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Revista Brasileira de Ensino de Física, vol.

41, nº 1, e20180145 (2019) Artigos Gerais


www.scielo.br/rbef cb
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2018-0145 Licença Creative Commons

Espaço, Tempo e Estruturas das Teorias do Movimento


Space, time and structures of motion theories

Ademir Eugenio de Santana*1


1
Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil

Recebido em 17 de Maio, 2018. Revisado em 23 de Julho, 2018. Aceito em 26 de Julho, 2018.


Considerando a conceitualização e definição do tempo e do espaço, elementos constitutivos de um programa
mecânico, ou seja, de uma teoria do movimento, são identificados. Primeiro, aspectos históricos sobre a mensuração
e a geometrização do conceito de tempo e espaço são descritos. A análise sobre os projetos mecânicos é então
desenvolvida a partir da definição de pontos inerciais (materiais) e de campos. Como aplicação desse método, a
mecânica clássica nas suas versões relativísticas e não-relativísticas são discutidas, com ênfase na natureza do
tempo. Como outro exemplo, a teoria cinética é estudada enquanto uma teoria de campo. Aspectos pedagógicos
sobre a transposição didática dos conceitos abordados são apresentados, em particular no caso da teoria cinética.
Palavras-chave: Tempo, Espaço, Teorias do Movimento

Considering a conceptualization and a definition of time and space, constitutive elements of a mechanical
program, that is, of a motion theory, are identified. Historic elements regarding measurement and geometric
aspects of time and space are described. The analysis of mechanical theories is carried out by considering a
definition for inertial points and fields. As an application of this approach, the relativistic and the non-relativistic
mechanics are analysed, emphasizing the nature of time. As another example, the relativistic kinetic theory is
studied as a field theory. Pedagogical aspects regarding a didactic transposition of concepts are presented, in
particular with the formalism for the kinetic theory.
Keywords: Time, space, Theories of Motion

1. Introdução conceitualização, tanto matemática quanto física, a partir


de bases sólidas: um problema ainda em aberto [18–20].
A análise comparativa de teorias do movimento, ou seja A questão se torna mais intricada na perspectiva pe-
a axiomatização, conceitualização e definição de limites dagógica, pois demanda um processo de transposição
de aplicabilidade das mecânicas, é uma tarefa de longa didática, no qual os elementos a serem transpostos en-
data que se notabiliza com a postulação da relatividade contram-se em desenvolvimento [18–20]. Por exemplo,
restrita e da mecânica quântica. A importância deste um campo quântico, intrinsecamente ligado à noção de
tipo de estudo, mesmo que inicialmente motivado por partícula quântica elementar, se, na perspectiva mate-
questões acadêmicas, e não por problemas de aplicações mática, está satisfatoriamente apresentado nos livros
imediatas [1–7], conduziu a significativas descobertas de canônicos dessa disciplina [21], conceitualmente, perma-
natureza conceitual e prática. Um exemplo notório foi nece por vezes como um objeto de entendimento físico
a proposição das desigualdades de Bell [8, 9], associa- difuso, pois, em muitos casos, misturam-se noções aparen-
das ao desenvolvimento subsequente de conceitos como temente antagônicas, como a de ponto inercial (material)
emaranhamento e teletransporte de estados da radiação; e de amplitude de probabilidade.
noções fundadoras para a computação e comunicação A função de onda em mecânica quântica é interpretada
quânticas [10–15]. corretamente em bons livros [22] como uma amplitude de
Esse tipo de análise permance relevante, quer seja probabilidade, caracterizada como um objeto estendido
no contexto inicial, com a comparação entre a teoria no espaço descrevendo um sistema físico como um elé-
quântica e a mecânica clássica (ambas não relativísticas), tron. Ou seja, a função de onda é um campo clássico. Em
como também ganha novos domínios devido à consagra- outras situações, contudo, mesmo em tentativas axiomá-
ção do modelo padrão da física de partículas elementares, ticas, essa amplitude é embrulhada em um pacote junto
com a detecção do bósons de Higgs [16], e da relatividade com a noção de ponto material [23]; e disso emergem limi-
geral, com a mensuração do gráviton [17]. Ou seja, inclui tações conceituais e muita dificuldade pedagógica. Há de
a teoria quântica de campos que, ao apontar para possi- se considerar também que muitos outros objetos mecâni-
bilidades amplas de novos fenômenos físicos, exige uma cos foram introduzidos nas últimas décadas e demandam
amadurecimento conceitual, para que sejam explorados
na plenitude. Assim são as noções de cor e de confina-
* Endereço de correspondência: asantana@unb.br. mento/deconfinamento da matéria hadrônica [21, 24, 25].

Copyright by Sociedade Brasileira de Física. Printed in Brazil.


e20180145-2 Espaço, Tempo e Estruturas das Teorias do Movimento

Um elemento importante nessa análise é a caracteriza- quanto elementos definidores da noção de tempo, e os
ção de uma teoria do movimento; ou de modo outro, de geométricos, associados a atributos qualitativos teóricos;
uma teoria mecânica. Axiomaticamente, esse problema e este tem sido o caminho histórico.
tem sido considerado, por exemplo, pelas teorias de re- A noção de tempo, seu desenvolvimento sistemático e
presentação de grupos de simetrias. Este programa foi pragmático, através do instrumento de medida, o reló-
iniciado por Wigner [26, 27], e que, junto aos teoremas gio, está, para uns, na essência do processo que levou à
de Noether, encontra apogeu nas teorias de calibre abe- hegemonia cultural, científica e econômica da sociedade
liano e não-abeliano; ou seja, na edificação do modelo ocidental [37]. Esse desenvolvimento é reminescente dos
padrão da física de partículas [19–21]. Mas também neste primórdios da idade média e encontra a primeira sín-
caso, nem todos os elementos estruturantes ficam com- tese na mecânica proposta por Newton [38]. É a partir
pletamente estabelecidos de imediato, e o problema da de então, com a matematização do conceito de tempo
conceitualização vem sendo desenvolvido e explorado associada ao desenvolvimento das mecânicas e das técni-
tanto a partir de bases teórico-axiomáticas quanto expe- cas [34], que se chegou ao relógio atômico, que utiliza as
rimentais, mas que distante está de ser completamente vibrações de cristais de quartzo com frequência em torno
resolvido [28, 29]. Tomando por substrato resultados pré- de 2,5 megaciclos por segundo, ajustado por um sistema
vios [30–35], o propósito do presente trabalho é abordar ressonante de Césio vibrando a 9.192.631.770 ± 20 ciclos
a questão de construção de teorias mecânicas, mas a par- por segundo.
tir de uma perspectiva histórico-pedagógica e das bases O controle e a apropriação do tempo, no decorrer do
empíricas da física. De início, as definições de tempo e processo histórico denominado civilizatório, estiveram
de espaço [31] são introduzidas como asseguradas pela sempre atrelados ao poder e a riqueza. Na China an-
práxis experimental da física [36]; e assim segue uma tiga, por exemplo, um calendário era um pré-requisito à
discussão sobre a natureza de um sistema físico, sobre soberania [39–41], e cada imperador costumava marcar
o conceito de estado mecânico e sobre as relações de seu período com a promulgação de um novo calendá-
causalidade que levam às equações de movimento [34]. rio. Desse modo, era possível reger as atividades diárias
Após a identificação dos elementos constitutivos de uma (principalmente nas vilas), desde as dos soldados, às dos
teoria mecânica [31, 34, 35], como exemplo, a mecânica artesões; prever os períodos de colheita ou plantio; pro-
clássica relativística e não relativística são analisadas mulgar datas dos rituais religiosos; um solstício deveria
tanto quanto possível pedagogicamente. Entretanto, a ser antecipado com certa acurácia. Esse tipo de controle
conceitualização apresentada se presta para a análise de se constituía em especial segredo de estado, e o impera-
outras teorias do movimento, como a mecânica quântica dor, por sua vez, garantia a legitimidade de suas decisões,
e a teoria quântica de campos [35]. Neste sentido, como harmonizadas com os padrões cósmicos. Todavia, seu
aplicação, a teoria cinética relativística é formulada como poder (Crônico) emanava dos conhecimentos acumulados
uma teoria de campos, a partir de uma Lagrangiana in- pelos astrônomos (ou astrólogos), sempre um seleto e
variante por transformações de Lorentz. Este não é um influente grupo na corte.
procedimento usual para se iniciar a teoria cinética, mas Na busca de acurácia, os chineses desenvolveram os
se revela importante para propósitos pedagógicos e para relógios de água (clepsidras), chegando a uma maravilha
a discussão conduzida aqui. no século XI (durante a dinastia Sung): o famoso relógio
O trabalho está organizado da seguinte forma. Na de Su Sung (uma réplica de um tal relógio se encontra
seção 2, elementos históricos sobre a mensuração e a no museu do tempo em Rockford), desenvolvido para
geometrização do conceito de tempo e espaço são des- reproduzir o movimento de três luninescências: o Sol
critos. Na seção 3, as bases teóricas e empíricas sobre o a Lua e (um conjunto de) estrelas, elementos básicos
tempo são revisitadas, de modo que, na seção 4, tendo em da divinação astrológica chinesa, registrando o efêmero
vista a construção de teorias do movimento, as definições erro, para a época, de um minuto ao dia. Esse grau
de tempo, espaço e sistemas inerciais são apresentadas. de precisão foi alcançado na Europa somente no século
Na seção 5, os sistemas mecânicos são caracterizados XVII, quando Huygens construiu seu relógio de pêndulo,
por meio de conceitos primitivos de ponto material e primeiro proposto por Galilei [40].
de campo. Na seção 6, os elementos constitutivos das Conceitualmente, dividir o tempo em unidades e medi-
teorias mecânicas são estabelecidos, e a mecânica clássica las através de comparações de fenômenos entre si – isto
nas suas versões relativísticas e não relativísticas são é, via relações ou processos, foi uma conquista signifi-
discutidas, com ênfase na conceitualização do tempo. Na cativa. Mas não menos radical e revolucionária, foi a
seção 7, como aplicação, a teoria cinética relativística é invenção do relógio mecânico, que surgiu durante a idade
abordada enquanto uma teoria de campos clássicos. As medieval européia. Embora se desconheça o inventor,
conclusões finais estão apresentadas na seção 8. Whitrow [41] especula que o relógio mecânico pode ter
sido desenvolvido dentro dos monastérios europeus, como
uma maneira de manter o estímulo à rigidez da disciplina
2. Mensuração e geometrização do
monástica (nos monastérios chineses isso era resolvido
Tempo: aspectos históricos com a queima de varetas de incenso).
O relógio mecânico é um aparato concebido a partir de
Para se abordar a questão do tempo nas teorias físicas,
molas e engrenagens e, principalmente, de movimentos
dois aspectos são centrais: os processos empíricos, en-

