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O

RETORNO
No domingo à noite, 8 de dezembro de 2002, eu estava muito cansado. Mas, era um
cansaço saudável – se é que se pode chamar assim – porque era uma fadiga decorrente de
mais uma reunião familiar na nossa nova casa de campo, no Condomínio Canto das Águas,
em Rio Acima, distante 30 quilômetros de Belo Horizonte.
Assim, por volta de meia-noite e meia, resolvi “arriar bandeira” e fui deitar.
Em pouco tempo, literalmente desmaiei na cama. Hábito contrário ao usual, pois
sempre antes de dormir, embalo-me através de mil pensamentos na cabeça e muitos projetos.
Isto, independente do cansaço que possa estar no momento.
De súbito, senti o pé no chão de algum lugar! Estava calçado... Há pouco, ainda estava
com a cabeça no meu travesseiro! Olhei para cima e vi o céu... Estava estrelado e muito
límpido. Não vi a lua, mas mesmo assim as estrelas brilhavam intensamente no firmamento.
Ainda meio atordoado e sem entender o motivo de estar em local estranho, pude sentir um
cheiro de madeira queimada, misturada com umidade, aroma característico nos finais de tarde
nas cidades do interior, misturado com essência de dama da noite.
Cidade do interior? Baixei a cabeça e olhei para o chão: era calçamento de
paralelepípedo.
“Não me lembro de nenhuma rua semelhante em Belo Horizonte. Talvez somente na
periferia...”, pensei, mas dessa vez, desconfiado e um pouco titubeante.
Lentamente, levantei a cabeça e notei que a rua estava deserta. Havia casas nas suas
duas margens. O passeio era estreito e desnivelado. Tentava, mas não conseguia me recordar o
que estava fazendo ali, de repente. Meu atordoado cérebro então começou a processar os
passos anteriores...
Há pouco estava deitado em minha cama... Claro, devo estar sonhando! Mas, que
sonho mais lúcido este! Já tive outros sonhos do gênero, em que eu dominava a situação,
porém sentir cheiro das coisas... De qualquer forma, meu domínio ia ser mais consciente
ainda. Era isso que eu iria fazer! Franzi a testa e quase fechei os olhos a fim de poder enxergar
o outro lado da rua. Sempre que estava sem óculos, eu fazia assim. Estranho. Jamais sonhara
assim. Nunca, em sonhos, precisei dos óculos... Resolvi ignorar mais este enigma onírico e
apertei o passo. Deveria perguntar menos e agir mais. Tinha de descobrir o porquê daquela
inusitada situação. Primeira dica: aquele local me era bastante familiar. Sem questionar muito
prossegui. Não queria correr o risco de “acordar”, e cortar um sonho que estava tão consciente
e real.
Avistei uma placa. Nossa! Não é que eu realmente estava numa rua conhecida! E
muito familiar! Pisava os pés na velha e saudosa rua Monsenhor João Ivo! Moramos nessa rua
em Formiga durante os doze anos mais felizes de nossas vidas! Nesse período, papai foi Juiz

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de Direito daquela terrinha tão amada e tão aprazível que marcou minha infância e pré-
adolescência, pois lá vivi dos 5 aos 17 anos de idade.
Extasiado pela descoberta, continuei andando. O objetivo era, claro, chegar até o local
onde fora minha casa que, naquela altura, eu sabia, já não mais existia...
Todavia, a rua, mesmo desfigurada com relação aos anos 70, ainda guardava os ares
daqueles áureos tempos. Estando na rua dos tempos de menino, achei que minha atenção teria
que ser dobrada, a fim de reparar os mínimos detalhes e poder lembrar quando acordasse...
Muito importante para poder contar a todo mundo!
