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O público e o privado em Hannah Arendt

Marco António Antunes


Universidade da Beira Interior

Índice 1 Introdução
1 Introdução . . . . . . . . . . . . . 1 Em A Condição Humana, Hannah Arendt te-
2 Grécia Antiga: a génese da esfera matiza os três conceitos fundamentais que
privada e da esfera pública . . . . 2 constituem a génese da sua antropologia
2.1 A esfera privada . . . . . . . . . 2 filosófica: trabalho, produção e acção 1 .
2.2 A esfera pública . . . . . . . . . 3 Quanto ao trabalho, ele é necessário à so-
3 O social e o político . . . . . . . . 3 brevivência biológica e efectiva-se na acti-
4 A promoção do social . . . . . . . 5 vidade do animal laborans, o qual a partir
5 A esfera pública: o comum . . . . 8 de um estádio primitivo de existência vivia
6 A esfera privada: a propriedade . . 10 isolado dos outros seres humanos regendo-
7 O social e o privado . . . . . . . . 12 se apenas pelos ditames fisiológicos da vida
8 A localização das actividades hu- animal. Em relação à produção, ela é o está-
manas . . . . . . . . . . . . . . . 13 dio do homo faber que produz objectos durá-
9 Bibliografia . . . . . . . . . . . . 14 veis (técnicas) partilhando o seu saber de fa-
brico com outros homens. A acção é a carac-
terística matricial da vida humana em socie-
Resumo dade. Os homens agem e interagem uns com
As origens da acção remontam à polis grega, os outros no seio de uma vida política em so-
espaço de acção política, através da plurali- ciedade. Só a acção é a única característica
dade de opiniões. Em As esferas pública e da essência humana que depende exclusiva-
privada Arendt pretende realizar uma gene- mente da contínua presença de outros ho-
alogia da acção política sublinhando a oposi- mens. Arendt enquadra o trabalho (labor) e
ção entre a esfera daquilo que é comum (koi- a produção (work) no domínio da esfera pri-
non) aos cidadãos - a esfera pública da polí- vada, enquanto a acção está exclusivamente
tica - e a aquilo que lhes é próprio (idion) 1
- A contemplação é o último elemento con-
ou do domínio da casa (oikos) – a esfera pri- ceptual da antropologia filosófica de Hannah Arendt.
vada. Consiste na relação do homem com o mundo físico
na tentativa de apreender leis eternas semelhantes às
leis da Matemática e da Física. Este conceito é tema-
tizado em The life of the spirit. Compreende reflexão
filosófica e religiosa.
2 Marco Antunes

no plano da esfera pública (política). O pri- modo, as teorias políticas do Absolutismo


vado é o reino da necessidade. O público acentuavam que o Estado, na figura do Rei,
é o reino da liberdade. A acção (política) deveria assegurar o direito de propriedade e
nunca é equivalente a um trabalho necessá- a acumulação de riqueza dos cidadãos. Con-
rio à sobrevivência biológica ou à produção trariamente a estas concepções as doutrinas
técnica. A acção é uma actividade comu- socialistas, desde Proudhon a Marx, defen-
nicacional mediada pela linguagem da plu- dem a abolição da propriedade privada e a
ralidade de opiniões no confronto político e distribuição da riqueza num sistema de pro-
efectivada através da retórica. dução cooperativista de base comunitária.
Para Arendt, a evolução da sociedade, a Ora, Arendt embora aceite o princípio revo-
assimilação da acção pelo social privado, o lucionário marxista, segundo o qual a força
uniformismo das actividades humanas e o de trabalho é a origem da propriedade rejeita
consequente conformismo demonstram bem os regimes socialistas e em particular as te-
até que ponto se perdeu a distinção entre a ses de Marx referentes à ditadura do proleta-
polis (esfera pública) e o oikos/idion (esfera riado, prevendo o perigo do totalitarismo da
privada). A sociedade actual representa a ex- massa proletária.
tensão da esfera privada doméstica ao espaço
público da política. Este aspecto central é
2 Grécia Antiga: a génese da
visível a partir da Modernidade verificando-
se a assimilação da igualdade, outrora cir- esfera privada e da esfera
cunscrita ao espaço político, pela esfera pri- pública
vada. A igualdade moderna e contemporâ-
nea rejeita a praxis (acção) e a lexis (dis- 2.1 A esfera privada
curso) constituintes da comunidade política, É a esfera da casa (oikos), da família e
valorizando o conformismo e uniformização daquilo que é próprio (idion) ao homem.
do comportamento. Consequentemente, o Baseia-se em relações de parentesco como
homem reduz-se a um produto quantitativo a phratria (irmandade) e a phyle (amizade).
condicionado, isto é, o objecto primordial Trata-se de um reino de violência em que só
das análises cientifistas das ciências sociais o chefe da família exercia o poder despótico
e em particular do behaviorismo, economia sobre os seus subordinados (a sua mulher, fi-
"matemática"e estatística. lhos e escravos). Não existia qualquer dis-
Arendt afirma que o agir comunicacio- cussão livre e racional. Os homens viviam
nal da esfera política aparece absorvido pe- juntos subordinados por necessidades e ca-
los interesses privados da intimidade. Deste rências biológicas (por exemplo: alimenta-
modo, a esfera social deixa de estar sub- ção, alojamento, segurança face aos inimi-
metida à hierarquia do Poder. A política gos). A necessidade motivava toda a activi-
perde a personalidade da democracia grega dade no lar: o chefe da família proporcio-
transformando-se numa vontade geral buro- nava os alimentos e a segurança face a ame-
crática. A conservação da vida e a desigual- aças internas (por exemplo: revoltas de es-
dade inerentes à esfera doméstica passam a cravos) e externas (outros senhores que qui-
ter interesse para a acção política. Do mesmo

