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SOUZA, Tania Clemente.

O ensino de língua portuguesa numa


perspectiva discursiva. In: Presenças de Michel Pêcheux: da Análise
do Discurso ao Ensino de Língua portuguesa. Campinas: Mercado de
Letras, (no prelo).

O ensino de Língua Portuguesa numa perspectiva discursiva

Tania Conceição Clemente de Souza


Museu Nacional – Universidade Federal do Rio de Janeiro

Aula de Português

A linguagem
na ponta da língua,
tão fácil de falar
e de entender
[...]
Já esqueci a língua em que comia,
em que pedia para ir lá fora,
em que levava e dava pontapé,
a língua, breve língua entrecortada
do namoro com a prima.
O português são dois; o outro, mistério.

Carlos Drummond de Andrade

Os versos do poeta em epígrafe apontam, para nós, o


distanciamento entre a língua que se pratica no dia a dia e a língua-objeto
de ensino (mistério!). É preciso esquecer a língua que nos interpela como
sujeitos, para poder “aprender“ a língua de compêndios e gramáticas.
Aprender como? Muitos são os trabalhos que refletem sobre a forma –
quase sempre ineficaz – que recorta o ensino do português reduzido a um
conjunto de regras gramaticais, descontextualizadas e isentas de sentido.
Sobre a leitura, recaem, sobretudo, as críticas sobre a forma
conteudista , pouco reflexiva e baseada em questões como “O que o texto
quer dizer?“, ou “Qual a mensagem do texto?“, ou, ainda, “O que o autor
quis dizer?” Um ponto em comum que perpassa todas essas críticas reside
no fato de se apontar com precisão os equívocos da prática pedagógica.
Fala-se de como é ineficaz o enfoque da Língua Portuguesa, no entanto,
quase sempre não são oferecidas estratégias que venham mudar esse
enfoque.
Nossa proposta toma, então, como ponto de partida refletir sobre a
possibilidade de se trabalhar a língua como um todo, em que se articulam
três níveis de escansão: a gramaticalidade, a textualidade e a
discursividade. Antes, porém, pinçamos reflexões de Orlandi sobre
leitura.

Leitura numa perspectiva discursiva

A reflexão sobre o trabalho de leitura numa perspectiva discursiva


nos remete à Orlandi (1988), livro que reúne uma série de artigos
colocando em pauta a noção de leitura no viés da discursividade. Desses
artigos, retomo aqui “O inteligível, o interpretável e o compreensível“,
em que a autora discute a constituição dos processos de significação.
“Não é só quem escreve que significa: quem lê também produz
sentidos”, desde que sejam oferecidas a quem lê determinadas condições
de produção. Leitura é uma questão de determinação histórica dos
processos de significação.
Três são as relações do sujeito com a significação, como propõe
Orlandi. Nos processos de significação, há uma distinção fundamental
entre três níveis: o inteligível, o interpretável e o compreensível. Com
remissão a Haliday (1976, apud Orlandi, 1988), qualquer sentença, como
por exemplo, “Ele disse isso” é inteligível, mas escapa ao interpretável,
pois faltam elementos que garantam as relações semânticas que
imprimiriam coerência interna ao enunciado citado.
Com base ainda em Haliday, Orlandi estende o conceito de
textualidade, entendido como o resultado da coerência interna (coesão) e
da coerência externa (consistência de registro) e propõe o que se pode
definir como compreensão. Jogando com o alcance do discursivo,
delineiam-se:

(a) o inteligível, nível da codificação;


(b) o interpretável, quando se atribui o sentido levando em conta o
contexto linguístico (coesão);
(c) o compreensível, quando a atribuição de sentidos leva em conta
o contexto de situação, estando em relação
enunciado/enunciação.

O que de bastante pertinente se observa na proposta de Orlandi é


que o nível da textualidade aciona a interpretação, mas por si só não
garante a atribuição de sentidos. A compreensão decorre da historicidade
dos textos e dos leitores. Com base em argumento da mesma ordem é que
pensamos a leitura/interpretação articulando, além da textualidade e da
discursividade, os processos gramaticais de modo que a gramática não
seja uma atividade meramente formal.

