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Relato de caso : Abuso, negligência e Parricídio

Excelente relato de atendimento clínico de Adolescente, Homem, 17


anos, em unidade socioeducativa, autor de ato infracional relativo a matricídio.
(Adaptado) para mais detalhes consultar a bibliografia no final do post.

O participante deste estudo foi um adolescente de 17 anos, natural de uma


cidade do interior do Estado, onde nasceu e viveu durante toda sua vida. Seus pais
se casaram e após uma relação conflitiva, separaram-se quando a mãe estava
grávida de apenas dois meses. Estava no 2º ano do Ensino Médio, quando o crime
ocorreu. Para ele nunca foi fácil fazer amigos, pois os outros meninos caçoavam
dele. Com mais idade, passou a enfrentá-los e eles pararam de amedrontá-lo. Como
mudava muito de escola em razão das mudanças de endereço, estava sempre
deslocado nas turmas. O adolescente nunca sentiu alegria na escola. Gostava
apenas de jogar bola, onde podia berrar, gritar, xingar e se descontrair, extravasar
o ódio e a raiva que relatou ser muito grandes dentro dele. Jogava futsal desde
pequeno, foi goleiro da seleção júnior de sua cidade.

1. Histórico familiar

Inicialmente a terapeuta incentivou o adolescente a falar de sua relação com


a mãe, avós maternos que viviam com ele, pai e familiares maternos. Buscava-se
nestas sessões levantar as práticas educativas maternas e o tipo de apoio familiar
existente. Contou que suas tias e primos tinham ciúmes do relacionamento íntimo
que ele e a mãe mantinham com os avós maternos. A casa era sustentada pela
mãe, que passava a maior parte do tempo no trabalho. Com eles moravam os
avós maternos, ambos aposentados. A relação do adolescente com o avô era
tranquila, permeada de afeto e respeito, segundo ele. O adolescente referia-se ao
avô como lei. A avó cozinhava, sua comida era boa e o adolescente gostava muito.
A mãe quase não comia em casa. O jovem contou que ficava a maior parte do
tempo com os avós. Não saia muito, pois ela não deixava: "minha mãe tinha medo
que acontecesse algo comigo, como eu sumir na rua ou que me roubassem". Não
se lembra de muitas brincadeiras da infância; disse apenas que se relacionava
bem com os primos, mas ficava a maior parte do tempo assistindo TV.

Abuso físico: ele relatou que desde pequeno (dois a três anos) era espancado
pela mãe. As tias confirmaram estes relatos. Diziam não poder interferir, pois a
mãe não admitia intromissões e ficava violenta com quem o fizesse. Às vezes, os
avós tentavam impedir os espancamentos, porém, nestas ocasiões, eram expulsos
da casa e passavam a morar temporariamente com uma das outras filhas. Visto
que os avós haviam espancado as filhas, a mãe, usava este argumento para
impedir a proteção deles. Relatou que constantemente estava com hematomas
pelo corpo. Quando ia reclamar para o avô, ele nada dizia, apenas ouvia. Mais
tarde o avô aconselhou o menino a sair de casa, ir embora. Muitas noites a criança
era acordada com socos e era espancada enquanto dormia. Relatou que sempre
dormia com calças compridas e cobertas para se proteger. Já mais velho, não
conseguindo mais espancá-lo, a mãe passou a jogar água quente nele enquanto
dormia. Quando a terapeuta perguntava a causa de não sair da cama da mãe
apesar dos espancamentos, ele respondia que era porque esperava pelo afeto
materno.
Estes foram os primeiros relatos feitos pelo adolescente durante as sessões.
Contava tudo com raiva, medo, tristeza e principalmente sem compreender porque
era tratado desta forma pela mãe e avós maternos. Muitas vezes dizia que a mãe
era responsável pela sua educação; que era hoje um homem porque ela tinha lhe
dado o que vestir e o que comer. Dizia que deveria ser grato. A mãe repetia para ele
constantemente estes argumentos. Nestes momentos a terapeuta colocava
questões como "o que você entende por educar e cuidar?" "Como é possível cuidar
e espancar? Amar e jogar água fervendo? Proteger e mandar ir embora sozinho?"
Inicialmente, o adolescente ficava sem responder e, no decorrer das sessões,
passou a dizer claramente que não se sentia cuidado e nem amado. Passou a
questionar a forma como era tratado pelos "cuidadores".
Pode-se observar claramente que o adolescente foi abusado fisicamente e que
esta forma de controle coercitivo trás consequências negativas extremamente
severas. Gershoff, (2002), Simons, Wu, Lin, Gordon e Gonger (2000), Haapasoloa
e Pokelaa (1999), Strauss, (1994) e Huesmann e Eron (1984) que estudam as
consequências do espancamento em crianças e adolescentes mostram o alto nível
de correlação entre abuso físico e comportamento infrator, uso de drogas e
comportamento antissocial de uma maneira geral. A criança não entende que seu
comportamento é inadequado, entende sim, que ele é inadequado (Gomide, 2004).

