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Repertório, Salvador, nº 24, p.79-85, 2015.

CORPO E
ANCESTRALIDADE: UMA
CONFIGURAÇÃO ESTÉTICA
AFRO-BRASILEIRA

BODY AND ANCESTRALITY: A


CONFIGURATION OF AFRICAN-
BRAZILIAN AESTHETICS
Inaicyra Falcão dos Santos1
Resumo: O universo cultural negro-africano, viven-
ciado nos terreiros de religiões de matrizes africanas,
alicerça a cultura brasileira. Foi nesses espaços que os
descendentes de africanos escravizados se organizaram
para transmitir sua rica tradição, de forma dinâmica. Ao
longo de décadas, inspirada nesse contexto, tenho pro-
posto um caminho estético, aplicado à dança, à arte e
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Inaicyra Falcão dos Santos é Livre-docente pela Uni- à educação, intitulado Corpo e Ancestralidade. O pro-
versidade Estadual de Campinas e atua como Associada cedimento entrelaça a pesquisa, na dinâmica da criação
no Programa de Pós-Graduação do Instituto de Artes, é de mitos da ancestralidade afro-brasileira nagô/ioruba,
também cantora lírica. Graduada pela Escola de Dança de gestos, de ações do cotidiano, às histórias individu-
da UFBA, mestre em Artes Teatrais, pela Universidade ais dos sujeitos. O processo é composto de percepção
de Ibadan, na Nigéria, Doutora em Educação, pela USP. corporal, exercícios corporais e vocais, improvisação e
Foi intérprete em companhias de dança e teatro, como: criação cênica. Fases que são realizadas no despertar de
Grupo de Dança Contemporânea da UFBA, Ballet uma identidade de ícones, de revelações em dimensões
Brasil Tropical (turnês pela Europa e Oriente Médio), simbólicas, evocadas pelos sentidos e vivenciadas em
Theatre D’Ennah, em Paris, e Companhia Intercultural emoções corpóreas. O ser humano contemporâneo,
Peter Badejo, em Londres (turnê pela Inglaterra). Par- consciente, ao absorver pela prática imagens e matri-
ticipou, como atriz e coreógrafa, junto à Sociedade da zes de movimentos ancestrais, é envolvido pela intera-
Cultura Negra no Brasil, em Salvador. Realizou estudos ção dos aspectos espaço e tempo, criados pelas ações
e pesquisas nas Universidades de Ifé, Ibadan, na Ni- experimentadas na prática. Constato que a memória
géria, e no Laban Centre for Movement and Dance, na imaterial é a responsável pela formação da identidade,
Inglaterra. Participa de atividades artísticas, docentes e e é intrínseca aos processos reflexivos sobre a herança
em congressos nacionais e internacionais. Publicou o afro-brasileira, na contemporaneidade.
livro Corpo e ancestralidade: uma proposta pluricultural de dan-
ça arte e educação e o CD Okan Awa: Cânticos da Tradição Palavras-chave: Processo Criativo. Estética Negro-
Yoruba. -africana. Dança-Educação.
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Abstract: The Black African cultural universe experien- plantados em grupos identitários são transmitidos
ced in the practice of religions of African origin under- oralmente aos mais novos e proporcionam a con-
pin the Brazilian culture. These spaces of worship were tinuidade de uma ancestralidade que alicerça a cul-
where the descendants of enslaved Africans organized tura brasileira.
themselves to convey this rich tradition dynamically. For A maioria dos estudos conhecidos acerca des-
decades, inspired by this context, I have proposed an
se universo tem sido analisada a partir do aspecto
aesthetic approach applied to dance, art and education,
entitled Body and Ancestrality. The method includes a antropológico ou da transmissão oral; a linguagem
process of researching myths of African-Brazilian of corporal e o aspecto educativo têm tido pouco
the Nago/Yoruba ancestrality and interweaves this with apreço entre os estudiosos da área em questão.