Gramática e textualidade: um fator de dificuldade

Em trabalho anterior (cf: Souza, 2011), analisamos quatro questões


aplicadas em concursos de vestibular de diferentes universidades.
Trouxemos, aqui, uma das questões que exploramos no sentido de ilustrar
o enfoque confuso de muitas das questões de concurso. Sobretudo,
queremos mostrar a distância entre o conteúdo que se ensina e o que é
cobrado nesses exames seletivos, e como a exploração de recursos
gramaticais parece ser um fator de dificuldade no acesso às respostas
corretas.
A partir da oferta do poema de Manuel Bandeira foram formuladas
duas questões que visavam articular a estrutura gramatical explorada no
poema os efeitos de sentidos decorrentes desse uso.

Camelôs
Manuel Bandeira

Abençoado seja o camelô dos brinquedos de tostão:


O que vende balõezinhos de cor
O macaquinho que trepa no coqueiro
O cachorrinho que bate com o rabo
Os homenzinhos que jogam boxe
A perereca verde que de repente dá um pulo que engraçado
E as canetinhas-tinteiro que jamais escreverão coisa alguma

Alegria das calçadas.


Uns falam pelos cotovelos:
- “O cavalheiro chega em casa e diz: ‘Meu filho, vai buscar um
pedaço de banana para eu acender o charuto.’ Naturalmente o
menino pensará ‘Papai está malu...’
Outros, coitados, têm a língua atada.

Todos, porém, sabem mexer nos cordéis com o tino ingênuo de


demiurgos de inutilidades.

E ensinam no tumulto das ruas os mitos heróicos da meninice...

E dão aos homens que passam preocupados ou tristes uma lição de


infância.

1) Identifique dois recursos predominantes na caracterização dos


núcleos do complemento do verbo vender, que se encontra no
segundo verso do poema de Bandeira: um de natureza morfológica
e um de natureza sintática. Diga quais são esses recursos.

2) Como esses elementos identificados no item anterior se


convertem em recursos expressivos?