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repetitivos; diferentemente dos relógios do tipo clepsidras postura contrária, e passou a considerar a perspectiva
baseados no fluxo contínuos de água. O potencial tecnoló- espaço-temporal geométrica de Frisius.
gico de um tal aparato mecânico residia na possibilidade Essa perspectiva geométrica do tempo que se desenvol-
de miniaturização e, como consequência, a apropriação veu na Europa, de um ponto de vista teórico-filosófico,
de uso pessoal. A partir de então, o relógio, que nunca teve sua origem na Grécia. Foi Aristóteles quem primeiro
amordaçou Cronos, estabeleceu, como lastimam alguns, estabeleceu que tempo era movimento. Não obstante
à lâmina da espada, sua tirania sobre o ocidente. De fato, as várias críticas, essa proposta tem sido efetivamente
o relógio mecânico foi essencial para o processo que levou adotada pela ciência desde Newton, que estabeleceu a
a revolução industrial e idade contemporânea [41]. primeira matematização rigorosa sobre o tempo [40].
Por exemplo, no contexto histórico-econômico, a des- Que, com essa matematização, Newton fez pelo tempo
coberta do cronômetro marítmo foi definidora para a o que os gregos fizeram com o espaço – um tipo de geo-
hegemonia britânica sobre o mercantilismo avançado e a metrização – é um fato estabelecido; como também é o
revolução industrial [37]. Com esse dispositivo foi possí- reconhecimento de que novos elementos associados às pro-
vel encontrar a solução para a questão da localização na priedades do tempo apareceram com a física moderna, em
longitude, problema este que freiou o domínio completo particular, com Einstein. Entretanto, persistem contro-
dos mares por, pelo menos, três séculos. vérsias no entendimento e no papel que cada uma dessas
O problema da longitude [42, 43] consistiu na busca de teorias desempenham na compreensão do tempo. Outros-
um meio seguro para se estabelecer com precisão a loca- sim, ainda se requer o estabelecimento claro e preciso das
lização na longitude terrestre (o problema da latitude já diferenças, semelhanças, inovações e abrangência de sig-
havia sido resolvido séculos antes com a bússola [37, 42]). nificado do tempo em sua apropriação pela física [44–46].
A lista de nomes envolvidos, um notável relicário de cele- Esse é o caso da dificuldade encontrada pela física ao
bridades científicas, encerra a importância e a dificuldade abordar o problema da irreversibilidade [47–49]. Sob um
do problema: Galilei, Kepler, Newton, Huygens, Euler, olhar mecânico estrito, podemos então procurar entender
Laplace, Lagrange, dentre outros em toda a Europa. Vá- e comparar o impacto da física moderna na conceituação
rios prêmios foram oferecidos, por várias cortes, para de tempo.
quem apresentasse uma solução viável. Vale lembrar a
criação do Conselho da Longitude em 1714 na Inglaterra,
oferecendo um prêmio de L 20.000 (atualmente, da or- 3. Bases teórico-empíricas do tempo
dem de US$12 milhões). O prêmio foi dado em 1773 a
Se o ato de compreender é também catalogar, classifi-
John Harrison, um relojoeiro com formação em carpin-
car, distinguir ao criar nomenclatura própria e prover
taria. O fato de ser um bom conhecedor de madeira foi
respostas a questões estabelecidas, mesmo que de modo
o que permitiu a Harrison suplantar, num trabalho de
preliminar, então foi Santo Agostinho quem abriu a trilha
décadas, as dificuldades com atrito, dilatação e desgaste
da sistematização para o estudo do tempo, indo na dire-
de metais; dificuldades típicas em uma engrenagem da
ção de uma mecânica matematicamente edificada. Em
época, principalmente quando submetidas às intempéries
suas Confissões, Livro XI [50], Agostinho trata primeiro
dos oceanos.
de responder a questões teológicas do tipo: “Que fazia
A longa história de Harrison e a solução encontrada
Deus antes de Criar o céu e a terra? ”; responde, então,
estão descritas em ampla literatura [37, 42]. Entretanto,
com certo estilo lacônico e pragmático,“Mas eu digo meu
um elemento básico de sua solução: Harrison assumiu
Deus, que sois o criador de tudo o que foi criado,.... Os
como pressuposto (conhecido, mas inviável até então) que
vossos anos não vão nem vêm. Porém, os nossos vão
o tempo serviria como definidor de dimensões espacias –
e vêm, para que todos venham. Todos os vossos anos
uma perpectiva espaço-geométrica do tempo: a cada 4
estão conjuntamente parados, porque estão fixos, nem os
minutos de rotação da Terra correspondem a 1o de arco
anos que chegam expulsam os que vão, porque estes não
de longitude em todo o globo, que se traduz em 109,4 km
passam. Quanto aos nossos anos, só poderão existir todos,
no Equador. Bastava, então, relógios sincronizados, um
quando já todos não existirem... ”. E então, com o tempo
em terra e outro na embarcação. Conhecendo o tempo
no reino das criaturas, e não no dos demiurgos, o Santo
local, onde a embarcação estava, bastaria consultar o
esvazia a questão inicial: “Não houve tempo nenhum em
relógio de bordo, sincronizado ao de terra, para saber
que não fizésseis alguma coisa, pois fazíeis o tempo”.
a diferença de tempo, e portanto quantos graus de lon-
A partir de então, Agostinho perfaz sua sistemática,
gitude. Esta possibilidade geométrica para o tempo foi
discutindo a noção de passado, futuro, de tempo longo,
proposta em 1530, pelo astrônomo flamengo Gemma Fri-
breve; o conceito de tempo que flui do futuro para o
sius, que defendia o uso do relógio mecânico para tanto.
presente desaguando no passado; e a quesão da mensura-
A idéia de usar relógios sincronizados solucionaria o pro-
ção. Para Agostinho, “...medimos os tempos que passam,
blema de modo teórico simples, mas esbarrava na falta
de modo que podemos afirmar: este espaço de tempo
de técnica para a construção de relógios de precisão. O
é duplo de tal outro, ou é-lhe equivalente, ou este é o
próprio Newton, um dos fundadores do Conselho da Lon-
igual àquele... . Por conseguinte, medimos os tempos
gitude, descartava essa possibilidade como viável [37, 42].
ao decorrerem. E se alguém me disser: ‘ Como sabeis?’,
E se o status quo acadêmico do século XVIII remetia a
responder-lhe-ei: ‘Sei-o porque o medimos’. Não medimos
uma solução associada aos astros, Harrison assumiu a
o que não existe. Ora, as coisas pretéritas ou futuras

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não existem. Como medimos nós o tempo presente, se modo que as leis da mecânica sejam invariantes. A partir
não tem espaço [intervalo]”. Mais uma vez a resposta de tais sistemas, especifica-se, para os eventos, o espaço,
denuncia o estilo: “Mede-se quando passa”. definido por réguas, e o tempo, definido por relógios. Os
Agostinho funda, então, uma tradição com Boethius, elementos ontológicos na caracterização desses conceitos
Anselmo, entre outros, com Deus exististindo fora do estabelecem uma visão realista da física, através da qual
tempo. A despeito de detratores e defensores, dentro e os objetos do mundo estão dados, existem como são, a
fora da Igreja, um aspecto importante na perspectiva priori, e entre eles há relações (ou processos) e movi-
de Agostinho é a quase matematização de seu conceito mento, como noções também primitivas. Ressalte-se que
de tempo via o processo de mensuração. Desse modo, a não há tempo, nem espaço, e portanto não há física, para
caracterização do tempo ocorre pela medida, estabelecida um universo onde só exista um único objeto, sistema,
por sua vez pela comparação de processos [40]. É esta físico. Nesse caso, nem mesmo a noção de movimento
mensuração que será utilizada, quase uma dúzia de sécu- faria sentido.
los mais tarde, primeiro por Galilei de um ponto de vista Utilizando-se o conceito de relações (ou processos),
prático, e depois por Newton, na Europa renascentista, estabelecem-se padrões. Assim é introduzida por exem-
encerrando uma axiomatização da mecânica. plo a noção de distância. Com a escolha de um padrão
Newton lança os fundamentos da mecânica moderna no – a régua –, compara-se um objeto com o padrão, na
célebre Philosophiae naturalis principia mathematica [38]. qualidade (primitiva) que denominamos comprimento. O
Inicia o Livro I com uma seção de definicões cuidadosas número que emerge da comparação é uma medida da
de conceitos, com certo estilo Agostiniano revelador: grandeza física que introduzimos e denominamos distân-
cia.
Definição I - Principia (Livro I): The quantity of mat- É importante ressaltar que, por definição, a medida
ter is the measure of the same, arising from its dita exata do tamanho de um objeto não existe, uma
density and bulk conjunctly vez que devido a definição do procedimento de medida,
sempre haverá uma barra de erros, que traduz o refina-
Definição II - Principia (Livro I): The quantity of mo- mento da escala, que também por definição leva a um
tion is the mesure of the same, arising from the procedimento sem fim de refinamento [36]. Utilizando a
velocity and quantity of matter conjunctly. noção de direção e de eixos reais, o conceito de espaço,
Sobre o tempo, estabelece [38]: enquanto elemento geométrico, fica definido. Ou seja, a
partir de uma variedade R3 , introduz-se o locus de cada
“Absolute, true, and mathematical time, of itself, and sistema físico na relação estática com os demais. A estru-
from its own nature flows equably without regard to tura intrínseca dessa variedade é a de espaço vetorial; e
anything external, and by another name is called outros elementos geométricos podem ser incorporados a
duration; relative, apparent, and common time, is esta estrutura, mas isso irá depender do experimento.
some sensible and external (whether accurate or Dependendo do tipo de relação, a conformação entre
unequable) measure of duration by means of motion, os objetos físicos mudam. Essa mudança é denominada
which is commonly used instead of true time; such movimento, que se estabelece também como um conceito
as an hour, a day, a month, a year.” primitivo. O quanto e quão rápido os sistemas mudam uns
com relação aos outros é definido a partir da construção
Não obstante Newton assumir uma concepção filosófica de um padrão não estático, que é escolhido como por
de um tempo absoluto, um ente de existência objetiva possuir um movimento repetitivo . Da comparação dessa
própria, independente dos processos, é a abordagem rea- repetição com outros sistemas em movimento emerge um
lista dos processos temporais, via fenômenos físicos, que número Real, R1 , que é uma medida da grandeza física
é usada e matematizada, de fato, nos Principia. A formu- chamada tempo. A repetição do padrão é assumida a
lação de Newton deve então ser depurada a partir de seus priori. O teste da sua precisão requer a construção de
elementos básicos. Ou seja, uma síntese de programa me- outro padrão – outro sistema em movimento que se repete
cânico, deve ser estabelecida a partir das características mais rapidamente que o primeiro pode ser assim utilizado.
do conceito de tempo nas diversas mecânicas existentes, O padrão, o sistema físico que se repete, é denominado
incluindo a de Newton e a relativística. Nesse sentido é relógio, e a unidade da repetição é chamada período
necessário primeiro decodificar o procedimento de men- de tempo. A história da ciência descreve com acúrácia a
suração em física, que se estabelece com os sistemas de introdução e utilidade desses padrões, desde o movimento
referência. do Sol, da Lua e das estrelas, até o relógio mecânico, como
descrito na seção anterior. Aqui é importante apenas
destacar que a física utiliza o mesmo método de definição
4. Definição de espaço, tempo e sistemas
de padrão e escala para introduzir as grandezas tempo e
de Referência inerciais espaço.
Essa concepção realista com que a física opera não
Os fenômenos físicos (ou mecânicos) são caracterizados a
introduz um objeto ou ente chamado tempo em si, ou
partir de sistemas de referência inerciais (SIs), que consti-
tempo absoluto (o mesmo vale para o espaço). Embora
tuem um conceito primitivo, sendo definidos pelo fato de
esse atributo de em si seja tão antigo quanto os gregos,
que neles se estabelecem os laboratórios de observação, de