Abuso psicológico: Os espancamentos relatados não tinham o objetivo de educar


e eram acompanhados de raiva intensa, palavrões e desqualificações, como nos
casos relatados pelo adolescente deste estudo. A mãe registrou o filho apenas em
seu nome e nunca permitiu a aproximação do pai. Informava que o pai não queria
saber dele, que a havia espancado, sendo este o motivo da separação. Certa vez,
o adolescente encontrou uma foto do pai na casa de uma tia, porém, assim que a
mãe tomou conhecimento, rasgou-a. Ela não permitia a convivência do adolescente
com amigos; trazer amigos ou ir à casa deles era proibido. Argumentava que era
perigoso e precisava protegê-lo. Em várias ocasiões rasgou suas roupas e
cadernos, quebrou seus brinquedos, deu seus presentes para outras crianças e não
compareceu às festas escolares ou ao aniversário do próprio filho. Depois,
comprava novamente os presentes e as roupas. Fazia o menino copiar, de
madrugada, o caderno que ela havia rasgado propositadamente, sob a justificativa
de que ele havia errado a tarefa. Assim que a criança começava a fazer amigos nas
redondezas, ela imediatamente mudava de bairro, procurando lugares isolados,
onde ele não podia sair sozinho.
Ao longo do processo terapêutico, a história dos abusos sofrida pelo
adolescente foi sendo revelada. Inicialmente, referiu-se aos abusos físicos, depois
aos psicológicos. Relatou o ódio e a frustração que sentia por estar sempre
mendigando o afeto materno. Nunca se sentiu amado. No entanto, vivia buscando
este amor. Disse submeter-se a tudo, pois acreditava que um dia receberia o amor
materno. Não sabia por que a mãe o odiava. Ela dizia que era por que ele era muito
parecido com o pai que a havia maltratado. Falou do seu enorme desejo de conhecer
o pai e ter informações sobre ele, mas a mãe o forçava a odiar o pai. Passou a
perceber que os avós maternos, infelizmente, não o protegeram dos abusos
sofridos. Eram meros expectadores. Entendeu que eles também espancaram os
filhos e ficaram sem moral diante da mãe.
O abuso psicológico é uma forma tão severa de coerção quanto o abuso físico.
O abuso de poder e falta de afeto são percebidos pela criança como se ela estivesse
em perigo, não fosse amada. Embora o abuso psicológico possa ser sutil e de difícil
mensuração, na prática pode ser o mais frequente de todos os tipos de abuso.
Várias consequências negativas podem advir do uso desta forma de controle, entre
elas, uma baixa autoestima, dificuldades em estabelecer relacionamentos sociais ou
ideações suicidas (Gershoff, 2002). O autor mostrou uma série de práticas
disciplinares usadas pelo abusador psicológico: confinamento, humilhação pública,
xingamentos, ameaça, incitação à mentira, excesso de destituição de privilégios,
retirada inapropriada de diversão, entre outras. Foram identificados vários
comportamentos abusivos utilizados pela mãe para controlar o filho, usados de
forma a dar a impressão que o que ela fazia tinha "boa intenção", era para educá-lo
melhor.