Apesar de a questão acima apresentar um certo grau de dificuldade,


pois o comando na primeira parte da mesma envolve, a um só tempo, o
domínio de três fatos gramaticais – localizar o complemento do verbo
vender, identificar os núcleos presentes nos versos seguintes e saber o
que é um recurso de natureza morfológica e outro de natureza sintática -,
a elaboração da mesma tem em si um dado expressivo, que é trabalhar,
como sugere a segunda parte da questão, a relação gramática e sentido.
Logo, na questão como um todo, não há apenas a preocupação de se
cobrar a gramática pela gramática.
Considerando-se, entretanto, que para responder a segunda parte – a
que explora a relação gramática/sentido – o aluno precisa ter um bom
domínio de gramática, tal como exige o item (1), o movimento de se
trabalhar com a materialidade discursiva da língua acaba por se perder.
Se o aluno não responde as perguntas sobre gramática, certamente, não
será bem sucedido na questão de interpretação. Nesse caso, o objetivo
central da pergunta acaba se configurando, apenas, em torno do
conhecimento dos fatos de gramática, ficando preterido o trabalho com a
língua como objeto simbólico, como fato sempre possível de
interpretação. Como fica sugerido no gabarito proposto: “o uso do sufixo
–inho como em “balõezinhos” remete ao universo singelo da infância,
que se encontra manifesto nos “brinquedos de tostão” vendidos pelo
camelô. Já o uso reiterado das orações adjetivas contribui para a
caracterização do movimento dos brinquedos, o qual atrai a atenção dos
passantes.”
Uma observação se faz pertinente no sentido de explicitar que a
simples informação sobre os elementos gramaticais, por si só, não
garantiria ao aluno desenvolver a resposta sugerida no gabarito. Seria
preciso que a questão chamasse a atenção do aluno, por exemplo, sobre o
tipo de personagem (o camelô) bem como sua atividade explorada no
texto. Enfim, poderia se lançar mão do recurso da visibilidade, pedindo
ao aluno para imaginar o camelô trabalhando para só, então, fazer uma
interligação com os elementos gramaticais explorados. Quanto à primeira
parte da questão, se o objetivo é cobrar a gramática, os dois recursos que
caracterizam o objeto do verbo “vender” também poderiam ter sido
apontados, pedindo-se, apenas, a sua classificação gramatical. Estratégias
como essas não gravitariam, necessariamente, em torno da expectativa do
erro, como parece ser a proposta de enunciados como os que estão sendo
explorados em questões como essas.
No que se refere à segunda parte da questão, a redação do enunciado
– “Como esses elementos identificados no item anterior se convertem em
recursos expressivos?” – parece problemática. Do ponto de vista
semântico, a pergunta “como se convertem?” pode sugerir que há algum
mecanismo, ou operação, que transformaria os recursos gramaticais – o
sufixo indicador de diminutivo, como em “balõezinhos” e a oração
adjetiva, como, por exemplo, em “que trepa no coqueiro” – em recursos
expressivos. O que significa mais um dado de dificuldade à resposta em
questão.
Na verdade, não se tem esse movimento na língua: a passagem do
nível gramatical para o semântico. A língua é, como diz Pêcheux, o lugar
material onde se realizam os efeitos de sentido. Não há, pois, uma
materialidade linguística e uma discursiva. Língua e discurso se realizam
numa imbricada relação de constituição. Os recursos da ordem da língua
(como os fatos de gramática, por exemplo) não se convertem em recursos
expressivos: eles constituem a dimensão semântica da língua em toda a
sua textualidade e a sua dimensão discursiva. Assim, o que, a princípio,
parecia ser uma proposta de trabalhar o texto acima como um todo
semântico, acabou por revelar um equívoco ao se separar língua e
discurso.
Retomando o que já dissemos anteriormente, significar, dar sentido
decorrem de condições de produção. Uma possibilidade de se investir em
outros gestos de leitura, de interpretação, para além de questões
conteudistas, seria subsidiar o tipo de proposta do segundo item da
questão em análise com a explicitação dos recursos gramaticais cobrados
anteriormente. Ou seja, por que fazer da gramática um empecilho ao
trabalho com a materialidade discursiva? Por que não se investir em
outras práticas de leitura? Leituras produtivas, que certamente levam à
constituição de um sujeito crítico e capaz de dar sentido, num gesto
simbólico de apropriação dos próprios fatos de gramática. Perguntas com
tal nível de elaboração deixam escapar a oportunidade de se re-significar
a própria gramática. Em âmbito político-ideológico, não se realiza um
deslocamento significativo: a gramática pode deixar de ser apenas um
corpo abstrato de regras e formulações e passar a ser entendida, numa
relação de interação, como a base material do sentido.
Em termos práticos, procuramos mostrar como a grande parte das
questões propostas nos exames de seleção à faculdade parecem investir
no fracasso do aluno, contrariando toda uma gama de princípios políticos
e pedagógicos atualizados nas discussões sobre a construção do
conhecimento. O exame desse tipo de questões que vêm sendo
parâmetros para a entrada nas nossas universidades públicas suscita,
ainda, reflexões que nos remetem à ordem do discurso. Mais do que
parâmetros que avaliam aquilo que o aluno não sabe, essas questões se
constituem como “verdades indiscutíveis”, funcionam certamente, dentre
muitos, como procedimentos de controle e delimitação do discurso, como
propõe Foucault (1971). São procedimentos que funcionam como
sistemas de exclusão e dizem respeito à parte do discurso que põe em
jogo o poder. São procedimentos que funcionam, sobretudo, a título de
princípios de classificação, de ordenação, de distribuição, enfim, de
seleção do vestibular.
Que alunos – e que professor – se inscrevem na materialidade
discursiva desse tipo de enunciado? Certamente, uma minoria. No caso,
aquela que tem direito de ingressar numa universidade pública. A mesma
universidade que, numa outra instância, questiona o perfil social do aluno
que cursa uma instituição pública. E investe não na melhoria do ensino e
na formação do professor. Ou na reformulação dos exames seletivos.
Enfim, a mesma universidade que insiste nos procedimentos de
distribuição e classificação, paradoxalmente, institui um sistema de
inclusão por cotas. Mas essa é uma outra questão.
Voltando ao nosso foco, o de se trabalhar a língua em sua condição
histórica, a meta seria a de compreender como um objeto simbólico
produz sentido, como ele está investido de significância para o sujeito,
explicando como o texto organiza os gestos de interpretação que
relacionam sujeito e sentido, dando lugar a novas práticas de leitura.
Para que as palavras façam sentido, é preciso que elas já tenham
sentido. Mas sentido para quem? Para que as palavras façam sentido é
preciso que se articule o já-dito, a memória discursiva. Esta, porém, pode
e deve ser trabalhada, sedimentada, basta que se invista num trabalho
com a intertextualidade, relação de um texto com outros textos; nessa
relação, a intertextual, ampliam-se as condições de produção. Amplia-se
a tensão entre o movimento parafrásico – repetir o mesmo; decorar o
conteúdo - e o movimento polissêmico – buscar outros sentidos e investir
na construção do conhecimento. Todo discurso se reproduz na tensão
paráfrase (mesmo)/polissemia (diferente). Assim, para se fugir ao
mecanicismo, é preciso dar condições para o aluno significar, dar sentido.
Significar entendido, no caso, como o movimento (do sujeito) entre o
jogo e a regra; a necessidade e o acaso; um movimento de confronto do
mundo com a linguagem, etc. Eis aí uma relação tensa do simbólico com
o real e o imaginário. Eis aí, enfim, uma possibilidade de mudança.