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sessem destruir uma dada casa e família), a relações de dominação e de propriedade so-
mulher era propriedade do chefe da família bre os subordinados do oikos 2 .
e competia-lhe procriar e cuidar dos filhos, Deixar o lar e a família manifestava a
os escravos ajudavam o chefe da família nas mais importante virtude política - a coragem.
actividades domésticas. Na esfera privada, No oikos, o homem defendia a sua sobrevi-
existia a mais pura desigualdade: o chefe da vência biológica. Na polis, o homem tinha
família comandava e os outros membros da de ter coragem para arriscar a própria vida
família eram comandados. O chefe da famí- libertando-se do servilismo do amor à vida.
lia não era limitado por qualquer lei ou jus- A vida boa, que Aristóteles identificava com
tiça. Assegurando a manutenção da ordem a acção política, significava a libertação do
doméstica, exercia um poder totalitário so- homem face às esferas do animal laborans e
bre a vida e a morte. Na esfera privada, o do homo faber efectivando-se através da vir-
homem encontrava-se privado da mais im- tude da coragem e da eudaimonia (vida boa).
portante das capacidades - a acção política. Ter coragem era a condição para aceder à
O homem só era inteiramente humano se ul- vida política afirmando uma individualidade
trapassasse o domínio instintivo e natural da discursiva e contrariando a mera socialização
vida privada. imposta pelas limitações da vida biológica
privada. Ser cidadão da polis, pertencer aos
2.2 A esfera pública poucos que tinham liberdade e igualdade en-
tre si, pressupunha um espírito de luta: cada
É a esfera do comum (koinon) na vida polí- cidadão procurava demonstrar perante os ou-
tica da polis. Baseia-se no uso da palavra e tros que era o melhor exibindo, através da
da persuasão através da arte da Política e da palavra e da persuasão, os seus feitos sin-
Retórica. Para Aristóteles, a esfera pública gulares, isto é, a polis era o espaço de afir-
era o domínio da vida política, que se exercia mação e reconhecimento de uma individua-
através da acção (praxis) e do discurso (le- lidade discursiva.
xis). Os cidadãos exerciam a sua vida polí-
tica participando nos assuntos da polis. Ven-
cer as necessidades da vida privada consti- 3 O social e o político
tuía a condição para aceder à vida pública. Hannah Arendt salienta que existe uma rela-
Só o homem que tivesse resolvido todos os ção mútua entre a acção humana e vida em
assuntos da casa e da família teria disponibi- comum na comunidade ou sociedade. Este
lidade para participar num reino de liberdade 2
- Apesar da essência pública da política, Arendt
e igualdade sem qualquer coacção. Todos
afirma que a linha divisória entre a esfera privada e a
são iguais (não há desigualdade de coman- esfera pública desaparece ocasionalmente em Platão
dar e de ser comandado) e todos são livres e Aristóteles. Para Platão, as experiências da vida pri-
em expressar as suas opiniões. O poder da vada podem ser transferidas para a vida na polis. E
palavra através da persuasão (a prática da re- Aristóteles, seguindo Platão, defendeu que a origem
histórica da polis estava ligada à superação das neces-
tórica) substitui a força e a violência da es- sidades do oikos e somente a finalidade última da vida
fera privada. Os cidadãos livres e iguais da boa na polis (a felicidade) transcende a insuficiência
esfera pública da polis opõem-se, assim, às biológica da casa e da família.