Negligência: Relatou que em várias ocasiões a mãe saia e o deixava sozinho em


casa, algumas vezes com febre. Em festas da escola não aparecia. Viajava no dia
do seu aniversário e, quando questionada, dizia que ele errara a data. Rasgava suas
roupas. Quando o filho não fazia o que ela exigia, a mãe o punia ficando dias sem
falar com ele, não dando dinheiro para lanches e, até mesmo, não comprando
comida para casa.
Pode-se verificar claramente as várias formas de negligência médica, física,
alimentar e emocional. Para Feldman (1977), o jovem que viveu em ambiente com
carência ou ausência de relacionamentos afetivos consistentes poderá prejudicar o
outro (a vítima) sem remorsos. A vítima potencial é aquela representada pelo algoz.
Filhos da negligência são inseguros, vulneráveis, hostis e agressivos socialmente
(Dodge, Petit & Battes, 1994).

Abuso sexual: O adolescente relatou dormir na cama da mãe até completar 13


anos, usava chupeta e mamadeira até esta idade. A partir desta época, sua mãe
colocou um guarda-roupa no quarto para dividi-lo. Trazia periodicamente namorados
muito jovens com os quais mantinha relações sexuais, enquanto o filho dormia ao
lado. A mãe andava constantemente nua pela casa. Fato confirmado pelas tias. Em
uma viagem da terapeuta, o adolescente foi autorizado a falar com ela pelo telefone.
No telefone, ele começou os primeiros relatos sobre o abuso sexual. Começou
assim "a senhora sempre me disse que eu ia me lembrar de mais coisas. A senhora
estava certa. Só tenho coragem de contar agora porque é pelo telefone". Disse
lembrar-se de detalhes que pareciam não existir antes. Nas sessões anteriores era
dito a ele que possivelmente muitas outras lembranças iriam ocorrer, principalmente
àquelas relacionadas ao dia do crime, que para ele estava confuso e obscuro. Cada
vez que contava algum tipo de abuso mostrava raiva e nojo pela mãe e dizia "ela
não era minha mãe". Ele contou que ela dava banhos nele, masturbando-o. Dava
beijos de língua dizendo que queria ensiná-lo a beijar. Encostava-se nele na cama
e depois o espancava. Quando ele não cooperava com sua aproximação erótica,
dava-lhe tapas na cara. Afirmou "minha mãe me tratava como homem, não como
filho". Relatou ter muito ciúme da mãe. Afastou-se das abordagens sexuais
maternas aos 13 anos, quando assistiu a um filme erótico e percebeu que aquilo
que ele e a mãe faziam estava no filme. Disse sentir nojo e vergonha. A partir desta
data o relacionamento deles ficou muito violento. A mãe passou a fiscalizar os
passos do filho que tentava fugir ao seu controle. Ele passou a fazer tudo para
agredi-la: fugia de casa, não estudava, quebrava coisas, agredia verbalmente a mãe
e outros membros da família, mentia, manipulava, furtava dinheiro dos parentes e
da mãe e até vendeu drogas uma vez. Relatou que tinha ódio, ciúme, frustração e
se sentia angustiado todo o tempo. A imagem que veio à sua memória, em sessão
terapêutica, "eu (ainda criança) estava com os braços estendidos, dentro de um
furacão, sem saída, pedindo ajuda". Após a reunião com as tias, o processo de
entendimento dos abusos sexuais ficou mais bem compreendido. Disse da vergonha
e do nojo que sentia da situação e que depois se tornaram raiva incontrolável.
Heide e Boots (2007) afirmam haver correlação entre abuso sexual e
parricídio, de forma que na clínica forense deve-se estar ciente que a revelação do
abuso sexual poderá ocorrer durante as sessões terapêuticas. Também é
importante que o terapeuta espere as revelações de forma natural, sem pressão,
mas demonstrando aceitação incondicional quando a revelação for feita.