Primeiramente, olhei ao meu derredor. Provavelmente, era de madrugada, pois não
havia viv’alma, tampouco um som conhecido, como de carros por perto, passarinho ou de
pombinho, apesar dos aromas que comentei. Antes de iniciar efetivamente a caminhada em
direção ao lugar que um dia fora a minha casa, virei meu pescoço de vi que atrás de mim
estava a velha casa de um amigo de infância, o Henrique. Seu estilo era colonial e era de cor
abóbora. Engraçado, pensei, imaginava que a cor era azul. Não importa. Do lado direito da
casa, podia ver a Funerária e relembrar dos tempos em que outro amigo me chamava para ver
os caixões e também para trocar nossas revistas de terror. Ele tinha mania de lê-las deitado na
urna. Nunca tive este tipo de coragem... Olhei para cima e outra lembrança me veio à mente.
Certa vez descia a rua Silviano Brandão - que faz esquina com a Monsenhor João Ivo – de
bicicleta. O Paulinho Senna estava na garupa. Como a rua era íngreme, a bicicleta começou a
ganhar velocidade e eu não me importei. De repente, toquei no freio e vi que não tinha nada.
Logo à frente, uma carroça descia vagarosamente. A batida na sua traseira era iminente. Nossa
alternativa seria pular daquele jeito mesmo, caso contrário iria nos esborrachar na referida
carroça. Eis que vi o João, Oficial de Justiça descendo a rua a pé. Gritei seu nome e implorei
por ajuda. Sem perder tempo, o simpático ajudante do papai correu e agarrou na garupa
conseguindo pará-la em tempo. Foi um sufoco, mas conseguimos sair daquela situação sem
maiores problemas. Bem na esquina onde estava, havia o Bar Áurea, onde tinha um picolé de
morango da melhor qualidade. Quantas vezes, depois de cansativas pedaladas, ora vindo da
Escola Normal ou de outro lugar, eu matava a sede!
Novamente, tentei me controlar nos meus devaneios. Teria que começar logo o passo
rumo à minha velha morada, do outro lado, para ser mais exato, no número cem.
Enquanto andava, resolvi “sentir” a parede e passei a mão nela. Curioso. A tinta ficara
nela e ainda pude sentir sua textura irregular. Que sonho mais sentido este, pensei num misto
de encabulado com desconfiado.
Olhei para a minha esquerda e vi a casa do Dr. Gilberto Guerzoni, que já fora um dos
médicos da família. Ao seu lado, estava a bucólica casa cor de rosa do Hamilton Molinari,
antigo colega de sala. Recordei das tantas vezes que ali passava de bicicleta e, ainda andando
em cima do passeio, eu gritava o seu nome bem na janela. Sua irmã, a Hilmara (se não me
engano) era muito bonita.
Virei o rosto novamente e segui adiante, rumo ao local da ex-casa, onde um dia
morara..

Com a emoção mais ou menos contida, continuei meu passo ao longo da Monsenhor
João Ivo. Reparava tudo, sem exceção. Quantos detalhes! Que tipo de sonho seria aquele em
que meus cinco sentidos trabalhavam a todo vapor? Quão realístico era! Mas, será que
sonhava de fato? O melhor a fazer era procurar deixar essa dúvida de lado, pois tinha que
ficar atento ao cenário à minha frente. Afinal, estava decidido a “contar para todo mundo o
que eu estava vivenciando” com tanta autenticidade! Portanto, tinha que voltar a atenção ao
“suposto sonho”...
Prosseguindo esse meu “passeio onírico”, ou seja lá o que for, eu já me encontrava
bem em frente à casa da Jussara. Sua casa era uma das mais modernas da rua. Não havia

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nenhum carro na garagem. Ela era uma assídua amiga da minha irmã, a Maria Clara (que eu
chamo de Kakaya). Na verdade, como fui criado junto de minha irmã, por sermos de idade
próxima, sempre a acompanhei quando ia na casa das amigas para brincar. Para não fugir à
regra, “paquerava” algumas delas. E isto não fora diferente com a bela e graciosa Jussara.
