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Vol.1, n.14.
CORPO EDITORIAL
Organizadores da Edição
Keila Lucio de Carvalho
Leonardo Nóbrega da Silva
Eduardo H. N. Borges
Layssa Bauer Von Kulitz
Marcelo Augusto de Paiva dos Santos
Comissão Editorial
Alexandre Barbosa Fraga
Barbara Goulart Lopes
David Gonçalves Soares
Eduardo H. N. Borges
Joana Ramalho Ortigão Corrêa
Keila Lucio de Carvalho
Layssa Bauer Von Kulitz
Leonardo Nóbrega da Silva
Marcelo Augusto de Paiva dos Santos
Natália Helou Fazzioni
Pedro Alex Rodrigues Viana
Renata Montechiare
Yago Quiñones Triana
PARECERISTAS
Adriana Amaral Ferreira Alves (UFES)
Allene Carvalho Lage (UFPE)
Ana Maria Simão Saldanha (UNESP)
André Kaysel Velasco e Cruz (UNILA)
Antonio da Silveira Brasil Junior (UFRJ)
Bila Sorj (UFRJ)
Caio Eduardo Teixeira Vasconcellos (USP)
Carlos Eduardo Sell (UFSC)
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Enfoques Vol.1, n.14.
PRODUÇÃO EDITORIAL
Projeto Gráfico, capa e diagramação
Rayssa Natalia da Penha dos Santos (UVA)
Revisão de textos
Beth Cobra, Marcelo Augusto de Paiva dos Santos, Sabrina Primo, Vanessa Baptista dos
S. Borges e Vânia Santiago.
Tradução dos resumos
Ben Kohn e Vanessa Baptista dos S. Borges.
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Enfoques Vol.1, n.14.
E D I T
APRESENTAÇÃO
O R I A L
É característico da teoria social pública e engajamento”. Através do
um constante exercício reflexivo que faz estudo das contribuições de Michael
da discussão de suas próprias bases Burawoy e de seus críticos, a autora
e conceitos uma atitude necessária. A sugere que este tema é fundamental na
partir da segunda metade do século batalha sobre o futuro da sociologia.
XX, discussões acerca do estatuto dos Os movimentos sociais assumem
conceitos passaram a questionar diversas protagonismo na discussão da teoria
perspectivas hegemônicas presentes social e não poderiam deixar de ser
nas ciências sociais. Os debates também foco de reflexão. É o que faz
desenvolvidos no interior das críticas Sarah Carneiro em “O Exército Zapatista
pós-coloniais trouxeram para o centro da de Libertação Nacional (EZLN) e os
discussão os problemas relacionados à desafios analíticos que o seu percurso
pretensão de universalidade de conceitos sugere à teoria social”. A atuação política
construídos a partir de pontos de vista dos zapatistas, analisada a partir de
muito particulares. No mesmo período, comunicações veiculadas pelo grupo,
a efervescente teoria sociológica latino- é vista como uma voz contestatória,
americana chamou a atenção para a colocando desafios tanto de ordem
necessidade de se pensar as relações social ao capitalismo mundial quanto às
estruturais de poder e dominação. abordagens acadêmicas em torno dos
Tendo em vista tal panorama, a Revista próprios movimentos sociais.
Enfoques apresenta esta edição temática Também no campo dos
intitulada Teoria Social em Perspectiva movimentos sociais, Wesley do Espírito
Crítica cujos artigos se debruçam sobre Santo apresenta em “Confrontando
diversas facetas deste campo de análise. Escalas: contribuições da etnografia
Acentuadamente no início do para as teorias sociais sobre movimentos
século XXI, agentes fundamentais e populares urbanos”, um relato etnográfico
tradicionalmente relegados ao segundo sobre a V Conferência Nacional das
plano, por meio dos movimentos sociais, Cidades, apontando as relações entre
passaram a questionar diversos aspectos movimentos sociais urbanos e suas
da construção epistemológica dominante articulações em torno do Estado.
nas ciências sociais. A perspectiva de O artigo de Leonardo Nóbrega
uma sociologia pública é recolocada, da Silva argumenta que os processos
de forma a tornar complexo o debate políticos em curso na Bolívia e no Equador,
que envolve uma produção sociológica a partir das noções de Buen Vivir e
cientificamente comprometida e uma Pachamama, colocam em cena desafios
inserção dialógica do pensamento no para a teoria social contemporânea.
debate público junto à sociedade civil. Para tanto, o autor busca revelar
Este é o tema central do artigo de Keila os limites das teorias pós-coloniais,
Lucio de Carvalho, intitulado “Sociologia decoloniais e das epistemologias do
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Resumo
Este artigo apresenta uma reflexão sobre a sociologia pública, através de um estudo das
contribuições de Michael Burawoy e das principais críticas dirigidas a essa proposta,
em torno das polêmicas acerca do engajamento dialógico com públicos no interior da
sociedade civil. Tamanha reação no interior dos círculos acadêmicos parece indicar que
a sociologia pública pode ser considerada um ponto focal de batalhas sobre o futuro da
sociologia.
Palavras chave: Sociologia pública, engajamento, sociedade civil, Michael Burawoy, Teoria
Sociológica.
Abstract:
This paper presents a reflection over public sociology, through a study about Michael
Burawoy’s contributions and the main criticisms to this proposal, around the controversy
about the dialogical engagement with the public within civil society. Such reaction within the
academic circles seems to indicate that public sociology can be considered a focal point of
battles over the future of sociology.
Keywords
Public sociology, engagement, civil society, Michael Burawoy, Sociological Theory.
i
Keila Lúcio de Carvalho é doutoranda em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA-UFRJ) e professora da Coordenação de
Sociologia (Campus Maracanã) do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca
(CEFET-RJ). E-mail: keilalucio@yahoo.com.br
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de duas questões centrais. A primeira é qual tematiza sua relação com os valores
“conhecimento para quem?”. A sociologia e as propostas da sociedade; e isso
dialoga com seus próprios pares ou com significa, por fim, abri-las às audiências
pessoas exteriores à academia? De acordo extra-acadêmicas e particularmente
aos públicos – especialmente aqueles
com as indicações de Burawoy (2009b),
ameaçados pela erosão de sua
esta questão diz respeito a uma distinção
autonomia e de sua voz. (Burawoy,
entre audiências: de um lado, a comunidade
2007: 146)
de acadêmicos e de cientistas que buscam
compreender e explicar o mundo (audiência Os principais argumentos
acadêmica) e, por outro, pessoas para além norteadores da ideia de sociologia
da academia (audiência extra-acadêmica). pública foram apresentados por Burawoy
A segunda questão, “conhecimento em torno de onze teses,2 com o objetivo
para quê?”, separa analiticamente o de amparar a defesa de uma sociologia
conhecimento segundo seus meios seus capaz de consagrar-se não apenas como
fins últimos. O conhecimento sociológico ciência, mas como força moral e política.
é instrumental, ou seja, está preocupado Para os propósitos deste artigo, não
em determinar os meios apropriados a recuperarei exaustivamente as onze teses
determinados fins ou, por outro lado, é de Burawoy, apenas as linhas gerais de
reflexivo, dedicado à discussão daqueles sua argumentação teórica e metodológica
mesmos fins? Esta questão se refere à em torno da questão do engajamento da
maneira pela qual diferentes grupos podem sociologia e, por sua vez, do sociólogo
se beneficiar da sociologia enquanto enquanto ator político.
conhecimento que auxilia os indivíduos
A sociologia pública: engajamento e prática
a compreenderem seu lugar no mundo
dialógica
(Burawoy, 2009b) e reconhece os próprios
intelectuais (inclusive os sociólogos) O desenvolvimento da sociologia
como partes inerentes do mundo por eles acadêmica, principalmente norte-
estudado (2005b). americana, resultou em uma especialização
É com base nessas duas questões1 baseada na ideia de “ciência pura” –
relacionadas ao caráter reflexivo da pretensiosamente livre de valores – que
sociologia orientado para audiências retirou, ao menos transitoriamente, o
extra-acadêmicas que Burawoy vai formular compromisso moral da sociologia de
sua proposta da sociologia pública. Abrir contribuir para a realização de mudanças
as ciências sociais, nesta perspectiva, na sociedade. Entretanto, concordamos
significaria: com Burawoy (2005b) quando considera a
insustentabilidade desta premissa, já que
Abri-las ao conhecimento reflexivo, o
1
A questão “Sociologia para quem?” foi posta por Alfred McLung Lee em 1976, em seu discurso presidencial da
American Sociological Association (ASA). Já a outra questão, “Sociologia para quê?”, foi colocada por Robert
Lynd em 1939. Segundo Zussman & Misra (2007), o discurso de Burawoy por ocasião de sua presidência da
ASA, em 2004, resgata uma longa tradição na referida organização de discursos presidenciais que refletem
sobre a disciplina e sua direção. Mas, segundo os autores, a novidade trazida por Burawoy diz respeito ao
apelo a uma nova prática, para além da reconceitualização do pensamento sociológico (Zussman & Misra,
2007).
2
As onze teses de Burawoy foram apresentadas em sua conferência “For public sociology”, publicada na
American Sociological Review (2005a). Elas correspondem a uma clara alusão às Teses sobre Feuerbach, que
consistem em onze breves notas filosóficas escritas por Karl Marx em 1845.
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seu caráter antipolítico não é menos político à posição de Burawoy como presidente da
que o engajamento público em si. Buscando- ASA à época – e, posteriormente, como
se contrapor a uma concepção de ciência presidente da Associação Internacional de
“pura” e “aplicada” da sociologia é que Sociologia (ISA)3 – quanto à sistematicidade
Burawoy propõe a sociologia pública está e difusão de sua proposta em outros
prioritariamente relacionada ao contexto contextos nacionais. Juntos, tais elementos
da sociologia norte-americana, embora configuram-se importantes balizadores
seja de extrema importância sua discussão para a análise da pertinência da sociologia
em outros contextos nacionais, como o pública e seu lugar na teoria sociológica
Brasil. Neste sentido, a sociologia pública contemporânea.
consiste em uma concepção de superação A intenção de Burawoy trata, então, de
positiva do perfil predominantemente um apelo para a revitalização da sociologia
acadêmico e profissional da disciplina, em direção a uma sociologia pública, que
através do engajamento da sociologia poderia ser capaz de resgatar a “vocação
com diferentes públicos fora do mundo moral” da sociologia, através do diálogo
acadêmico, visando ao fortalecimento da dos sociólogos a respeito da natureza
sociedade civil (2005b). Ainda segundo o da sociedade e seus valores, através da
autor: transformação dos problemas privados dos
variados públicos em questões públicas.4
Temos passado um século construindo
Interessa particularmente à discussão
um conhecimento profissional,
que pretendo desenvolver neste artigo a
traduzindo o senso comum em ciência,
então, agora, estamos mais do que ideia de que os sociólogos podem – e
prontos para nos envolvermos numa devem –, segundo Burawoy, constituir-se
sistemática retradução, devolvendo o como público e, deste modo, como atores
conhecimento àqueles de onde esse políticos.
conhecimento veio, tornando questões A configuração proposta por
públicas para além de problemas Burawoy – sociólogos que se constituem
privados e regenerando, assim, a fibra como atores políticos e que estejam em
moral da sociologia. Localiza-se aqui diálogo constante com os demais públicos
a promessa e o desafio da sociologia – pressupõe uma pluralidade de públicos
pública, o complemento e não a negação
e, consequentemente, compromissos
da sociologia profissional. (Burawoy,
axiológicos distintos. Em outras palavras,
2005a: 5)
a necessidade de diálogo com os
A importância da proposta da públicos não determina o conteúdo dos
sociologia pública está relacionada tanto posicionamentos políticos e morais desses
3
Até alguns meses antes da finalização deste trabalho, Burawoy era presidente da Associação Internacion-
al de Sociologia (Comitê Executivo 2010-2014). Foi membro do Conselho Executivo da Associação Amer-
icana de Sociologia (ASA) entre 2000 e 2005, estando na presidência da referida associação entre 2003 e
2004.
4
Uma importante referência para Burawoy neste sentido são as contribuições de Wright Mills, considera-
do “líder da sociologia pública tradicional” (Burawoy, 2005a: 9). Segundo Mills (1975), a sociologia deveria
assumir seu caráter reflexivo, em constante diálogo com a vida cotidiana. Essas reflexões estão presentes
na obra A imaginação sociológica, publicada originalmente nos Estados Unidos em 1959.
Tal consideração não impede, contudo, a defesa de Burawoy por uma determinada concepção de so-
ciologia pública, que o autor afirma manter diálogo com a teoria marxista. Esta questão será retomada
posteriormente.
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mesmos compromissos. Isto porque, para presente conjuntura, o melhor espaço para
Burawoy, toda sociologia repousa sobre a defesa da humanidade, auxiliada pelo
um conjunto de valores e são estes valores estímulo de uma sociologia pública de
que se tornam objeto de discussão e matriz crítica.
diálogo entre os sociólogos e os públicos. Estas constatações colocam em
Como existe uma pluralidade de públicos cena alguns elementos que merecem
e de valores, Burawoy (2005a) defende destaque. Em primeiro lugar, a natureza
a existência de uma multiplicidade de conflituosa das relações entre Estado,
sociologias públicas, desde as mais liberais sociedade e mercado. Em segundo lugar
até as mais críticas.5 e, consequentemente, os antagonismos
Assim, uma primeira consideração presentes no interior da sociedade civil, que a
de Burawoy é a existência de uma caracteriza como espaço de consentimento
diversidade de públicos, com variadas e resistência. Por fim, e desta maneira,
orientações axiológicas (2005b). Para os públicos são heterogêneos, orientados
o autor, a definição de público supõe o por identidades plurais, cujos interesses
mapeamento dos arranjos nacionais podem chocar-se uns com os outros.
e, consequentemente, a avaliação das De todo modo, os esforços para
inter-relações de diferentes públicos no explicar a história, os fundamentos e os
interior da esfera pública. Dada a atuação processos internos das categorias de
privilegiada da sociologia no âmbito da público, esfera pública, e sociedade civil,
sociedade civil, a esfera pública aparece através do trabalho de reconstrução teórica
como um espaço de disputa possível, a partir da síntese empírica, não deve ser
através do engajamento público (2005a). dispensado. É neste sentido que tomar
A sociologia pública tem, portanto, o tais categorias como ideais normativos
objetivo de promover engajamento público deslocados de uma análise das condições
mediante a necessidade de fortalecimento históricas que engendram e transformam
e democratização da sociedade civil, em essas categorias, é uma solução aqui
tempos atuais de fundamentalismo de desprezada.
mercados e tirania dos Estados (Burawoy, Em Burawoy – com base no
2009a). Os diversos pontos de vista da pensamento de Antonio Gramsci – a
sociedade civil definem e constituem sociedade civil é considerada como
a unidade do olhar sociológico, sendo importante arena de luta de classes. É
a sociologia pública, por estabelecer nela que as classes lutam para conquistar
diálogos com os mais diferentes públicos, hegemonia, ou seja, a direção política.
representantedosinteressesdahumanidade Por esta razão, é a esfera que resulta da
como um todo. Ainda assim, considera o socialização da política e faz parte do
caráter contraditório, marcado por cisões Estado, em seu sentido amplo. Na literatura
e dominações que, de maneira alguma, que discute a relação entre o Estado e a
contemplaria a sociedade civil como uma sociedade civil, pode-se identificar uma
espécie de “comunitarismo harmonioso” vertente que procura situar a sociedade
(2005a: 24). A sociedade civil é entendida civil como parte da constituição de uma
como um campo de disputa, sendo, na esfera pública, que se diferencia tanto
5
Tal consideração não impede, contudo, a defesa de Burawoy por uma determinada concepção de so-
ciologia pública, que o autor afirma manter diálogo com a teoria marxista. Esta questão será retomada
posteriormente.
