forma indizível, isso se mostra no discurso. Há duas formas de mostrar essa relação
com o “sem-imagem”, duas formas de dar a ver o que não há mais nada para ver. Uma é o
pornô e a publicidade, que fazem como se houvesse sempre o que ver, ainda e sempre imagens
por detrás das imagens; a outra a que, nessa imagem exposta enquanto imagem, deixa aparecer
esse “sem-imagem” que é, como dizia Benjamin, o refúgio de toda imagem. É nesta diferença
que se fazem toda a ética e toda a política do cinema.

Tradução de Luiz Roberto Takayama

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