Do outro lado, quase em frente, - se não me engano - estava a casa, em estilo colonial,
de uma pessoa que eu considerava como uma avó para mim: a D. Sílvia Tonelli. Ela sempre
foi muito solícita e afável. Batíamos longas e divertidas prosas! Quase sempre era agraciado
com apetitosas guloseimas: ora doces, ora salgados da melhor qualidade! O papai, outro
apreciador de doces, também sempre ganhava dela compotas e outros petiscos. Confesso que
fiquei com água na boca quando vi aquela casinha aprazível e aconchegante. de cor branca,
com janelas e portas contornadas em madeira de tom azul escuro.
Saudoso, continuei andando... Meu entusiasmo crescia a cada passo que dava.
À minha direita, cheguei perto da casa da Íris. De vez em quando, a Kakaya “vigiava”
o Joãozinho e a Ieda, filhos da Odetina, sua irmã. O estilo era um pouco mais moderno do
que o colonial. Havia duas janelas em tom vinho, além da entrada, com uma escadinha de uns
três ou quatro degraus. O cimento nas paredes internas, lembro-me bem, estava um pouco
encardido.
Enquanto caminhava pelo passeio irregular - e “viajava” - sentia a brisa da noite
soprando em minha nuca e em meus ouvidos. Um suave aroma de dama-da-noite compunha o
ambiente. A sensação de solidão era proporcional ao meu estado de nostalgia que aumentava
igualmente. Esporadicamente, olhava para trás e ao derredor, para ver se surgia alguma pessoa
que, obviamente, poderia saciar algumas de minhas dúvidas, mas a rua estava totalmente
deserta. Era, pois, alta madrugada, com toda a certeza.
Continuei no meu passo: firme, porém nervoso, sempre à espera de uma nova surpresa
ou de uma nova lembrança que me tocasse o coração. Nada me passava despercebido à visão.
Reparava tudo, até as pedras do chão! Por sinal, esperava encontrar algum papel de bala ou
algo parecido, para comprovar a veracidade, ou não, daquele momento singular.
Já estava perto da minha casa... Então, notei que ao meu lado, havia uma bela e
imponente residência verde-limão. Era do amigo de infância, Poli, o Alexandre, filho do seu
Juquinha Dragão. Os contornos das janelas do nosso vizinho, eram brancos. Vi o portão,
também branco, que ligava diretamente ao quintal e rememorei os divertidos “faroestes”, as
disputadas “fincas” e os piões que ali rodávamos. Meu pensamento foi ainda mais alto, só
que literalmente, pois lembrei dos tempos em que subia no telhado da minha casa, justamente
com o propósito de “afanar” as suculentas mangas que davam na árvore do quintal da casa do
Poli! O barulho que fazia ao andar em cima da telha de amianto era o que me entregava. Do
meu lado, mamãe me gritava para descer logo, senão “poderia cair lá de cima”, do lado do
vizinho, a D. Bia, era quem me alertava para não me arriscar daquele jeito só para pegar
manga. A Benvinda, empregada que era considerada como da família, me oferecia o saboroso
fruto, a fim de evitar que eu subisse no telhado só para isso. Não era à toa que os papagaios d
minha casa e da casa do amigo, sabiam de cor e salteado o meu nome...
Parei. O coração acelerou. Respirei fundo. Finalmente, estava chegando perto da
minha velha casa, ou melhor, do lugar onde ela um dia existira, já que sua fachada estava
“transfigurada”...
Antes, mirei adiante à minha esquerda e notei a casa da Arilze, José Augusto e
Raquel, também amigos de infância e sobrinhos do Poli. Ao seu lado, a casa da D.Pequenina,
ambas contíguas em estilo colonial e da mesma cor, marron. No padrão da casa da D.
Sílvia...Casa da D. Sílvia? Bateu a realidade insofismável. Mas..., ela fora totalmente
reformulada antes do dia 12 de março 1973, exatamente quando mudamos de Formiga! E
como poderia ainda estar ali? Totalmente intacta?!
Afinal, o que estava acontecendo comigo?