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da esfera tipicamente estatal quanto das Estado, mercado e sociedade civil que, em
regras estritas do mercado. última instância, condicionam as relações
Como Burawoy argumenta, as cisões entre os quatro tipos de conhecimento
presentes no interior da sociedade civil sociológico, referidos anteriormente.
são reproduzidas na divisão do trabalho no Os conflitos disciplinares entre estas
interior da sociologia, já que esta reflete, divisões refletem, de certa maneira, aqueles
em última instância, a própria sociedade. presentes nas articulações e processos
Burawoy busca demonstrar que a sociologia sociais que engendram cada uma dessas
pública não constitui o único horizonte “sociologias”. As próprias disputas em
possível para a sociologia, mas que está torno da proposta da sociologia pública
inserida em uma “divisão do trabalho” que são manifestações, segundo Burawoy, de
inclui também a sociologia para políticas um embate pela (re)articulação da divisão
públicas, a sociologia profissional e a do trabalho sociológico. As lutas internas
sociologia crítica.6 da sociologia e suas divisões, além de
Segundo Burawoy (2005a), são as representarem uma interdependência
questões “para quem” e “para que” fazemos positiva para a disciplina, não ofuscam o
sociologia que norteiam o conhecimento fato de que “os sociólogos compartilham
sociológico e que o divide em quatro tipos de um programa distintivo, enraizado
de perspectivas diferentes, caracterizadas na defesa e na expansão da sociedade
por sua interdependência na sociologia civil” (Burawoy, 2009a: 234). Somente
para políticas públicas, profissional, crítica quando as divisões forem reconhecidas
e pública – a partir de um claro investimento como positivas ao desenvolvimento da
na sociologia pública como conhecimento disciplina – através de uma colaboração
privilegiado de defesa da sociedade civil. intradisciplinar – é que Burawoy parece
Estas questões, longe de serem arbitrárias, ver realizar o ideal normativo da sociologia
dizem respeito à gênese da sociologia pública. Isto porque, segundo o autor, a
e às suas potencialidades teóricas e tarefa de reconstrução disciplinar consiste
normativas. Burawoy (2007) busca enfatizar em transformar a sociologia em si para a
como as sucessivas condições históricas sociologia para si: da divisão antagônica
reconfiguram o conteúdo das relações entre e fragmentária do trabalho sociológico,
6
A especificidade da sociologia no conjunto das diversas disciplinas e a institucionalização da divisão do
trabalho sociológico demarcada por Burawoy, embora possuam consequências metodológicas pertinentes
à abordagem que busco privilegiar, não serão desenvolvidas neste artigo. Por ora, cabe destacar que a so-
ciologia pública aparece, no interior da divisão do trabalho, como um ideal teórico e prático que depende
da sociologia profissional. Assim, a sociologia profissional – em sua condição hegemônica no contexto
atual da organização disciplinar da sociologia nos EUA – representa uma condição à própria existência
da sociologia pública, já que consiste em um conhecimento instrumental dirigido a um público acadêmico
e que estabelece o rigor científico da formulação de teorias, conceitos, métodos e técnicas de pesquisa
sociológica, garantindo que as exigências científicas e a objetividade do conhecimento estejam assegura-
das. Já a sociologia para políticas públicas tem como objetivo prover soluções para problemas de caráter
público e coletivo e se define por sua provisão de serviços a partir de um conhecimento instrumentalizado
a públicos extra-acadêmicos. Por fim, a sociologia crítica visa a analisar os fundamentos – analíticos e
normativos – da sociologia profissional, através de sua relação com uma audiência acadêmica a respeito
de um conhecimento que se caracteriza por sua reflexividade sobre o próprio objeto da sociologia profis-
sional – teorias, conceitos, métodos e técnicas de pesquisa sociológica são questionados e avaliados.
Segundo Burawoy, “a sociologia crítica é a consciência da sociologia profissional, assim como a sociologia
pública é a consciência da sociologia para políticas públicas” (Burawoy, 2005a: 10).
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Expressão inspirada na obra de Alvin Gouldner, The sociologist as partisan: sociology and the Welfare
State.
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Denominação inspirada no artigo de Burawoy (2009c) The public sociology wars, da coletânea Handbook
of public sociology, organizada por Vincent Jeffries.
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Embora sob uma perspectiva distinta, a relação entre a sociologia pública e o marxismo é também
apontada por Calhoun (2005), quando afirma que “para além de sua [de Burawoy] agenda da sociologia
pública, existe um esforço para recolocar a sociologia marxista”. Em outro trecho, considera que Burawoy
esteja preocupado em superar uma versão do marxismo pós 1970, desvinculado dos movimentos sociais
(Calhoun, 2005: 357-58).
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Na trilha de que o “conhecimento sociológico não pode desafiar o mundo” (Deflen, 2005), o autor elab-
orou, já em 2005, o site da campanha “Save Sociology” (www.savesociology.org), com o objetivo de salvar a
sociologia da sociologia pública e dos valores.
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11
Segundo Burawoy & Wright (2000), a tarefa de reconstruir o marxismo como uma teoria coerente deve
estar amparada em uma teoria da reprodução contraditória das relações de classe capitalistas, em vez de
uma teoria marxista da trajetória histórica. A proposta do marxismo sociológico busca identificar os pro-
cessos causais dentro da sociedade capitalista que têm amplas implicações para a natureza das institu-
ições em tais sociedades e as perspectivas para a emancipação humana. Neste sentido, o socialismo não
deve ser entendido como resultado de um processo teleológico ou uma necessidade histórica, mas como
o resultado potencial da estratégia, da restrição e da contingência. Segundo Braga (2009, 2010), em um
cenário ainda predominantemente positivista da sociologia, o debate contemporâneo da sociologia pública
é uma oportunidade para problematizarmos as relações entre a sociologia crítica e o marxismo. O desafio
consistiria em localizar a sociologia marxista na sociologia pública, como espaço privilegiado para desen-
volver tanto teorias quanto programas de pesquisa e, também, alicerçar um projeto político.
12
Esta frase (Burawoy, 2009b: 225) é uma alusão à clássica “os homens fazem sua própria história, mas
não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e, sim, sob aquelas com que se
defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado” (Marx, 2002: 21).
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Resumo
O presente artigo, tomando como base dezessete comunicados zapatistas, pontua as
particularidades do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), ator social de forte
oposição ao capitalismo, com o objetivo de demonstrar os desafios que sua singular
trajetória política apresenta ao campo da teoria social. A insurgência do EZLN, em janeiro
de 1994, demarca a chegada à arena política do México de uma voz contestatória, que
convoca não somente a sociedade mexicana e mundial para repensarem os rumos do
planeta, mas também desafia as abordagens acadêmicas em torno dos movimentos sociais,
e as referências marxistas sobre revolução.
Abstract
The present article, built upon 17 Zapatista official reports, points out the particularities
of the EZLN, a social actor with strong opposition to capitalism. It aims to present the
challenges that EZLN’s unique political path offers to the field of social theory. EZLN’s
insurgency in January 1994 defines the beginning of an opposing voice in the Mexican
political arena which urges not only Mexican and international societies to rethink the
future of the planet but also challenges the academic approaches regarding social
movements and the Marxist references about revolution.
Keywords
EZLN; dispossessed; unique political path; new social movements; Marxist approaches.
i
Sarah Roberta de Oliveira Carneiro é doutora em Ciências Sociais pela Universidade
Federal da Bahia (UFBA), com estágio doutoral na Université de Strasbourg, e pesquisa-
dora do Núcleo de Estudos Ambientais e Rurais (Nuclear/UFBA). Suas áreas de interesse
são sociologia política e comunicação. E-mail: sarah.palavra@gmail.com.
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1
O presente artigo é um desmembramento do terceiro capítulo de minha tese de doutorado intitulada Do
silêncio das montanhas ao grito para o mundo; a saga de uma voz insurgente, cuja defesa foi realizada em
dezembro de 2012 no âmbito do Programa de Pós-graduação de Ciência Sociais da Universidade Federal
da Bahia (PPGCS/UFBA).
2
Na década de 1980, um mexicano urbano chamado Marcos refugiou-se na Selva Lacandona, reduto dos
indígenas no sudeste do México, para renovar os seus sonhos de guerrilha. Do seu encontro com os indí-
genas emergiu o EZLN, e ele se tornou seu porta-voz. No mês de maio, no entanto, ele saiu de cena para
dar lugar ao subcomandante Galeano. Mas todos os documentos zapatistas examinados para a produção
deste artigo são ainda de quando o subcomandante atendia pelo nome de Marcos, de modo que será este
o nome usado aqui.
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Enfoques Vol.1, n.14.
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Esta terminologia é adotada neste artigo para traduzir os sujeitos que sentem qualquer tipo de despert-
encimento social, os quais aparecem como “desprovidos” no discurso zapatista.
4
Extraído do comunicado “Chamada a todos os mexicanos” (¡Ya basta!, 1994: 106).
22
Enfoques Vol.1, n.14.
anos da insurgência, foi assinado o mais frequência nos artigos sobre o EZLN
Acordos de San Andrés entre os zapatistas diz respeito à capacidade de permanência
e o governo mexicano e para reforçar este e continuidade do movimento, que mesmo
acordo foi elaborado o projeto de lei pela tendo reduzido significamente suas
Comisión de Concordia y Pacificación aparições, persiste enquanto ator social
(COCOPA). O Acordos de San Andrés foi contestátório, dotado de um discurso que
construído por meio de um processo que ativistas de todas as partes do mundo se
contou com a composição de mesas de interessam em escutar.
negociação, a saber: Direitos e Cultura Além disso, vale mencionar a
Indígena, Democracia e Justiça, Bem-estar e experiência da Escola Zapatista, que,
Desenvolvimento, Mulheres, Reconciliação segundo Amaury Ghijselings (2014),
em Chiapas e Fim das Hostilidades, e tinha implica uma iniciativa pedagógica inédita
como propósito alterar a Constiutição para na trajetória zapatista, pois se trata da
que os direitos fundamentais dos indígenas abertura dos Caracóis para o horizonte
fossem reconhecidos. da educação popular mais detida. Voltada
Mas o cumprimento destes pactos para sujeitos críticos que enxergam no
não aconteceu. As negociações de paz zapatismo uma referência de luta pela
entre o EZLN e o governo federal mexicano justiça social, a escuelita (como se chama
foram interrompidas em setembro de 1997, a vivência formativa), segundo Ghijselings,
devido às grandes divergências na mesa de tem o poder de inspirar movimentos sociais
diálogo sobre Democracia e Justiça. europeus.
Desde sua insurgência, o EZLN Alguns Esforços Interpretativos
continua firme em suas pautas, oscilando
momentos de aparição pública com o de O EZLN, embora contenha uma forte
retraimento, tendo realizado importantes referência étnica, não deve ser associado
eventos e marchas pelo México, as quais de imediato a um movimento social que se
contaram com a participação de grandes relaciona prioritariamente com questões
nomes da intelectualidade, a exemplo do identitárias, pois os zapatistas abarcam
pensador francês Alain Touraine. A últma pautas que estão para além das demandas
grande aparição do EZLN aconteceu em indígenas. Em seu repertório de luta há
dezembro de 2012, através de uma marcha a indicação de diferentes problemáticas
absolutamente silenciosa. É sabido que que afetam a sociedade mexicana, desde
a palavra ocupa um importante lugar nas a falta de moradia à escassez de salas
ações políticas do EZLN, de modo que a de aula, de modo que se existe um traço
decisão do silêncio tem propósito político. unitário que vincula os zapatistas, esta é a
Vale dizer que Bernard Duterme condição de despossuídos.
(2014), ao pautar a extensa durabilidade Desde que o grito ¡Ya basta! ecoou
do EZLN, comunica que o balanço que os – sua emissão ano passado completou
zapatistas fizeram deles mesmos, depois de 20 anos –, o EZLN prossegue sendo uma
20 anos da insurgência, é majoritariamente força política que demanda reflexões
positivo. Para o autor, o senso de acerca de seu modo organizacional e sua
autonomia do EZLN e sua proposta radical forma particular de intervir na construção
de democracia são grandes legados, ainda da realidade, na medida em que elegeu
que os zapatistas e o Estado mexicano não a comunicação como vetor importante, e
tenham chegado aos acordos desejados. assim conseguiu se constituir como sujeito
Atualmente, o mote que aparece com falante no espaço público mexicano e
mundial, falando em nome de todos os
23
Enfoques Vol.1, n.14.