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que antropomorfizaram o tempo no mito de Cronos, na conceito de tempo pela práxis da física sempre se refletiu
física esse conceito não é utilizado. Newton, nos Prin- em uma demanda social para organizar as atividades de
cipia, para construir a sua axiomatização da mecânica, agrupamentos humanos, enquanto elaborava uma visão
inicia elaborando sobre o conceito de tempo absoluto de conjunto do mundo. O aspecto interessante desse
(o tempo em si) e do tempo relativo (o tempo definido procedimento é que a noção de tempo e de espaço (por
através de processos – relógios). Somente nesses parágra- não serem absolutos) podem receber novos atributos;
fos iniciais, é que os Principia abordam esse conceito de isto é o que aconteceu com a postulação da teoria da
tempo absoluto, uma herança da filosofia e da teologia, relatividade restrita. Este aspecto será detalhado mais
como apontado também na seção anterior. Newton uti- adiante. Antes, a caracterização dos sistemas mecânicos
lizará o tempo relativo em suas contas. E é esse legado deve ser elaborada.
que a práxis da física adotou desde então, a despeito
da intensa discusão que se sucedeu com o advento da
teoria da relatividade. Neste caso, muitos físicos quase
5. Sistemas mecânicos: ponto inercial
que sucumbiram a uma inclinação irresistível de se referir (material) e campo
ao tempo como um objeto em si, e não como um conceito
definido a partir de procedimentos de medida – com os Com o desenvolvimento da síntese de Newton nos Prin-
relógios. Todavia, no ato de perfazer suas contas e esta- cipia, os sistemas mecânicos passaram a ser classificados
belecer suas previsões, os físicos continuaram a proceder, em dois tipos: uns descritos por pontos inerciais (ou ma-
independente das crenças e concepções filosóficas, como teriais) e outros por campos. Nesta seção uma análise
Newton, utilizando o tempo assim como o espaço defi- desses dois conceitos será conduzida com ênfase em as-
nidos pelo conceito primitivo de relações (ou processos) pectos que evidenciam elementos constitutivos de um
entre objetos físicos. projeto mecânico geral. Não será apresentado uma des-
Com a noção de tempo mapeada na reta real R e do crição histórica desses conceitos, em especial da noção de
comprimento e dimensões mapeados no R3 , chega-se a campo, o que pode ser encontrado em ótimas referências
uma variedade R4 = R3 ⊗ R1 , que serve de substrato aos na literatura [52, 53]. A revisão será conceitual e atual,
eventos físicos. Pontos nesta variedade estabelecerão os mas tanto quanto possível pedagógica, ressaltando aspec-
sistemas de referências inerciais (SI´s), definidos pelas tos que escapam em grande medida aos textos didáticos.
regras de transformações desses pontos, de um a outro, Por isso alguns elementos básicos das formulações usuais
de modo a se considerar invariantes as leis da física. Essas da mecânica serão repetidos.
regras de transformações, que necessariamente precisam
ser estabelecidas/satisfeitas pelo experimento, são cha- 5.1. Dinâmica do ponto material
madas de simetrias do espaço-tempo, e sua estrutura
Um ponto material, conceito introduzido por Newton, é
matemática é em muitos casos, mas não em geral, a de
um sistema físico definido como um ponto geométrico –
um grupo de Lie. Na física não-relativística a definição
um conceito primitivo –, com atributos mecânicos, como
dos SI´s é dada pelo grupo de Galilei e na física relativí-
inércia (massa), carga elétrica, spin, etc. (Todas essas
sitica, é o grupo de Lorentz (ver a próxima seção). Há
grandezas são definidas de modo preciso a partir de
ainda outros grupos de simetrias no espaço-tempo, como
um aparato experimental.) Um sistema assim é também
o grupo conforme e o de De Sitter, cada qual a tratar de
chamado de partícula e sua principal característica é a
aspectos específicos dos sistemas físicos (mecãnicos).
localidade. Sistemas compostos de muitos pontos materi-
Dessa análise, alguns pontos merecem, em resumo,
ais são chamados de sistemas de muitas partículas, ou
destaque. Primeiro, o elemento ontológico (primitivo) que
sistemas de muitos corpos. Um exemplo desse tipo é o
a física utiliza para definir suas grandezas estruturantes
sistema solar, em que os planetas e o Sol são considera-
é a noção de relação entre dois ou mais sistemas físicos,
dos pontos materiais interagindo entre si pela ação da
que pode ser de natureza estática (a conformação entre
força gravitacional. Do mesmo modo, um gás pode ser
os sistemas não muda, e que leva ao conceito de espaço)
considerado como um sistema de muitas partículas.
e não-estática (a conformação muda, o que se chama
Um sistema de muitas partículas apresenta caracterí-
de movimento, e leva à noção de tempo). Com esses
sitcas próprias da coletividade. Por exemplo, em uma
dois elementos, tempo e espaço ficam definidos a partir
rede cristalina, na qual cada sítio contém uma partícula
do processo de construção de padrões e mensuração;
(átomo), que pode interagir com os demais vizinhos, ocor-
e assim outras grandezas podem ser introduzidas para
rem os chamados modos de vibração, que refletem formas
se analisar a natureza do movimento. Esse é o caso da
de movimento individual, mas associadas à coletividade
velocidade, definida como variações do espaço e no tempo.
dessas partículas. Isso leva ao conceito, tipicamente co-
O outro aspecto da análise é que a caracterização de
letivo, de fônon. Entretanto, há ainda outras, mas não
tempo e espaço, a partir dessa práxis da física, descarta,
menos fundamentais, características associadas a coletivi-
por não fazer uso, o conceito de tempo absoluto, ou
dade, como as propriedades térmicas dessa coletividade.
tempo em si, enquanto um ente. A física abandona essa
Essas propriedades, por vez, precisam ser compatíveis
discussão, e a partir dessa postura, se aproxima mais
com as leis da termodinâmica, o que conduz a problemas
da sociologia [51], que da filosofia, com suas metafísicas
ainda não completamente resolvidos no âmbito da física,
transcedentes ou não. Isso é um fato, pois a introdução do
como a reversibilidade microscópica em contraposição