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Dúvidas, questionamentos e indagações percorriam os lóbulos e as entranhas do
meu já atordoado cérebro, que vivenciava algo totalmente inédito, senão inusitado. A
verdade era que eu tentava ignorar algumas conclusões que tirara, a fim de resguardar
o momento. Precisava me ater aos detalhes, ao invés de ficar pensando através de vias
fantasiosas, o que não era do meu feitio. Portanto, o fato de a casa da D. Sílvia Tonelli
não existir na minha “realidade” e, naquela hora, “existir” de fato - pois tinha acabado
de vê-la - tornou-se secundário. Pelo menos, por enquanto...
Olhei para o espaço em frente à minha velha e saudosa morada e me vi - como
num filme instantâneo rodando na minha tela mental - juntamente com minhas irmãs e
colegas de infância, jogando bola: ora queimada, ora futebol, ora voleibol. Em seguida,
visualizei a janela da casa da D. Pequenina e vi a bola caindo lá dentro! Era a hora do
sufoco. Se ela a devolvesse, tudo bem. Caso contrário, significava que não a teríamos
mais de volta e que o papai ficaria sabendo do incidente. O resultado poderia ser,
naturalmente, um castigo exemplar. Quando tínhamos sorte, D. Enaura, menos
intransigente, ou mesmo sua mãe. D. Nenen, devolviam a bola, mas a espinafração era
certa!
Respirei fundo. A casa de número 100, da rua Monsenhor João Ivo estava por ser
vista finalmente! Reviveria o lugar onde morara de 1960 até 1973! Sabia, porém, que
sua fachada estava diferente dos nossos tempos. Isso não me incomodava. O importante
era que eu sentiria na alma e no coração, as vibrações de um tempo feliz e
inesquecível!
Querendo fazer suspense comigo mesmo, antes de virar a cabeça, ainda tive
tempo de olhar logo à frente, do outro lado do passeio. Ali estava a casa do velho “seu”
Manoel. Grande praça! Emérito “contador de causos”! Era um senhor de uns 50 e
tantos anos de idade. Lembrei-me quando ele me via no alpendre de casa e gritava meu
nome: “Menino! Vai comprar cigarro para mim na padaria!”. Com boa-vontade, corria
até sua casa e recolhia o dinheiro para o maço de “Caporal Douradinho”, sem filtro. A
única ressalva, enquanto me dirigia até a padaria, na esquina do Beco Protestante, em
frente à Casa Cruzeiro, era ter que segurar o chumaço de notas. Confesso que não
gostava muito de fazer isso. Não por preguiça. Após tirá-las do bolso, envoltas por uma
gominha, cuspia nos dedos para contar o montante. Era o que me dava nojo! O dinheiro
ficava molhado e, como sempre fui muito nojento, “sofria” para segurá-las. Mas, havia a
compensação: sua esposa, a simpática D. Júlia, invariavelmente me chamava para
apreciar seus quitutes que acabavam de sair do forno. Sem contar com as frutas de seu
pomar que, claro, tinha grande prazer em degustar. O Cláudio Senna, sempre me
acompanhava nessas benditas “horas de degustação”. Por sinal, ele jamais imaginaria
que aquele casal amigo iria se tornar os bisavós de seus filhos! É que a sua então futura
esposa, a Fatinha, era neta de ambos! Coincidência feliz.
Logo mais à frente, pude ver a casa da esquina com rua Seis de Junho, do Zé
Mosquito e, ao seu lado, um casebre antigo que, diziam ser mal-assombrado. A casa do
Alexandre Tonelli situava-se logo adiante. Recordei dos jogos de botão e da sua coleção
de revistas “Saci Pererê e do Moleque, seu cachorro, que era muito bravo. Ao lado,
estava a casa da bela professora de História, a Hortência, que hoje é celebridade em
Formiga. Chegara a hora de ver a minha casinha querida... Virei o rosto...
“O que é isso?”, pensei, um pouco trêmulo, “O que a nossa Vemaguete branca
está fazendo na garagem? Como? Mas, aqui não se tornou uma repartição da Secretaria
da Fazenda?! Era mesmo o nosso carro! Poderia confirmá-lo, sem sombra de dúvidas,
pois a sua placa era 48-93-00!”. Era essa a surpresa maior dentre todas que tivera!