24
Enfoques Vol.1, n.14.
anunciam isto diz assim: “A luta do EZLN atualmente, quando se fala em mobilização
não é somente dos zapatistas, nem dos social, e essa nomenclatura é indissociável
chiapanescos, nem dos indígenas. É de das mobilizações contestatórias que
todos os mexicanos, daqueles que não têm surgiram no final dos anos 1960 e
nada, dos desprovidos, da maioria entregue extrapolaram a esfera industrial (Neveu,
à miséria, à ignorância, à morte”.5 2002; Fillieule, Mathieu & Péchu, 2009),
Outra confirmação desta ideia e quando se assinala isto, estamos a
aparece na “Carta a um jornalista honesto”, evidenciar que, atualmente, os movimentos
assinada pelos zapatistas, e na qual está sociais não se identificam puramente com
expresso: “Se diz a verdade e procura a a classificação de movimento operário
justiça, é zapatista, então, somos todos (Touraine, 1999).
zapatistas” (¡Ya basta!, 1994: 143). Em contato com esta referência,
Vale dizer que em relação ao vasto Melucci (2001) diz que as mobilizações
conteúdo indígena que contorna o EZLN, contemporâneas estariam, então,
Le Bot chama a atenção para o lugar da relacionadas ao feminismo, consumo,
cultura maia na construção do movimento, aos movimentos regionais e estudantis,
pois, embora ela seja bastante presente movimentos da contracultura jovem,
enquanto fonte de conhecimento, segundo movimentos anti-institucionais, à ecologia
ele, os zapatistas não reivindicam uma e às lutas desencadeadas por imigrantes.
especificidade maia, ou seja, não pretendem Mas ainda que este seu mapeamento
edificar uma nação sobre uma base étnica, porte algum sentido orientador e ajude
pelo contrário, fazem uma afirmação na realização de um debate sobre as
insistente da mexicanidade. “Os zapatistas características dos movimentos sociais
se querem resolutivamente mexicanos, na sociedade contemporânea, uma vez
indígenas mexicanos” (Le Bot, 1997: 85). tomando-o como roteiro de análise,
Baschet (2005) informa que o deve se levar em consideração que, se
EZLN entrelaça os componentes étnico, antes, os movimentos contestatórios se
nacional e internacional, pois a um só centravam quase que exclusivamente em
tempo contém uma forte referência reivindicações de caráter classista, sendo
indígena, exige exaustivamente que se faça este praticamente a única variável que
a superação do modelo Estado-partido, interferia na definição da identidade, e
vivido no México – na medida em que o por isto os movimentos sociais, em sua
Partido Revolucionário Institucional (PRI) grande maioria, se voltavam à incessante
se perpetuou na presidência do país por busca pela ampliação de renda, garantia
sete décadas – e se opõe explicitamente da seguridade social e outras conquistas
ao neoliberalismo, configurando-se como de caráter estrutural, como o direito à
um ator antissistema. Nas palavras dos saúde e à moradia, hoje, ainda que se
próprios zapatistas está dito: “O EZLN é note uma diversidade de quereres sendo
uma realidade política e militar em nível exercitada, as reivindicações não deixam
regional, nacional e internacional”.6 de dizer respeito à dimensão de classe.
A terminologia Novos Movimentos A novidade, segundo José Maurício
Sociais (NMS) é uma das mais usadas, Domingues, é que existe uma amplitude
5
Extraído do comunicado “Respeito aos direitos do homem e falsos testemunhos” (¡Ya basta!, 1994: 136).
6
Extraído do comunicado “Precisões para o diálogo” (¡Ya basta!, 1994:126).
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Enfoques Vol.1, n.14.
sociais, a autora passa em revista os Esse autor contribui ainda para a reflexão
principais paradigmas usados para aqui desenvolvida, ao informar que sob o
compreender os movimentos, e faz isso ângulo político-militar a força militar do
munida da certeza de que “não há um movimento zapatista estaria mais para o
conceito sobre movimento social mas cumprimento de uma dimensão simbólica
vários, conforme o paradigma utilizado” do que para a construção de uma referência
(Gohn, 2006: 13). Além deste pressuposto, bélica.
Gohn se equipa de mais outro: a América do Para ele, o EZLN não se constitui
Norte, a Europa e a América Latina possuem como uma guerrilha e nem muito menos é
contextos históricos específicos, e lutas o relançamento de uma antiga guerrilha; ao
e movimentos sociais correspondentes a contrário, nasce do fracasso deste modelo
eles. Logo, existem diferentes metodologias de luta revolucionária (Le Bot, 1997: 69).
voltadas ao estudo dos movimentos sociais. Contudo, embora Le Bot localize o aspecto
O escritor mexicano Carlos Fuentes da guerrilha na composição do EZLN, de um
e a mídia internacional classificaram o modo que deixa sugerido que os zapatistas
movimento como a primeira guerrilha pós- se relacionam com esta prática somente
comunista e pós-moderna7 do mundo. pelo viés da influência, ou seja, apenas
Mas, o subcomandante Marcos responde toma como inspiração este tipo de atuação
a esta fala informando que não se trata de política, é preciso ter em mente que, em
uma guerrilha moderna, nem pós-moderna, virtude da insurgência, os zapatistas
mas, sobretudo, um sintoma daquilo que se realmente travaram no plano militar uma
passa no mundo. luta contra o Exército mexicano, e uma luta
Afirmando que o EZLN é um sintoma do desigual, posto que o armamento zapatista,
que se passa no mundo, o subcomandante em termos de quantidade e potência, é
considera os zapatistas como os consideravelmente menos sofisticado do
“representantes” de todos aqueles que lutam que o empregado pelo Exército mexicano.
para ter uma vida decente onde vivem, e Um elemento que o leva a demarcar
este seu pensamento, quando confrontado esta distinção é a relação dos zapatistas
com o debate acerca do reconhecimento com o poder, pois, segundo Le Bot, enquanto
da diferença e da participação igualitária “as guerrilhas revolucionárias dos últimos
no espaço público, desenvolvido por Fraser decênios, na América Latina, tinham em
(2000), autora que faz um chamado para comum – todas sem exceção – o objetivo
as políticas urgentes de reconhecimento da de tomarem o poder do Estado, por meio
diferença, vem a revelar um ator social que das armas” (Le Bot, 1997: 71), os zapatistas
em suas reivindicações reúne o particular e afirmam não quererem ocupar o poder e
o universal. desejam ser soldados desnecessários.
Le Bot (1997) pontua que os Afinal, a existência deles significa a
zapatistas não querem ser tratados como inexistência da justiça social, de modo que,
cidadãos como os outros, conforme para materializá-la, eles precisam lutar.
preconiza a democracia formal, e nem Para Yúdice, os zapatistas realizam
como cidadãos diferentes dos outros, mas, uma insurgência que desestabiliza o status
sim, como cidadãos com suas diferenças, quo e instala uma possibilidade de repensar
numa perspectiva da democracia plural. a política e a cultura no México. Ele também
7
Não se pretende fazer aqui nenhuma grande problematização acerca da modernidade e/ou pós-mod-
ernidade, mas trazer este comentário feito por um escritor mexicano bastante conhecido.
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Enfoques Vol.1, n.14.
pontua que os zapatistas não são “um acolher todos nós. A bandeira de um
exército guerrilheiro no estilo convencional movimento nacional revolucionário que
latino-americano, como os rebeldes de daria lugar às mais diversas tendências,
Castro, os sandinistas, a Frente Farabundo aos pensamentos mais variados, às
diferentes maneiras de lutar, mas que
Martí de Libertação Nacional de El Salvador,
representariam uma única vontade, um
ou mesmo o Sendero Luminoso” (Yúdice,
único objetivo: liberdade, democracia,
200: 444-445). Para ele, trata-se de um justiça. (¡Ya basta!, 1994: 105)
movimento que é muito mais do que um
combate armado, é um movimento que Reflexões com Base nas Referências
conseguiu abrir um espaço para comunicar Marxistas
seu projeto de sociedade.
Le Bot (1997) e Yúdice (2000) Nas palavras do subcomandante
fazem questão de demarcar as diferenças Marcos uma das descrições do EZLN é
entre o EZLN e as guerrilhas porque, de esta: um pequeno grupo urbano que se
um modo geral, nota-se um ímpeto, por aproximou dos indígenas de Chiapas; este
parte sobretudo da mídia mexicana em grupo tinha orientação marxista-leninista
classificar o EZLN como uma guerrilha, com perfil de organização clandestina,
talvez porque se trate de um movimento constituído por pessoas de classe média,
surgido na América Latina e que usou armas as quais eram adeptas do trabalho político e
em sua insurgência, mas o próprio EZLN no detentoras do projeto de um dia aderirem à
comunicado “Quem vai nos perdoar” diz luta armada, na medida em que se deparou
não seguir os modelos dos chefes das com o fechamento de todas as alternativas
guerrilhas anteriores.8 No comunicado políticas ocasionado pelo monopólio do
“Chamada para todos os mexicanos” estão poder durante décadas pelo PRI.
valorizadas todas as formas de luta pela Tal grupo buscava um espaço para
liberdade, pela democracia e pela justiça, e se preparar militarmente, enquanto os
o EZLN afirma que não tem pretensões de indígenas, por sua vez, haviam chegado
ser uma vanguarda histórica. à conclusão de que a via pacífica para a
transformação do país estava esgotada, e
A verdade é que nós nos organizamos da conjunção destes dois grupos, ambos
assim porque nós não fizemos insatisfeitos com os rumos do México,
de outra maneira. O EZLN saúda surgiu, em novembro de 1983, o Exército
o desenvolvimento honesto e
Zapatista de Libertação Nacional (EZLN).
consequente de todas as organizações
Vale retomar o comentário do
independentes e progressistas que
lutam pela liberdade, pela democracia subcomandante acerca da orientação
e pela justiça para a Pátria inteira. Existe marxista-leninista à luz das reflexões tecidas
e existirão outras armas populares. por Le Bot (1997), na medida em que este
Nós não pretendemos ser a vanguarda autor sinaliza para uma observação nesse
histórica, uma, única e verdadeira. Nós sentido. É que para ele a substituição das
não temos a pretensão de juntar sob categorias socialismo, luta de classes e
nossa bandeira zapatista todos os ditadura do proletariado pelas categorias
mexicanos honestos. Nós oferecemos democracia, justiça e liberdade, por parte
nossa bandeira. Mas existe uma do EZLN, é mais que uma reformulação,
bandeira maior e mais pulsante que pode
8
Extraído do comunicado “Quem vai nos perdoar?” (¡Ya basta!, 1994: 94).
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Enfoques Vol.1, n.14.
menos que uma ruptura revolucionária e que grau seu encaminhamento guarda
estaria, portanto, mais alinhada ao que referências do marxismo e em que grau
pode se chamar de uma passagem. Le avança em relação a estes.
Bot diz ainda que os zapatistas buscam Lembremos que para Marx e Engels
compor uma democracia plural, começando (1848) toda luta de classe é uma luta
pelo fim da ditadura exercida pelo PRI e política, e a história de todas as sociedades
a deposição do presidente Carlos Salinas existentes é a história das lutas de classes,
de Gortari,9 de modo que eles exigem um a qual envolve antagonismos de diferentes
governo de transição e a abertura de um ordens. No que tange ao camponês, é
espaço político. importante salientar que Marx diz que os
A esta reflexão convém agregar camponeses, por viverem em condições
o comentário feito por Marcos em sua econômicas que os separam uns dos
entrevista a Le Bot na qual expressa que os outros, e opõem o seu modo de vida,
teóricos do zapatismo são todos aqueles os seus interesses e sua cultura aos das
que contribuíram para a construção de outras classes da sociedade, compõem
uma nova abordagem do mundo. Marcos uma classe.
esclarece: “ser marxista não é um pecado, Contudo, se só existe entre os
mas ser de esquerda ou ser revolucionário pequenos camponeses um elo local e a
significa estar sempre em movimento e se semelhança entre eles, e não se cria entre
renovar continuadamente, eu acredito que eles uma comunidade, nem também uma
o zapatismo é revolucionário e lógico com ligação nacional, nenhuma organização
ele mesmo. A gente chama isto como quiser: política, neste sentido, os camponeses
marxismo, antimarxismo, revisionismo, não constituem uma classe. Este aparente
reformismo...” (Marcos apud Le Bot, 1997: paradoxo diz respeito a uma existência
266-267). Marcos pontua ainda que “o material e uma inexistência de uma
zapatismo contribuiu para desconstruir consciência de classe, de modo que o
muitos esquemas, não pela via intelectual, campesinato não seria uma classe para si,
mas pela ação, pelo movimento” (Marcos apesar de usufruir dos atributos de uma
apud Le Bot, 1997: 270-271). Logo, fica classe.
muito evidente que na perspectiva do Entretanto,cabefrisarqueocamponês
subcomandante o EZLN convoca para uma manobrado do bonapartismo não equivale
revisão de muitas categorias de análise ao camponês de Chiapas. Em outras
política. palavras, o zapatista não é o francês do 18
Considerando o que diz Le Bot Brumário, mas sim o camponês organizado
(1997: 83): “a condução dos zapatistas em ejidos, unidades comunitárias que
desconserta os dogmáticos e confunde vinham sendo desmontados mesmo antes
as classificações”, é de se imaginar que de 1994. Lembrando que os zapatistas
as leituras científicas lançadas em torno retomam a cosmogonia indígena da
do EZLN gerem todo tipo de inferência, apropriação coletiva, questionam a
tendendo inclusive a um esforço de fragmentação em parcelas, tomando como
verificação no sentido de observar em referência o princípio de Zapata de que a
9
Salinas foi eleito em 1988 num pleito cujo resultado foi bastante contestado pela oposição democráti-
ca Ele assumiu a presidência, tendo como sua agremiação política o PRI, partido que governou o México,
conforme já foi mencionado, por um período de 71 anos ininterruptos, tempo que os zapatistas chamam de
ditadura e contra a qual se posicionam.
29
Enfoques Vol.1, n.14.
10
Disponível em <http://enlacezapatista.ezln.org.mx>
11
Extraído do comunicado “A injustiça porta um novo nome: neoliberalismo” (¡Ya basta!, 1994: 268).
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12
Para saber mais sobre o grupo Comunas, ver Gonçalves (2013).
13
Extraído do comunicado “O EZLN e a mídia” (¡Ya basta!, 1994: 161).
32
Enfoques Vol.1, n.14.
Como se observa, o EZLN não pelo EZLN indicativos de que a luta zapatista
se encaixa tão confortavel mente na detém aspectos políticos originais,
terminologia dos Novos Movimentos encontramos uma variedade de frases
Sociais porque suas pautas não estão que atestam tal perspectiva, como, por
amplamente centradas nas questões exemplo, esta: “o EZLN é [...] um movimento,
alusivas, por exemplo, à identidade e cujas origens, na melhor situação, são uma
ao corpo. Além disso, não se nota um enigma, e, na pior, uma provocação”.13
deslocamento do coletivo para o sujeito; Indiscutivelmente, o EZLN se compõe
pelo contrário, suas reivindicações são como um movimento, cujo percurso
voltadas essencialmente à dimensão incentiva a releitura de algumas definições
coletiva. políticas, como as que se encontram
Por outro lado, embora sua ancoradas no arcabouço marxista, por
trajetória dialogue com algumas exemplo, na medida em que suas ações
interpretações clássicas a respeito das portam uma dinâmica nova, mas ao
ações implementadas pelos despossuídos, mesmo tempo sinaliza o enfoque restritivo
ela as ultrapassa, na medida em que os dos novos aportes teóricos que parecem
zapatistas não tomam para si um plano ler a sociedade como se vivêssemos um
linear de feitura da revolução. momento pós- classe.
