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A Noite Escura da Fé: Luz de Inverno, de

Ingmar Bergman
Sérgio Dias Branco | 15 Jan 2019 | Cinema, televisão e média, Cultura e artes, Últimas

Luz de Inverno (Nattvardsgästerna, 1963) costuma ser agrupado com Em Busca da


Verdade (Såsom i en spegel, 1961) e O Silêncio (Tystnaden, 1963), todos dirigidos por
Ingmar Bergman. São três dramas espirituais que lidam com o silêncio de Deus. A
narrativa de Luz de Inverno começa com a Oração Eucarística. O pastor luterano dirige-
se ao altar de costas voltadas para a congregação. Ouve-se o “Pai Nosso” e vê-se a
paisagem lá fora. As imagens são planimétricas, frontais ou de perfil, com mudanças de
180 ou 90 graus na posição de câmara. Mas vão deixando de ser. A deslocação do ponto
de vista reflecte o contraste e a mistura entre a ordem do ritual religioso e a desordem da
vida humana. Durante a celebração, uma criança olha o tecto, enfastiada, e a avó diz-lhe
para olhar em frente e fechar as mãos. Também o organista consulta o relógio. A
vivência da fé cristã parece ter-se transformado numa rotina sem significado.

Depois da Eucaristia, o pastor Tomas Ericsson (Gunnar Björnstrand) recebe o casal


Persson (Max von Sydow e Gunnel Lindblom). Jonas Persson está preocupado e sente-
se perdido, à beira do suicídio. “Devemos confiar em Deus”, diz o guia espiritual sem
convicção e acaba por admitir que Deus parece estar longe, que não sabe o que
dizer. Tomas está fraco, doente, talvez tenha gripe. A professora Marta Lundberg
(Ingrid Thulin) oferece-se para o ajudar, mas ele parece incomodado com a oferta. Ela
explica-lhe que comungou porque queria participar na festa do amor. Ele ainda não leu
a carta que ela lhe enviou, nem parece querer casar com ela. Os relógios vão marcando
a passagem do tempo, assinalando o “silêncio de Deus” que se prolonga e o aflige.
“Deus não fala porque Deus não existe”, afirma Marta. A aflição dela não é menos
visível do que a dele. Ela aconselha-o a aprender a amar. Ele pergunta-lhe se ela lhe
pode ensinar isso. Não.

Finalmente, Tomas lê a carta. Ouvimo-la quase toda da boca de Marta numa posição
frontal. Ela questiona se ele acredita no poder da oração. No Verão passado, ela tinha as
mãos em ferida por causa de uma comichão terrível e disse-lhe para ele rezar. Mas as
feridas assustaram-no. Foi ela que rezou intensamente sobre a sua situação para lhe
encontrar sentido e ter claridade mental. E assim foi. Viviam juntos sem amor. A
comichão alastrou e ele afastou-se. Ela nunca partilhou a fé que ele dizia que tinha nem
percebeu a indiferença dele em relação a Jesus Cristo.

Tomas é viúvo há quatro anos. A vida dele só continua porque ainda sente que é útil
para os outros, embora a realidade não o confirme. Na segunda conversa com Jonas, ele
confessa o seu egoísmo: o amor que tem por si próprio é maior do que o amor que tem à
humanidade. Imaginou um deus protegido dos problemas da vida para que a divindade
não se tornasse monstruosa. As reflexões em voz alta do pastor são insuportáveis: “Se
Deus não existe faz alguma diferença? A vida torna-se compreensível. Que alívio! E a
morte será apenas o abandono da vida. A dissolução do corpo e da alma. Crueldade,
solidão, e medo – todas estas coisas seriam evidentes e transparentes. O sofrimento é
incompreensível. Não precisa de explicação. Não há criador. Nenhum sustentador da
vida. Nenhum desenho.” Jonas engole em seco e sai, desesperado, anunciando a
tragédia. A luz que ilumina a parede de fundo ganha intensidade e recorta o rosto
carregado de Tomas que ocupa todo o ecrã. “Deus, porque me abandonaste?”,
pergunta ele (como em Mateus 27,46 e Marcos 15,34, a partir do Salmo 22). A crise
existencial e de fé dele é assim colocada em paralelo com o percurso de Cristo.
Marta consola-o junto ao altar enquanto o beija.

Melhor com gemidos do que com palavras


Mais de metade de Luz de Inverno passa-se dentro da igreja, até Tomas se dirigir ao
local onde Jonas se matou e acompanhar Marta à escola onde ela trabalha. Numa sala de
aula, ele evita a atenção dela. Quer estar sozinho. Sente-se humilhado pelos boatos e
rejeita-a com crueldade. Marta observa que Tomas tem uma relação de ódio consigo
mesmo, mas ele não a quer ouvir. Esmagado entre o amor e o ódio por si próprio,
Tomas visita Karin Persson para lhe dar a má notícia. Acentua-se um padrão comum a
todas as personagens: em vez de olharem olhos nos olhos, atiram solitariamente o seu
olhar para longe, para fora do campo. Quando, logo a seguir, o pastor regressa à igreja,
desenrola-se uma das cenas mais importantes do filme.

Algot (Allan Edwall), um padecente sacristão, esteve a ler os evangelhos de forma


devota e pergunta a Tomas se o foco no sofrimento de Cristo, a ênfase na dor física, não
é errado. Segundo ele, o tormento deve ter sido breve, não durando mais do que quatro
horas. Algot sente que Cristo se sentiu atormentado de outra maneira. No
Getsémani, os discípulos adormeceram sem ter percebido o sentido da última ceia e,
quando apareceram os guardas, Pedro negou-o, e fugiram, e todos o deixaram. Isso deve
ter sido muito doloroso. Pendurado, Cristo disse “Deus, Deus porque me abandonaste?”,
chorando o mais alto que conseguiu. Pensou que tinha sido abandonado. Pensou que
tudo o que tinha dito era mentira. Momentos antes da sua morte, Cristo foi assaltado
pela dúvida. A maior dor dele foi o silêncio de Deus. Compenetrado, o pastor
concorda.

O cinismo do discurso sobre o amor do embriagado organista Fredrik (Olof Thunberg)


contrasta com os sentimentos profundos de Marta na sequência final. Ambos estão
sentados num banco da igreja. Quando ela fica sozinha, ajoelha-se e reza: “Se nos
sentíssemos seguros e ousássemos mostrar ternura um pelo outro. Se tivéssemos alguma
verdade para acreditar. Se conseguíssemos acreditar.” Esta última frase é rezada sobre
o rosto fechado e pensativo de Tomas, que depois abre os olhos e levanta a cabeça. Que
força esta que lhes permite acreditar que podem acreditar? A celebração começa
com as quatro pessoas presentes, vulneráveis, feridas, crentes porque presentes.

A tradução literal do título original seria “Os Comungantes”. A participação na


comunhão é o centro do filme, vista no princípio e antecipada no fim. Na “Carta a
Proba”, Santo Agostinho escreveu que “muitas vezes o fruto da oração alcança-se
melhor com gemidos que com palavras, mais com lágrimas que com discursos. Como
diz o salmo, Deus recolhe as nossas lágrimas e não Lhe são ocultos os nossos
lamentos.” A relação entre a fé e o sofrimento incorpora o pensamento e a vivência
de Deus na vida quotidiana e concreta. Como diria São João da Cruz, estas
personagens movem-se do conhecido para o desconhecido, da luz do dia para a
noite escura da fé.

Sérgio Dias Branco é professor de Estudos Fílmicos na Universidade de Coimbra e


leigo dominicano

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