gestures of everyday actions, combined with the indivi- Observo teorias etnocêntricas e estereotipadas
dual person’s stories. The process consists of body awa- continuarem bastante arraigadas no sistema educa-
reness, movement and vocal exercises, improvisation cional, o que impede a formação de uma realidade
and scenic creation. The practice awakens phases brou- plural artístico-nacional e a aplicação aguerrida na
ght about in the wake of recognizing iconic identities, criação artística e nos métodos educacionais. Dian-
and revelations of symbolic aspects through the senses te disso, proponho uma estética que estabeleça
and tangibly experienced emotions. The contemporary um diálogo entre corpo, cultura e memória, o qual
human being, conscious of absorbing the images and
pode enriquecer o processo artístico:
matrices of ancestral movements through this practice,
becomes surrounded by the interaction of space and
time aspects created by the actions experienced in prac- É na memória e no culto aos antepassados histó-
tice. I note that the immaterial memory is responsible ricos e míticos que a diversidade étnica e sua co-
for the formation of identity, and is intrinsic to reflec- munalidade africana afirma-se, constituindo-se
tive processes on the Brazilian African heritage in con- com variáveis um ethos que se estende por toda
temporary times. a população afro-brasileira, recompondo na con-
tinuidade e na descontinuidade o conhecimento,
Keywords: Creative Process. Black African Aesthetics. o pensamento e as subjacências emocionais dos
Dance-Education. princípios inaugurais re-elaborados desde épocas
remotas. (SANTOS, 2006, p. 1)
PONTOS DE PARTIDA
O estudo dessa memória e o diálogo com suas
Como é notório, é difícil falar de arte. Pois a arte matrizes míticas nos fortalecem, enquanto nação,
parece existir em um modo próprio, que o dis- ajudando-nos a compreender melhor a nossa cul-
curso não pode alcançar. Isso acontece mesmo tura, valorizando as nossas diversidades. Por outro
quando ela é composta de palavras, como no lado, na experiência pessoal, a arte da dança, en-
caso das artes literárias, mas a dificuldade é ain- quanto linguagem do sensível, tem me possibilita-
da maior quando se compõe de pigmentos, ou do uma vivência rica em conteúdos que norteiam
sons, ou pedras, como no caso das artes não li- o processo criativo, alvo do trabalho que faço em
terárias. Poderíamos dizer que a arte fala por si relação a um ponto de vista estético, com referên-
mesma: um poema não deve significar e sim ser, cia à cultura negro-africana.
e ninguém poderá nos dar uma resposta exata se Esse olhar compreende a mitologia e as memó-
quisermos saber o que é jazz. (GEERTZ, 2000,
rias referentes à matriz africana nagô-ioruba, vi-
p. 142)
venciadas entre os iorubas e seus descendentes, em
Salvador, e que estão presentes em trabalho de mi-
Carrego grande parte da minha vivência na me-
nha autoria, que intitulei de Corpo e Ancestralidade,
mória, a qual só passa a compor uma história e se
uma visão pluricultural de uma estética, na dança,
tornar experiência, no momento em que me dispo-
na arte e na educação.
nho a refletir, a relacionar e a tecer as singularida-
O propósito do caminho é compartilhar algu-
des do universo cultural negro-africano, vivenciado
mas reflexões da artista, engajada em sua heran-
nas comunidades de terreiros de cultura e religião
ça cultural e que, ao mesmo tempo, devido a sua
com matrizes africanas. Os princípios míticos im-
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formação eclética, dialoga com as diversidades que sendo projetado como continente e conteúdo, lo-
influenciam o ser contemporâneo. cal, ambiente e veículo da memória” (MARTINS,
É importante mostrar que, embora trilhemos 2002, p. 89).
um contexto social com valores culturais, é crucial, A memória aliada à qualidade expressiva do
desde o início, a definição, na medida do possível, movimento corporal abrange a atenção ao aspec-
dos territórios, das diferenças históricas do ser to melódico, ao rítmico, ao impulso, ao jogo, que
humano, na sala de aula e consequentemente no proferem outras narrativas. Dessa forma, permi-
mundo: “[...] A minha aspiração, com essa visão, é tem a ressignificação ancestral, no processo trans-
de conscientizar, vivenciar e respeitar a diversidade formado em ações vinculadas à história individual,
plural da qual fazemos parte. É desmistificar este- a uma dramaturgia pessoal. Proporcionam formas
reótipos, ampliando horizontes, apontando assim, e organizações corporais diferenciadas, que permi-
pacientemente, para um novo espaço” (SANTOS, tem distintos modos de exposição. Nesse conheci-
2015, p.48). mento, há a intenção de estimular a compreensão e
A criação do intérprete define-se primeiro possibilitar o tempo de abstração dos significados
como ato de comunicação, pois o mesmo é, antes simbólicos; propiciar a relação com o aspecto an-
de tudo, o produtor de sua obra, construída por cestral que se expande em imagens, com o conte-
meio de signos, de natureza gestual e sonora. O údo de cada intérprete. Essa preparação corporal
intérprete transforma-se no próprio signo. Perce- visa aprofundar o conhecimento, o domínio sobre
be-se que o corpo, em cena, revela a dimensão ex- os movimentos e estimular o potencial criativo.