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facto, é um dos motivos da incorrecta tradu- mem como um ser vivo dotado de fala, for-
ção da expressão animal político, formulada mulada também por Aristóteles, como ani-
por Aristóteles, como animal social. Para mal racional. Para Arendt, Aristóteles queria
Aristóteles, o homem é um animal político. apenas indicar não a faculdade racional de
Todavia, os tradutores e comentadores de fala, mas a capacidade dos cidadãos da polis
Aristóteles, desde Séneca até S. Tomás de confrontarem opiniões através do discurso.
Aquino, traduziram incorrectamente animal Contrariamente, todos os que viviam fora da
político por animal social. Esta substitui- polis (mulheres, crianças, escravos e bárba-
ção do político pelo social é a consequên- ros) estavam impedidos não da faculdade de
cia da concepção latina da sociedade como falar, mas do poder de discursarem publica-
uma sociedade da espécie humana, na qual mente uns sobre os outros confrontando opi-
os homens se associam para viver juntos niões.
em função de fins específicos (por exemplo: Para Arendt, a confusão entre o social e
para dominar os outros ou para cometer um o político decorre da moderna concepção da
crime). Deste modo, existe uma diferença sociedade, a qual encara a política como um
substancial entre a polis dos gregos como es- espaço de regulação da esfera privada. O
paço de afirmação da política, através da li- Estado nacional tende a regular a vida do-
berdade e igualdade dos cidadãos, e a socie- méstica mediante uma "economia nacional",
dade dos romanos como um espaço de domi- "economia social"ou "administração domés-
nação do poder imperial sobre os cidadãos e tica colectiva". Actualmente, a economia po-
restantes súbditos do Império Romano. lítica do Estado nação efectiva-se no con-
Arendt salienta as posições de Platão e trolo do poder estatal sobre a família e a ad-
Aristóteles, para os quais o termo social sig- ministração doméstica do lar. Trata-se de um
nificava apenas a vida em comum das espé- processo contraditório, pois originariamente
cies animais, enquanto limitação da vida bi- a economia pertencia ao domínio do chefe da
ológica. A sociedade era uma característica família e a política à cidadania na polis.
biológica do animal humano e de outras es- A esfera privada da família, fenómeno
pécies animais. A política tanto para Platão, pré-político na Grécia Antiga, transformou-
como para Aristóteles era a única caracterís- se num "interesse colectivo"controlado pelo
tica essencialmente humana. Para Arendt, o monopólio de um Estado soberano, conse-
animal político de Aristóteles significava so- quentemente a esfera privada e a esfera pú-
mente a existência de uma característica ma- blica correlacionam-se reciprocamente. Na
tricial e única da condição humana, que con- época contemporânea, Marx recebeu dos
sistia na acção política dos cidadãos da polis modernos economistas políticos a ideia que
num espaço de liberdade e igualdade. Me- a política é uma função da vida social e o
diante a política, o homem tinha a possibi- pensamento, o discurso e acção são superes-
lidade de escapar à organização instintiva e truturas dependentes da infra-estrutura eco-
biológica da casa e da família. nómica. Para Arendt, esta situação anula a
Paralelamente à incorrecta tradução de dualidade clássica entre esfera privada e es-
animal político como animal social, os lati- fera pública.
nos traduziram erradamente a noção de ho- Porém, durante a Idade Média, ainda exis-

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tia uma oposição, embora enfraquecida e rituais entre os vários indivíduos. Estes só
com uma localização diferente, entre a es- podiam conservar a sua individualidade pri-
fera privada do social e a esfera pública do vada quando um deles se encarregava de ga-
político. Após a queda do Império Romano, rantir os interesses partilhados pela comuni-
o poder religioso da Igreja Católica fornecia dade. A existência desta situação explica-se
um substituto para a cidadania anteriormente devido a uma mentalidade cristã, que reco-
outorgada pelo governo municipal. Mas por nhecia o bem comum extensível à vida pri-
mais "profana"que se tornasse a Igreja Cató- vada e à vida pública 4 . Deste modo, se-
lica existia uma comunidade de crentes uni- gundo Arendt o pensamento medieval, que
dos pela fé em Cristo. O sagrado monopo- concebia a política e a família subordinados
lizava a vida social e a vida política. Com ao fim divino, foi incapaz de compreender o
o feudalismo, verifica-se a absorção da es- abismo originário entre a esfera privada e a
fera privada dos vilãos e dos servos da gleba esfera pública.
pelo senhor feudal que centraliza o poder Arendt assegura que Maquiavel foi o
na esfera pública do feudo 3 (que incluía o único autor pós-clássico que reconheceu a
castelo, a vila e as propriedades dos vilãos). separação entre a esfera privada e a esfera
O senhor feudal administrava a justiça apli- pública. Em O Príncipe, Maquiavel defende,
cando as leis na esfera privada e na esfera pú- tal como os gregos, a coragem como uma
blica. Comparativamente, o chefe de família qualidade política essencial. E procura res-
da Grécia Antiga só conhecia a lei e a justiça taurar a identidade clássica da política atra-
na polis. Na esfera privada da casa e da famí- vés da figura do Condottieri (mercenário), o
lia, isto é, nas primeiras formas de efectiva- qual passa da privacidade das circunstâncias
ção do social, o chefe da família grega podia naturais existentes em todos os indivíduos
dominar os escravos, a mulher e as crianças para o domínio público do Principado.
sem qualquer limite judicial ou legal.
A transferência dos moldes familiares (e
4 A promoção do social
primeiramente sociais) da esfera privada
para a esfera pública institucional manifesta- Para os gregos, não existia um conceito uní-
se nas corporações profissionais da Idade voco de social. O social situava-se tanto na
Média - os guilds, confréries e compagnons esfera privada das relações da casa e da famí-
- e mesmo nas primeiras companhias comer- lia, como na esfera da participação política.
ciais onde estava presente, desde a origem Arendt assinala um factor fundamental que
etimológica, a ideia de uma partilha de bens contribuiu para a promoção do social: a su-
materiais privados (tais como o pão e o vi- bordinação da esfera pública aos interesses
nho) no domínio público. Na Idade Média, o privados dos indivíduos. Consequentemente,
significado da expressão "bem comum"não os meios deste processo foram: o desenvol-
estava ligado à política. Mas apenas à re- 4
- Nas primeiras comunidades cristãs "Todos os
ciprocidade de interesses materiais e espi- crentes viviam unidos e possuíam tudo em comum.
3
- Habermas (1984: 13-41) salienta que publicar Vendiam terras e outros bens e distribuíam o dinheiro
significava requisitar para o senhor. por todos, de acordo com as necessidades de cada um.
(...)"(Act. 2, 44-45).