Se buscarmos nas falas proferidas
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3). La Paz/Cochabamba: Editorial Los Amigos del Libro.
Fontes da Internet
<http://enlacezapatista.ezln.org.mx/> Acesso em 25 nov 2014.
34
Enfoques Vol.1, n.14.
Abstract:
The article presents an ethnographic report about the 5th National Conference of Cities,
with special interest in the performance of urban social movements. The field material, once
presented, is confronted with a broader scale, in which emerge differences (deviations) and
convergences among these same movements in a macrosocial level. Finally (at last), the
hypothesis according to which there is a continuity between the segmental character of
the social interactions observed within the scope of the conference and the conflicts and
coalitions witnessed between urban movement entities and State spheres of Government is
tested. The final considerations highlight some cultural aspects underlying the segmented
organization of these entities.
Keywords
Social movements; urban; scales; segmented social organization (segmentarity); conflicts.
i
Wecisley Ribeiro do Espírito Santo é mestre e doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social/Museu Nacional/UFRJ; professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (CEH/UERJ);
pesquisador bolsista do Colégio Brasileiro de Altos Estudos/UFRJ e membro do Núcleo de Antropologia do
Trabalho, de Estudos biográficos e de trajetórias (NuAT/PPGAS/MN/UFRJ). E-mail: wecisley@gmail.com
35
Enfoques Vol.1, n.14.
1
As categorias nativas dos movimentos sociais urbanos são discriminadas em itálico, sobretudo quando
aparecem pela primeira vez, mas também quando vale a pena enfatizá-las novamente.
2
Este artigo apresenta um fragmento dos resultados de uma ampla pesquisa coletiva que reuniu cerca de
20 pesquisadores (entre antropólogos, sociólogos e historiadores), concentrada sobre as relações entab-
uladas entre movimentos sociais brasileiros e Estado. Esta investigação foi realizada sob os auspícios do
Colégio Brasileiro de Altos Estudos, com financiamento da Secretaria Geral da Presidência da República.
O que se segue diz repeito especificamente aos movimentos populares empenhados na luta pela Reforma
Urbana. Um relato mais panorâmico sobre o “estado da arte” dos movimentos populares urbanos, produto
desta mesma pesquisa, pode ser encontrado em Pandolfi & Espírito Santo (2014. Agradeço a Dulce Pan-
dolfi, com quem tive a honra de trabalhar nesta pesquisa, pela leitura crítica do material ora apresentado.
36
Enfoques Vol.1, n.14.
que constitui um pré-requisito para todos de pelo menos 10% dos delegados
os militantes dos movimentos sociais, credenciados”. A militante formula então
senso crítico que pode ser definido como a proposta de redução do percentual das
o idioma por meio do qual o princípio assinaturas para encaminhamento das
da “segmentaridade” (Evans-Pritchard, moções, de 10% para 1%. Em sua defesa,
1969; Goldman, 2006) – voltarei a este argumenta que a exigência dos 10% constitui
ponto – se expressa nas relações sociais uma barreira para o encaminhamento
entabuladas na Conferência. Diante do de moções, fazendo com que somente
plenário, exercendo um controle quase os movimentos com representatividade
paralisante sobre a mesa coordenadora, nacional controlem a aprovação delas.
estes militantes oferecem um modelo de Na sequência, concordando, um delegado
ação para os demais, que o exercitam ali da Bahia, que não declara a entidade de
como alhures. pertencimento, toma a palavra e propõe
A escala etnográfica que, na proposta, substitua-se a expressão
“delegados credenciados” por “delegados
Quarta-feira, 20 de novembro de presentes no plenário”. E emenda que,
2013 – plenária para a aprovação do por vezes, os delegados credenciados
regimento interno da 5ª Conferência vão a Brasília para “fazer turismo” e não
Nacional das Cidades. Cerca de 2/3 dos comparecem aos plenários e ao que grande
assentos do Auditório Planalto do Centro parte dos presentes no auditório responde
de Convenções Ulisses Guimarães (cuja com vaias. A mesa argumenta que sua
capacidade máxima é de 983 pessoas) se proposta não facilitaria o encaminhamento
encontram ocupados. Chego ao plenário de moções, já que as assinaturas não
em pleno andamento dos trabalhos. A são recolhidas apenas no plenário, mas
discussão em pauta se refere ao horário de em diversos espaços. Um delegado
credenciamento dos delegados. A proposta representante do poder público municipal
registrada no regimento determina que o do Pará toma a palavra e apresenta a defesa
credenciamento dos titulares será até as do percentual de 1%. Outro delegado, este
18h00min do segundo dia do evento. No da CMP, defende a manutenção do texto
entanto, alguém do plenário encaminha original. E argumenta que o percentual
uma proposta de redução do teto, segundo de 1% não garante representatividade
a qual o credenciamento dos titulares dos documentos. Entra-se em regime de
encerrar-se-ia às 14h00min. A mesa votação e a manutenção do percentual de
pergunta se alguém defende a manutenção 10% é aprovada.
do texto original sem que ninguém se O plenário é encerrado com a
manifeste. Um delegado, representante do aprovação do regimento da V CNC. Antes,
poder público estadual de Mato Grosso, porém, que todos se retirem do auditório,
faz a defesa da proposta de redução do uma delegada da UNMP toma a palavra:
horário. Por fim, entra-se em regime de
votação, quando o plenário delibera pela Companheiros, a gente tem uma
manutenção do teto original. denúncia a fazer aqui. O Ministério das
Segue-se a votação de outro Cidades está tratando os delegados dos
destaque apresentado por uma delegada movimentos populares pessimamente.
A alimentação está precária, não tem
do movimento popular de Vila Velha, ES,
horáriocerto,nãotemônibuspraconduzir
referente ao artigo do regimento que a gente até o centro de convenções e até
determina o seguinte: “As moções serão o hotel. Nós queremos denunciar aqui,
levadas a plenário mediante a assinatura neste primeiro plenário, este tratamento
39
Enfoques Vol.1, n.14.
do Ministério das Cidades para que a Única dos Trabalhadores (CUT) de São
situação seja resolvida. Senão nós Paulo, comentando a denúncia da UNMP,
vamos escrever uma moção de repúdio referente aos problemas com hospedagem,
ao Ministério das Cidades para entregar transporte e alimentação. Ele confirma as
à Dilma.
denúncias:
Seguem-se aplausos acalorados de Nós chegamos ao aeroporto e a
todo o plenário. Uma mulher, sentada coordenação da conferência nos
no assento atrás de mim, vestida com uma recepcionou e levou para o hotel. Os
camisa do MNLM, faz alguns comentários hotéis foram divididos por segmento,
acerca de militantes em um hotel. segmento de luta por moradia ficaram
todos no mesmo hotel, movimentos de
Aqui é o lugar certo pra denunciar. trabalhadores ficaram em outro, cada
O responsável por esta situação é o segmento ficou num lugar. Tudo definido
Ministério das Cidades, mas lá no hotel pela organização da conferência. Mas
os representantes dos movimentos quando a gente chegou no hotel que
populares estavam tratando mal os ficou com os delegados representantes
funcionários do hotel. Aí teve um dos trabalhadores não tinha mais vaga.
funcionário que virou pra eles e disse: Aí falaram pra gente almoçar e fazer o
“nós também somos trabalhadores credenciamento e nos mandaram pra
como vocês”. Aí teve um militante que outro hotel. Eu nem fui ainda pro outro
respondeu: “você é trabalhador pelego”. hotel que me mandaram. Acabei de
Esses são os revolucionários de merda fazer o credenciamento agora e perdi
que tem aqui. a primeira plenária. Só vou pro hotel
depois da cerimônia de abertura.
O episódio introduz a pergunta
central deste artigo: há algum princípio Perguntei diretamente qual era a
ordenador que nos permita formular uma opinião dele a respeito da relação entre
interpretação unificada das distintas os movimentos sociais ali presentes e os
relações conflituosas que testemunhamos governos em suas três esferas. Segue-se
aqui (os conflitos entre movimentos sociais sua resposta:
e Ministério das Cidades; entre militantes
destes movimentos e os trabalhadores Em São Paulo os movimentos de luta
do hotel; e, finalmente, entre os próprios por moradia buscam dialogar com
o governo, com o Fernando Haddad
militantes – entre a delegada que fez a
e com a Dilma, mas resguardando
denúncia e a que formulou os comentários autonomia. A estratégia lá tem sido
críticos sobre os “revolucionários de ocupar os imóveis vazios no centro para
merda”)? A hipótese aventada é de que pressionar para que os trabalhadores
o próprio pré-requisito fundamental da retornem pro centro da cidade, de onde
formação de um militante, qual seja, a eles foram expulsos historicamente.
formação do senso crítico, se converte
frequentemente num fato social total, Não por acaso o Secretário Geral
investido doravante em todas as situações da Presidência da República, Gilberto
de interação (sejam elas entre militantes, Carvalho, encerrou sua fala, no segundo
entre estes e quaisquer outras pessoas, dia do evento, com as seguintes palavras:
entre entidades dos movimentos sociais, e “Vamos continuar amigos e continuar
entre estes e as várias esferas do Estado). brigando. Porque a briga de vocês é
Ao sair do auditório entabulo essencial pra gente continuar avançando”.
conversa com um militante da Central Esta fala – que poderia ser concebida
40
Enfoques Vol.1, n.14.
como uma formulação nativa do princípio encontra-se ocupado, em sua maior parte,
antropológico da segmentaridade – por delegados representantes das entidades
sintetiza bem a maneira pela qual alguns CMP, CONAM e MNLM. Em meio à primeira
dos grandes movimentos nacionais que têm exposição de um dos convidados, gritos e
assento no ConCidades, como a CONAM palavras de ordem chegam ao auditório,
e a CMP, caracterizam sua relação com o vindos de fora. O coordenador da mesa,
Governo Federal – em consonância com as representante da Federação Nacional dos
linhas gerais do depoimento do delegado Arquitetos e Urbanistas, interrompe a fala
representante da CUT, acima registrado.3 da expositora e diz: “Companheiros, parece
Quinta-feira, 21 de novembro de que está ocorrendo uma mobilização lá
2013, Painel 2 – plenário para a criação de fora e está vindo pra cá. Vamos aguardar
mecanismos que garantam participação e a chegada dos companheiros”.
controle popular no Sistema Nacional de A UNMP chega em bloco, entoando
Desenvolvimento Urbano. A fala de abertura palavras de ordem: “É a União, é a União,
é proferida por Gilberto Carvalho. Uma é a União que constrói o mutirão”. As
aglomeração de militantes cerca o ministro mulheres da União seguram pompons
quando ele desce da tribuna. O delegado amarelos – cor da UNMP – agitando-os
da UNMP responsável por coordenar enquanto cantam. Todos os militantes da
os trabalhos da mesa toma a palavra: União ocupam lugares do auditório sem,
“companheiros, a contribuição de vocês no entanto, se sentar – fato que obstrui
agora é aqui no plenário, deliberando sobre a visão de parte dos presentes que já
a participação e controle popular. Deixem se encontravam acomodados. Um dos
o ministro Gilberto Carvalho ir trabalhar”. delegados da entidade sobe na balaustrada
Episódios desta natureza se repetem em que separa o plenário da mesa e registra, com
várias conferências nacionais e lançam luz sua câmera filmadora, a chegada de seus
sobre as forças centrípetas investidas nas companheiros, enquanto oblitera a visão
conferências, que aproximam a sociedade de alguns dos presentes. O coordenador
civil organizada dos centros de poder dos trabalhos pede atenção aos recém-
estatal. Os militantes das entidades que chegados que, contudo não param de
participam destes espaços institucionais cantar ainda por um tempo. Por fim, com
parecem ter consciência destas forças sagacidade, ele pede uma salva de palmas
centrípetas e manipulam as possibilidades aos companheiros da União. Somente
de negociação e de visibilização de suas ao cabo das saudações os delegados da
demandas que elas possibilitam. entidade se acomodam e silenciam os
Sexta-feira, 22 de novembro de 2013, cantos. A chegada triunfante da UNMP
Painel 3 – plenário para deliberar sobre a não pareceu levantar nenhuma demanda,
Função Social da propriedade. O painel nenhuma reivindicação específica. O
inicia-se com algumas falas de membros formato de ato público teve por objetivo
convidados da mesa. O Auditório Máster aparente apenas marcar forte posição da
3
Com efeito, um jornal informativo da CMP caracteriza a trajetória da entidade nos seguintes termos:
“O 5º Congresso Nacional da Central dos Movimentos Populares celebrou os 20 anos da entidade, desta-
cando a sua participação fundamental na luta contra o projeto neoliberal, no período de 1994 a 2002, ten-
do sido uma das entidades organizadoras de grandes mobilizações de rua, a exemplo da marcha dos 100
mil em Brasília, dentre outras. Já entre 2003 e 2013, nos governos Lula e Dilma, a conclusão é que a CMP,
em alguns estados, priorizou a participação em espaços institucionais, como as conferências e conselhos”.
41
Enfoques Vol.1, n.14.
da CONAM diz para outro da UNMP: “Se de prioridades. De fato, uma frase muito
você sair da União e vier pra CONAM, vai comum entre os movimentos sociais,
provocar a queda do técnico” – referindo- referida ao latifúndio urbano, é: “quem
se metaforicamente ao presidente da tem a terra domina a política urbana”.
UNMP. Seguem-se uma série de metáforas Daí também resulta o ponto de vista mais
futebolísticas. Diz o militante da União: recente de Maricato sobre a participação
“Mas eu já tô é pendurando as chuteiras, dos movimentos sociais nos conselhos e
visse?” Ao que o outro responde: “tá nada, noutras vias institucionais:
nós estamos montando uma seleção na
Não tem falta, no Brasil, de planos e leis.
CONAM pra você vir jogar com a gente.