pressiva e a dimensão orgânica. Quando procuro Pretende-se, a princípio, a procura pela essên-
trazer a experiência estética ao panorama de arte cia, no despertar de linhagens que carregamos,
negro-africana, vou levar em consideração a se- como seres humanos, e, num segundo momento,
guinte apreciação, bastante esclarecedora, emitida a procura pelas narrativas míticas, a razão de ser
pelo crítico Jamake Highwater (1978, p. 14): das tradições. Momento este que envolve a cons-
trução de imagens, a percepção de sentimentos;
Existem dois tipos de rituais. O primeiro estu- ao mesmo tempo em que possibilita abertura para
dado pelos etnologistas, que é familiar, é um ato um corpo criativo e imaginativo, que entrelace as
inconsciente sem deliberação estética, resultado matrizes corporais vivenciadas, a memória e a sua
da influência étnica de muitas gerações que cul- expressividade. É o momento que se instaura, pela
mina num grupo com seu sistema fundamental.
obra, o elo da tradição e da contemporaneidade, na
E o segundo tipo, ou seja, um novo tipo de ritu-
al, que é a criação do indivíduo excepcional que
diversidade das culturas.
transforma sua experiência através de um idioma
metafórico conhecido como arte. SIGNIFICAÇÃO

É no “novo tipo de ritual” que a estética se Os mitos da tradição nagô/ioruba são os ele-
materializa em Corpo e Ancestralidade. O caminho é mentos fundamentais ao processo criativo da co-
intertextual e criativo, em relação às ações cotidia- municação artística corporal. Dentro da perspec-
nas do homem; dissocia-se da tradicional aborda- tiva histórica e intuitiva, suas essências equivalem
gem focada na cópia de formas do rito vivenciado ao reconhecimento do fenômeno humano, cultu-
no terreiro; volta-se para o corpo do intérprete- ral, espiritual. Considero a arte como um meio de
-bailarino, com imagens, lembranças, memórias harmonizar o intérprete com sua essência e esta-
antepassadas; com ações corporais carregadas de belecer a comunhão com os espectadores; enquan-
significados, trazendo-as para o presente e ressig- to que os mitos são compreendidos, no universo
nificando-as por meio da arte expressiva do movi- da tradição nagô, como formas de reconstituir a
mento criativo. vida nas comunidades-terreiro. O mito permite
“O corpo é um portal que, simultaneamen- ao artista utilizar a verdade que habita seu corpo,
te, inscreve e interpreta, significa e é significado, como ferramenta de interpretação, e, deste modo,
direcionar sua voz, o som e o gesto, para a busca
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de sua essência. A experiência artística e educativa cênica, ou seja, a tradução poética intertextual que,
inspirada neste contexto mostra, por meio das vi- além da técnica corporal, gera a transcendência.
vências do evento real, a possibilidade da abstração Essa dinâmica permite a reflexão e o processo de
de um “outro” conceito estético-simbólico, onde a apropriação e identificação do intérprete. Ele é le-
técnica corporal acumulada do intérprete, e a sen- vado a capturar os movimentos corporais, vocais
sibilidade fundamentam a criação cênica. e textuais, das vivências apresentadas. O processo
é realizado em experimentações, visando buscar
SISTEMATICIDADE significações e novas possibilidades, para que estru-
turem uma identidade. As improvisações tornam
As fases do processo: primeiro, a percepção possível ao intérprete somar a sua própria experi-
corporal, para que o sujeito possa tomar consciên- ência ao tema proposto. Este último vai incorporar
cia da própria estrutura e articulações; perceber e uma cultura corporal, a percepção do corpo que
utilizar os princípios dos elementos do movimento dança e a dos estímulos propostos, e a sua história.