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Afinal, sonhava, ou não? Era muito real para ser sonho, mas era muito fantástico para
ser real! Ainda bem que meu coração sempre fora forte...
Novo arrepio percorreu minha espinha. A garganta ficara seca. As pernas
bambearam e as mãos suaram. Estava assombrado! Espantado! Aos poucos, ia
compreendendo – com reservas - o motivo da “ainda presença” da velha casa da D.
Sílvia na rua Monsenhor João Ivo...
Estiquei o pescoço e, com medo de enfrentar o porvir, olhei vagarosamente para
cima.
“A ‘nossa’ casa estava completamente intacta! Exatamente como era nos tempos
em que nela morávamos! Teria sido reconstruída ou reconstituída aqui mesmo de
novo?”, balbuciei, fingindo não acreditar no que via e tentando obter alguma resposta
plausível para aquela nova “visão”.
Meu coração continuava acelerado. Taquicardia em alto grau. Arrepiava dos pés
à cabeça.
E não era por causa do vento frio da madrugada formiguense! Isso era certo!
Tentando controlar meu ímpeto, consegui que a calma retornasse.
De repente, notei que uma luminosidade vinha diretamente da varandinha, logo
acima da garagem onde o carro estava. E eu ouvi um “som familiar” vindo de lá...

Dessa vez, balancei. Era, sem dúvida, o som de uma máquina de escrever que eu
ouvia!
“Não é possível! A luz está acesa! Ali era o escritório do papai! Ou..., ainda é?!”
“Tlec-Tlec-Tlec”...
Alguém estava datilografando.... De fato!
“Quem estaria batendo máquina agora? E a esta hora da noite!? Seria algum
funcionário da repartição pública? Mas... esta é a minha casa! Ou foi... Como se explica
isto?”, pensei, atordoado.
Sim. Sem dúvida, era o som nítido de alguém datilografando algo!
Esse toque ininterrupto... O papai batia máquina rápido assim! Era quando ele
“despachava processo”! E isso ele fazia geralmente às madrugadas!
Já estava passando dos limites! Era muita emoção para este pobre mortal!
Rememorei... A rotina noturna em casa era a seguinte: Quando éramos menores, após
a propaganda dos “Cobertores Parahyba” – que aparecia na televisão por volta de nove da
noite - tínhamos de ir para a cama. Depois, enquanto fazia suas palavras cruzadas, mamãe
assistia a mais uma novela pela Tupi ou Itacolomi, e o papai entrava no escritório para
trabalhar (ora nos processos, ora para preparar aula). E a máquina de escrever o ajudava
nessas empreitadas.
À propósito, o dia-a-dia do papai era árduo. Acordava bem cedinho para dar aula na
Escola Normal (de Francês). À tarde, trabalhava no Fórum, já como Juiz de Direito. De volta
para casa, descansava um pouco. Após o jantar, assistia ao “Repórter Esso” (ou “Jornal
Bancominas”, dependendo da época). Em torno de 10 ou 11 da noite, ia para o escritório,
quando somente saía por volta de duas ou três da manhã. Vida dura para nos dar conforto,
carinho e amor.
Essas reminiscências fizeram com que as lágrimas viessem aos meus olhos... Quanta
saudade do velho Walter!, pensei, enquanto ouvia o barulho das teclas da máquina batendo
sem parar!
Compreensivelmente, perdi o ímpeto naquele momento. A emoção intensa fraquejara-
me. Não sabia se enfrentava aquela realidade e veria quem estava no escritório ou, se fosse o
caso, “despertaria”! Mas... e se não estivesse dormindo? Qual seria a minha saída?

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Negativo. Não poderia perder uma oportunidade dessas! Afinal, medo e indecisão
sempre foram palavras de pouco uso no meu dicionário! Aquele momento era “real” demais
para ser desperdiçado. “Momento, sonho, ou realidade?”, tornei a me questionar.
Andei mais um pouco e cheguei até o portão de ferro, que estava fechado. Notei o
detalhe de suas grades pontiagudas, onde, de vez em quando, nos machucávamos por
acidente. Recuei de novo. E se rangesse, como sempre acontecia? O “pessoal” que estava na
casa, poderia ser alertado!