Três níveis de escansão com o trabalho com a linguagem

Em uma proposta, como a da Análise de Discurso, em que o


político e o simbólico se confrontam, essa nova forma de conhecimento
coloca questões sobre o trabalho com a linguagem. Dessa maneira, o
enfoque na discursividade visa pensar o sentido dimensionado no tempo
e no espaço das práticas do homem. Em consequência, não se trabalha
com a língua fechada nela mesma, mas sim, como materialidade
discursiva.
Nem se trabalha, por outro lado, com a história e a sociedade como
se elas fossem independentes do fato que elas significam. Nessa
confluência, a Análise de Discurso critica a prática das Ciências Sociais e
a da Linguística, refletindo sobre a maneira como a linguagem está
materializada na ideologia e como a ideologia se manifesta na língua.
Partindo da ideia de que a materialidade específica da ideologia é o
discurso e a materialidade específica do discurso é a língua, trabalha aí a
relação língua-discurso-ideologia. Essa relação se complementa com o
fato de que, como diz M. Pêcheux (1975), não há discurso sem sujeito e
não há sujeito sem ideologia: o indivíduo é interpelado em sujeito pela
ideologia e é assim que a língua faz sentido. Consequentemente, o
discurso é o lugar em que se pode observar essa relação entre língua e
ideologia, compreendendo-se como a língua produz sentidos por/para os
sujeitos. (Orlandi, 1999)
Retomando, assim, que a constituição da Análise de Discurso se dá
na conjunção crítica de três disciplinas – Linguística, Marxismo e
Psicanálise -, uma das formas de se trabalhar com textos verbais é jogar
com três níveis de escansão – gramaticalidade, textualidade e
discursividade -, que se constituem mutuamente no entrelace do tecido
discursivo.
No nível da gramaticalidade, exploram-se os recursos gramaticais
pertinentes à organização do texto como um todo. É neste âmbito que o
texto é tecido como um todo semântico. Logo, a escolha dos aspectos
gramaticais não é aleatória. Não é qualquer elemento gramatical no texto
que deve ser explorado, mas sim aqueles que o autor privilegiou como
recursos no momento da construção do texto. Este nível se difere do da
textualidade, porque aqui se explora o conteúdo trabalhado sob a rubrica
de “gramática tradicional”.
Válido é lembrar Pêcheux (2011), quando estabelece que a sintaxe
é o algoritmo do discurso. Na verdade, tal algoritmo pressupõe dois eixos
que se cruzam: um vertical1, onde se apreende a ordem “lógica da