2. Revelação do crime

No quarto mês de psicoterapia conseguiu relembrar o dia do crime. Estavam,


ele e a mãe, no banheiro escovando os dentes, quando ela deu-lhe um beijo na
boca, ele recuou dizendo "está carente", ela reagiu dando-lhe um tapa no rosto.
Ele pegou uma faca que a mãe havia usado para comer pêssego e a atacou.
Continuou dando facadas até a raiva acabar (overkill). Sentou-se e sentiu um
enorme alívio. Levou o corpo para o chuveiro para limpar o sangue. Queria que
não ficassem vestígios da existência dela na casa, como se fosse possível apagar
sua presença, lavou o sangue e retirou o corpo da cena do crime. Esta cena, que
desencadeou o matricídio é o resumo de sua história "sedução e agressão".
Pode-se verificar que o crime não foi premeditado, mas foi realizado com
extrema emoção. Parece haver um momento que não há mais como conviver com
a situação e somente com a eliminação do algoz a tortura poderá ser encerrada.

3. Sessões Familiares com as tias

Histórico de abuso intrafamiliar: Foi solicitado ao adolescente para conversar


com suas tias sobre os abusos e também para que avaliasse o tipo de apoio que
poderia receber ao sair da unidade de socioeducação. A terapeuta falou
separadamente com cada uma delas, depois fez sessões conjuntas do
adolescente com cada tia separadamente e finalmente, realizou uma sessão com
as três tias e o adolescente. Inicialmente contaram que o irmão mais velho delas,
já falecido, havia abusado sexualmente de uma das filhas. A cunhada e os
sobrinhos não compareceram ao enterro e puseram fogo na oficina onde ele
trabalhava. Uma das tias contou que sabia que o pai delas abusara de uma de
suas irmãs no cafezal, onde ele trabalhava, no sítio. Depois admitiu que havia sido
com ela. Todas, por fim, relataram também que foram abusadas pelo pai e pelo
irmão mais velho. As tias relataram que foram espancadas, tanto pelo pai como
pela mãe, os quais usavam ferros, chutes e outras formas violentas para discipliná-
las.
Após estas sessões, as tias fizeram vários telefonemas para a terapeuta para
discutir a história de abuso sexual da família. Foram encaminhadas para outros
profissionais, em suas cidades, para realizarem suas próprias psicoterapias.
Ficaram muito perturbadas com a relação do abuso sexual e o matricídio. As tias
oscilavam entre raiva do adolescente e pena, mas, todas queriam distância dele.
Proibiram seus filhos de manterem contato por carta ou internet com o primo preso.
A revelação do abuso intrafamiliar desnorteou a família e, de uma certa maneira,
passaram a culpar o adolescente por este assunto ter vindo à tona.

4. Reinserção social e escolar

Ao longo de seu internamento foram feitas várias atividades para reinseri-lo


ao meio social: iniciou uma atividade de qualificação profissional, cujo principal
objetivo foi desenvolver um repertório de convívio com as regras do trabalho e de
aumentar seu relacionamento social, que era precário. Após quatro meses de
atividade, foi avaliado positivamente pelos seus superiores. As sessões
terapêuticas deste período incluíam prepará-lo para a convivência no trabalho e na
faculdade. Suas dificuldades de relacionamento eram discutidas, modelos
alternativos de comportamento eram treinados e muitas vezes a terapeuta e
estagiárias iam ao local de trabalho para receber e fornecer informações sobre o
desempenho do adolescente.
Foi feito contato com o tio paterno do adolescente, pastor, buscando-se uma
aproximação com a sua família paterna. O pai morava em outro Estado, havia tido
dois filhos, cuja mãe falecera recentemente. Segundo o tio paterno, a mãe sabia
onde o pai residia, encontrava-se com ele e não permitia a sua aproximação ao
filho. O pai não sabia, até então, do matricídio. Os contatos com a família paterna
não foram concretizados por falta de interesse do tio pastor.
O adolescente tinha o maior nível de escolaridade da unidade socioeducativa.
Não havia professor das matérias que ele precisava cursar para concluir o Ensino
Médio. Foram feitos contatos com os responsáveis pelo ensino de jovens a distância
para que professores e material escolar fossem obtidos. Conseguiu concluir o
Ensino Médio e prestou vestibular: passou em quatro faculdades. Iniciou o curso
superior, mas foi obrigado a abandoná-lo por ter se envolvido com um aluno "não
matriculado" na faculdade. O aluno pediu a ele que guardasse "receitas médicas"
em sua mochila. Foi pego nesta "contravenção" e perdeu seu direito de cursar a
faculdade. Um ano depois foi colocado em Regime de Semiliberdade e prestou novo
vestibular. Passou e há dois anos cursa fisioterapia. Durante este período procurou
a terapeuta para novas revelações. Contou que a família materna mantém distância
dele, preferindo vê-lo na prisão. Percebeu que seu avô materno comportava-se
como seu pai e que, provavelmente, o era. Isto justificaria todo o ódio que a mãe
sentia por ele "você é a cara de seu pai, por isto te odeio". Lembrou-se que a mãe
casou-se apressadamente, dois meses depois, já grávida, expulsou o suposto pai
de seu filho, impedindo qualquer contato com a criança. Falou claramente "meu avô
era meu pai, por isto minha mãe me odiava".
Fonte:
GOMIDE, Paula Inez Cunha. Abuso, negligência e parricídio: um estudo de
caso. Temas psicol., Ribeirão Preto , v. 18, n. 1, p. 219-230, 2010 . Disponível em
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
389X2010000100018>