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com a irreversibilidade macroscópica, caracterizada pela de um sistema físico entre dois instantes de tempo,
segunda lei da termodinâmica, ou lei de crescimento da E(ti ) e E(tf ), onde ti é um instante inicial, e tf é
entropia. Este aspecto não será abordado no presente um instante final, assume-se que há uma relação de
trabalho. Por ora, é necessário detalhar um pouco mais o causalidade entre os dois estados mecânicos do sis-
conceito de ponto material, para contrastá-lo, na sequên- tema, de modo a garantir que repetidas as mesmas
cia, com o conceito de campo. condições iniciais, o estado do sistema, e portanto
Se para a localização, conformação e orientação no o sistema físico, evoluirá do mesmo modo.
espaço forem necessários pelo menos N variáveis, então
dizemos que o sistema possui N graus de liberdade. As Com este princípio de causalidade, na situação em que
N variáveis , q = (q1 , ..., qN ), são chamadas de N coor- tf = ti + δt com δt  1, pode-se esperar que o estado
denadas generalizadas. Este conceito de localização do evolua condicionado a uma equação diferencial no tempo.
sistema mecânico no espaço é fundamental para descre- Para discutir a natureza dessa relação é necessária a
ver a condição de movimento do sistema em questão; definição dos sistemas físicos especificos. Ou seja, deve-
mas não é exaurível pois não traz informação adicional mos definir aquilo que na mecânica irá representar cada
sobre a possíbilidade do sistema se movimentar e estar sistema físico, diferenciando assim um do outro.
em outro lugar no instante seguinte. Essa demanda leva
Definição 2. Sistemas físicos específicos – Lagrangi-
a definição de “estado mecânico” do sistema, que pode
ana. A especificação de cada sistema mecânico é
ser introduzido como segue.
dada por uma função escalar do estado do sistema;
Definição 1. Estado mecânico. O Estado mecânico de isto é, uma função invariante por transformações
um sistema físico em um instante de tempo t, de- de um SI a outro. Esta função é denominada La-
notado por E(t), é definido por um conjunto de grangiana (L = L(E)).
informações sobre o sistema que estabeleça sua
O fato de a Lagrangiana ser um escalar garante que
configuração espacial e apresente informações so-
o sistema em análise, além de invariante, seja o mesmo
bre a natureza do movimento do sistema. Este
para dois quaisquer observadores localizados em distintos
conceito de estado mecânico fica completamente
SI´s. Isto significa que a Lagrangiana será um escalar
estabelecido a partir da experimentação; e esta
pelas transformações no espaço-tempo. Para a situação de
deve prover uma classificação dos sistemas mecâni-
pontos materias, a Lagrangiana é escrita como L (q, q̇) =
cos (quer sejam campos ou pontos materiais), em
L (q1 , ..., qN , q̇1 , ..., q̇N ) .
classes específicas de estados mecânicos.
Um determinado sistema evolui de um instante de
Talvez o mais simples caso seja aquele dado pelas co- tempo ti , na posição q(ti ), para um instante de tempo
ordenadas generalizadas e as respectivas velocidades tf , na posição q(tf ), seguindo uma única trajetória no
generalizadas, isto é as derivadas temporais. Formal- espaço de configurações, ou seja uma única sequência
mente isto é escrito como o seguinte conjunto de variá- de pontos entre q(ti ) → q(tf ), dentre uma infinidade
veis: E(t) = (q, q̇), com q = (q1 , ..., qN ) , q̇ = (q̇1 , ..., q̇N ), de possibilidades de funções do tempo ligando q(ti ) a
where q̇i = dqi /dt . Assim o estado mecânico de um sis- q(tf ). O problema mecânico apresentado deste modo,
tema de N -pontos materiais, N -partículas, fica definido naturalmente aponta para a construção de um princípio
pela posição – localização espacial –, e pela velocidade, de extremo. Assim procura-se um funcional no tempo,
uma informação local sobre o movimento do sistema. envolvendo o intervalo entre ti e tf , a partir de L (q, q̇).
Esta definição deve respeitar as limitações experimentais, A escolha mais simples é um funcional linear do tipo
de modo que q(t) and q̇(t) possam ser mensuradas no Z tf
mesmo instante de tempo na mesma barra de erro da A= L (q, q̇) dt, (1)
mensuração. Observe que na definição de estado, a po- ti
sição e a velocidade são variáveis independentes, e este
que também deve ser invariante pelas transformações do
conjunto de informações descreve então o que o sistema
espaço-tempo.
mecânico é do ponto de vista do movimento.
A especificação do caminho físico é dada pela condição
O estado mecânico definido em termos de posição e
de extremo δA = 0, com as coordenadas q (ti ) e q (tf )
velocidade é suficiente para tratar uma classe ampla
fixadas, i.é, δq (t1 ) = δq (t2 ) = 0. Isto conduz às equações
de sistemas mecânicos. Entretanto, há aqueles em que a
de Euler-Lagrange,
caracterização necessita ser dada pela posição e derivadas
··
mais altas, como {q, q̇, q}. Esse tipo de sistema não será d ∂L ∂L
= ; i = 1, ..., N, (2)
considerado aqui. dt ∂ q̇i ∂qi
Para que se possa descrever o movimento dos sistemas
físicos, é necessária a especificação de um princípio geral que são equações diferenciais ordinárias de segunda or-
que trate da evolução temporal do estado. Assim se adota dem no tempo.
o seguinte princípio: Esta análise está conduzida de modo geral, ou seja,
sem a especificação da estrutura de simetria do espaço-
Axioma 1. Causalidade na evolução do estado mecâ- tempo. Vamos escolher inicialmente o grupo de Galilei,
nico. Considerando a evolução do estado mecânico definido pelo seguinte conjunto de transformações do

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Santana e20180145-7

espaço-tempo [54, 55]. ´Dois sitemas inerciais, S e S, são motiva a procura de constantes gerais de movimento, que
Galileanos, se os fenômenos físicos analisados em S e em são escritas em termos do estado mecânico do sistema.
S estiverem relacionados pelas seguintes transformações, No caso, são escritas como C (q1 , ..., q̇N ; t); e assim C não
varia com o tempo, a despeito de q1 , ... e q̇N mudarem
x = Rx + vt + a, (3) ao longo do trajeto evolutivo do sistema. Mas, após a
t = t + b, (4) solução das N equações de Euler-Lagrange, podemos ex-
plicitar as 2N constantes de integração (independentes),
onde q ≡ x tal que x = (x, y, z) e t, descrevem em S , como funções de q, q̇ e t; isto é [54]
respectivamente, um vetor de localização no espaço Eucli-
diano e uma coordenada no tempo. Estas transformações C1 = C1 (q1 , ..., q̇N ; t)
são caracterizadas por 10 parâmetros: 3 associados às ..
rotações, R; 3 parâmetros associados às transformações .
dos sistemas de coordenadas descrevendo a velocidade C2N = C2N (q1 , ..., q̇2N ; t)
v, de um sistema S com relação ao outro S – os três
parâmetros são as três componentes de v; 3 parâmetros Encontrar as variáveis mecânicas constantes representa,
associatrados às translações no R3 , ou seja as três compo- então, deduzir a própria solução do problema mecânico.
nentes de a; e um (1) parâmetro, b, associado à diferença De fato, desde que possamos encontrar 2N constantes
de tempo entre um relógio em S e outro em S. Isso sig- de movimento, podemos invertê-las com relação a q(t) e
nifica que o tempo transcorre da mesma forma nos dois q̇(t), e encontrar a trajetória do sistema.
referenciais. O conjunto de transformações dadas pelas Um procedimento geral para encontrar invariantes é
Eqs. (3) e (4) descreve o grupo de Galilei. através do teorema de Noether, que especifica uma cons-
Essas transformações podem então ser utilizadas na tante de movimento a uma simetria do espaço-tempo. A
modelagem de sistemas físicos, considerando que a La- partir disso, se constrói diversas variáveis cinemáticas,
grangiana L é um escalar perante transformações do como carga, massa, momentum, energia, entre outras.
grupo de Galilei. Isto está apresentado com certo detalhe Aqui é importante discutir, mesmo que de modo breve, o
tanto no livro de Landau e Lifshitz [54], como no livro de conceito de energia, E, o invariante associado a homoge-
Sudarshan e Mukunda [55]. Uma classe geral, mas não neidade temporal. Isso significa que a Lagrangiana não
única, dessas funções de Lagrange é dada por depende explicitamente do tempo. Este fato juntamente
com as equações de Euler-Lagrange conduz a seguinte
L = T (q̇1 , ..., q̇N ) − V (q1 , ..., qN ) = T (q̇) − V (q) , (5) expressão para E [54],
N
onde o segundo termo do lado direito, V (q), pode ex- mi
(7)
X
E= q̇i2 + V (q1 , ..., qN ) .
pressar a interação das partículas entre si e dessas com i=1
2
campos externos. Quando a interação se anula, a função
de Lagrange fica, então, dependente somente da veloci- Nos livros textos básicos, usualmente, se introduz o
dade. Para um sistema de N graus de liberdade, T é conceito de energia associado ao de trabalho mecânico,
dada por grandeza que representa uma medida de esforço para um
N agente externo alterar o estado de movimento do sistema
1
mecânico. Esse tipo de grandeza é fundamental para
X
T = mi q̇i2 ;
i=1
2 se introduzir a noção de rendimetno de uma máquina.
e assim Devido ao teorema de conservação, em muitas situações
N
mi induz-se o estudante a pensar na energia como “algo
(6) substancializado”, e a linguagem coloquial se apropria
X
L= q̇i2 − V (q1 , ..., qN ) .
i=1
2 pelo menos parcialmente desse entendimento. Quando se
Usando a Eq. (2), obtém-se a segunda lei de Newton fala, “em um choque de dois corpos há transferência de
energia”, isso só significa que os corpos terão seus estados
d2 qi ∂V mecânicos alterados devido a interação. Na linguagem
mi
dt2
=−
∂qi
, de Newton, isso ocorre respeitando a terceira lei, a de
ação e reação.
na qual Fi = −∂V /∂qi é a i-ésima componente da força É importante ressaltar que o conceito de energia é,
atuando sobre a partícula localizada pelas coordenadas mecanicamente, bem definido e, principalmente, é uma
qi . Aqui, este resultado corresponde a comprovação ex- quantidade mensurável. A conservação, na mecânica, é
perimental. resultado do teorema de Noether. Com o advento da
termodinâmica, a conservação da energia passa a ser
5.2. Invariantes de movimento: teorema de considerada como uma lei (e não um teorema), garantida
pelos experimento de Joule [56, 57]. Outro aspecto a ser
Amalie Emmy Noether
salientado é que o conjunto das variáveis mecânicas é
As equações (2) são de segunda ordem na derivada tempo- estabelecido a partir das quantidade que introduzem o
ral, e, portanto, requerem um conjunto de 2N constantes estado mecânico. Este é o caso de variáveis como ener-
para que a solução fique unicamente especificada. Isto gia, momentum, entre outras, escritas como funções da