1
Pêcheux elege o livro de Chomsky, Aspects, como modelo de descrição do funcionamento
da sintaxe.
sintaxe”, mas não se apreende o sentido; outro horizontal, onde trabalham
os deslizamentos de sentido. Como já observamos (Souza, 2013), face a
essa estabilidade paradigmática, a produção discursiva se dá,
simultaneamente, numa projeção sintagmática (horizontal), como deriva¸
deixando traços na intradiscursividade da sequência textual. Promove-se,
assim, um deslocamento: o rompimento da lógica sintática dá lugar a uma
autonomização de um mundo discursivo auto-referido.
No nível da textualidade, busca-se explorar as inter-relações
sintagmáticas no nível da coesão e coerência. Busca-se explorar as
relações de sentido decorrentes da concatenação dos recursos gramaticais,
trabalhando-se, principalmente, o texto em sua prospecção e sua
concepção como uma estrutura (imaginária) com início, meio e fim. Joga-
se, aí, com a circularidade do texto, explorando-se, inclusive, a relação
com o título. Neste nível, também são arrolados, em termos de
textualidade (verbal e não verbal), o tecido dos diferentes gêneros
discursivos.
No nível da discursividade, exploram-se os efeitos de sentido no
âmbito do político-ideológico. Quais são os valores de ordem ética,
moral, poéticos, metafóricos, etc explorados no texto? Aqui, se
trabalharia, de fato, a compreensão do texto, não se prevendo, portanto,
respostas fechadas. E seriam respostas cuja materialidade resultam da
articulação dos níveis acima – gramática e textualidade, no sentido de se
fugir ao conteudismo (o que o autor/o texto quer dizer?) e ao
subjetivismo, que demandaria “adivinhar” a leitura/interpretação do
avaliador (professor).
Assim, quando são propostos esses três níveis, não se descarta a
gramática, já que “a sintaxe é o algoritmo do discurso”. Por outro lado,
o trabalho restrito à textualidade, como proposto na Linguística Textual,
por si só não dá conta do sentido. Dá conta apenas dos mecanismos de
coerência e coesão. Mecanismos esses que variam de sistema para
sistema, de código para código. Ao se pensar, porém, a materialidade
discursiva em seu todo e em termos verbais (e não verbais), os
mecanismos de coesão e as estruturas gramaticais jogam com estratégias
cognitivo-discursivas e favorecem analisar os textos, como
acontecimento, ou seja, como discurso.
A língua está no mundo com homens (históricos) que falam e
significam em determinadas condições de produção, que definem a
exterioridade da/à linguagem. Pensar a língua em sua condição histórica
faz definir a linguagem, alheia a uma dimensão universal, como fato
sempre possível de ser interpretado. A Análise do Discurso busca
compreender como um objeto simbólico produz sentido, como ele está
investido de significância para o sujeito.
Nesse sentido, com relação ao trabalho da língua, há que se pensar a
formulação de questões que desencadeiem a análise. As análises se
diferenciam a partir do instante em que as questões se diferenciam porque
mobilizam conceitos diferentes. Entram aí em jogo dois dispositivos - o
teórico e o analítico. O primeiro diz respeito ao conjunto de conceitos; o
outro diz respeito à apropriação dos conceitos a partir da questão
formulada. Logo, mudar o enfoque na análise da língua é mudar a
abordagem de base; é buscar uma abordagem que permita tratar os fatos
de linguagem como fatos igualmente históricos e simbólicos, por isso a
oferta de um outro dispositivo metodológico2.

Uma questão de estratégia

Durante um bom tempo trabalhei com o ensino de língua


portuguesa com professores do ensino médio e com alunos do curso de
Letras, trazendo a discussão sobre o ensino de gramática separado de
outras atividades, como a interpretação de texto e a redação. Não é uma
tarefa fácil integrar essas três atividades, mesmo por que os livros
didáticos separam a gramática dos exercícios de leitura e interpretação de
texto. E os professores alegam pouco tempo para buscar outras
estratégias, mas também admitem que o enfoque da gramática nos
chamados moldes tradicionais não é satisfatório. Admitem, ainda, que as
questões de concurso não refletem o mesmo tratamento dado nos livros
didáticos.
Como articular gramaticalidade, textualidade e discursividade?
Começando pela escolha dos textos, estes precisam ser explorados pelos


2
Aqui se faz pertinente todo o investimento de Orlandi (1985, 1988, 1997, dentre outros) em
refletir sobre a compreensão da língua como fato igualmente histórico e simbólico, com a
oferta de um outro dispositivo metodológico.


recursos que trazem, de fato, expressividade. Esses recursos, ao serem
trabalhados como fios da textualidade, são os que pelo viés da Análise de
Discurso podem ser entendidos como operadores discursivos. Operadores
que, além do trabalho de coesão, trabalham na tessitura do texto, ou seja,
no eixo da discursividade. Ou, retomando Pêcheux, na horizontalidade,
lugar onde se instituem o movimento de paráfrases (movimento de
espelho) e os efeitos metafóricos. À guisa de ilustração, trazemos a foco
um trecho adaptado da crônica “A borboleta amarela”, de Rubem Braga.
Trata-se de um texto que compõe uma coletânea de crônicas escritas no
antigo jornal Correio da Manhã, nos anos de 1950.