expressivo. Depois, são os exercícios corporais e A memória coletiva é continuada no entendimento
vocais, criados a partir de matrizes tradicionais de dos corpos dos intérpretes, na busca de expressões
danças míticas e ações cotidianas da comunidade significativas de uma teatralidade. O grau de assimi-
arcaica, os quais são vivenciados como referência lação parcial ou total realiza-se, levando em conta
ao estímulo da memória e de imagens. No terceiro um complexo emaranhado de condições físicas, re-
momento, surgem os exercícios de improvisação, a sistências ou absorções de cada um. A repetição das
busca de novos espaços, agudeza gestual, recortes, matrizes são características fundamentais e se trans-
fragmentos. Produzir espaço para que outros ca- formam com a dinâmica, os espaços, os estímulos
minhos atravessem o corpo; rearticulação de novas sensitivos, sensoriais e textuais. Importante para o
possibilidades e conexões inéditas entre as partes trabalho é a pesquisa do movimento, que se expres-
do corpo; investigação de outros trajetos de mo- sa por meio de conceituações práticas, realizadas a
vimentos, transformação dos códigos adquiridos, partir do uso do espaço, do desenho, da intenção
que são entendidos, tanto em uma esfera pesso- corporal e da associação com a voz, com o canto.
al, referente à história de vida do bailarino, quanto
em sua esfera coletiva. São estímulos para a criação CONCRETUDE
coreográfica, referindo-se não apenas à concepção
de movimentos, mas também aos ritmos, sons e O resultado apresenta configurações e organi-
cantos ancestrais. zações corporais diferenciadas, que permitem dis-
É no momento de vivência in loco que o baila- tintos modos de exposição. Assim, estimula-se a
rino deve explorar, em profundidade, pois pressu- compreensão e possibilita-se o tempo de abstração
põe a percepção de si mesmo como executor dos dos significados simbólicos, chegando-se a novas
gestos dentro de um contexto em que os mesmos reflexões corporais; a relação com as manifestações
fazem sentido, e contribuem diretamente na quali- míticas expande-se em conteúdo consciente e fun-
dade de sua execução, nos laboratórios de impro- de-se à história de cada intérprete, em uma síntese
visação. Nestes últimos, ocorre o desdobramento artística, cuja dramaturgia é construída na simulta-
das vivências anteriores, buscando possibilidades neidade das ações ancestrais no corpo e na trans-
de variações estruturais dos movimentos corpo- cendência destas, no contexto contemporâneo.
rais, pensados em termos de espaço, tempo, fluên- A estratégia possibilita o enriquecimento de
cia e peso, ou quais sejam os fatores relevantes para uma percepção interna, bem como a do universo
a análise daquela movimentação específica. Nesse vivenciado, e torna evidente a essência na comuni-
momento, é fundamental recorrer às imagens para cação cênica do intérprete. Em cada fase o objetivo
que os novos movimentos não venham destituídos é que, além da vivência física, filosófica e criativa, o
de sentido. indivíduo possa refletir, perceber-se corporalmen-
Aos poucos, a partir das matrizes que se sedi- te no processo. e incorporar o que for importan-
mentam, parte-se para a realização da composição te para o seu estudo. Quanto maior a consciência
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aliada às vivências, melhores serão as possibili- ALICERCE


dades criativas e expressivas. Pretende-se, a prin-
cípio, com esse caminhar, empreender a procura Concordamos com Leda Martins (1995, p. 93),
pela essência, pelas raízes, em ações cotidianas que quanto a sua afirmação: “Articulando uma fala
carregamos como seres humanos. Num segundo atemporal, que conjuga os mitos do passado com
momento, buscamos as narrativas míticas, a razão os mitemas contemporâneos, esse teatro reatualiza
de ser das tradições. Momento este que envolve a a dialética de complementariedade temporal e ma-
construção de imagens e a percepção de sentimen- terial entre os infantes, os anciãos, os ancestrais e
tos. Proponho um corpo que articule a simultanei- as divindades, na busca de uma identidade humana
dade das ações corporais e sua expressividade. É desejada”.