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vimento das actividades artísticas privadas artísticas privadas nomeadamente a música,


(romance, a música e a poesia); a estereoti- a poesia e o romance aprofundaram a rela-
pização do comportamento no conformismo ção entre a sociabilidade e a individualidade.
da sociedade (vontade geral, convenções so- Os românticos, Rousseau e Tocqueville re-
ciais dos salões, burocracia, economia, es- agiram contra a tentativa da sociedade ni-
tatística, behaviorismo, cientismo, "mão in- velar o individualismo negando a discussão
visível", multidão numerosa, doutrinas so- crítica, pois no fundo o intimo privado e a
cialistas e comunistas enquanto coacção da sociedade constituíam formas de valorização
comunidade totalitária, sociedade de mas- da subjectividade individual. Na perspec-
sas, promoção do labor a interesse público). tiva de Rousseau, os homens agem sempre
Arendt critica a estereotipização conformista numa vontade geral que unifica a opinião pú-
dos comportamentos sociais, que negam a blica, mesmo que inicialmente tenham opi-
espontaneidade da opinião. Esta tendência niões divergentes. Antes da desintegração da
verifica-se desde o século XVIII até à actua- família nuclear, que ocorreu principalmente
lidade. O conformismo da sociedade adopta a partir do século XVIII, o chefe da famí-
um duplo posicionamento: o político consti- lia exercia um poder despótico controlando
tui o receptáculo dos interesses domésticos e os membros da família e do lar evitando a
nas relações sociais desaparece a pluralidade desunião e afirmando uma opinião única de-
da discussão política em virtude de uma von- tentora do interesse comum. O modelo de
tade geral normalizada. Ora, para Arendt a governo do chefe da família foi adoptado na
política e a história são o campo da multi- esfera política pelo poder despótico do Rei.
plicidade de acções possíveis devendo o ho- Mas posteriormente com o liberalismo [e os
mem abolir o conformismo e exercitar uma ideais da Revolução Francesa] o poder po-
vida activa pluralista. lítico transforma-se numa "espécie de go-
A passagem das preocupações da esfera verno de ninguém", isto é, numa vontade ge-
privada da família e da casa para o domí- ral consubstanciada no espaço público bur-
nio da política anulou a oposição clássica en- guês dos salões, cafés e clubes, bem como
tre a polis e o oikos. A esfera privada ac- na democracia parlamentar. Neste contexto,
tual teve a sua origem nos últimos períodos a burocracia assume um controlo despótico
do Império Romano. Numa época em que nas relações sociais uniformizando o com-
devido à desagregação do Império os cida- portamento humano perante a administra-
dãos procuravam afirmar os seus direitos pri- ção pública. Arendt salienta implicitamente
vados (nomeadamente o direito de proprie- que este "governo de ninguém"significa ape-
dade) no espaço público como resposta aos nas uma vontade geral podendo conduzir a
ataques dos bárbaros. Na modernidade, o um poder tirânico na repressão das mino-
privado opunha-se à esfera da sociabilidade e rias. Deste modo, não existe ausência de go-
da esfera política situando-se no domínio do verno, mas um poder desligado da pessoa do
individualismo. No século XVIII, Rousseau Rei e concentrado numa vontade geral uni-
defendeu que os sentimentos privados deve- tária. Esta última aparece efectivada inicial-
riam ser preservados da esfera comum do mente na tentativa de democracia directa (no
social. O desenvolvimento das actividades período da Revolução Francesa) e posterior-

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mente na democracia representativa. Nesta tica não haveria o perigo de uma elite de
"normalização"da conduta social, Rousseau eruditos restringir a liberdade de discussão
defende a existência de convenções predefi- dos outros indivíduos? Arendt afirma que
nidas nos salões da alta sociedade do século maior população significa maior probabili-
XVIII. dade do social monopolizar a totalidade da
Do mesmo modo, também na sociedade esfera pública. Mas se aceitarmos a legitimi-
de classes do século XIX e mais recente- dade de uma classe política restrita não exis-
mente no século XX com a sociedade de tirá a possibilidade de um totalitarismo so-
massas a acção individual de afirmação de fisticado da minoria da classe dirigente, uma
uma racionalidade discursiva foi absorvida espécie de meta-poder desligado dos proble-
por uma sociedade unitária, que uniformi- mas reais dos indivíduos?
zou o privado e o público através da supre- Os economistas liberais defenderam que
macia do social. Contrariamente ao modelo a base da economia seria uma harmonia de
grego de oposição entre o oikos e a polis interesses na comunidade, uma "mão invisí-
defendido por Arendt, a política passou a vel"que colectivamente regularia os interes-
preocupar-se com a esfera privada, ou seja, o ses individuais. Contrariamente, Marx afir-
social privado adquiriu um estatuto de acção mou que a sociedade é a história da luta de
política. A economia, anteriormente ligada classes e que só na esfera comunista o ho-
ao lar transformou-se em economia política mem seria igual ao seu semelhante comple-
doméstica ao serviço do conformismo pri- tamente livre e sem Estado. Para Arendt, em-
vado. A estatística, instrumento da nova eco- bora Marx na revolução do proletariado re-
nomia tende, a reduzir o homem a um pro- cuse o conformismo, a sociedade comunista
duto quantitativo remetendo a história para recai num novo conformismo em que a li-
um conjunto de leis automáticas objectivas berdade individual é absorvida pela vontade
que não podem ser contrariadas pela plura- da comunidade. Na perspectiva de Arendt,
lidade de opiniões subjectivas. O behavio- Marx errou ao prever que somente uma revo-
rismo reduz a actividade humana a estímu- lução poderia provocar a decadência do Es-
los e respostas condicionados previamente tado e que a sociedade comunista significaria
definidos. O cientismo da sociedade, que um reino de liberdade. Ora para Arendt, o
está na base da economia matemática, do Estado enquanto espaço político deve resis-
behaviorismo, da estatística e mesmo da bu- tir à uniformização do social pelos interes-
rocracia, pressupõe uma uniformização da ses privados e o "reino de liberdade"somente
rotina do quotidiano e a transformação das pode existir no confronto das opiniões públi-
ciências sociais em "ciências do comporta- cas.
mento"[matemático]. Arendt lamenta que actualmente a conduta
Arendt critica o despotismo das multidões social da sociedade de massas, no seu es-
numerosas defendendo o modelo político da forço de promover o político e o privado a
polis grega em que a acção política era indi- uma uniformização do comportamento con-
vidual e estava restrita aos cidadãos. Neste sumista, tenha conduzido ao conformismo
ponto, podemos colocar uma questão: Como do social negando a pluralidade da discus-
só os cidadãos tinham acesso à vida polí- são. De facto, na sociedade de massas o ho-