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e20180145-8 Espaço, Tempo e Estruturas das Teorias do Movimento

posição e velocidade. Estas variáveis básicas, definindo o cânicas, como massa, momentum, carga, entre outras.
estado, são chamadas assim de variáveis canônicas. Ou seja, a denominação “partícula” expressa as caracte-
O conjunto dessas variáveis, axiomas e definições, intro- rísticas mecânicas descritas pelo campo. Para sistemas
duzido até aqui e associado aos sistemas físicos descritos quanto-mecânicos, o campo ψ(x; t) está definido no es-
como pontos materiais, pode ser estendido para tratar paço de Hilbert; mas a descrição mais geral e completa
então um outro tipo de sistema mecânico: os campos. de um sistema quântico é obtida quando a representação
tem como ponto de partida o espaço de Fock. Isso será
válido também para o campo eletromagnético, que leva
5.3. Dinâmica de um campo à chamada eletrodinâmica quântica.
Observe que ψ(x; t) e F µν (x), por exemplo, são não-
Um campo é um sistema mecânico definido como um
locais, e não-redutíveis a pontos materiais, por definição.
atributo físico a pontos do espaço-tempo, contendo carac-
A denominação “partícula”, aqui empregada, para descre-
terísticas do movimento (mecânicas), como inércia, ener-
ver por exemplo o fóton, não significa que o objeto físico,
gia, momento, carga, etc. Um elemento importante na
fóton, seja uma “bolinha” que em princípio possa ser
caracterização de um campo é a não localidade e sua não
tratada por um ponto (no sentido geométrico). A deno-
redutibilidade a pontos inerciais (materiais). Um campo
minação “partícula” expressa um ente fundamental, até
pode ser representado matematicamente como uma fun-
pelo menos o experimento apontar que possui estrutura.
ção de pontos do espaço e tempo, isto é, f = f (x, t),
Isto é o que aconteceu com o próton, inicialmente con-
onde f expressa a quantidade física, a ser bem definida
siderado como uma partícula elementar e descrita pelo
e de acesso experimental. A natureza matemática de f
campo de Dirac. Depois, experimentalmente, observou-se
fica estabelecida pelo experimento, e dependendo do que
que o próton possuía estrutura. De um ponto de vista
descreve e da estrutura do espaço-tempo pode ser um
teórico-mecânico, isso significa que o campo de Dirac,
escalar, um vetor, um tensor ou ainda um espinor. Alguns
que descrevia algumas das propriedades do próton, pre-
casos ajudam a esclarecer a definição.
cisou ser considerado como uma combinação de outros
Um exemplo paradigmático é o campo de velocidades
campos interagentes; ou ainda, os campos que descrevem
em um fluído, usualmente denotado por V(x; t), onde
os quarks e os campos que descrevem os glúons (as par-
V é o atributo físico (no caso o vetor velocidade) dos
tículas que compõem os prótons). Ressalte-se: tudo isso
pontos do espaço-tempo (x; t). Como a propriedade V
localizado em dimensões da ordem de 10−15 m; mas ainda
muda com o tempo, é possível estabelecer-lhe as equa-
assim são campos, entes que não se reduzem a pontos
ções de movimento, através de um princípio de extremo,
inerciais.
generalizando o caso de um ponto material. A dinâmica
Para encontrar a descrição mecânica de um campo, pro-
é dada pela equação de Navier-Stokes. Outro exemplo
cedimentos introduzidos para o caso de pontos materiais
é uma onda se propagando em uma corda. A onda é
são então generalizados. Assim como um ponto material,
descrita como Y (x, t), onde Y representa a altura no
ψ(x; t), o campo de Schrödinger, descreve a conforma-
eixo y do ponto x da corda, em certo instante de tempo
ção do sistema físico no espaço-tempo. A informação
t. A equação de movimento para Y (x, t) é a conhecida
pertinente a sua mudança espaço-temporal provém das
equação da onda.
derivadas de ψ(x; t). O estado mecânico do campo de
O fenômeno eletromagético, descrito pelo campo elé-
Schrödinger é então dado por ψ(x; t) e por suas deriva-
trico, E(x; t), e o campo magnético, B(x; t), é um outro
das. Estas quantidades definem, em paralelo ao caso de
exemplo conhecido de um campo, para o qual a evolução
pontos inerciais, o estado mecânico de campos clássicos.
temporal é dada pelas equações de Maxwell. De modo
Este procedimento será válido para outros campos.
covariante, escreve-se o tensor de campo F µν (x), onde
Considere então generalizar q(t), enquanto uma função
x é um quadrivetor fornecendo uma posição do espaço-
de um parâmetro real, t, para uma função de r + 1-
tempo de Minkowski e µ, ν = 0, 1, 2, 3. As componentes
parâmetros dada por q(τ ) = q(τ 0 , τ 1 , ...., τ r ), de tal
de F µν (x) estão relacionadas com as componentes de
modo que a (densidade de) Lagrangiana fica dada por
E(x; t) e B(x; t) [58]. Neste caso a Lagrangiana é um
L(q, ∂q) = L(q, ∂0 q, ∂1 q, ..., ∂r q), onde ∂α q = ∂q/∂τ α . A
escalar de Lorentz.
ação fica escrita como
Em mecânica quântica, a amplitude de probabilidade,
ψ(x; t), é um outro exemplo de campo, de natureza esca-
Z
lar pelas transformações de Galilei, e que se associa à den- A = dr τ L(q, ∂q), (8)
sidade de probabilidade dada por |ψ(x; t)|2 . Isto define γ
completamente o significado físico de ψ(x; t), inclusive ex-
onde γ é uma hiper-superfície de integração. Considera-se
perimentalmente, enquanto um campo ligado ao conceito
também que em γ, δq(τ )|γ = 0, e calculemos δA = 0.
de probabilidade, com características físicas de inércia
Isto leva a equação de Euler-Lagrange,
(massa) e com uma dinâmica descrita pela equação de
Schrödinger. As funções ψ(x; t) descrevem as condição ∂L ∂L
de movimento de objetos mecânicos chamados “partícu- ∂α = ; α = 0, 1, ..., r. (9)
∂(∂α q) ∂q
las não-relativísticas”. A evolução espaço-temporal de ψ
fornece o movimento das partículas, caracterizadas, como Aqui, a regra da soma sobre os índices repetidos está
no caso de pontos materiais, por suas características me- sendo usada. Se q(τ ) possui mais do que uma componente,

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Santana e20180145-9

então devemos substituir q por qj (τ ), com j = 1, 2, ..., N , ou seja, a equação de Klein-Gordon, descrevendo uma
com N o número máximo de componentes independentes partícula quântica relativística de massa m, em um termo
de q(τ ). Há assim N equações de Euler-Lagrange [27]. de fonte J. Os detalhes da construção de um modelo como
Este resultado é puramente teórico. A interpretação este (entre outros como para o campo eletromagnético e
física provém da especificação de τ e do conteúdo físico de o de Schrödinger) não serão abordados aqui, e podem ser
q(τ ). Definiremos τ como um 4-vetor no espaço-tempo encontrado em outros lugares [21]. Contudo, é importante
de Minkowski, M(3, 1), com τ 0 ≡ x0 = ct; τ 1 ≡ x1 , finalizar esta seção retornando a pontos fundamentais
τ 2 ≡ x2 , τ 3 ≡ x3 , isto é τ = x = (x0 , x1 , x2 , x3 ). A para a conceitualização física de um campo e de um
métrica é dada por g = (g µν ) que é uma matriz diagonal, sistema de pontos inerciais.
tal que diag g = (1, −1, −1, −1, −1), com g = g −1 ; tal Em resumo, há duas possibilidades para se tratar um
que (g µν )−1 ≡ gµν , xµ = gµν xν e xµ = g µν xν [17]. sistema físico: pontos inerciais e campos. Existe ainda
A coordenada generalizada, q(x), é então um campo uma terceira possibilidade que é considerar sistemas hí-
especificado ao se fornecer a qualidade física de cada bridos de campos e pontos inerciais. Essas possibilidades
ponto do espaço-tempo. Considerando um campo escalar, estabelecem o problema de se escolher a forma de tratar
é usual mudar a notação e escrever q(τ ) → φ(x) = φ(t, x), um evento físico. Por exemplo, um gás pode ser consi-
que fornece a configuração espaço-temporal do campo. A derado como um fluido, neste caso descrito por campos;
equação de Euler-Lagrange, Eq. (9), fica escrita como mas também pode ser tratado como um conjunto de
pontos inerciais interagindo entre si. Mais uma vez, aqui,
∂L ∂L é a práxis da física, através do experimento, quem ditará
∂α = , (10)
∂(∂α φ) ∂φ a forma mais adequada de descrição. Toda a física con-
temporânea, representada através do modelo padrão de
com α = 0, 1, 2, 3. A densidade de Lagrangiana L(φ, ∂φ),
partículas ou o cosmológico, assim como toda a mecânica
assim como φ, é um escalar por transformações de Lo-
quântica não-relativística, tratando da física da matéria
rentz, contruídas a partir de transformações lineares
condensada, modela os fenômenos do movimento através
em M(3, 1); ou seja, transformações que deixam inva-
do conceito de campo. Mas a física não tenta, e não pode
riante o produto escalar entre dois 4-vetores; isto é,
tentar, estabelecer que o mundo seja ontologicamente
x · y = gµν xν xµ é invariante.
composto de campos. A modelagem da física atual usa
A transformação linear é escrita como
o conceito de campo, respeitando a barra de erros dos
x0µ = Λµ ν xν , (11) experimentos: isso leva a 62 partículas fundamentais na
natureza, além do gráviton. Contudo, não há inferências,
de modo que Λµ ν = ∂x0µ /∂xν . Além disso, a invariân- em princípio, para escalas inacessíveis; e assim, a descri-
cia do produto escalar conduz à invariância da métrica: ção dos fenômenos através de pontos inerciais pode vir a
ΛT gΛ = g, onde ΛT é a matrix transposta de Λ. Disto prevalecer em outros contextos mais gerais. Essa obser-
segue que det Λ = ±1. Para det Λ = 1, as denominadas vação significa que o compromisso (quase que atávido)
transformações próprias de Lorentz, tem-se um grupo da física é com os resultados experimentais, estes vistos
de Lie conectado a identidade. Neste caso, considerando como uma espécie de bússola, a apontar a direção de se
transformações infinitesimais, segue estabelecer, cada vez mais precisa, uma visão de conjunto
dos fenômenos observados, onde o limite da observação
x0µ = xµ + ω µ ν xν , é o refinamento das escalas dos instrumentos de medida.
onde ω ρν = gρµ ω µ ν é uma matriz antissimétrica. Então, Em outro dito, a física não trata de afirmar ou negar se
as transformações de Lorentz, atuando em uma represen- a natureza do mundo físico é de campos ou partículas. O
tação infinito-dimensional, em outras palavras, atuando elemento ontológico básico da física é o ponto de partida
em um espaço de funções analíticas definidas em M(3, 1) para estabelecer os processos de mensuração; ou seja,
), são dadas por as relações entre os objetos físicos. Com essa premissa,
primitiva conceitualmente, constrói-se teorias que terão
Λ = exp[ω µν M µν ], a validade estabelecida pelas barras de erro dos experi-
mentos. Ou seja, à física, por construção, não está dada a
onde M µν , os geradores de transformações de Lorentz, possíbilidade de estabelecer teorias ou afirmações últimas
são escritos como M µν = i(xµ ∂ ν − xν ∂ µ ). sobre o movimento. Mas então se pode procurar os ele-
Vários modelos especificados por densidades de La- mentos básicos para a construção das teorias mecânicas,
grangiana invariantes por Lorentz podem ser então cons- e assim compreender a diferença e limitações conceituais
truídos. Um dentre os mais simples tem por densidade entre formulações distintas.
de Lagrangiana