Recentemente nós tivemos uma festa
Porque nossa camisa é amarela, mas aqui
de planos diretores que foi a campanha
não é União não, visse? Aqui é CONAM”. dos planos diretores participativos. Eu
Confrontando escalas realmente acho que nós temos que fazer
um balanço disto e parar de acreditar
“Nós vamos retomar a proposta de que planejamento urbano vai passar por
reforma urbana em novas bases”. Assim cima de interesses que são muito fortes
Ermínia Maricato – liderança histórica da luta na produção da cidade. [...] Nós temos
pela reforma urbana e uma das principais que acabar com essa ingenuidade. O
formuladoras do projeto do Ministério das Flávio Villaça escreveu “A ilusão do plano
Cidades (reivindicação dos movimentos diretor” antes da última campanha dos
sociais transformada em realidade, durante planos diretores participativos. Naquela
o governo federal de Luiz Inácio Lula da campanha nós também cometemos o
Silva) – rematou sua participação num erro muito grave que foi de colocar
debate sobre os megaeventos, organizado todo o movimento popular discutindo
plano diretor, discutindo lei, fazendo
pelo Comitê Popular Rio, Copa e Olimpíadas
capacitação de instrumentos técnicos.
no dia 25 de novembro de 2011.4 Em linhas Não é função do movimento popular
gerais, a exposição da urbanista sugeriu achar saídas técnicas e urbanísticas.
que os megaeventos não inauguram uma É função do movimento popular fazer
dinâmica nova nas cidades brasileiras. exigências. E talvez é função de um
Eles apenas intensificam uma “febre” técnico, quando procurado, achar
sempre presente que tem como causador saídas. Durante esse período de tempo,
o grande capital urbano (incorporadoras, desses anos recentes, nós tivemos uma
construtoras, empreiteiras, o latifúndio febre participativa. Tem bibliografia que
urbano,aespeculaçãoimobiliária,aindústria fala que nós tivemos 20 mil conselhos
automobilística). Segundo Maricato, estas participativos; de criança, adolescente,
idosos, saúde, educação, cidades,
seriam as forças que dominam a política
habitação. Isto tudo multiplicado por
urbana no Brasil, a razão pela qual o municípios, estados e governo federal.
Estado brasileiro não tem condições para Mas o que é que aconteceu com as
atender o que os movimentos populares nossas cidades, durante esse período?
urbanos defendem como uma inversão 5
4
Ver <http://www.youtube.com/watch?v=Ctadh7ehMQo>. Acesso em 12 set 2014.
5
A crítica de Maricato vai além ao denunciar a flexibilização da normativa urbanística para atender a
interesses do capital urbano, que é perpetrada no interior de alguns conselhos: “Eu fui convidada para
participar de uma manifestação que era de defesa de uma promotora que foi afastada por um juiz porque
ela queria brecar um projeto francamente ilegal de cinco torres que serão construídas (se o nosso movi-
43
Enfoques Vol.1, n.14.
mento nas ruas não impedir) na fachada do porto de Recife. E a promotora exigiu o impacto ambiental e
paisagístico e o juiz afastou a promotora. E eu conversei com vários funcionários da prefeitura e eles me
disseram que tinham negado o alvará pras cinco torres. E simplesmente eu perguntei: ‘mas como é que foi
aprovado?’ ‘Ah, passou no Conselho de Desenvolvimento Urbano’. Sabe esses conselhos que a gente faz
para [exercer] o controle social sobre o Estado? Simplesmente o Conselho de Desenvolvimento Urbano
aprovou algo ilegal. Porque cinco torres? De trinta, quarenta andares? Num centro histórico de ruas estre-
itas? Como é que faz?” (Fala de Maricato em sua participação no debate acima citado). O desdobramento
das lutas populares contra o projeto Novo Recife (que atualmente prevê a construção não de cinco, mas de
doze torres na zona portuária de Recife), teve seu ponto culminante no movimento “Ocupe Estelita”.
44
Enfoques Vol.1, n.14.
são, por seu turno, bastante complexas e particular. É assim que Guillermo O’Donnell
apenas começam a ser estudadas pelas (1982), em seu estudo comparado entre
ciências sociais, no país (por exemplo, em sociabilidade e política no Brasil e na
Leite Lopes & Heredia, 2014). Mas, ainda Argentina, conclui que este último país
mais complicações para interpretação não teria conseguido constituir um projeto
sociológica trazem os conflitos deflagrados político unificado, diferentemente do Brasil,
entre as entidades dos movimentos em decorrência do caráter mais conflituoso
populares, bem como aqueles que ocorrem das relações sociais argentinas. Uma
no interior mesmo das entidades. comparação contemporânea entre os dois
Estamos aqui em pleno países poderia talvez aventar uma hipótese
cruzamento das escalas etnográficas e contrária à tese de O’Donnell. Seja como
macrossociológicas. E talvez seja este for, a interpretação que o cientista político
exercício mesmo de confrontar escalas argentino elabora sobre seu próprio país
um procedimento heurístico para a não saiu de minha lembrança durante
interpretação das questões em jogo. Em o trabalho de campo na V CNC; como
seu livro Como funciona a democracia: também não saiu o relato de Goldman,
uma teoria etnográfica da política, Marcio sobre a política dos grupos carnavalescos
Goldman (2006) destaca, como um do sul da Bahia.
aspecto central das relações políticas Em suma, e para conferir maior
entre grupos de carnaval do sul da Bahia, a concretude a este confronto de escalas,
segmentaridade – vale dizer, a alternância a pergunta que a observação – inspirada
entre distinção e identificação, de acordo pelos autores mencionados – fez emergir
com a conjuntura política, entre militantes é esta: será útil conceber os microconflitos
de grupos (rivais ou aliados) e mesmo segmentares entre militantes, registrados
de subgrupos no interior de um mesmo pela etnografia, de um lado, e as
grupo. Embora, em termos abstratos, a grandes tensões entre entidades destes
oposição binária entre solidariedade e movimentos, e entre elas e o Estado (em
egoísmo tenda a ser deslocada (mediante suas múltiplas esferas), de outro, como
um balanço do conhecimento etnográfico) dois polos de um contínuo? Na medida
pelo meio termo da solidariedade vicinal mesma em que a segmentaridade – desde
ou parcial – e o dualismo homólogo entre o trabalho pioneiro de Evans-Pritchard, The
cooperação e competição, desarticulado Nuer (1969) – tem como característica a
pelas práticas corporativas (Deleuze, capacidade de borrar as fronteiras6 entre
2001: 32) – no nível empírico parece haver escalas de observação, não seria esta
diferenças substanciais entre o grau de categoria ela mesma uma chave para
segmentaridade em cada sociedade a compreensão das contribuições da
6
Charles Tilly, revendo o postulado segundo o qual a noção de sociedade delimita “uma coisa à parte”,
nota o caráter necessariamente fluido de fronteiras que delimitam unidades sociais em diferentes esca-
las: “To what extent do the boundaries of different kinds of social relations coincide?” (Tilly, 1984: 23). “Yet
these politically reinforced frontiers do not contain all social life. Economic geographers enjoy demonstrat-
ing how different in scale and contour are the units defined by different activities or social relations” (Tilly,
1984: 24). Com efeito, o geógrafo David Harvey não apenas endossa a afirmação de Tilly como enfatiza
os problemas analíticos que podem decorrer de mudanças abruptas de escala (ver Harvey, 2014: 138). A
análise pautada na segmentaridade pode ser um antídoto contra estes problemas, já que ela engloba as
complexidades estruturais que são adicionadas quando passamos de uma escala a outra.
45
Enfoques Vol.1, n.14.
7
Embora a conferência, como venho argumentando, constitua um espaço de interação dos movimen-
tos sociais com a esfera pública repleto de polêmicas e de formas agonísticas de sociabilidade, há, sem
dúvida, também, em sua esfera, alguns grandes acordos (ou pressupostos compartilhados). Poder-se-ia
dizer, algumas “verdades”, sancionadas pelo coletivo, sobre as quais não se admite discussão; aquilo a
que Pierre Bourdieu se refere como doxa – isto é, pressupostos compartilhados que estão fora da esfera
da dúvida. O próprio caráter compulsório da expressão do senso crítico, independente da situação sobre a
qual ele se aplica me parece um destes grandes acordos.
8
Trata-se, segundo me parece, de uma obrigação que emana do coletivo e que constrange a pes-
soa a demonstrar as habilidades e conhecimentos necessários a um militante. Algo como “a expressão
obrigatória dos sentimentos” de que fala Mauss (1979).
46
Enfoques Vol.1, n.14.
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47
Enfoques Vol.1, n.14.
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Tilly, Charles. (1977). From mobilization to revolution. Michigan: Center for Research on
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48
Enfoques Vol.1, n.14.
Resumo
Os recentes processos de mudança social ocorridos em países latino-americanos chamam
a atenção para as limitações do pensamento hegemônico no Ocidente. O envolvimento de
diversos movimentos sociais, como dos indígenas e campesinos, exige uma reconsideração
epistémica ampla. Neste texto, abordo questões relativas às mudanças sociais recentemente
levadas à cabo tendo como corte analítico algumas discussões sobre o que se pode chamar
de pós-colonialismo, decolonialismo e epistemologias do Sul, apontando potencialidades
e limites existentes.
Abstract:
This paper presents a reflection over public sociology, through a study about Michael
Burawoy’s contributions and the main criticisms to this proposal, around the controversy
about the dialogical engagement with the public within civil society. Such reaction within the
academic circles seems to indicate that public sociology can be considered a focal point of
battles over the future of sociology.
Keywords
State; Latin America; Postcolonialism; Decolonialism; Epistemologies of the South.
i
Leonardo Nóbrega da Silva é doutorando em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ). Pesquisador vinculado ao Núcleo de Estudos de
Teoria Social e América Latina (NETSAL/IESP) e ao Núcleo de Pesquisa em Sociologia da Cultura (NUSC/
UFRJ). E-mail: leonobrega.s@gmail.com.
49
Enfoques Vol.1, n.14.
1
Connel (2012: 1).
2
Quijano (2005: 118).
50
Enfoques Vol.1, n.14.
3
O artigo 275 da Constituição do Equador (2008), diz: “El régimen de desarrollo es el conjunto organizado,
sostenible y dinámico de los sistemas económicos, políticos, socio-culturales y ambientales, que garantizan
la realización del buen vivir, del sumak kawsay. El Estado planificará el desarrollo del país para garantizar
el ejercicio de los derechos, la consecución de los objetivos del régimen de desarrollo y los principios
consagrados en la Constitución. La planificación propiciará la equidad social y territorial, promoverá la
concertación, y será participativa, descentralizada, desconcentrada y transparente. El buen vivir requerirá
que las personas, comunidades, pueblos y nacionalidades gocen efectivamente de sus derechos, y ejerzan
responsabilidades en el marco de la interculturalidad, del respeto a sus diversidades, y de la conviven-
cia armónica con la naturaleza”. O artigo 306 da Constitución Política del Estado Plurinacional de Bolivia
(2009), diz:
“I. El modelo económico boliviano es plural, y está orientado a mejorar la calidad de vida y el
vivir bien de todas las bolivianas y los bolivianos.
II. La economía plural está constituida por las siguientes formas de organización económica: la
comunitaria, la estatal y la privada.
52
Enfoques Vol.1, n.14.
III. La economía plural articula las diferentes formas de organización económica sobre los principios
de complementariedad, reciprocidad, solidaridad, redistribución, igualdad, sustentabilidad,
equilibrio, justicia y transparencia. La economía social y comunitaria complementará el interés
individual con el vivir bien colectivo.
IV. Las formas de organización económica reconocidas en esta Constitución podrán constituir
empresas mixtas”. As passagens foram consultadas em Acosta (2010) e nas constituições originais.
4
O artigo 71 da Constituição do Equador (2008), diz: “La naturaleza o Pacha Mama, donde se reproduce
y realiza la vida, tiene derecho a que se respete integralmente su existencia y el mantenimiento y regener-
ación de sus ciclos vitales, estructura, funciones y procesos evolutivos.”
5
É importante notar que a noção de Buen Vivir, posta aqui em oposição à racionalidade ocidental mod-
erna (também identificada como de dominação instrumental da natureza), não se opõe ao pensamento
ocidental clássico, que conta, pelo menos desde Aristóteles, com a perspectiva da “boa vida” no seu hori-
zonte discursivo.
53
Enfoques Vol.1, n.14.
6
Tradução minha do original em espanhol.
7
Para um aprofundamento da questão do Sul global como processo de articulação, bem como a partici-
pação de movimentos estabelecidos no “Norte” neste processo, marcadamente Espanha e Portugal, e de
um perfil emergente do “ativista diaspórico”, ver Cairo y Bringel (2010).
55
Enfoques Vol.1, n.14.
8
Para uma discussão anterior sobre as bases da produção científica, consultar Santos (2003; 2008).
57
Enfoques Vol.1, n.14.
9
Para uma discussão mais detida no pensamento social brasileiro, consultar Maia (2011). Também o
trabalho de Brasil Jr (2013) sobre o processo de “aclimatação” das teorias da modernização em Florestan
Fernandes, no Brasil, e Gino Germani, na Argentina, traz hipóteses promissoras em relação ao lugar da per-
iferia como opção metodológica de análise da própria produção sociológica da metrópole.
59
Enfoques Vol.1, n.14.
10
Fernanda Beigel (2012; 2014), em suas pesquisas recentes, tem se dedicado a compreender as dinâmi-
cas de circulação internacional de conhecimento, tendo em vista as relações entre centro e periferia e
o tema da dependência acadêmica. Os sistemas de indexação dos periódicos científicos, baseados na
mercantilização e especialização, os sistemas de acesso, as referências citadas, os modelos das agências
financiadoras e mesmo a predominância da língua inglesa na comunicação entre pesquisadores marcam
alguns dos pontos centrais da estrutura internacional desigual do conhecimento e a consequente heter-
onomia nos países periféricos ou semiperiféricos.
60
Enfoques Vol.1, n.14.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Acosta, Alberto. (2010). El Buen Vivir en el Camino del post-desarrollo: una lectura desde
la Constitución de Montecristi. Fundación Friedrich Ebert.
Beigel, Fernanda. (2012). The Politics of Academic Autonomy in Latin America: public
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Ciências Sociais (CLAPCS) e os estudos sobre a América Latina no Brasil. In: Dossiê Temático
n.4 – Sociologia Latino-Americana: originalidade e difusão. Rio de Janeiro.
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cultural, internacionalismo solidario e Iberoamérica en la globalización contrahegemónica”.
Geopolítica(s). Revista de Estudios sobre Espacio y Poder, v.1, n.1, p. 41-63.