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mem garante a sua sobrevivência no despo- nicas do trabalho e o desenvolvimento huma-


tismo de uma única opinião desprovida da nístico (o animal laborans é incapaz de reco-
discussão racional pela acção política da pa- nhecer o valor humanístico da política como
lavra e da persuasão. Para Arendt, esta situ- meio de excelência e autopromove o valor do
ação pode conduzir ao totalitarismo, à des- trabalho como meio de sobrevivência bioló-
truição da política e da própria humanidade. gica capaz de atingir a esfera pública);
A sociedade de massas é guiada pela activi- – a subordinação do labor às explicações
dade do labor. Na sociedade massas, o ani- das ciências físicas e consequentemente a se-
mal laborans adquiriu o estatuto de assala- paração entre ciências físicas e ciências soci-
riado (ou em termos marxistas proletário), ais.
procura apenas a subsistência da sua vida e
da sua família pelo mero consumo, interessa-
5 A esfera pública: o comum
se pelo trabalho material naturalmente ad-
mitido longe de qualquer produção técnica, O termo "público"remete para dois fenóme-
acção política ou vida contemplativa. Deste nos distintos embora correlacionados. Em
modo, a promoção social pelo labor condu- primeiro lugar "público"centra-se na ideia de
ziu o espaço público da política a um pro- acessibilidade: tudo o que vem a público está
cesso de afirmação da sobrevivência bioló- acessível a todos: pode ser visto e ouvido
gica. Os condicionalismos da vida orgânica por todos. Quando divulgamos um pensa-
transformaram-se em interesse social e polí- mento ou um sentimento através de uma es-
tico. A divisão do trabalho, enquanto mul- tória , bem como quando divulgamos experi-
tiplicidade da manipulação, foi o modo de ências artísticas individuais o privado torna-
efectivação da vida orgânica do animal labo- se de acesso público. A garantia deste fe-
rans, isto é, o trabalho adquiriu excelência nómeno depende de uma condição essen-
(uma virtude classicamente ligada à esfera cial: os outros têm de partilhar a realidade
política) tal como se verifica nas teorias mar- do mundo e de nós mesmos. No entanto,
xistas e leninistas que valorizam a condição para Arendt há sentimentos que não podem
laboral do proletariado, e consequentemente ser inteiramente divulgados aos outros no es-
a sua produção material, como matriz do in- paço público: a dor física e o amor. O en-
teresse colectivo. Ora, para Arendt a exce- cantamento por "pequenas coisas"pode pare-
lência apenas pode existir na acção política cer insignificante, mas constitui o sentimento
através do confronto de opiniões. A promo- de um povo em que o bom senso pelos pe-
ção do social incorporou a excelência na es- quenos objectos contraria o processo de in-
fera privada do labor. A promoção do labor dustrialização. Em segundo lugar, o termo
a coisa pública libertou o trabalho da sobre- "público"centra-se na ideia de comum. A re-
vivência biológica e incorporou-o na praxis alidade do mundo tem um bem comum ou
política. Os factores que favoreceram a pro- interesse comum do artefacto e dos negócios
moção do labor a interesse da sociedade e da humanos, na medida em que é partilhado por
esfera pública foram, sobretudo, os seguin- indivíduos que se relacionam entre si. Com
tes: a sociedade de massas, o homem perdeu a
– a desagregação entre as capacidades téc-

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capacidade de viver em comum limitando-se assim, escaparem ao anonimato da vida natu-