L=
1 1
∂α φ∂ α φ − m2 φ2 + Jφ, 6. Elementos das teorias do movimento
2 2
de modo que, substituindo nas equações de Euler-Lagrange, Os elementos para um programa mecânico são apresenta-
Eq. (10), segue dos nesta seção, com o objetivo de sintetizar a análise das
seções anteriores, que resulta em um desenvolvimento pe-
∂α ∂ α φ + m2 φ = J, dagógico de resultados previamente desenvolvidos [31,35],

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e20180145-10 Espaço, Tempo e Estruturas das Teorias do Movimento

mas indo além, por evidenciar o procedimento experimen- inerciais. (iii) Dado um observável O, deve existir
tal. Exploramos, a propósito de aplicação, a análise do uma regra a ser estabelecida experimentalmente de
conceito de tempo na física relativística e não-relativística. modo que E(O) ∈ Rn , correspondendo ao processo
Na próxima seção avaliaremos a teoria cinética relativís- de mensuração.
tica.
e4 - Os sistemas mecânicos específicos são definidos por
6.1. Elementos constitutivos de uma mecânica uma função do estado mecânico, chamada Lagran-
giana. Esta função é um escalar, por tranformações
Um programa mecânico (geral) pode ser definido a partir envolvendo a mudança dos sistemas de referências,
de cinco elementos constitutivos, dados como segue. ou seja por G, assegurando assim que todos os ob-
servadores estarão descrevendo o mesmo sistema
e1 - Assume-se como conceito primitivo a existência físico.
do espaço e do tempo descrito por uma variedade
V = {x, t}, com x designando vetores do R3 , e e5 - Assume-se a existência de uma lei causal conec-
t ∈ R, o tempo. As quantidades x e t possuem suas tando os diversos estados do sistema; lei esta a ser
propriedades especificadas através de processos fí- invariante por G. A lei causal pode ser encontrada
sicos. Ou seja, é a mensuração via processos, que por um princípio de extremo compatível com e1 .
estabelece o tempo e o espaço. A mensuração das
propriedades dos sistemas físicos é implementadada Neste ponto, a caracterização do tempo a partir de
a partir de um locus no epaço e tempo, a ser de- relações entre objetos físicos deve ser detalhada. (Análise
notado por S e chamado de sistema de referência similar pode ser conduzida para o espaço.) Enquanto
inercial. Os sistemas de referência são definidos pela processo podemos então ter em mente as oscilações de
especificação da conexão entre si. Esta associação um pêndulo, e como sistema físico, uma partícula des-
entre dois sistemas, S e S, se estabelece por um crita como um ponto material. Vamos denominar por P
mapeamento G : S → S, sendo G transformações o conjunto de elementos que caracterizam os processos,
especificadas pelo experimento. Uma situação ge- P = {P ∈ R}. Os P são as oscilações, no caso do pên-
ral é que G seja um um grupo de simetria em V, dulo, ao se comparar o oscilador e o movimento de uma
de tal modo que os fenômenos físicos em S e S partícula de um ponto a outro no espaço. Esta compara-
são descritos matematicamente da mesma maneira. ção, que se dá por uma relação entre os dois objetos, tida
Mas pode ocorrer de ser um semi grupo, e assim como um conceito primitivo, gera um número P , que será
contemplar processos irreversíveis. Num caso ou o valor associado a uma gradeza física a ser denominada
noutro, será o experimento quem estabelecerá a “tempo”, t. Assim se pode estabelecer uma aplicação,
natureza de G. n : R → R, entre cada elemento P e t ∈ R. Nesse caso, t
é especificado pela reta real, ou seja, é uma coordenada,
e2 - Assume-se como conceito primitivo a existência em que cada valor de t é chamado de instante de tempo. A
de um conjunto de variáveis mecânicas denotado aplicação n é definida como sendo linear (embora outras
por D = {a, b, c, ..}, entre as quais estão aquelas possibilidades sejam possíveis), isto é
que descrevem a localização, velocidade, momen-
tum, energia, dentre outras. Um conjunto básico n(P ) = αt + β, (12)
dessas variáveis, a partir das quais todas as outras
são construídas, é denominado de observáveis ou onde α e β são constantes que podem, sem perda de
variáveis canônicas. Essas serão os observáveis do generalidade, assumir os valores 1 e 0, respectivamente.
sitema e minimamente possuirão a estrutura de As propriedades do conjunto dos instantes ficam, assim,
espaço linear. condicionadas às características de n. Uma propriedade
e3 - Assume-se como conceito primitivo a existência geral pode ser inferida de e1. Qual seja, se existe um
de sistema físico. Um sistema físico fica descrito, sistema físico tal que estabelecemos um ordenamento de
e é mecanicamente caracterizado, pela noção de t por
(13)
00
estado mecânico (E) definido de tal forma a: (i) n(P ) < n(P 0 ) < n(P ).
estabelecer a localização do sistema no espaço e no Logo, existe um processos físico equivalente, tal que po-
tempo, e (ii) prover elementos do movimento; isto demos definir
é, fornecer uma ou mais característica intrínsica do
movimento do sistema escolhida como um conceito (14)
00
n(P ) < n(P 0 ) < n(P ).
primitivo. O estado descreverá sistemas mecânicos
de dois tipos, considerados também como concei- Este resultado encerra a reversibilidade da noção de
tos primitivos: (a) aqueles compostos de pontos tempo na mecânica, e é consequência da estrutura de G,
inerciais (ou materiais), entes mecânicos cujo es- em e1, que é a de um grupo.
tado é especificado por grandezas locais no espaço Outras características de n podem se obtidas a partir
e no tempo, e (b) campos, objetos mecânicos cujo da realização dos elementos constitutivos e1−e5. Vejamos
estado é descrito por grandezas que são funções como este esquema se aplica à mecânica Newtoniana e a
em todo V, e a priori não são redutíveis à pontos mecânica relativística de Einstein.

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6.2. Mecânica clássica não-relativística dois instante é o mesmo para ∀ S. Desta maneira, para
dois sistemas S e S temos
Os elementos constitutivos, de e1 a e5, são realizados na
mecânica de Newton para pontos inerciais de massa m n(P ) − n(P 0 ) = n(P ) − n(P ).
0
(16)
(partículas) da seguinte maneira.
Neste contexto geométrico, então, as Eqs. (3) e (4)
e1 - V = R3 × R1 , no qual R3 é o espaço Euclideano estão escritas na variedade R3 × R1 , que é um espaço
tridimensional, e R1 designará o tempo enquanto vetorial não métrico, a despeito dos subespaços R3 e R1
uma coordenada. Os sitemas inerciais S são esco- o serem.
lhidos como Galileanos, tais que os processos físicos
analisados em S e outro S estão relacionados por
6.3. Mecânica clássica relativistica
G definido pelas Eqs. (3) e (4). Aqui é importante
enfatizar que o tempo transcorre da mesma forma Na relatividade restrita os elementos constitutivos são
nos dois referenciais. dados por

e2 - As variáveis mecânicas são descritas por funções re- e1 - V = {xµ , g} é o espaço de Minkowski M(3, 1),
ais, como o vetor posição q ≡ x(t), vetor velocidade onde a seguinte notação será empregada: (xµ ) é
v = dt d
x(t), e momentum linear p(t) = m dt d
x(t), um 4-vetor x = (x0 , x1 , x2 , x3 ) = (x0 , x), com x0 =
onde m é a massa. ct, x1 = x, x2 = y, x3 = z, sendo c a velocidade
da luz no vácuo; g, o tensor métrico, é tal que um
e3 - O sistema físico é um ponto material de massa m. O elemento infinitesimal de distância em V é dado
estado é descrito por x(t), indicando a localização por
no espaço e no tempo, e p(t), descrevendo uma (ds)2 = (dx0 )2 − (dx)2 . (17)
característica do movimento. Em geral uma variável
mecânica, F é descrita como uma função de x(t) e Neste caso V é do tipo dado no item anterior,
p(t), isto é F = F (x, p; t). V = R3 × R1 , só que embebido de uma nova es-
trutura geométrica, caracterizada pela Eq. (17).
e4 - A Lagrangiana fica dada pela Eq. (2), com q ≡ x. Os referencias S são ainda os referenciais inerciais
como no item anterior. Entretanto, os processos
e5 - A lei causal conectando os estados é estabelecida físicos analisados em dois referenciais, um S e outro
respeitando-se o elemento constitutivo e1. Isto é, S , estão relacionados como já vimos antes pelo
as transformações de Galilei servem de guia para grupo de Lorentz [17]. As transformações de Lo-
se encontrar as leis que geram a dinâmica, que por rentz Λµ ν deixam (ds)2 , na Eq. (17), invariante.
vez deve ser consistente com o princípio de extremo (De modo similar, uma formulação da mecânica
dado na Eq. (1). Desse modo, usando métodos não relativística baseada em espaços métricos pode
conhecidos em teoria de representações, resulta ser introduzida a partir do grupo de Galilei, ver a
Ref. [32].)
d2 x(t) Um caso particular de transfomações de Lorentz é
m = F(x), (15) dado por
dt2
onde F é a força do meio sobre a partícula. Esta t = γ(t − zv/c2 ), (18)
é a conhecida segunda lei de Newton. Note que x = γ(x − vt), (19)
esta equação não pode ser usada como definção de y = y e z = z, (20)
força, que é introduzida a partir de um processo de
medida e fisicamente descreve a interação do meio com γ = 1/ 1 − v 2 /c2 . Estas equações descrevem
p
com o sistema em observação. o sistema S se deslocando com velociade v (|v| =v)
na direção do eixo x do sistema S. Um aspecto
Estamos considerando o problema de uma partícula por relevante nessas transformações, com relaçãos às
simplicidade; e pelo mesmo motivo, argumentos intuitivos de Galilei, é que os processos físicos ficam restritos
têm prevalecidos ao rigor matemático [59]. a um limite superior de velocidade, a velocidade
Neste contexto Newtoniano, n(P ) possui, além das pro- da luz, c [17, 52].
priedades de ordemamento típicas da reta dos números
reais, estrutura geométrica definida na reta (unidimen- e2 - O conjunto de variáveis mecânicas são descritas,
sional). De fato, com a noção de distância entre dois como no caso Newtoniano, por funções reais, defini-
instantes, denominada de intervalo de tempo, definida das sobre V = R3 ×R1 , mas agora, cabe frisar, como
como a diferença entre dois pontos da reta real e com sendo um espaço de Minkowski. Assim temos, den-
unidade fixa num dado sistema de referência, temos um tre outras, o 4-vetor posição xν (τ ); o 4-momentum
espaço vetorial métrico. Isto significa que o conjunto dos dado por
instantes, é um espaço Euclidiano unidimensional, R1 . dxν (τ )
Outrossim, devido a Eq. (4), a diferença de tempo entre pν (τ ) ≡ m