Relato do Caso: Transtorno de Bordeline e


Psicoterapia Dinâmica
Relato de atendimento clínico de Adulto, Homem, 21 anos, na linha
Psicanalítica, mais especificamente na Psicoterapia Dinâmica
Breve, Transtorno de Personalidade Borderline.(Adaptado)

Batista (os nomes são fictícios), 21 anos, mulato, brasileiro, solteiro, cursava
o terceiro grau, era prestador autônomo de serviços, de origem católica. O
paciente tinha estatura e peso médios e, geralmente, vestia-se com simplicidade.

Impressões Iniciais

Na primeira sessão, Batista chegou com uma hora de atraso. Entrou na sala
da psicoterapia, aguardando a orientação do psicoterapeuta sobre onde deveria
sentar-se. Inicialmente, perguntou pela estagiária que o havia atendido na
triagem, preocupando-se com a possibilidade de ter que passar, ainda, para
outro terapeuta. É normal que o paciente faça um vínculo já com o primeiro
profissional que o atende. Logo depois, Batista disse que não estava à vontade
e que nunca havia feito terapia. Somente após esclarecimentos sobre a
PDB(Psicoterapia Dinâmica Breve) e o contrato, passou a expressar-se melhor.
Batista aparentava bom nível de inteligência e falava sobre diversos temas.
Perguntou sobre hipnose e o seu uso na terapia; falou de sua impulsividade e
personalidade, ocorrendo uma ideação paranóide(1). O terapeuta escutava-o
com atenção e preocupação.

Motivo da consulta e sintomas apresentados


Batista apresentava as seguintes queixas: sentia-se deprimido, caótico e um
“vazio”; autoagredia-se, chegando a machucar-se; mudava de estado de ânimo
sem razão aparente; indecisão; falhas de memória e atenção; dificuldade em
lidar com as perdas; buscava uma razão para tudo isso. Gostaria de não ser tão
distraído e “sem memória”, pois tudo isto prejudicava-o em sua vida. Comparou
seu funcionamento cognitivo com o de um computador, que, quando tem muita
memória ocupada, funciona lentamente ao se apertar o “enter”. Disse que,
talvez, isto pudesse ter algo a ver com alguma memória antiga, algum trauma,
etc.
As suas fantasias de cura pareciam estar ligadas à expectativas imediatistas
de melhora de seus sintomas: gostaria de se submeter a uma hipnose ou queria
ter uma serra para abrir sua cabeça e ver o que o incomodava tanto.
Ideações paranóides foram detectadas logo na primeira entrevista, nos
momentos em que o paciente relatava ter a impressão de que havia pessoas
escutando-o atrás da porta ou olhando pela janela. O terapeuta surpreendeu-se
com os sintomas e o sofrimento do paciente, ficando preocupado o resto do dia.
Recorreu então à sua supervisora, bem como à sua terapeuta, que funcionava
como um continente para as angústias.