62
Enfoques Vol.1, n.14.
63
Enfoques Vol.1, n.14.
64
Enfoques Vol.1, n.14.
Resumo
Pretendemos com este texto travar um debate epistemológico sobre o potencial político-
pedagógico presente na memória das lutas sociais que têm como protagonista as classes
populares. Deste modo, as lutas sociais carregam em si uma forma própria de observar,
conhecer e criticar a realidade, que, diferentemente das correntes de pensamento
hegemônicas convencionais, congrega em suas análises razão e experiência empírica,
sensibilidade, objetividade e posicionamento político-ideológico.
Abstract:
We want with this text lock an epistemological debate about political-pedagogical potential
present in memory of social struggles that have as protagonist the popular classes. In this
way the social struggles carry itself a shape to observe, understand and criticize the fact that
unlike conventional, hegemonic currents of thought brings together in its analysis reason
and empirical experience, objectivity and political-ideological positioning.
Keywords
Social struggles and epistemology; Rationality and sensitive experience; Memory and
history.
i
Roberta Lobo é doutora em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e professora
do curso de Licenciatura em Educação do Campo da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFR-
RJ). Pesquisadora do grupo de pesquisa Filosofia e Educação Popular. E-mail: roberta.lobo@gmail.com.
ii
Leandro dos Santos é mestre em Educação pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e
professor do Departamento de Educação e Sociedade do curso de Graduação em Pedagogia da Univer-
sidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Pesquisador do grupo de pesquisa Filosofia e Educação
Popular. E-mail: marxcso@yahoo.com.br.
65
Enfoques Vol.1, n.14.
66
Enfoques Vol.1, n.14.
Para Freud, a noção de uma civilização é bom e mau, útil ou inútil, verdadeiro e
não-repressiva é impossível. A repressão falso, em outras palavras, “torna-se um
das liberdades ou de sua busca dá sujeito consciente, pensante, equipado
origem a um indivíduo autorreprimido para uma racionalidade que lhe é imposta
e a sua “autorrepressão apoia, por seu de fora” (Marcuse, 1981: 34). Esse Ego
turno, os senhores e suas instituições” ordenado realiza sua descarga motora
(Marcuse, 1981: 37). Essa repressão na “alteração apropriada da realidade:
que se acumula feito catástrofe na é convertida em ação” (Marcuse, 1981:
subjetividade humana reduz a ideia de 35). No tempo em que Marcuse está
liberdade, de autonomia e de felicidade refletindo, bem como no momento
do ser autorreprimido ao simples ato de presente essas potencialidades racionais
cotidianamente escapar da infelicidade, são direcionadas para uma ação
do encarceramento ou do sofrimento. reificada, para trabalho alienado, para
a manutenção do sistema mercantil,
Marcuse (1981) concorda de suas instituições e de sua estrutura
parcialmente com Freud. Acredita que de dominação. Entretanto, o mesmo
a formação social atual, regida por Ego ordenado acumula excessivamente
uma forma mercantil que reifica os estímulos contra a própria forma
sujeitos e as relações por ele travada mercantil e, consequentemente contra
reprime o Ego na substituição da luta a sua própria repressão. Recupera,
pela felicidade pela simples luta pela por exemplo, as ideias de liberdade,
existência. Para Marcuse, a repressão autonomia e felicidade ocultas em
inconsequente dos desejos tanto no uma memória distante, porém, sempre
desenvolvimento filogênico, quanto no passível de recuperação (Freud, 1974;
desenvolvimento ontogênico é uma Benjamin, 1994).
característica específica de nosso tempo
histórico marcado pelo capitalismo De acordo com Marcuse (1967:
moderno. Nestes termos, onde Freud vê 4), “as aptidões (intelectuais e materiais)
um tremendo mal-estar instransponível, da sociedade contemporânea são
Marcuse vê um imenso potencial dialético, incomensuravelmente maiores do que
dado que o princípio de realidade, nunca dantes”, no entanto, em vez da
estrutura fundamental da civilização, do liberação do sujeito à filosofia, à arte
mesmo modo que oprime, que reifica de modo geral, à política etc., o que
o Ego, pode contribuir para a sua total se tem é um aumento incomensurável
liberação, pois, com o estabelecimento da repressão e da dominação, ou
da civilização, isto é, com a afirmação seja, todas as aptidões intelectuais
do princípio de realidade o ser humano e materiais servem, na verdade, para
“esforça-se por obter o que é útil e o garantir que os tentáculos da sociedade
que pode ser obtido sem prejuízo para administrada alcancem os lugares e
si próprio e para o seu meio vital. Sob sujeitos em todos os cantos do Planeta.
o princípio de realidade, o ser humano
desenvolve a função da razão: aprende Neste sentido, a emancipação
a examinar a realidade” (Marcuse, 1981: humana é inversamente proporcional à
34). capacidade produtiva da atual forma de
organização social, na medida em que
Este desenvolvimento da razão nosso Ego reificado – que desconhece
permite ao sujeito distinguir entre o que quase que completamente seus instintos
71
Enfoques Vol.1, n.14.
regredir suficientemente até que seja prédios que outrora ocuparam essa
possível perceber e recuperar, ao menos antiga área, nada encontrará, ou,
teoricamente, parte daquilo que fora quando muito, restos escassos, já
deixado, melhor dizendo, “esquecido” que não existem mais. No máximo, as
melhores informações sobre a Roma
pelo caminho, isto é, tudo aquilo que
da era republicana capacitariam-
a sucessão de experiências traumáticas
no apenas a indicar os locais em
que vivemos nos fizeram esquecer. É que os templos e edifícios públicos
bom enfatizar que se trata apenas de daquele período se erguiam. Seu
“esquecimento”, pois em algum lugar da sítio acha-se hoje tomado por ruínas,
nossa psiquê coletiva está armazenada não pelas ruínas deles próprios,
a memória desta tradição crítica de mas pelas restaurações posteriores,
uma Epistemologia das Lutas Sociais, efetuadas após incêndios ou outros
pois, como afirma Freud (1974: 4), tipos de destruição. Também faz-
“no domínio da mente, por sua vez, se necessário que todos esses
o elemento primitivo se mostra tão remanescentes da Roma antiga
estejam mesclados com a confusão
comumente preservado”:
de uma grande metrópole, que
se desenvolveu muito nos últimos
Escolheremos como exemplo a história séculos, a partir da Renascença. Sem
da Cidade Eterna. Os historiadores dúvida, já não há nada mais que
nos dizem que a Roma mais antiga seja antigo, enterrado no solo da
foi a Roma Quadrata, uma povoação cidade ou sob os edifícios modernos.
sediada sobre o Palatino. Seguiu-se Este é o modo como se preserva o
a fase Septimontium, uma federação passado em sítios históricos como
das povoações das diferentes colinas; Roma (Freud, 1974: 4).
depois, veio a cidade limitada pelo
Muro Sérvio e, mais tarde ainda, após
todas as transformações ocorridas O mais interessante é que o pai
durante os períodos da república da psicanálise não vai se contentar em
e dos césares, a cidade que o construir conjecturas somente com a vida
imperador Aureliano cercou com as mental dos indivíduos, mas também com
suas muralhas. Não acompanharemos a história das sociedades, com o intuito
mais as modificações por que a de nos mostrar que, diferentemente da
cidade passou; perguntar-nos-emos, estrutura psíquica, a história guarda suas
porém, o quanto um visitante, que sequências relacionando diretamente
imaginaremos munido do mais
tempo e espaço, sendo necessário
completo conhecimento histórico e
topográfico, ainda pode encontrar,
que se sobreponha sempre uma fase
na Roma de hoje, de tudo que restou à outra, de forma que elas nunca
dessas primeiras etapas. À exceção existam no mesmo tempo e espaço
de umas poucas brechas, verá o simultaneamente. Freud (1974) nos fala
Muro de Aureliano quase intacto. ainda que, com a estrutura mental, a
Em certas partes, poderá encontrar preservação da memória não necessita
seções do Mudo do Sérvio que de uma sobreposição de imagens ou
foram escavadas e trazidas à luz. fases: dependendo do ângulo e da
Se souber bastante – mais do que a posição do observador, todas as imagens
arqueologia atual conhece –, talvez e fases vão estar sempre disponíveis
possa traçar na planta da cidade
à observação. A leitura que Freud
todo o perímetro desse muro e o
contorno da Roma Quadrata. Dos
(1974) faz da história certamente está
73
Enfoques Vol.1, n.14.
1
É importante considerar que para Marcuse (1969) tanto a primeira quanto a segunda forma de violência
estão condicionadas ao desenvolvimento do sistema mercantil, pois em momentos em que a taxa de acu-
mulação permanece estável a violência se manifesta em estado latente, pouco visível, pois são ofuscadas
pelas relações econômicas e alienadas do próprio processo produtivo; em contrapartida, caso a taxa de
acumulação tenha um movimento regressivo, ou seja, o sistema social esteja em um processo de crise e a
violência espiritual seja insuficiente para conter a insatisfação da massa, a violência extraeconômica seria
utilizada de modo mais intenso. Cabe destacar, ainda, que no desenvolvimento histórico do capitalismo os
dois tipos de violência serão utilizados simultaneamente, dependendo de sua vida orgânica.
74
Enfoques Vol.1, n.14.
na ordem do dia como contraponto dor, porém é unindo luta social, memória,
da luta pela sobrevivência e afirmação atividade livre e lúdica que demarca no
da necessidade vital da felicidade e da processo histórico objetivado a busca e
liberdade. Uma epistemologia das lutas a realização de uma razão sensível.
sociais não se abstém da dialética da
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77
Enfoques Vol.1, n.14.
Resumo
O propósito deste artigo é refletir sobre a teoria política feminista, interpretada como
uma teoria social, crítica e reflexiva, desde uma perspectiva pós-colonial — entendida
aqui não apenas em sua crítica epistemológica às formas de produção do conhecimento,
mas também em sua denúncia às assimetrias globais de poder. A análise da forma como
a “cultura” intercepta o debate feminista, ilustrada neste artigo pela obra de autoras
como Susan Okin, Anne Philips e Martha Nussbaum, impõe-se como o fio condutor deste
trabalho, cujo objetivo é tatear as interfaces entre a teoria feminista e a crítica pós-
colonial, percebendo possíveis linhas de continuidade entre o feminismo e a epistemologia
colonialista. Aponta-se para a necessidade de o feminismo problematizar os conceitos, as
categorias e as premissas em torno dos quais ele é construído — como o de “gênero” —,
mister para o qual a crítica pós-colonialista em muito contribui.
Abstract:
The purpose of this article is to reflect on feminism, interpreted as a critical and reflexive social
theory, from a postcolonial perspective – here understood not only as an epistemological
critique of the forms through which knowledge is produced, but also as a denouncement of
the global asymmetries of power. The paper is guided by an analysis of the way in which
“culture” intervenes in the feminist debate, illustrated through the work of authors such as
Susan Okin, Anne Philips and Martha Nussbaum. Its main purpose, therefore, is to grasp the
interfaces between feminist theory and the postcolonial critique, identifying potential lines
of continuity between feminism and colonialist epistemology. It points the need for feminism
to critically question the concepts, categories and premises upon which it is built, such as
“gender”, a requirement to which the postcolonial critique has a lot to add.
Keywords
Political theory; Political philosophy; Feminism; Culture; Postcolonialism.
i
Maria Eduarda Borba Dantas é mestranda em Ciência Política pelo Programa de Pós-Graduação em Ciên-
cia Política da Universidade de Brasília (IPOL/UNB). E-mail: mariaeduarda.borbadantas@gmail.com
78
Enfoques Vol.1, n.14.
1
Veloso, Caetano. “Americanos”. In: Circuladô Ao Vivo. Polygram do Brasil, 1993.
2
Do grego ἀπορία,,a-poros. Significa não caminho, uma rota que não permite passagem. Na filosofia, é um
problema de resolução aparentemente impossível.
3
Em referência ao emprego derrideano da palavra “solicitar”, derivada do latim sollicitare (sollus, “tudo”, e
ciere, “mover, abalar”). Solicitar, assim, significaria “abalar a totalidade”: toda totalidade pode ser total-
mente abalada, mostrando estar fundada, precisamente, naquilo que ela exclui, ignora, trata como impos-
sível. “It is the domination of beings that différance everywhere comes to solicit, in the sense that sollicitare,
in old Latin, means to shake as a whole, to make tremble in entirety” (Derrida, 1982: 21).
80
Enfoques Vol.1, n.14.
81
Enfoques Vol.1, n.14.
estudando como “cultura”, de forma nos permite falar sobre algo bastante
apriorística, como uma maneira de complicado: a diferença. Os problemas
falar sobre as coisas, compreendê-las surgem quando se esquece de que
e lidar com elas. A conclusão que ele essa diferença é construída relacional
tira daí é que a “cultura” não existe e contingentemente, e começa-se a
como um objeto monolítico, apreensível, acreditar que as fronteiras traçadas para
cognoscível, dominável: ela é inventada poder falar de diferenças constatadas
pelo antropólogo quando ele se depara são fixas, imutáveis — esquecemos que
com a diferença; quando ele sofre o elas são somente analogias que usamos
“choque cultural” durante o seu trabalho para falar de coisas, e começamos a
de campo. Desse susto, desse espanto, tomá-las pelas coisas em si.
desse confronto com “O Outro”, o Em O que é a política?, Hannah
antropólogo inventa não só a “cultura” Arendt elabora um raciocínio semelhante,
que ele acredita estar estudando, referindo-se aos “pré-juízos” que
conhecendo, como também a sua própria informam a atividade política — juízos
“cultura”: “antes disso, poder-se-ia dizer, que obliteram o fato de serem juízos e,
ele não tinha nenhuma cultura, já que por isso, são empregados como verdades
a cultura em que crescemos nunca é naturais, evidentes por si mesmas. Ainda
realmente ‘visível’ — é tomada como que nenhuma comunidade política possa
dada, de sorte que suas pressuposições prescindir do pré-juízo para funcionar
são percebidas como autoevidentes” cotidianamente, o perigo residiria na
(Wagner, 2014: 43). circunstância de que, obliterando uma
O trabalho do antropólogo nada parcela do passado — dos juízos que
mais é do que a construção de um foram tomados anteriormente —, o
conjunto de analogias, relações e pré-juízo poderia levar à renúncia da
comparações, levando a cabo um capacidade humana de julgar, tendo por
processo em que duas culturas — a efeito o esquecimento da contingência
dele próprio e a que ele pretende da política — o fato de que as coisas
estudar — são simultaneamente criadas, que são, na superficialidade da política,
“objetificadas”, isto é, tornadas objetos poderiam muito bem ser de outra forma
por ele. Segue daí que algo como (ARENDT, 1997: 52-59).