,

DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2018-0145 Revista Brasileira de Ensino de Física, vol. 41, nº 1, e20180145, 2019
e20180145-12 Espaço, Tempo e Estruturas das Teorias do Movimento

onde τ é o tempo próprio, um invariante temporal experimentais, não podemos lançar mão um sistema de
definido por τ = ds/c. Quando num referencial referência inercial que se mova com velocidade c. Contudo
fixo, τ coincide com o tempo cronometrado por um não está proibido a existência de objtos se movendo com
relógio. As componentes de pν são as seguintes: p = velocidades superior a c; os chamados táquions. Com as
(p0 , p1 , p2 , p3 ) = (E/c, p), com E sendo a energia. noções de espaço e tempo assim definidas, considera-se a
existência dos sistemas inerciais, levando às transforma-
e3 - O sistema físico será aqui descrito como um ponto ções de Lorentz.
material e o estado é dado, de modo similar ao caso
não relativístico, por xν (τ ), indicando a localização
no espaço-tempo, e pν (τ ) indicando um elemento 7. Teoria cinética clássica relativística
de movimento.
Nesta seção, a teoria cinética relativísitica é elaborada
e4 - A Lagrangiana é dada como antes (ver [17]). como uma teoria mecânica enfatizando sua estrutura,
que é a de uma teoria de campos. Embora seguimos, pre-
e5 - A lei causal conectando os estados é estabelecida ocupados também por razões pedagógicas, uma apresen-
respeitando-se o elementos constitutivo e1; isto é, tação não usual, outros aspectos complementares podem
as transformações de Lorentz servem de guia para ser encontrados em outros textos muito bem elabora-
o estabelecimento das leis que geram a dinâmica. dos [60–63].
O resultado é a generalização da segunda Lei de Os sistemas de refêrência inerciais são especificados
Newton pelo grupo de Lorentz e o sistema físico será um gás car-
∂xν (τ ) regado (um plasma) relativístico. Esse sistema é especifi-
m = fν, (21)
∂τ cado por um campo definido no espaço de fase, provendo
onde f ν é a força relativística. uma densidade de probabilidade em cada ponto.
Há várias formas de se introduzir o espaço de fase,
Agora estamos em posição de analisar as propriedades que é a variedade natural (experimentalmente consis-
da coordenada tempo nas teorias Newtoniana e Einstei- tente) para tratar o sistema físico em questão, um plasma
niana. clássico relativísitico [63]. Seguiremos uma apresentação
matemática geral [64].
Propriedade (i) - O tempo é uma coordenada definida Considere M o espaço Minkowski onde cada ponto é
sobre a reta Real nas duas teorias. especificado pela coordenada q µ , com µ = 0, 1, 2, 3. O
Propriedade (ii) - Processos descritos pelas Eqs. (13) e correspondente espaço cotangente, T ∗ M, é especificado
(14) são ainda válidos. Ou seja, como uma proprie- por um conjunto duplicado de coordenadas (q µ , pµ ), que
dade do grupos de Lorentz, a relatividade restrita pode ser equipado com uma estrutura simplética definida
é também reversível temporalmente. por uma 2-forma (uma estrutura métrica tensorial de
Propriedade (iii) - Para sistema de referência fixo, o grau 2) dada por ω = dq µ ∧ dpµ
tempo próprio é definido como na Eq. (12) com
unidade fixa. Então, este conjunto de instantes ←
− −→ ←
− −

define, como no caso não-relativístico, um espaço ∂ ∂ ∂ ∂
Λ= µ − µ . (23)
Euclidiano unidimensional (R1 ). ∂q ∂pµ ∂p ∂qµ
Propriedade (iv) - Devido às transformações de Lorentz,
os intervalos de tempo não são os mesmos de um Considerando as funções C ∞ f (q, p) and g(q, p), tem-se
referencial para outro. Assim a Eq. (16) deixa de
ser válida, e passa a ser regida por uma regra ω(f Λ, gΛ) = f Λg = {f, g}, (24)
como aquela descrevendo a transformação dada
pela Eq. (18)). Isto significa que os relógios passam em que {f, g} = ∂q ∂f ∂g ∂f ∂g
µ ∂p − ∂pµ ∂q
µ µ
é o parênteses de Pois-
de modo distinto de um sistema para o outro, con- son. O espaço T ∗ M equipado com esta métrica simplética
tudo sem perder as regras de ordenamento. Usando é chamado de espaço simplético ou espaço de fase, Γ.
a notação que enfatiza os processos podemos escre- Introduzindo a seguinte notação ω = (ω 1 , ω 2 , . . . , ω 8 ),
ver com ω 1 = q 0 , ω 2 = q 1 , ω 3 = q 2 , ω 4 = q 3 , ω 5 = p0 , ω 6 =
p1 , ω 7 = p2 , ω 8 = p3 tal que q = (q 0 , q) e p = (p0 , p)
4-vetores em M, a métrica simplética em Γ, (ηab ), a, b =
0
n(P ) − n(P ) = γ[n(P ) − n(P 0 )]. (22) 1, ..., 8, reduz-se a
Note que se v << c, esta equação se reduz ao caso não-  
0 I
relativístico da Eq. (16). η= .
−I 0
É importante ressaltar que em situações de altas ve-
locidades, o limite superior de velocidade, a velocidade
Desse modo, dado duas funções f (ω) and g(ω) of class
da luz, c, é estabelecido experimentalmente, de tal modo
C ∞ , o produto escalar é escrito como
que um corpo massivo movendo-se com uma velocidade
v1 < c não pode ser acelerado até atingir uma velocidade ∂f ∂g
v2 ≥ c. A implicação básica disso é que, por motivos ω(f Λ, gΛ) = η ab
∂ω a ∂ω b
= η ab ∂a f ∂b g.

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Santana e20180145-13

Essa estrutura é bem conhecida em mecànica clássica no espaço de fase. Em termos outros, considerando ex-
na realização de Hamilton-Poisson da relatividade res- plicitamente as componentes do tensor de campo F µν e
trita. Entretanto, Γ como introduzido aqui é matematica- a Eq. (25), temos
mente geral, e pode ser utilizado em outros contextos. No
caso da teoria cinética, o sistema é caracterizado por um ∂
fc (q, p) + v ·

fc (q, p) + F ·

fc (q, p) = 0,
campo f (q, p) ∈ Γ que é uma densidade de probabilidade. ∂t ∂q ∂p
Para descrever efeitos de correlações entre pontos distin-
com
tos no espaço se introduz as densidade de probabilidades e
F = eE + V × B,
a n-pontos (ou n-corpos), fN = fN (q1 , ..., qN , p1 , ..., pN ). c
Aqui consideraremos apenas as distribuições a 1-ponto. onde E and B são os campos elétricos e magnéticos,
O estado desse sistema é caracterizado então por f (q, p) respectivamente, e é a carga elétrica e c, a velocidade da
e suas derivadas com relação aos 4-vetores q e p. A função luz.
f (q, p) é introduzida de tal modo a respeitar a conser- É possível ainda introduzir um termo de colisão não
vação de probabilidade no espaço de fase relativístico. linear em f (q, p). Neste caso, a Lagrangiana pode ser
Assim, f (q, p) deve satisfazer, além da normalização, o acrescida de um termo como LColis. = ρC[f ], tal que, a
teorema de Gauss da 4-divergência, isto é, equação de movimento (com λ = 0 e ρ constante) fica
Z
∂ dada por
d4 pd4 q µ f (q, p)pµ = 0.
∂q ∂ ∂
pµ f (q, p) + F µ µ f (q, p) = C[f ].
Similar resultado deve valer para a divergência em p. Esta ∂q µ ∂p
função fica associcada à função de distribuição clássica
A escolha adequada do termo de colisão conduz, por
não relativística, fc (q, p, t), através da integração
exemplo, à equação de Boltzmann. Todavia, esse tipo
Z de escolha, que resulta ser compatível com a segunda
fc (q, p, t) = dp0 f (q, p). (25) lei da termodinâmica, leva a uma quebra de simetria de
Lorentz, e assim a uma redefinição do primeiro elemento
Neste caso, fc (q, p, t), que é também Lorentz-invariante, constitutivo. De fato, para satisfazer a lei de crescimento
se reduz trivialmente ao caso não-relativístico. da entropia, a irreversibilidade temporal é imposta, de
Uma simples situação de evolução de f (q, p) é obtida tal modo que transformações inversas no tempo, uma ca-
a partir de uma densidade de Lagrangiana dada por racterística da definição de grupo, não são mais possíveis.
Neste caso se tem um semi-grupo. Os outros elementos
∂ ∂ 1 constitutivos seguem como antes e são facilmente enume-
L = ρ(q, p)[pµ + F µ µ ]f (q, p) + λρ2 , (26)
∂q µ ∂p 2 ráveis, em particular o mapeamento nos reais, para efeito
de medida, estabelecido pela média dos observáveis.
em que F µ = pν F νµ é a força de Lorentz, com F νµ sendo Para terminar é importante frisar alguns aspectos. Em
o (antissimétrico) tensor intensidade de campo eletromag- teoria cinética, é comum se referir a f (q, p) como o estado
nético, F µν = ∂ µ Aν (q) − ∂ ν Aµ (q), tal que ∂µ = ∂/∂q µ do sistema, por exemplo, o estado de um plasma [62].
e Aµ (q) é o 4-vetor potencial. Note que a Lagrangiana Mas esta nomenclatura não é consistente do ponto de
dada na Eq. (26) é basicamente o acoplamento do campo vista de uma teoria do movimento, na medida em que
f (q, p) com uma corrente externa definida através da se trata de um campo. Pelo mesmo motivo que devemos
parte espacial e a parte do momento, isto é, jqµ = ρpµ nos referir a Aµ (q) e suas derivadas como o estado do
and jpµ = ρF µ . O acoplamento ocorre então através de campo eletromagnético, a partir do qual a densidade
dois termos, jqµ ∂q∂µ f (q, p) e jpµ ∂p∂µ f (q, p). Isto conduz à de Lagrangiana é escrita, então f (q, p) e também suas
equação de Euler-Lagrange derivadas, ∂q f (q, p) e ∂p f (q, p), são quem estabelece o
estado do sistema descrito pela função de distribuição.