Enquanto decidia o que fazer, reparei outros pormenores da fachada da casa, que
fantasticamente continuava “intacta”. A escada, com degraus vermelhos, dava para o
alpendre, tinha um de seus ladrilhos quebrado. Pensei: “Interessante, no meu tempo, esta
lasca também existia...”.
Como se não bastasse, lá estavam os três pilares, um preto, outro amarelo e outro
branco, se não me engano, pois a luz do alpendre estava apagada. A tinta estava descascada
exatamente como antigamente... Abaixo, havia um canteiro forrado de pastilhas azuis.
Faltavam algumas. Buracos circulares faziam parte da arquitetura. Recordei quando me
escondia atrás deles para fazer uma de minhas travessuras favoritas. Assoprava canudinhos de
papel - através de um tubo de caule de mamão - nas pessoas que passavam no passeio.
Felizmente, nunca fora pego em flagrante...
Para completar a visão, ali havia três cadeiras de metal. Exatamente como antes! Sem
contar, com a mesa redonda, também de ferro! Assombrado, como era a tônica da hora, olhei
para a escadinha que levava até a varanda, que ficava acima da garagem e em frente ao
escritório. Vi um brilho. Era o reflexo da luz que vinha de dentro do mesmo. Enfrentaria os
próximos passos? Iria até lá para procurar saber quem estava batendo máquina? Virei-me para
a porta da sala...
Por trás do seu vidro fosco, dava para ver um bruxulear em preto-e-branco, distante,
provavelmente vindo da copa. Lembrei de outra pessoa saudosa: o meu irmão Márcio que,
como eu, também gostava de assistir televisão até tarde. Outra onda de “nostalgia” percorreu-
me a mente.
Também observei o portão de madeira azul logo ao lado da porta da sala. A maçaneta,
de aço inoxidável, era esférica. Teria coragem de fato para entrar na casa?
“Seria muito arriscado...”, vaticinei. “E se outras pessoas estiverem morando ali? Era
invasão de domicilio. Quem sabe, a casa fora reconstituída?... Mas, por que cargas d’água eu
estava ali de uma hora para outra? Há pouco estava deitado em minha cama! Teria que sanar
minhas dúvidas de qualquer forma... Estava, pois, decidido: ia tentar entrar na casa! E pelos
fundos!”.

Optando entrar pela parte de trás da casa, raciocinei que, se houvesse gente lá dentro,
conseguiria me safar sem ser percebido através do lado do vizinho. Além do mais, evitaria
forçar o portão, o que não seria nada educado de minha parte. Resolvi, pois, dar a volta, subir
a escada da outra casa e, depois, pular o muro que dava para o corredor lateral de minha
antiga morada. Seria a chance de, pelo menos, ver “quem estava lá dentro”. Só isso. Depois,
saciada a curiosidade, tomaria outro rumo...
Então, saí, contornei a casa e subi a escada do vizinho. Pé ante pé, para não fazer
barulho. Afinal, estava “invadindo” novamente. Felizmente, não tive problemas para fazê-lo.
Tudo indicava que as pessoas dali, possivelmente estavam, ou dormindo, ou ausentes.
Enquanto subia os degraus de granito voltava minha memória ao passado (ou ao “presente”?).
Avistei o telhado de amianto e, de novo, recordei que ali era o meu caminho para
“degustar” as mangas da casa do Poli, como já mencionei anteriormente. Ao término da
escada, olhei para baixo e vi o quintal da casa da estimada D. Isolina, genitora do então
Prefeito da cidade, Lufrido Nascimento. Tinha alguns motivos para “adentrar” aquelas

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cercanias. Para tanto, pulava o muro, primeiramente, no intuito de buscar as bolas que lá
caíam. Depois, se fosse na época certa, ingeria com prazer os saborosos pêssegos e goiabas
das árvores. Isso acontecia, principalmente quando eu e meus irmãos, Márcio e Marcelo
jogávamos disputadas quedas de “gol-a-gol” no pátio. Como era o menor, a condição para eu
jogar com eles, era “ter que apanhar a bola se ela cair na casa da vizinha”.