ao mero consumo. ral da esfera privada. Esta garantia de notori-
Arendt assinala que a filosofia cristã do edade da esfera política conduzia à intenção
vínculo da caridade tematizado por S. Agos- de ser lembrado para além da morte. A laici-
tinho a partir da mensagem de Cristo, é zação da esfera pública (e consequente perda
o único princípio capaz de unir as pessoas da preocupação metafísica) é um indício sig-
criando um mundo extraterreno que aceita nificativo do desaparecimento da esfera pú-
o amor ao próximo como forma de evi- blica clássica 5 . De facto, apesar da separa-
tar a condenação do mundo. Para Arendt, ção entre a tradição no domínio da religião
as comunidades cristãs foram incapazes de e a política no domínio do interesse público,
criar uma esfera política própria. Con- tanto a polis grega, como a res publica dos
tudo, nas ordens monásticas a esfera pública romanos eram herdeiras de uma concepção
manifestava-se na adopção comum de regu- metafísica, que consagrava a imortalidade da
lamentos [por exemplo: a regra de S.Bento] acção como a maior prova de valor político.
que proibiam a excelência e o orgulho defen- Arendt salienta a opinião de Adam Smith
dendo a humildade da acção evangélica. A segundo a qual a admiração pública que
negação da política como fenómeno terreno se efectiva na vaidade consumista e a pos-
que não durará eternamente está subjacente terior recompensa monetária são intermu-
à concepção cristã do mundo. Para os cris- táveis possuindo a mesma natureza: am-
tãos, a queda do Império Romano foi a cons- bos são processos subjectivos que tendem
tatação de que toda a política desligada da a tornar objectiva a esfera pública através
submissão à omnipotência cristã é efémera. de formação de status. Esta objectividade
A recusa cristã do mundo terreno produziu do status manifesta-se no poder do dinheiro
na actualidade um efeito inverso: verifica-se como satisfação das necessidades individu-
a intensificação do materialismo e a conse- ais prontamente transformadas em assunto
quente formação de uma sociedade das mas- público. Mas, para Arendt nunca a soci-
sas consumistas desligadas do espírito da co- edade de massas empenhada no mero con-
munhão. sumo e na subjectividade dos interesses pri-
Arendt defende, contra o consumo da so- vados, bem como a esfera privada da família
ciedade de massas, uma comunhão dos in- e da casa poderá substituir a pluralidade de
teresses individuais pela política, que trans- opiniões na esfera pública da política. A es-
cenda o espaço intergeracional e se afirme fera pública do comum não resulta da igual-
de forma estrutural como fenómeno meta- dade da natureza humana, mas fundamental-
mortal. Neste sentido, Arendt ultrapassa a mente de um objecto comum - a política -
salvação da alma como bem comum dos cris- que interessa a todos os indivíduos ainda que
tãos salientando a função fundamental da ac- sob perspectivas diferentes. Assim se com-
ção humana (política) que sobrevive à histó- preende a pluralidade de opiniões no espaço
ria quando se manifesta como presença no 5
- Para Arendt, alguns filósofos e os defensores da
espaço público. Na Antiguidade, os homens vida contemplativa são os únicos que ainda procuram
ingressavam na vida pública através da ac- reabilitar a perspectiva metafísica da imortalidade no
ção política para alcançarem notoriedade e, espaço público.

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político. Quando o interesse comum da polí- resse pessoal circunscrito aos condicionalis-
tica se transforma no interesse único privado mos da sobrevivência biológica na família e
do regime tirânico e da sociedade de mas- na casa. Na Antiguidade, os romanos com-
sas surge a destruição da comunhão na esfera preenderam que a esfera privada e a esfera
pública criando-se as condições para o apa- pública deveriam coexistir simultaneamente.
recimento do totalitarismo. Especificamente, A esfera privada oferecia actividades "espi-
a sociedade massas destrói a esfera privada rituais"como o estudo das ciências e das ar-
e a esfera pública: impede a pluralidade de tes, embora nunca pudesse substituir a acção
opiniões num espaço público comum; exclui política na condução dos assuntos públicos.
os homens da casa e da família enquanto re- Todavia, enquanto os romanos nunca sacrifi-
fúgios perante o mundo. caram a esfera privada face à maior impor-
tância do espaço político (salientando que
os escravos encontram no lar um refúgio e
6 A esfera privada: a
uma educação), os gregos ao invés denota-
propriedade ram sempre na esfera privada da casa e da
No âmbito da esfera privada, Arendt rea- família a ausência da essência da condição
liza uma explicação dos conceitos de pro- humana - a acção política.
priedade e riqueza inerentes à esfera da fa- O aparecimento do cristianismo contri-
mília e da casa. Arendt afirma que só com buiu para a quase extinção da ideia que o lar
a garantia da propriedade privada e da ri- era um espaço íntimo de privação. Para os
queza necessária à subsistência biológica o cristãos, quer na esfera privada da casa e da
homem poderia escapar à escravidão e à po- família, quer na esfera pública da política o
breza tornando-se, assim, capaz de ultrapas- homem procurava o amor ao próximo para
sar as necessidades da vida natural e aspirar obter a salvação e evitar a condenação. Os
à cidadania na polis. Arendt destaca que a afazeres da casa e da família deveriam servir
mentalidade cristã e o socialismo contribuí- para obter o bem-estar material da comuni-
ram para a desagregação da propriedade e da dade desprovido das honras e do poder, pois
riqueza, elementos clássicos da esfera pri- a humildade de acção e do sentimento cons-
vada. O cristianismo encara a propriedade tituía a principal premissa da caridade evan-
e a riqueza de forma não-individualista, mas gélica. Na perspectiva cristã, a principal fun-
como bens partilháveis em comunidade. O ção da política era proporcionar o bem-estar
socialismo no seu conjunto defende um mo- e evitar a privação na casa e na família. Esta
delo cooperativista de administração da pro- responsabilidade cristã da política visava en-
priedade e da riqueza. quadrar o espaço público à luz de uma sote-
Segundo Arendt, viver na esfera privada riologia que evitasse o pecado. Para Arendt,
significava estar privado de ser ouvido e visto o ideal cristão e as teses de Marx partiam de
por todos numa comunidade política em que um aspecto comum: a crença que a política
os indivíduos partilham objectivamente uma não era omnipotente. Para os cristãos, a po-
acção política num espaço comum - a po- lítica era um mal necessário, mas sempre su-
lis. A esfera privada limitava-se a um inte- bordinado à teologia. Para Marx, o Estado
e a política devem ser extintos sendo subs-