“cultura” não existe de fato: nesse jogo, Também Nietzsche, valendo-se da
a relação nascida da diferença, cujo metáfora das moedas cuja efígie foi
elo é o próprio antropólogo, é muito apagada pelo uso, fala da verdade como
mais real do que as coisas que ela
um batalhão móvel de metáforas,
pretende relacionar – a “cultura” “A” e
metonímias, antropomorfismos,
a “cultura” “B”; a “cultura” estudada e
enfim, uma soma de relações
a “cultura” do próprio antropólogo. A humanas, que foram enfatizadas
ideia de “cultura” apenas tornou-se a poética e retoricamente, transpostas,
linguagem geral por meio da qual a enfeitadas, e que, após longo uso,
antropologia se comunica. parecem a um povo sólidas, canônicas
A antropologia, portanto, seria o e obrigatórias: as verdades são
estudo do homem “como se a cultura ilusões, das quais se esqueceu que
existisse na qualidade de uma ‘coisa’ o são, metáforas que se tornaram
monolítica” (Wagner, 2014: 52). A ideia gastas e sem força sensível, moedas
de “cultura”, por sua vez, seria uma que perderam sua efígie e agora só
entram em consideração como metal,
espécie de “muleta de pensamento”, que
82
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83
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84
Enfoques Vol.1, n.14.
4
Ver, por exemplo, a extensa discussão de jurisprudências de cortes inglesas e norte-americanas levada a
cabo por Anne Phillips no terceiro capítulo de “Multiculturalism without culture”.
85
Enfoques Vol.1, n.14.
5
“The split vision of the world that relegates non-Western women to a residual category, where fancy more
than fact rules, is a significant error in feminist scholarship as a whole. It can be corrected only if and when
Western feminists are ready and willing to think differently about the variety of modes of being female, in-
cluding their own. They must recognize that knowledge of North African/Third World women is not given all
at once. It is, like knowledge of women in Western societies, a process of sifting the true from the false and
making visible that which remains submerged” (Lazreg, 1988: 100).
87
Enfoques Vol.1, n.14.
89
Enfoques Vol.1, n.14.
theocracies are questions that the label se: “mulheres oprimidas são facilmente
glosses-over” (Lazreg, 1988: 88). ignoradas” — com efeito, algo como a
A materialização dessa “opressão”, “agência” dessas mulheres é também
por sua vez, seria o véu, registrado ora facilmente ignorado, quando alguém
como algo que oprime, encapsula e ativamente a apaga: e é isso que essa
invisibiliza a subjetividade das mulheres, campanha, precisamente, faz.
anulando-as completamente como Seguindo na esteira de Abu-Lughod,
indivíduos, ora, também, como algo seria possível falar desse “feminismo
de sensual e de misterioso, quase colonial” enquanto uma preocupação
fetichizado, que esconde alguma coisa. seletiva em torno de determinadas formas
de opressão das mulheres, servindo a
Historically, of course, the veil has
propósitos colonialistas, mas que não
held an obsessive interest for many
está, em momento algum, efetivamente
a writer. In 1829, for example, Charles
Forster wrote Mohammetanism comprometido com a questão do
Unveiled, and Frantz Fanon, the empoderamento dessas mulheres. A
revolutionary, wrote in 1967 about obsessão em torno do véu é precisamente
Algerian women under the caption: isso — uma preocupação que, ademais,
“Algeria Unveiled”. Even angry apaga completamente a pluralidade de
responses to this abusive imagery significados e de variedades que essa
could not escape its attraction as vestimenta tem: “one cannot reduce
when a Moroccan feminist titled the diverse situations and attitudes of
her book: Beyond the Veil. The millions of Muslim women to a single
persistence of the veil as a symbol
item of clothing. And we should not
that essentially stands for women
underestimate the ways that veiling has
illustrates the difficulty researches
have in dealing with a reality with entered political contests across the
which they are unfamiliar. It also world ” (Abu-Lughod, 2013: 40).
reveals an attitude of mistrust. A Certamente, nem toda mulher
viel is a hiding device; it arouses que usa véu estará usando uma burqa,
suspicion (Lazreg, 1988: 85). e nem toda mulher que usa uma burqa
— ou um niqab, um hijab, um khimar,
Exemplos impressionantes desse um chador — estará sendo obrigada
poderoso simbolismo conferido ao ou compelida a fazê-lo — pelo menos
véu são abundantes. Abu-Lughod, por não em um sentido distinto do que se
exemplo, narra que na Argélia sob o pode dizer que uma mulher “ocidental”
domínio francês, o governo colonial se sente compelida a pintar as unhas,
organizava eventos públicos em que a passar batom ou a depilar-se (Wolf,
mulheres argelinas, vestidas com 1992). O problema, claro, estaria em
roupas tradicionais, eram solene e assumir que a mulher ocidental é livre,
cerimoniosamente “desveladas” por autônoma e produz individualmente as
mulheres francesas (Abu-Lughod, 2013: suas próprias preferências, enquanto
33). A autora também se reporta a uma a mulher muçulmana é oprimida e
campanha publicitária veiculada pela subjugada pela sua própria cultura —
ONG alemã International Human Rights, isso até Phillips, como vimos, percebe
em 2011, na qual a imagem de uma claramente, e mesmo Nussbaum chegou
mulher trajando uma burqa confundia-se a publicar artigos no New York Times,
com sacos de lixo azuis colocados ao quando países na Europa consideravam
fundo (Fakhraie, 2011). Na legenda, lia- editar leis banindo o uso de burqas,
90
Enfoques Vol.1, n.14.
6
Disponível em: <http://www.johnstonsarchive.net/terrorism/bush911e.htm>. Acesso em 23/11/2014.
7
Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/en/b/bc/Bibi_Aisha_Cover_of_Time.jpg>. Acesso
em 23/11/2014.
92
Enfoques Vol.1, n.14.
classifica e interpreta o mundo e que, that it itself constructs has the ironic
por si sós, são parte da razão pela qual consequence that feminist goals risk
o “Resto” se encontra na posição de failure by refusing to take account of
subalternidade — o próprio raciocínio the constitutive powers of their own
representational claims. (...) Perhaps,
marginal reproduz e perpetua as causas
paradoxically, “representation” will be
da sua marginalidade.
shown to make sense for feminism
É essa a crítica feita por Paul Gilroy only when the subject of “women”
à aderência à ideia de “nacionalidade”, is nowhere presumed (Butler, 2006:
ou de “identidade nacional”, que ele 6-8).
identifica em movimentos de resistência
negros como os Panteras Negras ou o Não há saída possível — daí a a/
Pan-Africanismo e que o leva a introduzir poria; “there is no position outside this
o conceito de “Black Atlantic”, em grande field, but only a critical genealogy of its
medida, como uma leitura alternativa da own legitimating practices” (Butler, 2006:
modernidade, uma contraepistemologia 7). Talvez por isso, também, chegue
que nos permitiria chegar a categorias Spivak à conclusão da impraticabilidade
de pensamento mais adequadas à de fala do subalterno: “não há nenhum
compreensão das formas de resistência espaço a partir do qual o sujeito
e de acomodação da “cultura” negra subalterno sexuado possa falar” (Spivak,
— daí o título do primeiro capítulo 2010: 121) — e, na impossibilidade de
do seu livro: The Black Atlantic as a o intelectual representá-lo (no sentido
Counterculture of Modernity. É parecida, de vertreten), já que isso implicaria uma
também, a crítica desenvolvida por apropriação do Outro por assimilação,
Sara Suleri aos movimentos feministas Spivak acata a sugestão de Derrida, o
negros e à constrição que lhes parece qual, em vez de invocar que “se deixe
impingir o próprio conceito de “raça”, os outros falarem por si mesmos”, “faz
o que a leva a, controversamente, um ‘apelo’ ou ‘chamado’ ao ‘quase outro’
afirmar que “its feminism is necessarily (tout-autre, em oposição a um outro
skin deep in that the pigment of its autoconsolidado), para ‘tornar delirante
imagination cannot break of a strictly aquela voz interior que é a voz do outro
biological reading of race” (Suleri, 1992: em nós’” (p. 83).
765). É essa, igualmente, a crítica feita O que a crítica feminista, assim
pela teoria queer ao feminismo e à sua como a pós-colonialista, pode fazer
recepção, muitas vezes inquestionada, da com mais coerência é, justamente,
categoria do “gênero” e dos binarismos tentar tatear as aporias que envolvem
que ele implica, o que motiva Butler a os discursos, as práticas e as
argumentar que categorias analíticas em que o mundo,
as sociedades e elas próprias estão
the suggestion that feminism can seek envoltas. Quando nos deparamos com
wider representation for a subject
os excessos que a archia excluiu —
8
“(...) the excesses and the limitations that marginal discourses must inevitably accrue, even as they seek to
map the ultimate obsolescence of the dichotomy between margin and center. For until the participants in
marginal discourses learn how best to critique the intellectual errors that inebitably accompany the pro-
visional discursivity of the margin, the monolithic and untheorized identity of the center will always be on
them” (Suleri, 1992: 757).
94
Enfoques Vol.1, n.14.
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97
Enfoques Vol.1, n.14.
Resumo
A ciência “ocidental” construiu o privilégio de “deslocalizar” seu pensamento para
fazê-lo passar por universal, objetivo e neutro. Neste artigo, parte-se do pressuposto
contrário, de que não existe pensamento que não esteja ligado a condições históricas
e sociais particulares. Busca-se, dessa forma, analisar criticamente a manutenção
do paradigma científico cartesiano nas relações internacionais (RI) e desmistificar
a persistência desse “Norte” epistemológico e político na disciplina. Postula-se, por
fim, a necessidade de uma leitura hermenêutica sobre aquela que seria uma política
descritiva do mundo – dos “vencedores” –, ao mesmo tempo que se problematiza a
intenção de “dar voz” aos subalternos.
Palavras chave: relações internacionais; pensamento descolonial; eurocentrismo;
hermenêutica; movimento Occupy.
Abstract:
Western science has constructed the privilege to “delocalize” its own thought in
order to render it supposedly universal, objective and neutral. This article takes the
opposite assumption, i.e., it assumes that there is no thought which is not connected
to particular historical and social conditions. The article aims to critically analyze
the persistence of this Cartesian scientific paradigm in International Relations (IR)
and tries to demystify the persistence of this epistemological and political guiding
principle in the discipline. Finally, it postulates the need for a hermeneutic reading
about what might constitute a descriptive version of the World, from the “winners”
point of view. It also critically questions the intention to “give voice” to the subalterns.
Keywords
International Relations; Decolonial Thinking; Eurocentrism; Hermeneutics; Occupy
movement
i
Alexandre Marques da Fonseca é graduado em Línguas e Relações Internacionais (FL-UP), Mestrado 1º
ano em Línguas Estrangeiras Aplicadas (Univ. Rouen) e 2º ano História do Pensamento Político (ENS de
Lyon); Doutorando do CES - Universidade de Coimbra. E-mail alexandremarquesfonseca@gmail.com.
98
Enfoques Vol.1, n.14.
1
O autor gostaria de agradecer os comentários e a revisão de Marta Araújo e de Igor Fonseca, bem como
dos dois pareceristas anônimos deste artigo.
2
Tal expressão se apoia em Self (2014), que define essa classe como tendo “connections to each other [...]
more significant than their ties to their home nations and governments. Forums such as [the one] at Davos
are where these hyper-elites [...] become a class without a country: the new global leadership. This bloc is
composed of the transnational corporations and financial institutions, the elites that manage the suprana-
tional economic planning agencies, major forces in the dominant political parties, media conglomerates and
technocratic elites and state managers [...] but the core membership is businessmen […]. What makes this
class different from the traditional ruling class in previous epochs is that the interests of its members are [...]
globally linked, rather than exclusively local and national in origin”.
3
Essa distinção se refere, nesse caso, exclusivamente à intervenção do poder estatal e à utilização do
dinheiro público, em particular depois da crise financeira de 2008, para “salvar” bancos privados, e à apli-
cação de medidas de austeridade para a maioria das populações. Por exemplo, como afirma Owen Jones
(2014), na Grã-Bretanha, “social security for the poor is shredded, stripped away, made ever more condi-
tional. But welfare for large corporations and wealthy individuals is doled out like never before”.
99
Enfoques Vol.1, n.14.
4
A referência ao movimento Occupy (ou a outros, como dos Indignados) serve aqui a dois propósitos que,
embora diferentes, se conjugam: o primeiro é a ligação com o próprio percurso intelectual que percorri –
desde uma perspectiva crítica “eurocentrada” à descolonial; o segundo é procurar perceber de que forma
esses diferentes entendimentos enviesaram minha visão e também a visão das relações internacionais.
Essa compreensão me parece fundamental para começar a “desocupar” as relações internacionais.
5
No original: “[...] when viewed from another position – such as that of Eastern European – it would seem
that OWS has been speaking in our name, but not necessarily for us” (grifo do original). Todas as traduções
para o português são de minha responsabilidade.
6
Um dos principais slogans e, ao mesmo tempo, reivindicações do movimento Occupy que Gagyi, entre
outros, problematizaram. De forma muito curta, essa autodesignação incorre em vícios similares a outras
designações “superabrangentes”, como a de “povo”.
7
Por “imperialista” entende-se, nesse contexto, uma atitude intelectual e simbólica – que decorre e simul-
taneamente (re)produz uma dominação econômica e social – sobretudo da parte dos intelectuais he-
gemônicos (localizados majoritariamente na Europa ou nos Estados Unidos) que, acreditando ou querendo
fazer acreditar que falam pelo mundo inteiro, ignoram e apagam voluntariamente outros povos, teorias,
modos de saber ou experiências (Maldonado-Torres, 2004: 32).
100
Enfoques Vol.1, n.14.
8
Agradeço a reformulação deste parágrafo a Marta Araújo.
9
Essas expressões de autoanálise, embora pareçam afastar o texto de uma “análise científica da reali-
dade”, como referiu um dos pareceristas, são aqui apresentadas exatamente para reforçar um dos pontos
principais da teoria descolonial (e deste artigo): o de que não existe uma teoria ou um teórico sem “territo-
rialidade”, sem uma experiência de vida particular e única, que dificilmente pode ser universalizada, como
se constrói o discurso científico, a partir do Discurso do método, de Descartes. As tensões, hesitações,
dúvidas ou interesses devem ser transparentes e tão expostas quanto possível.