Voltando ao presente (ou ao “passado”?), ao debruçar no parapeito, olhei para baixo e
avistei o corredor e a janela da copa da velha casinha de outrora. Parecia mesmo, que a
televisão estava acesa, pois podia ouvir seu som característico, além do reflexo em preto e
branco.
Quem poderia estar assistindo àquela hora da noite?
De novo, respirei profundamente, a fim de readquirir energia para ter mais coragem e
enfrentar o que estava por vir. Enxuguei as mãos por causa do suor e arregacei a barra da
calça (incrível, como me lembro perfeitamente dessas minúcias!) para subir no muro da
escada visando chegar no outro muro abaixo, para depois pular para o corredor e, em
seguida, “espiar...
Foi o que fiz. Cuidadosamente e, sem fazer qualquer ruído, inclinei meu corpo e tomei
impulso. Alcancei o muro da casa. Por causa da altura e do lodo nele impregnado, não
consegui manter meu equilíbrio (“antigamente o fazia com mais desenvoltura”, pensei,
frustrado...) e a queda foi inevitável. Por sorte, pelo menos consegui manter o corpo ereto e
caí em pé na parte interior da casa, ou seja, no seu corredor de ladrilhos esverdeados. Foi um
barulho seco. Alto e audível!
Abri os olhos!
Estava novamente na minha cama! Em Belo Horizonte!
Numa noite do domingo, 8 de dezembro de 2002!
Fiquei trêmulo... Estava assustado!
O que teria acontecido realmente?
Os sentidos foram tão palpáveis! Ou seja, o tato, quando toquei nas paredes e notei a
cor da tinta vermelha nos meus dedos; o olfato, ao sentir o cheiro de lenha queimada e de
dama-da-noite; a audição, ao ouvir o som da máquina de escrever e, sobretudo, a visão, pois
os pormenores visualizados foram muitos. Houve até o momento em que senti a necessidade
dos óculos!
Mas... que espécie de sonho foi este, quando todas as sensações ficam ativas, como se
estivesse “acordado”? Estariam sendo também iludidas pela mente? Intrigante, porém
sintomático...
Caí no corredor de minha antiga casa e, de repente, estava de volta à minha cama,
exatamente como há pouco! Como poderia explicar toda aquela miscelânea de imagens e sons
de maneira plausível e convincente? Primeiramente, teria que recapitular, para mim mesmo,
cada momento recém-vivenciado! Olhei para o teto escuro do meu quarto e comecei a
reconstituição dos fatos...
Aos poucos, um suor frio e nervoso começou a empapar meu travesseiro...
Meu coração, já tão sacrificado nos minutos anteriores, voltou a disparar quando
lembrei que uma certa vez em Formiga (por volta de 1971 ou 1972), quando pedi ao papai
para assistir a um filme de terror na televisão. Era sobre uma equipe de sensitivos que deveria
pernoitar numa suposta casa mal assombrada, a fim de comprovar os fenômenos paranormais
que ali aconteciam.
Como gostava de registrar tudo e, sabendo que o filme tinha sons macabros, peguei o
gravador de rolo “Philips” e liguei-o para gravar.
Só não imaginava que também iria gravar um estranho “som externo”...

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À medida que ia rememorando o que acontecera quando da “excursão” à rua
Monsenhor João Ivo, ficava mais nervoso, pois tais lembranças acabariam por redundar em
algo ainda mais intrigante do que fora o próprio “sonho” ou, quem sabe, “acontecimento”...
Recordei que naquela noite, pedi ao papai que fechasse a porta do seu escritório, pois
quando batesse a máquina, poderia atrapalhar minha gravação. Tal detalhe, não me passou
despercebido tantos anos depois, posto que sempre fui meio “exigente” quando fazia
gravações, já que eram feitas com um microfone, indiretamente. Por isso, o som externo
eventualmente poderia ser também captado.