Resumo da história pregressa e atual

Batista era um menino que se considerava feliz até os 4 anos, época de muitas
brigas entre seus pais. Sua mãe, após trair seu pai, apanhou do mesmo e foi
expulsa de casa. O paciente disse que não conseguia sentir nada ao lembrar de
tudo isso, mas pensava que deveria sentir. Após esse fato, sua infância mudou
bastante, para pior. Seu pai conheceu uma outra mulher, que veio a ser sua
madrasta. O paciente tinha o costume de brincar com insetos mortos, os quais
gostava de enterrar. Quando criança ajudava seu pai no trabalho, a quem
gostava muito de fazer perguntas. Batista era chamado de “CDF” pelos colegas
e outros garotos da escola, fato que odiava. Até uma certa idade, urinava na
calça, o que fazia-o sentir-se inferior ao seu irmão.
Nesta época, seu pai penteava o seu cabelo com bastante força, para que ele
não fosse discriminado na escola por sua ascendência materna negra. Morava
numa cidade do litoral e trabalhava numa discoteca. Quando expressou vontade
de prestar vestibular, não foi estimulado pelos seus familiares. Na ocasião, tinha
problemas de relacionamentos com as pessoas e sentia a falta de uma
namorada. Há alguns anos, seu pai sofreu um derrame e ficou com os membros
paralisados. Quando Batista sentia-se deprimido queria ficar sozinho e parado,
sem fazer coisa alguma. Quando sentia-se assim com os amigos, só escutava.
Irritava-se quando estes lhe perguntavam a razão daquele estado; ele dizia que
estava cansado, que estava com dor de cabeça, ou algo parecido.

Gostava de fazer tudo por prazer. Às vezes, fazia gestos e sentia coisas
estranhas: tremedeira, inquietude, sentimento de caos e vazio, batia em sua
própria cabeça ou plantava bananeira e perdia a noção do passado e só tinha
consciência do presente. Sentia-se muito inseguro e superficial. Cursava a
universidade e tinha uma namorada (Débora), há cerca de três anos.

Hipóteses de trabalho

1 Hipótese Diagnóstica: Transtorno de Personalidade Borderline. Os critérios para


esta patologia estão de acordo com a quarta edição do Manual Diagnóstico e
Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM-IV, 1994/1995)

2. Hipóteses Psicodinâmicas: a) dificuldade em elaborar o luto pela perda da mãe;


b) bloqueio da afetividade; c) dificuldade para verbalizar experiências e desejos
sexuais.

3. Foco: Trabalhar o luto pela perda da mãe e o consequente bloqueio das emoções
4. Atendimentos propostos inicialmente: 25; prorrogação:10; total: 35.

Evolução do paciente durante o processo

O paciente veio a Clínica por iniciativa própria. No início, mostrava-se pouco


cooperativo. Atrasos e faltas ocorriam com frequência. Às vezes, dizia precisar
da psicoterapia. Inicialmente, o terapeuta sentiu dificuldade em lidar com a
resistência, sentindo-se desvalorizado e até agredido. Pacientemente, este
buscava monitorar a contratransferência, evitando assim atuações da sua parte.
É muito importante que o psicoterapeuta esteja alerta às manifestações de
resistência do paciente, para que esta possa ser trabalhada adequadamente no
contexto psicoterápico, no sentido de ser neutralizada e dissolvida. Para seus
atrasos e faltas, a postura ativa do terapeuta foi fundamental: combinou-se que
se ele chegasse atrasado, perderia aquele tempo da terapia e se ele não viesse
por algum motivo banal, não haveria reposição da falta. Desta forma, os limites
foram colocados claramente, reforçando-se o setting, o que parece ter
contribuído para a viabilização do atendimento do paciente.
O primeiro objetivo psicoterapêutico foi, basicamente, conscientizar Batista
sobre a sua necessidade de atendimento e os benefícios que ele poderia ter com
a psicoterapia. Após este objetivo ter sido alcançado, o processo transcorreu
melhor e, a cada sessão, o paciente mostrou-se mais envolvido com o
tratamento.