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O público e o privado em Hannah Arendt 11

tituídos por um modelo [ficção] comunista. tica separando-se da lei natural do mais forte
A decadência da esfera pública da polis não confinada à família e à casa. Arendt refere
foi a consequência directa do cristianismo e que a lei da polis pressupunha a aplicação
do marxismo, foi antes o facto da economia da acção política a uma espécie de muro se-
doméstica se transformar em economia polí- parador entre o terreno comum da política e
tica do Estado nação. A decadência da esfera o processo biológico do oikos e não ao acto
pública foi acompanhada da ameaça da des- de legislar nem a um conjunto de proibições.
truição da esfera privada nomeadamente da Ou seja, a lei era a lei dos cidadãos da po-
propriedade. lis e nunca a lei da casa e da família. Neste
Arendt critica o equívoco da relação en- contexto, a propriedade assegurava um lugar
tre, por um lado, a riqueza e, por outro lado, próprio de subjectividade individual e de do-
a pobreza enquanto inexistência de propri- mínio da necessidade natural, um lado oculto
edade. De facto, o surgimento de socieda- sem o qual o homem deixaria de ser verda-
des ricas, mas em que não existe proprie- deiramente humano.
dade privada demonstra o equívoco da asso- A existência da riqueza privada constituía
ciação entre propriedade e riqueza 6 . Desde um meio pelo qual o homem não estava de-
a Antiguidade, ser proprietário significava pendente de um senhor, mas podia ele pró-
que o indivíduo possuía uma parte do mundo prio empenhar-se na sua subsistência. A ri-
e chefiava uma família. Ou seja, o indiví- queza não significava apenas a acumulação
duo tinha o controlo sobre uma parte da po- de bens materiais, mas um processo capaz de
pulação e do território, elementos estes que evitar a pobreza e a escravidão libertando o
constituíam no seu conjunto juntamente com homem do labor e oferecendo-lhe a possibi-
os outros elementos do Estado (o Poder, os lidade de superar a necessidade natural, pois
órgãos do Estado e a lei) o fundamento do só assim seria possível alcançar a plena li-
corpo político. Ser privado da propriedade berdade na acção política. Contudo, quando
significava ficar impedido de garantir a sub- o homem procurava ampliar a propriedade,
sistência do lar e da família (perdendo igual- para além da subsistência, sacrificava a dis-
mente a cidadania e a protecção da lei), en- ponibilidade necessária para a cidadania na
quanto ser pobre não implicava necessaria- polis.
mente a perda da propriedade e da cidada- Até à era moderna, a propriedade era
nia. Na polis grega, a lei pública regulava um lugar sagrado. A riqueza da proprie-
a liberdade dos cidadãos na sua acção polí- dade agrícola estava associada à protecção
6
dos deuses. Porém, na modernidade a pro-
- Arendt está a pensar, seguramente, nos regimes
socialistas e comunistas. No entanto, embora nesses priedade sagrada perdeu o carácter sagrado
regimes os cidadãos participem na "renda anual da so- sendo expropriada em favor de uma burgue-
ciedade"não existindo propriedade privada é incerto sia e aristocracia em contínua ascensão. Esta
que possam ser qualificados como sociedades ricas situação explica-se, segundo Arendt, porque
comparativamente aos regimes capitalistas. Só uma
a propriedade privada era contrária à acumu-
análise económica, sociológica e estatística estrutural
do tecido produtivo desses regimes poderia avaliar a lação de riqueza desejada pela classe capita-
existência de sociedades ricas. lista. Arendt termina a temática em torno de
esfera privada com a tese de Proudhon, se-