um trabalho de construção de experiência com a Pesquisamos por uma estética de dança com
memória de matrizes corporais ancestrais, no con- matrizes afro-brasileiras, que implique a força cres-
texto da história do intérprete, por meio de princí- cente das riquezas pluriculturais do país, na articu-
pios da dança. lação dos conhecimentos formais de dança às dra-
matizações de conteúdo mítico dos movimentos,
FILOSOFIA dos gestos, das palavras, dos cantos e dos ritmos
herdados por nossos ancestrais. Assim, a lingua-
O trabalho tem o sentido “etno-crono-ético”, gem artística inova a ancestralidade e expande a
que diz respeito à relação humana, ao respeito ao tradição, pois há entrelaces construídos com o re-
outro, às diferenças e a si próprio. Adquirir essa ferencial de acesso ao imaginário, à sensibilidade, e
atitude revela que existe outra noção de tempo e à emoção; peculiaridades nítidas com influência de
espaço, uma nova dinâmica, a de imergir no pró- elementos míticos vivenciados nas comunidades.
prio corpo e dizer: este corpo é assim, tem essa O caminho incentiva o artista, o educador, a abrir
memória, tem esse movimento, tem essa qualidade, possibilidades de transmutar o antigo em moderno.
segundo suas possibilidades, no conteúdo propos- A investigação de uma expressão estética inspirada
to; possibilita a conscientização de transformações na memória apresenta-se como um caminho meto-
constantes, a vivência e o respeito à diversidade dológico. Esse referencial dá continuidade à identi-
plural da qual fazemos parte. Trata-se de desmis- dade e à resistência da cultura afro-brasileira na arte,
tificar estereótipos, ampliando horizontes, apon- que, no contexto contemporâneo, vai se transfigu-
tando, assim, para um novo espaço de valorização rar na diversidade dos contextos grupais, quando
das relações humanas. O conteúdo toma forma na comunicados à coletividade. As informações for-
sensibilização, na percepção, na conscientização do mais adquiridas, a experiência de vida com as quais
corpo, nas ações corporais ancestrais e nos textos dialogo, permitem a renovação do conhecimento,
míticos. É uma expressão que dialoga com o tem- assim como o fortalecimento de valores.
po passado e o presente.
Essa é constituição filosófica e as etapas que UMA EXPERIÊNCIA
permeiam a criação estética em Corpo e Ancestra-
lidade. Entendo essa proposta pluricultural, como Nessa direção, descrevo a seguir o depoimen-
uma possibilidade de dar forma a comunicações to da intérprete-pesquisadora Franciane Salgado
“novas”, construídas não somente com elementos de Paula Kanzelumuka (2007), no projeto intitu-
da tradição afro-brasileira, mas no decurso do co- lado “Em águas abundantes: um estudo sobre as
nhecimento de outras culturas, o que permite vi- diferentes escrituras do corpo cênico a partir das
vências de transmissões de seus valores, de modo matrizes corporais das danças de Kayaia”. Essa
dinâmico. Do mesmo modo, contribui para uma pesquisa foi realizada sob a orientação de Corpo
arte arraigada e que, ao mesmo tempo, pode levar e Ancestralidade, no programa de bolsas de inicia-
à transcendência, na sociedade contemporânea, tão ção científica do PIBIC-CNPq, da Universidade
carente de mecanismos que propiciem esse “trans- Estadual de Campinas, no Departamento de Artes
cender”. Corporais.
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A investigação trouxe como objetivo o estu- ações posteriores. O corpo está abaulado e move-
do do corpo cênico correlacionado às danças de -se num tempo lento, pois vem do tempo imemo-
Kayaia-nkisi da tradição religiosa afro-brasileira da rial.
nação angolana, que está associada às águas dos b) Brio das águas profundas – luz aos filhos pei-
mares, na busca de uma criação em dança que pu- xes: apresenta-se ao espectador a força, as instabi-
desse refletir aspectos de uma ancestralidade femi- lidades, fluidez e brio das águas profundas, assim
nina. como o feminino, uniforme e constante.