As expectativas imediatistas de cura do paciente foram trabalhadas, e as


intervenções do psicoterapeuta pautavam-se na clarificação de que a
psicoterapia não é como um tratamento médico tradicional. É um processo, que
se constrói com o decorrer do tempo, no qual se reelaboram aspectos da
vivência pessoal, e para atingir tal objetivo ela exige esforço, paciência e
empenho do paciente.

A participação de Batista foi modificando-se, desde o início até o final da


psicoterapia. Num processo lento e gradual, sua participação e seu envolvimento
no trabalho foram aumentando; o paciente foi “abrindo”-se, soltando-se e
colaborando com a psicoterapia.
O paciente demonstrou possuir uma boa capacidade de insight durante o
processo psicoterápico. Foi feita uma hipótese interpretativa ao paciente através
da formulação de que o fato de ele ter brincado de enterrar insetos mortos
durante a infância poderia estar ligado ao fato dele estar simbolicamente
tentando elaborar o luto por uma perda muito significativa de sua vida, muito
provavelmente o da perda de sua mãe. Batista respondeu:interessante...é,
legal...cada vez que eu escuto e aprendo aqui, parece que eu vou usar no meu
dia-a-dia, como se fosse um manual de sobrevivência. Uma outra formulação
interpretativa feita pelo psicoterapeuta, bem aceita e compreendida pelo
paciente, foi a de que sua reação inicial ao ver este (após ter passado por rápido
atendimento por outra estagiária do sexo feminino, que realizou a triagem)
parecia ter relação com a situação em que foi abandonado pela mãe e viu-se
sozinho com o pai, quem iria cuidar dele a partir daquele momento. Não fora à
toa que logo na primeira sessão, quando o paciente perguntava algumas coisas
para o psicoterapeuta, lembrara-se que gostava muito de fazer perguntas
também para o seu pai, quando criança. O terapeuta, por sua vez, sentira-se
como o pai, que, a partir daquele momento, deveria cuidar e preocupar-se com
o filho abandonado.

A questão da ambivalência, sempre presente no discurso do paciente, foi


trabalhada também: ele amava, mas odiava; ele queria, mas não queria; ele
gostava, mas não gostava; não sabia se era negro ou branco: Eu sou sempre
indefinido...quando o assunto é de raça, me incomoda: porque eu não sou nem
preto, nem branco; psicologicamente, eu não sei quem sou
Ele era mestiço, filho de uma mãe negra e de um pai branco. Além deste
aspecto, a sua história de vida mostrava indícios de como isso foi sendo
construído. Sua mãe foi uma mãe boa e carinhosa no início ( Eu era o xodó dela
e ela me defendia), mas Batista também achava que ela foi muito má, por ter
traído o pai e abandonado os filhos (minha mãe aprontava com um vendedor
que passava lá em casa, por isso fiquei do lado do meu pai e é como se ela
tivesse merecido o que aconteceu). Por outro lado, o seu pai foi mau, pois não
perdoou a sua mãe, expulsando-a de casa, e, ainda, porque não tinha Batista
como seu xodó; mas, também foi muito bom, pois foi ele quem cuidou dos filhos.
Apresentava em certos momentos ideias confusas e lapsos de memória,
principalmente quando o assunto era um pouco mais delicado para ele: Onde é
que eu estava? ou Por que eu estava falando disto?. O curso do pensamento
era então interrompido, e isto ocorria mais no início da terapia, ao falar do
abandono da sua mãe e/ou de brigas com a namorada atual. Foi-lhe apontado
que este bloqueio cognitivo parecia estar mais ligado a uma defesa, ao deparar-
se com situações e vivências difíceis de suportar, intervenção esta que lhe trazia
maior controle e permitia uma continuidade da reflexão. Da mesma forma, suas
ideações paranóides vinham em momentos em que o paciente falava de
assuntos mais profundos e ansiógenos, porém à medida em que estas questões
eram clarificadas, o paciente voltava à realidade. Era também nos momentos
mais complicados da vida de Batista que suas “crises” apareciam, como após
uma discussão com a namorada. Relatava ter dificuldade em descrever o que
sentia em suas “crises”. No entanto, eis alguns momentos da psicoterapia em
que comentou sobre esses episódios:

Tem a ver um pouco com a loucura: você fazer o que tem vontade. Parece que a única coisa que
te para é a morte...Teve uma que extrapolou, numa discussão com a Débora; nós não
conseguimos nos entender; comecei a me bater; Sabe, é ruim mas é bom. Eu tenho medo de
ter, mas também tenho um pouco de vontade de ter. Se nunca mais aparecer, eu tenho muito
dó...perda. Lidar com a perda é muito problemático para mim...Parece que as coisas mais
profundas vão se revelando.