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12 Marco Antunes

gundo a qual a propriedade é um roubo. Para bre os objectos 7 . Arendt salienta a concep-
Proudhon, a propriedade privada, na medida ção revolucionária de Marx sobre a proprie-
em que impede a entreajuda e a produtivi- dade. Para Marx, a propriedade pertence ver-
dade social existente na acumulação de ri- dadeiramente àqueles que realizam a força
queza por parte da classe trabalhadora, deve de trabalho - os proletários. Desde que a ri-
ser abolida e substituída por um sistema de queza se tornou coisa pública a propriedade
propriedade cooperativista. privada, lugar tangível terreno de uma pes-
soa, passou a estar ameaçada. Locke consta-
tou o perigo do desaparecimento da proprie-
7 O social e o privado
dade privada e defendeu que sem a proprie-
A Modernidade acentuou a promoção do so- dade privada de nada serve o comum. O de-
cial. A esfera pública verdadeiro instru- saparecimento da esfera privada e a sua subs-
mento de sociabilidade passa a proteger a tituição pela omnipresença do social corres-
esfera privada da riqueza e da propriedade ponde à eliminação dos aspectos comuns
da casa. Arendt salienta que, para Bodin, o (não-privativos) da esfera privada. Por um
Rei deveria garantir a propriedade dos seus lado, as posses privadas da subsistência na-
súbditos. Arendt questiona as concepções tural inerentes à família e à casa que usa-
modernas da propriedade referindo que a ri- mos e consumimos deixam de ser necessá-
queza inerente à propriedade destina-se uni- rias ao mundo comum. E, por outro lado, a
camente ao uso e ao consumo. Deste modo, propriedade privada deixa de ser um refúgio
quando a riqueza se transforma na acumula- seguro contra a publicidade do espaço pú-
ção de capital o privado passa a ter suprema- blico. Ora, para Arendt respeitar a propri-
cia e invade o domínio político. O governo edade privada é o único meio de assegurar
moderno, que protegia a esfera privada da um lugar próprio e seguro. Os corpos políti-
luta de todos contra todos, era a única ins- cos pré-modernos estavam conscientes des-
tância considerada comum. Mas no fundo, tas características não-privativas da esfera
o Estado protegia sempre os interesses pri- privada. Mas, limitaram-se a proteger a se-
vados dos mais fortes tal como diagnosticou paração entre a posse privada e a política co-
Marx [no célebre Manifesto do Partido Co- mum tornando-se incapazes de proteger a es-
munista]. Arendt vai mais longe e afirma que fera privada da expansão crescente do social.
mais grave do que isso foram os seguintes Por outro lado, as modernas teorias políticas
factores: a extinção da diferença entre a es- e económicas defendem que o governo deve
fera privada e a esfera pública tal como exis- proteger a propriedade privada favorecendo
tia no mundo grego; a transferência das pre- a acumulação de riqueza. Arendt critica a
ocupações privadas para a política; a valori- ingerência do espaço público político na es-
zação da esfera privada como fenómeno ma- fera privada denotando que as medidas do
tricialmente social. socialismo e do comunismo acentuam ainda
Na mutação da esfera privada, a proprie- 7
- Este fenómeno coincide com o desenvolvi-
dade adquire um significado móvel podendo mento do comércio, da burguesia, bem como com o
ser trocada e consumida por outros, isto é, o advento da Revolução Industrial.
social justifica a perda do poder privado so-

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O público e o privado em Hannah Arendt 13

mais a decadência da propriedade privada e tar uma perspectiva teológica que defende
da própria esfera privada. o amor ao próximo como garantia escato-
Finalmente, Arendt salienta que desde os lógica. Mas tal como afirma a referida au-
primórdios da história até à actualidade o tora, se por um lado, a bondade cristã é pra-
homem tenha procurado esconder as neces- ticada individualmente por um cristão em re-
sidades corporais da subsistência na esfera lação a outro, também é certo que ela não en-
privada. Escravos, mulheres crianças e tra- contra refúgio na esfera privada íntima, pois
balhadores sempre foram marginalizados e sempre que é divulgada publicamente desa-
mantidos fora do espaço público. Porém, os parece o mobile de uma bondade desinteres-
movimentos da emancipação dos trabalha- sada por amor ao próximo. Deste modo, a
dores (por exemplo: o sindicalismo) e das teologia cristã defende que os indivíduos ao
mulheres (por exemplo: os movimentos fe- agirem por bondade devem fazê-lo sem tes-
ministas) pertencem a um momento revolu- temunhas num espírito de humildade evan-
cionário em que as funções corporais e os gélica sobre-humana 8 . Mas, por ocultar as
interesses naturais pelo mundo material pas- suas actividades o homem foge do espaço
sam a ser divulgados publicamente. Neste público da participação política. Maquia-
sentido, Arendt realça o facto dos vestígios vel, contrariamente à teologia cristã, defen-
restritos da intimidade privada (por exemplo: deu que a bondade pode destruir a esfera po-
alimentação, procriação, trabalho do animal lítica. A glória está na base do poder político.
laborans), modernamente transformados em A política versa sobre as relações de poder e
interesse público, continuem a estar depen- nunca sobre a maldade ou bondade das ac-
dentes das necessidades da vida corporal. ções humanas, pois os homens agem sempre
na. busca da glória e são violentos por na-
tureza. Arendt conclui sublinhando que Ma-
8 A localização das actividades
quiavel critica também a corrupção da Igreja
humanas proveniente desta se ocupar de assuntos pro-
As actividades humanas localizam-se, se- fanos. E mesmo a Reforma é perigosa, por-
gundo Arendt, em dois planos: o plano da que os novos movimentos religiosos protes-
vida activa que compreende o labor (traba- tantes ao defenderem uma resistência passiva
lho para a subsistência biológica), work (tra- ao mal legitimam a liberdade absoluta dos
balho enquanto produção técnica) e acção governantes.
(confronto opinativo mediante a palavra e a 8
- "Guardai-vos de fazer as vossas boas obras
persuasão na esfera pública da política; o diante dos homens, para vos tornardes notados por
plano da vida contemplativa (reflexão reli- eles. De contrário, não tereis nenhuma recompensa
giosa e filosófica do espírito). Neste último do vosso Pai que está nos Céus. Quando, pois, deres
esmola, não toquem trombeta diante de ti, como fa-
ponto da temática de esfera privada e da es- zem os hipócritas, nas sinagogas e nas ruas, a fim de
fera pública, Arendt escolhe o exemplo da serem louvados pelos homens. (Mt 6, 1-2).
bondade cristã para demonstrar que a esfera
privada não se ocupa somente do necessá-
rio à subsistência biológica, mas pode adop-

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14 Marco Antunes

9 Bibliografia
AAVV (1988). Bíblia Sagrada, Lisboa, Di-
fusora Bíblica.

ARENDT, Hanna (1997). A Condição Hu-


mana, Rio de Janeiro, Forense Univer-
sitária, 8a edição revista.

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