Pelo fato de estar sozinho, fiquei um pouco apreensivo por causa do filme: um tanto
estranho e sinistro. Seus sons eram mesmo macabros... E o gravador, efetivamente, detectou
tudo! Tudo, repito!
Enquanto gravava, lembrei, ouvi um barulho surdo de pisada, vindo do lado de fora
da casa!
Antes, vi um vulto através da janela! Não dá para esquecer! Era isso mesmo!
Na época, pensei estar imaginando coisas causa da tensão que o filme me causava.
Olhei para o gravador e certifiquei-me que este ainda estava “rodando”... Fiquei na
expectativa... Então, matutei:
“Seria um ladrão? O Marcelo pregando uma de suas peças?” Pensei em chamar o
papai, mas desisti, pois temia fazer papel de bobo. Como disse, depois ouvi nitidamente o
ruído de pés tocando secamente no chão! Parecia um pulo! Não havia dúvidas que uma
pessoa estava no corredor! Ao invés de ficar parado e, coerente com meus princípios, tomei
coragem e abri vagarosamente a janela...
No presente, respirei fundo, na medida que ia rememorando o passado remoto.
Tinha que enfrentar a situação. Além do mais, o gravador estava ligado, sendo,
portanto, a minha “prova testemunhal auditiva”!
Através da fresta aberta da janela nada vi. O corredor estava vazio, como sempre
esteve...
Como podia ser? O barulho de pés tocando no chão, fora tão cristalino e
inconfundível!
Depois, já menos assustado, abri de vez a porta, e, aliviado, confirmei que não havia
ninguém!
Antes mesmo do filme terminar, rebobinei o rolo de fita do gravador para constatar se
tudo aquilo não teria sido fruto de minha fértil imaginação... E não era! O som do pulo estava
gravado!
Como se não bastasse, ainda tenho esta fita até hoje!
Só sei que ainda assisti e gravei o restante do filme que, como já comentado, era sobre
uma incursão de cientistas e sensitivos à uma casa mal-assombrada. Depois disso, fui dormir
tranqüilamente, esquecendo-me do fato por completo. Não tenho certeza se comentei com
alguém tal acontecimento, pois preferi encará-lo naturalmente. Ou seja, para mim, fora algo
que despencara no chão, fazendo um barulho idêntico à uma pessoa caindo. Detalhe: jamais
achei este “algo”...
Pelo visto, o enigma perdurou até esse dia 8 de dezembro de 2002... Será?
Comecei a juntar os fatos: quem pulou (ou caiu)? Eu mesmo? Mas, eu não estava na
casa, vendo televisão? O “Eu do futuro” e o “Eu do passado” se encontraram em Formiga?
Passado e futuro coexistindo? Imaginação pura? Viagem no tempo? Mero sonho?
Como e por quê relembrar – ou vivenciar - tal evento justo no ano de 2002?
Penetrei em alguma espécie de “buraco de minhoca”, teoria tão decantada pelos físicos
atuais?
A rua Monsenhor João Ivo, tal como era nos idos anos 60 ou 70, ainda existe num
mundo paralelo?

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Ou, afinal de contas, tudo isso, não teria sido resultado de um dia cansativo que, por
isso, “confundiu” os “meandros” de minha memória?
Mas, como se explica essa “junção” de acontecimentos?
Como um sonho se entrelaça dessa maneira com a realidade? Coincidência?
Sincronismo?
Como a fita de rolo ainda existe, devo sanar pelo menos um dentre tantos
questionamentos: vou analisar o som vindo de fora, que está gravado desde os anos 70...
Mas, o que adiantaria isso? Aonde chegaria com esta análise? Que outras provas teria?
Não importa. Persistirá para sempre o questionamento, a dúvida. Paciência...
O que importa realmente é que esta incrível “viagem” está registrada para a
posteridade!
E o mistério há de permanecer insolúvel....
Vagando nos confins do tempo e do espaço!
Em suma...,
SENTI O QUE SENTI, VI O QUE VI E OUVI O QUE OUVI!
Acredite..
...se lhe bem aprouver...

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