∂ ∂
f (q, p) + F µ µ f (q, p) = λρ, Outro aspecto relacionado a terminologia é o frequente
∂q µ ∂p uso do conceito de ponto material para os propósitos
de raciocínio ao se deduzir, por exemplo, os termos de
que é uma equação do tipo Vlasov relativística com uma colisão do tipo Boltzmann; e isso é muito útil. Entretanto,
fonte externa, ρ, satisfazendo há de se ter em mente que, basicamente, a teoria cinética
é uma mecânica de campo clássico (uma generalização
∂ ∂
pµ ρ(q, p) + F µ µ ρ(q, p) = 0. do campo de velocidade), com as devidas funções de
∂q µ ∂p correlações entre um ponto e outro do espaço de fase.
Dado a arbitrariedade da fonte, é possível conside-
rar neste ponto ρ constante (independente de q e p) e 8. Conclusões finais
λ = 0. Assim chega-se à equação de Vlasov usual para
um plasma na presença de um campo eletromagnético Considerando elementos constitutivos, a noção de mecâ-
externo [60, 63], tal que pµ ∂q∂µ f (q, p) expressa a evolução nica, ou seja, de uma teoria do movimento, é analisada
livre da densidade de probabilidade, que é conservada conjuntamente com uma definição de mensuração. O

DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2018-0145 Revista Brasileira de Ensino de Física, vol. 41, nº 1, e20180145, 2019
e20180145-14 Espaço, Tempo e Estruturas das Teorias do Movimento

ponto de partida é a investigação das propriedades do estimado e caro à física do Sec. XIX, fora completamente
conceito de tempo e espaço, seguido da conceitualiza- abandonado [52].
ção de estado mecânico, ponto material e campos. Neste Uma outra amostra é a física quântica. Nesse caso
contexto, as relações entre as mecânicas relativística e microscópico, i.é, no âmbito atômico e subatômico, o
não-relativística de um ponto material são tratadas. A movimento se processa de tal modo que ao se medir as
construção é ainda aplicada na formulação da teoria ci- suas características, aspectos próprios dessas escalas de
nética relativística, enquanto uma teoria de campo. No comprimento (ou seja, aspectos que não estão presentes
decorrer do texto, vários aspectos pedagógicos foram na mecânica de Newton) surgem. Isso levou aos elemen-
sendo discutidos, em particular a definição de tempo e tos fundamentais daquilo que caracteriza o movimento
espaço, e as suas características geométricas. na escala quântica: as relações experimentais de incerteza
Um elemento central desta abordagem é a perspectiva de Heisenberg. Essa constação, mais uma vez, não dimi-
de que o tempo é definido e utilizado em física a par- nui nem releva o imenso esforço intelectual de físicos e
tir de relações entre objetos físicos que estabelecem o filósofos para estabelecer e criar quadros conceituais que
movimento. Ou seja, na física, o tempo existe enquanto conduziram à mecânica quântica. Discussão que ainda
processos e relações, considerados como elementos onto- continua, mas encontra as devidas escolhas teóricas no
lógicos, a partir dos quais se introduz a medida. Neste experimento. Vale mencionar os modelos de partículas
cenário, o conceito de tempo absoluto de Newton foi ocultas, que, embora intelectualmente interessantes, não
analisado. resistiram as demandas experimentais [4].
O tempo absoluto é usualmente considerado um atri- As concepções de mundo, em perspectiva cultural, têm
buto característico da física não-relativística. Corrobora a sido um instrumento formidável na construção das teorias
esta opinião o fato de que o tempo transcorre da mesma do movimento. Contudo, dos dois exemplos citados acima,
forma nos diversos sistemas de referência, como con- constata-se que não é suficiente “um bom conceito”, nem
sequência da Eq. (16). Todavia, tanto na mecânica de qualquer tipo de ontologia. Por vezes, certas concepções
Newton como na de Einstein, o tempo é definido a partir culturais guiam a construção de teorias. Esse é o caso,
de relações (ver a definição de n(P ) na seção 6), e é mas ainda em elaboração, e pouco questionado, do mo-
assim, para todos os fins práticos, de mesma natureza; delo padrão cosmológico, com o seu conceito de início,
diferindo nas qualidades associadas ao grupo de invari- aceito em quase uníssono, mas ainda de frágil teste expe-
ância da teoria (compare as Eqs. (16) e (22)). Ou seja, o rimental. Outros elementos aparecem na mesma esteira
tempo na relatividade continua a ser ainda o tempo das de guias, como as célebres afirmativas de que o “mundo
relações estabelecidas a partir do padrão de medida, o re- é matemático”, ou ainda “a física é geométrica, ou to-
lógio. Mas para tratar a sincronicidade, atributos outros, pológica”, entre outras [65]. Essas afirmativas remetem
como dilatação e contração, precisaram ser incorporados a elementos ontológicos do mundo. Mas em sua práxis,
à definição original do tempo, quando nas escalas das a física em algum momento há de perguntar-se: “Qual
velocidadess altas. matemática?, Qual geometria?, Qual topologia?”. A per-
Essas conclusões, obtidas da análise dos elementos gunta, que permanece válida no âmbito do experimento,
constitutivos de uma teoria sobre o movimento, são es- desmonta o caráter ontológico da assertiva. O que se pode
tabelecidas pelo eixo escolhido pela física para proceder concluir é que a práxis da física guarda compromisso ape-
no seu desenvolvimento: o experimento. Isso independe, nas com as ontologias que fundam os procedimentos de
em certa medida, do ponto de vista de seus agentes, medida. Sob essa perspectiva, as chamadas teorias de
quer sejam realistas, ou românticos ou ainda metafísicos tudo (do Inglês TOE: theory of everything) podem ser
transcedentes; mas também não minimiza ou nega a im- vistas como falácias naturalistas, que, as vezes, no dis-
portância dos elementos culturais, como o pensamento curso midiático da divulgação científica equivocada, se
realista e a lógica na criação de teoria físicas. O que, em transmudam nas denominadas falácias do espantalho.
última instância, se impôe para a práxis da física é o Ainda é necessário apontar, embora preliminarmente,
experimento, que tem como ponto de partida as relações que as expectativas pós-modernas da nova metodologia
entre os objetos físicos, em qualquer escala de observação. científica do “paradigma emergente” [66] não ocorreram
A opção pelo eixo experimental é nítida no processo que por completo. Essas noções foram formuladas, pelo menos
levou à elaboração da física do Sec. XX. no que se refere a áreas da ciências naturais, considerando
Um exemplo é a relatividade restrita. Nesse caso, novos conceitos introduzidos pela relatividade, mecânica
observa-se que o movimento possui características pró- quântica e vários aspectos da teoria cinética e da física
prias associadas com as escalas de velocidade. Isso é o estatística do não equilíbrio nas décadas de 1970 e 1980,
que se constata, experimentalmente, no regime de altas que deram origem à denominada física dos sistemas com-
velocidades, com o limite da velocidade da luz, e que plexos. Entretanto, como vimos aqui neste trabalho, a
levou à mecânica relativística. O processo histórico não essência metodológica da física contemporânea, mesmo
foi linear [52], mas ainda assim é importante observar com uma imensa gama de novos fenômenos e conceitos,
que a construção da relatividade teve como premissas o continua a ser fundamentalmente aquela Newtoniana; não
experimento, a definir a escolha de caminhos filosóficos- ocorreram mudanças metodológicas tão radicais. Mas o
interpretativos. Por exemplo, a conceito de éter, tão que parece ser interessante é que noções como a de tempo
e espaço, na apropriação da física desde Newton, já se

Revista Brasileira de Ensino de Física, vol. 41, nº 1, e20180145, 2019 DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2018-0145
Santana e20180145-15

revelavam mais como conceitos de uma contrução so- [20] F.K. Nóbrega e L.F. Mackedanz, Rev. Bras. Ens. Fis.
cial [51] que filosófica. Em um próximo trabalho, esses 35, 1301 (2013).
aspectos, assim como a estrutura dos elementos consti- [21] M.E. Perskin e D.V. Schröder, An Introduction to Quan-
tutivos da mecânica quântica e das teorias quânticas de tum Field Theory (Addison-Wesley, New York, 1995).
campos, serão abordados com mais detalhe. [22] L.D. Landau e E.M. Lifshitz, Quantum Mechanics (Per-
gamon, London, 1959).
[23] E. Comay, Prog. Phys. 4, 91 (2009).
Agradecimentos: [24] A.V. Selikov e M. Gyulassy, Phys. Rev C 49, 1726 (1994).
[25] F.C. Khanna, A.P.C. Malbouisson, J.M.C. Malbouisson
Este trabalho teve apoio financeiro do CNPq. e A.E. Santana, Phys. Rep. 539, 135 (2014).
[26] E.P. Wigner, Ann. Math 40, 149 (1939).
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