As “crises” foram bastante pesquisadas, e pareciam vir principalmente em


momentos em que Batista sentia a iminência do retorno da vivência traumática
infantil ligada ao abandono. A “crise” seria a válvula de escape, a sua última
defesa como uma forma de sobrevivência emocional. Após decorridas as 25
sessões, inicialmente propostas, em que foram trabalhadas as características
depressivas ligadas ao abandono da mãe, foram oferecidas mais dez sessões,
com o objetivo de se trabalhar melhor a separação e o término da psicoterapia.

Término do processo

A visão de Batista sobre a terapia foi se modificando com o decorrer das


sessões. Eis o que ele verbalizou no final:

É bom fazer terapia, pois nessas horas eu me sinto melhor. Agora, eu sei mais quem eu sou. Eu
me apoiei em alguma coisa...e isso me dá alívio; Eu estou contente por ter passado um tempo e
agora eu vir para cá, sem ficar achando que não vale a pena. Antes, eu entendia bem menos o
que estava fazendo aqui. Você vai se descobrindo.

Para avaliação do término da PDB, foi aplicado o Questionário de Avaliação


Subjetiva - QAS (Azevedo, 1988) e procurou-se complementar os dados com a
análise dos comentários e das vivências do paciente.

Batista notou melhora em seus sintomas, relatando que aprendeu a lidar


melhor com seus comportamentos, suas dificuldades e entendera um pouco
sobre as causas desses problemas. Sentia-se melhor do que antes da terapia e
notou melhoras em seu rendimento nas esferas do trabalho, familiar, da amizade
e cognitiva. Conscientizou-se da relação existente entre eventos do passado e
sua vida atual, achando que não poderia ter dispensado a terapia. Outro dado
obtido através do QAS mostrou a sua satisfação com o atendimento e que, se
lhe fosse possível, prolongaria a terapia.
Ao longo do processo psicoterápico o paciente foi tomando consciência da sua
patologia e da necessidade de se submeter a um tratamento mais prolongado.

Conclusões

Como foi possível observar neste relato, o atendimento ao paciente borderline


é desafiante. Coloca em xeque a capacidade técnica, teórica e de tolerância do
terapeuta, bem como o próprio sistema de atendimento em saúde mental. A
análise deste caso veio corroborar a hipótese de que é possível atender
pacientes com transtorno de personalidade borderline dentro da PDB. No caso
relatado foram alcançados vários objetivos, dentre os quais destacam-se: 1) a
conscientização do paciente no tocante a sua patologia e necessidade de
tratamento; 2) elaboração da perda de sua mãe; 3) compreensão de alguns
aspectos significativos de sua história de vida. A peculiaridade desta modalidade
de atendimento parece estar relacionada ao estabelecimento de objetivos
terapêuticos condizentes com as reais possibilidades e limites de cada paciente.

(1) Ideação Paranóide: Ideação delirante envolvendo suspeitas ou a crença de


que o indivíduo está sendo assediado, perseguido ou injustamente tratado

Fonte: (se você gostou desse estudo de caso leia o ótimo artigo-fonte para mais
detalhes )
CUNHA, Paulo Jannuzzi; AZEVEDO, MASB de. Um caso de transtorno de
personalidade borderline atendido em psicoterapia dinâmica
breve. Psicoterapia: Teoria e Pesquisa, v. 17, n. 1, p. 5-11, 2001.
Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/ptp/v17n1/5400.pdf>

http://www.psicnet.psc.br/v2/site/dicionario/registro_default.asp?ID=178

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