Para descrever os passos da criação, relato, de c) O feminino é o mar: num outro registro tem-
forma linear, para um melhor entendimento desta poral, é dada a repetição das ações apresentadas
escrita. anteriormente, com a incorporação de novos ges-
• Primeiro momento: tos e o delinear de uma personagem.
Trabalhou-se a disponibilidade corporal pelo d) Epifania: a passagem dos ventos – momento
uso das ferramentas fundamentais em dança – cor- de quebra da constante, por meio da transforma-
po, tempo, espaço, ação, dinâmica, relacionamento ção de corpo que dá passagem à guerreira – movi-
– deu-se vazão à materialização dos movimentos e mentos diretos, ágeis e prontos, que não perdem
a imagens projetadas pela intérprete-pesquisadora seu encanto trazido pelas águas. Os caminhos já
para a composição de metáforas criadas a partir foram traçados e abertos para que o ciclo seja con-
das simbologias e histórias míticas do nkisi. cluído.
• Segundo momento: e) Retorno: dar, receber e retribuir. Chega-se ao
A incorporação dos elementos estéticos da pes- fim, com a origem de toda a cena. É o reencontro
quisa de campo transcriados nos laboratórios de e a reabsorção de si para a instalação de um novo
dança; teve como fonte primária as matrizes das começo. A caminhada continua num desenho de
danças de Kayaia; a força motriz para as escrituras cena que esboça a espiral.
do corpo cênico e para a cena coreográfica buscou Segundo Franciane de Paula,
refletir a ancestralidade feminina do tempo original
das águas profundas, sua imensidão, o inconsciente Epifanias e alfazemas foi a transformação do fazer
e a consciência do eu; águas, mulher e devir: artístico da pesquisadora e o início do trabalho
• Terceiro momento: de investigação em dança contemporânea, no
A criação de um subtexto para a dramaturgia do qual possa estudar outro caminho para a criação
em arte contemporânea, inspirada nas culturas
movimento.
negras. Sob o víeis da reelaboração estética de
- Águas: materialização da profundidade. O vo- rituais e linguagens, esta criação artística se dá
lume. Fecundo. Íntimo substancial. por meio da reflexão sobre as matrizes estéticas
- Mulher: caminha desde a criação do mundo. de origem africano-brasileira e a ampliação do
Ela tem a idade do mundo, traz a força do cor- olhar do que elas sejam. Um embrião que está
po das águas do mundo, manifestadas num corpo sendo fecundado em meio a reflexões cotidianas
que abarca o substancial do tempo primordial da e artísticas sobre um universo que há pouco tem
criação da vida. Transforma-se, quando necessário, ganhado voz.
para a criação e a recriação do novo.
- Devir: por meio do tempo cíclico e imemorial. Atualmente, ela dá continuidade ao tema, em cur-
Para compreender o presente e predizer o futuro, so de mestrado na Universidade Estadual Paulista.
olha-se para o passado. A caminhada nunca cessa. Finalmente, as experiências realizadas nas artes
4. Quarto momento: da cena, com referência a Corpo e Ancestralidade,
A coreografia: “Epifanias e Alfazemas” mostram mais uma possibilidade de conhecimento
Nesse espetáculo, temos cinco representações de pesquisa, criação e interpretação artística, que se
denominadas de: realiza a partir de matrizes estéticas ancestrais afro-
a) Instalação – deixa entrar: momento que ante- -brasileiras, mas com uma dinâmica própria, que se
cede a entrada do público no espaço cênico em que expande e aponta para o entendimento desse celei-
a artista pesquisadora predispõe o espaço para as ro, na contemporaneidade.
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REFERÊNCIAS

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Kayaia. PIBIC/Cnpq. Campinas, SP: Universidade
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f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de
Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo,
1996.
SANTOS, Inaicyra Falcão dos.; CÔRTES, Gusta-
vo.; ANDRAUS, Mariana Baruco. (Orgs.). Rituais e
linguagens da cena: trajetórias e pesquisas sobre corpo
e ancestralidade. Curitiba: Editora CRV, 2012.
SANTOS, Juana E. Sociedade Religiosa e Cultural Ilê
Asipá, 25 anos. Evento realizado em Salvador, BA,
19 e 21 de maio de 2006 (folder).

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