A BORBOLETA AMARELA
Rubem Braga

Era uma borboleta. Passou roçando em meus cabelos, e no primeiro


instante pensei que fosse uma bruxa ou qualquer outro desses insetos que
fazem vida urbana; mas, como olhasse, vi que era uma borboleta amarela.
Era na esquina de Graça Aranha com Araújo Porto Alegre; ela
borboleteava junto ao mármore negro do Grande Ponto; depois desceu,
passando em face das vitrinas de conservas e uísques; eu vinha na mesma
direção; logo estávamos defronte da A.B.I. Entrou um instante no hall,
entre duas colunas; seria um jornalista? – pensei com certo tédio.
Mas logo saiu. Fiquei a olhá-la. Tão amarela e tão contente da
vida, de onde vinha, aonde iria? Nada sei de borboletas. nascera, acaso,
no jardim do Ministério da Educação? Quando eu mandar fazer os
jardins de meu palácio, direi: Burle, aqui sobre esses manacás, quero uma
borboleta amare... Mas o sinal abriu e atravessei a rua correndo, pois já ia
perdendo de vista a minha borboleta.
A minha borboleta! Isso, que agora eu disse sem querer, era o que
eu sentia naquele instante: a borboleta era minha – como se fosse meu
cão ou minha amada de vestido amarelo que tivesse atravessado a rua na
minha frente, e eu devesse segui-la. Reparei que nenhum transeunte
olhava a borboleta; eles passavam, devagar ou depressa, vendo
vagamente outras coisas – as casas, os veículos ou se vendo –, só eu vira
a borboleta, e a seguia, com meu passo fiel. Naquele ângulo há um
jardinzinho, atrás da Biblioteca Nacional. Ela passou entre os ramos de
acácia e de uma árvore sem folhas, talvez um "flamboyant"; havia,
naquela hora, um casal de namorados pobres em um banco, e dois ou três
sujeitos espalhados pelos outros bancos, dos quais uns são de pedra,
outros de madeira, sendo que estes são pintados de azul e branco. Notei
isso pela primeira vez, aliás, naquele instante, eu que sempre passo por
ali; é que a minha borboleta amarela se tornava sensível às cores.
Amanhã eu conto mais.

Na crônica de Rubem Braga, há dois recursos gramaticais que


expressam toda a dimensão semântica do texto: a pontuação de
determinados trechos e o uso dos artigos indefinido (uma) e definido (a),
quando referidos à borboleta. Além desses, há um jogo entre os verbos
olhar/ver, que reforça o sentido de definido/indefinido. A proposta de
trabalho com este texto deverá, assim, fazer com que o aluno apreenda
toda essa extensão semântica da crônica. Nesse caso, o professor deverá
ter clareza que são esses os elementos que vão conduzir a interpretação.
Como sugestão, seguem algumas questões.
(1) O texto “A borboleta amarela”, de Rubem Braga, narra o
passeio do autor pelas ruas do centro da cidade do Rio de
Janeiro. No texto, percebe-se dois momentos importantes,
marcados pelas expressões ‘uma borboleta amarela’ (primeiro
parágrafo) e ‘a minha borboleta amarela’ (quarto parágrafo).
Explique a diferença de sentido entre o uso do artigo
indefinido uma e o artigo definido a, levando em conta o que
está sendo narrado no texto.
(2) Uma outra diferença que se percebe no texto é a diferença
entre os verbos olhar e ver, que aparecem na terceira linha do
primeiro parágrafo e nas linhas quatro e cinco do quarto
parágrafo. Que relação a diferença entre esses verbos pode ter
com a diferença entre o artigo indefinido uma e o artigo
definido a, levando em conta o que está sendo narrado no
texto?
(3) No segundo parágrafo se verifica que muitas frases são
separadas pelo sinal de ponto-e-vírgula [;]. Pela definição da
gramática, o uso deste sinal significa que a leitura deve ter uma
pausa maior que a da vírgula. Relendo este parágrafo,
explique o sentido que este sinal de pontuação traz neste
trecho, levando em conta a ação do autor/personagem que
passeia pela cidade.
(4) Um outro exemplo significativo do uso da pontuação está
presente em “quero uma borboleta amare...” (terceiro
parágrafo). A palavra amarela foi interrompida pelo uso das
reticências. Por quê? Reflita, de novo, sobre o desenrolar da
narrativa.
(5) Acompanhar o voo de uma borboleta pelas ruas da cidade
mudou o modo de ver a cidade? Que mudanças de
comportamento este passeio trouxe ao personagem da crônica?
Que pequenos “valores” ele descobriu no centro da cidade?
Redija um pequeno texto refletindo sobre essas questões nos
dias de hoje, procurando entender a forma como as pessoas
passeiam pelas nossas cidades.

Sobre o conjunto de questões acima, os professores costumam


apontar, por um lado, a dificuldade de redigir as mesmas, sem perder de
vista o próprio desenvolvimento do texto; por outro lado, consideram que
este tipo de redação pode ser difícil para o aluno entendê-las. Mas, ao
mesmo tempo, acham que este é o caminho para se integrar gramática e
leitura. Consideramos que, de imediato, este tipo de dificuldade pode
surgir, entretanto se, guardadas as devidas proporções, essa forma
reflexiva de ler e compreender for praticada desde as primeiras séries
escolares, o trabalho com a língua portuguesa será, de fato, eficaz.
Ressaltamos, ainda, que cada resposta às perguntas acima requer a
redação de pequenos textos, sobretudo a última questão, que procura
arrematar o teor crítico do texto como um todo. Dessa forma, além de se
buscar trabalhar a articulação de gramaticalidade, textualidade e
discursividade, trabalha-se, também, a redação. Como diz Foucault
(1971), o princípio de autoria decorre do exercício do comentário:

“Por ora, gostaria de me limitar a indicar que, no que se


chama globalmente um comentário, o desnível entre texto
primeiro e texto segundo desempenha dois papéis que são
solidários. Por um lado permite construir (e
indefinidamente novos discursos: o fato de o texto
primeiro pairar acima, sua permanência, seu estatuto de
discurso sempre reatualizável, o sentido múltiplo ou oculto
de que passa por ser detentor, a reticência e a riqueza
essenciais que lhe atribuímos, tudo isso funda uma
possibilidade aberta de falar. Mas, por outro lado, o
comentário não tem outro papel, sejam quais forem as
técnicas empregadas, senão a de dizer enfim o que estava
articulado no texto primeiro. Deve, conforme um
paradoxo que ele desloca sempre, mas ao qual não escapa
nunca, dizer pela primeira vez aquilo que, entretanto, já
havia sido dito e repetir incansavelmente aquilo que, no
entanto, não havia jamais sido dito. (p. 24-25)

Uma outra atividade que pode ser feita em um momento


posterior, é solicitar ao aluno a redação de um texto onde se explore a
diferença de sentido entre o uso dos artigos indefinidos um/uns;
uma/umas e o uso dos artigos definidos o/a; os/as. Numa classe com mais
de quarenta alunos, foi solicitada esta atividade. Quando da leitura das
redações, verificamos que uma aluna, diferente dos demais, não partiu,
como fez Rubem Braga, do uso do artigo indefinido para o definido. A
princípio, pensamos que a aluna não teria entendido o comando da
proposta. O que não acontecera: narrando uma breve relação afetiva com
um rapaz, a aluna, após uma decepção com o rapaz, fala da passagem de
“o garoto dos meus sonhos” para “aquele que passou a ser mais um
garoto qualquer”. Não só ela entendera a proposta, como, com certeza,
aprendeu o uso diferenciado dos artigos. Eis, aí, o exemplo de um
trabalho eficaz com o trabalho com a língua.

À guisa de conclusão

Todo o percurso que fizemos até aqui buscou demonstrar que é


possível dar um outro rumo ao ensino do idioma, quando se investe no
caráter discursivo-ideológico materializado na língua. Pelo viés da
Análise do Discurso, entendemos que não é o indivíduo que se apropria
da língua. É a língua que se apropria do indivíduo e o constitui em sujeito
do sentido, do dizer. Sujeito e sentido não se separam, e são determinados
historicamente pelo caráter simbólico da língua.
Não é preciso esquecer a língua em que...
Bibliografia
BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Editora
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