101
Enfoques Vol.1, n.14.
clamam que vai fazer uma diferença criticam o colonialismo, sem abrir mão
enorme se um ou outro ganhar, mas no das categorias europeias”? (Grosfoguel,
fundo são todos o mesmo. Basicamente, 2012 apud Rosa, 2014: 52).
somos nós contra eles.”10 Essa é a primeira denúncia
O que Zinn clama é que não existe a fazer, seguindo o conselho de
um discurso que seja “universal”. O que Grosfoguel. É necessário reconhecer
existem são “posições” e movimentos que “o colonialismo enquanto relação
fluidos e em constante mudança, é socioeconômica sobreviveu ao
certo, mas também localizados. Se talvez colonialismo enquanto relação política”
seja claro quem são “eles”, é com a (Santos, 2004 apud Pureza & Cravo,
mesma facilidade que definimos o “nós”, 2005: 9). Contudo, não será necessário
os 99%? Vivemos todos em condições igualmente evitar categorizações e
similares de opressão? Quantos de prescrições “eurocêntricas” que mantêm
“nós” se identificam ou pretenderiam intacto um privilégio epistêmico?
ser parte de “eles”? O que é relevante Simplificando a questão, será que a
para o “eu” o é também para alguém solução para todos os problemas são
do outro lado do mundo? “democracia”, “mercado livre” e uma
São talvez demasiadas e complexas “sociedade civil forte”? Ou, conforme
perguntas, portanto definamos o “objeto” pergunta Mignolo (2009: 20),
em questão. O objeto em análise são
pode-se argumentar que existem
os “eles” metafóricos de que Zinn fala.
“corpos” ou “regiões” que precisam
Em vez de estudar o “subalterno”,
de ser guiados por “corpos”
reconhecendo não só os problemas ou “regiões” desenvolvidas que
dessa denominação mas também do chegaram lá primeiro e sabem
próprio ato, pretende-se estudar, criticar como fazê-lo. Como um liberal
e denunciar as estruturas de poder honesto, reconhecer-se-ia que não
globais (Mato, 2000), nomeadamente as se quer “impor” o conhecimento e
que se refletem nas RI. experiência, mas “trabalhar com os
Evita-se – ou procura-se evitar locais”. O problema é: que agenda
–, assim, falar pelo “outro”, alertados, vai ser implementada: a sua ou a
entre outros, por Spivak (1988) do papel deles?11
nefasto de intelectuais europeus que,
Essa é uma reflexão essencial para
embora críticos, falam por e sobre esse
qualquer militante comprometido, um
“outro” subalternizado. Precisamente por
“liberal honesto”, membro dos 99%, mas
isso e localizando(-me) – física e, muitas
também para quem estuda e investiga
vezes, intelectualmente – na Europa,
as RI. Então, procedendo novamente
como evitar o papel de “esquerda branca
de forma negativa, rejeita-se a ideia
[...], intelectuais do Sul e do Norte que
10
No original: “Nixon and Brezhnev have much more in common with one another than we have with Nixon
[…]. It’s like the Republican and Democratic parties, who claim that it’s going to make a terrible difference if
one or the other wins, yet they are all the same. Basically, it is us against them.”
11
No original: “You can […] argue that there are “bodies” and “regions” in need of guidance from developed
“bodies” and “regions” that got there first and know how to do it. As an honest liberal, you would recognize
that you do not want to “impose” your knowledge and experience but to “work with the locals”. The prob-
lem is, what agenda will be implemented, yours or theirs?”
102
Enfoques Vol.1, n.14.
de que existe um “Ocidente” e que ele desse fato; os não ocidentais nunca
é não um lugar, mas sim um projeto esquecem”12 (1997: 51, grifo meu).13
político (Glissant apud Trouillot, 2011: Finalmente, ligado a essas duas
83), com todos os aparelhos teóricos “verdades” ocidentais, entende-se a
e ideológicos próprios (“modernidade”, história não como uma “sequência de
“progresso”, entre outros), um projeto eventos, mas como um modo holístico
político forjado a armas, aniquilação e de pensar o mundo” (Cox, 2010: 5) e,
violência, mas também fruto de uma sobretudo, como objeto de disputa, de
“dominação simbólica” (Kibler, 2010), à revisões e de revisionismos políticos.
qual retornaremos. Procurando oferecer A bem dizer, uma história “factual”
uma tentativa de resposta ao motivo e “objetiva” não poderia deixar de
da dominação do Ocidente, nego duas considerar o “Ocidente” o único agente
“verdades” do discurso ocidental: a no mundo com o poder e a capacidade
primeira é que a expansão ocidental de manter todo o globo sob sua alçada,
decorreu de sua superioridade “natural” não deixando nenhuma margem de
e imanente, e não de uma violência tanto manobra aos “outros”.
física quanto simbólica; a segunda é que Nesse ponto, torna-se essencial
a pobreza e o “subdesenvolvimento” são recapitular o conceito de “violência
condições também “naturais” do “não simbólica”, um “processo de submissão
ocidental” (Jones, 2006a) ou “verdade” pelo qual os dominados percebem
igualmente perniciosa, fruto de “erros” a hierarquia social como legítima e
culturais ou da “mentalidade” desses natural” (Kibler, 2010) ou, como Bourdieu
povos (Trouillot, 2010). (1991: 167) refere, citando Weber,
Recorro precisamente a um dos “a domesticação dos dominados”14.
maiores expoentes do “ocidentalismo”, Numerosos exemplos poderiam ser
ideólogo do “choque de civilizações”, citados aqui,15 mas o que importa
Samuel Huntington: “O Ocidente frisar são as continuidades históricas
conquistou o mundo não pela imperialistas entre o pensamento e a
superioridade de suas ideias ou valores visão ocidental dos “outros”.
ou religião (aos quais poucos membros Foi esse pensamento que criou
das outras civilizações se converteram), e reforça hierarquias civilizacionais,
mas graças à sua superioridade distinções binárias, “o orientalismo,
em aplicar violência organizada. Os distingui[u] o sul da Europa de seu
ocidentais se esquecem frequentemente centro (Hegel) e remapeou o mundo em
12
No original: “The West won the world not by the superiority of its ideas or values or religion (to which few
members of other civilizations were converted) but rather by its superiority in applying organized violence.
Westerners often forget this fact; non-Westerners never do.”
13
Do outro lado do espectro geopolítico, Fanon (2002: 86) não diz outra coisa quando se refere à colo-
nização física e mental das potências ocidentais: “Chaque statue, celle de Faidherbe ou de Lyautey, de
Bugeaud ou du sergent Blandan, tous ces conquistadors juchés sur le sol colonial n’arrêtent pas de signifier
une seule et même chose: ‘Nous sommes ici par la force des baïonnettes [...]’.”
14
Não que essa dominação – “material ou simbólica” – não engendre as próprias formas de resistência,
como o próprio Bourdieu reconhece (Wacquant, 1989: 36).
15
Embora seja difícil “provar” esse ponto de forma conclusiva, pensemos, por exemplo, na visão de Hegel
sobre o papel da África como nunca tendo entrado na história e uma declaração substantivamente similar
do ex-presidente francês Nicolas Sarkozy em seu discurso em Dakar (Purtschert, 2010).
103
Enfoques Vol.1, n.14.
16
No original: “IR was formally established in the aftermath of the First World War [...] at the height of im-
perialism, when the European powers were occupying and controlling vast areas of the world through direct
colonial rule. At this time and during the preceding centuries from which IR draws its heritage, a whole set
of profoundly ideological and racist notions were held by the colonizers about the colonized peoples, lands
and histories.”
104
Enfoques Vol.1, n.14.
defender-se, em vez disso, uma forma Mata (2014: 54), “enquanto a coleta e
de “universalismo anglo-saxônico”17 ou a aplicação de dados acontecem nas
afirmar até que as RI são a disciplina colônias, as teorizações são privilégio
global (e, por isso, plural) por excelência. das metrópoles”?19 Por que é que, como
Essa não poderá ser a posição defendida afirma categoricamente Trouillot (1997),
neste texto. Parto, por isso, da mesma a “teoria é feita no centro; a cor vem
pergunta, aparentemente simples, das margens”?
descrita por Stuenkel (2012):
As ciências sociais e humanidades
Qual foi a última vez que um teórico têm ainda de teorizar a experiência
não americano de uma instituição do mundo fora do Atlântico Norte
não americana formulou uma ideia […] a maioria dos humanistas vê a
que mudou a forma como vemos o experiência histórica da maioria da
mundo? (perguntou um participante humanidade como um avatar de
numa conferência dos Think Tanks algo cuja verdadeira face pode ser
de Política Externa do G20). Existe vista apenas naquilo que chamamos
alguma ideia não americana que hoje de Ocidente. A teoria é feita
tenha tido um verdadeiro impacto no centro; a cor vem das margens.
no pensamento global […], como o (TROUILLOT, 1997, grifo meu). 20
choque de civilizações de Samuel
Huntington, o fim da história de Obviamente o domínio militar,
Fukuyama ou o soft power de Joseph cultural e político (e também econômico)
Nye?18 ainda é do “Norte”, nomeadamente dos
Estados Unidos. No entanto, continua
Partilho assim de uma intuição sendo também uma hegemonia
semelhante à de Stuenkel, a de que epistemológica fundamental que faz que
“o campo das relações internacionais a maioria dos temas e das perspectivas
é dominado, como poucas outras venha “americanizada” mesmo quando
disciplinas, por pensadores estado- não está necessariamente ligada a esse
unidenses” (Stuenkel, 2012; Mata, país21 (Stuenkel, 2012):
2014: 32). Antes de interrogar sobre
que possíveis consequências advêm Os brasileiros que queiram estudar a
do “local” onde a teoria é feita, China ou a Índia ainda são obrigados
é importante procurar perceber o a ler livros estado-unidenses […]
sobre como pensar sobre esses
porquê. Por que é que, como refere
17
Tenho consciência da natureza paradoxal desse termo.
18
No original: “When was the last time a non-American thinker based at a non-American institution came
up with an idea that changed the way we see the world? (asked a participant at the G20 Foreign Policy Think
Tanks Summit). Is there any non-American idea that had a true impact on global thinking […], such as Sam-
uel Huntington’s Clash of Civilization, Fukuyama’s End of History, or Joseph Nye’s Soft Power?”
19
Cf. também Mignolo (2009: 1 e 9).
20
No original: “[T]he social sciences and the humanities have yet to theorize the experience of the world
outside the North Atlantic […] most humanists see the historical experience of the majority of humankind
only as an avatar of something of which the true face can be seen only in what we now call the West. Theo-
ry is done at the center; color comes from the margins.”
21
Paradoxalmente ou não, grande parte deste artigo foi realizada recorrendo à consulta de autores
(homens) anglo-saxônicos, enfatizando ainda mais o argumento aqui exposto.
105
Enfoques Vol.1, n.14.
22
No original: “Brazilians who seek to study China or India still need to read US-American books [...] about
how to think about these places. The same is true about global topics such as terrorism and humanitarian
intervention. While the leading India, China or terrorism scholars are no doubt based in the United States,
their analyses are inevitably affected by their geographic location and, as a consequence, by US American
interests.”
23
No original: “Westphilian straitjacket.”
24
No original: “The only game in town.”
25
No original: “The world’s leading academic journals in the field of international relations choose articles
on topics of “global relevance”. Yet what is relevant and what is not greatly differs on whom you ask. While
US-American scholars may believe nuclear proliferation, terrorism and the rise of China are the world’s most
important issues, Africans may care more about infectious diseases, poverty reduction and environmental
degradation. Yet these topics will always certainly seem unappealing to the editors and reviewers of Foreign
Affairs or Foreign Policy.”
106
Enfoques Vol.1, n.14.
26
Um exemplo interessante é a emergência do “direito internacional”, por meio das obras de Hugo Groti-
us, tido como um dos ‘pais fundadores’ da disciplina. O que é ofuscado é o fato de Grotius provavelmente
ter agido “como conselheiro [da ‘Dutch East India Company’]” contra os juristas e interesses portugueses.
Além disso, usou igualmente como precedentes legais a lei costumária marítima asiática (Liu, 2004: 28).
Esse é um dos exemplos paradigmáticos que demonstra como “questões supostamente filosóficas, de-
batidas como universais por toda a Europa e não só, originaram-se [...] em particularidades (e conflitos)
históricos próprios de um universo singular” (Bourdieu & Wacquant, 1999: 41).
27
Essa expressão também se constitui problemática.
28
No original: “Stephen Krasner [...] captured the essence of the present state of theorizing about Inter-
national Relations in the United States: ‘Sure people in Luxemburg have good ideas,’ he said, ‘[…] but who
gives a damn? Luxemburg ain’t hegemonic’.”
107
Enfoques Vol.1, n.14.
29
Expressão usada correntemente e que denota o reforço dos processos globalizantes.
30
Os autores não entendem sua proposição de um “pensamento débil”, no sentido de um pensamento
ineficaz ou desprovido de “força” teórica. Pelo contrário, o “pensamento débil” torna-se “uma teoria (forte)
de enfraquecimento como um sentido interpretativo da história, que se revela como emancipatório [...]. Em
lugar de outro sistema de pensamento, essa luta [emancipatória] deve confiar em um “pensamento dé-
bil”, isto é, na ideia da impossibilidade de ultrapassar a metafísica, ao mesmo tempo que se estabelece a
capacidade de viver sem valores fundadores ou legitimantes” (Vattimo & Zabala, 2011: 96-97).
108
Enfoques Vol.1, n.14.
31
Expressão adaptada por Grosfoguel com base em Quijano (2000).
32
Note-se a persistência da narrativa “evolucionista”.
33
Ao mesmo tempo que se celebrava a “vitória para a liberdade” que se diz ser a queda do Muro de Berlim,
poucos lembraram os muros – visíveis em Melilla e Ceuta, no México e na Palestina – e invisíveis – que
impedem, física, material e intelectualmente a “hiperconexão” da humanidade e permitem a hiperconexão
do capital (o aspecto a que Negri e Hardt se referem).
109
Enfoques Vol.1, n.14.
34
Entendidas aqui como categorias de divisão e definição política, econômica e social, que emergiram
depois da Revolução Francesa e indicam, de modo maniqueísta, para a esquerda um interesse “pela elim-
inação das desigualdades sociais” e, para a direita, a “convicção de que as desigualdades são naturais e
[...] não são elimináveis”, bem como a ideia de que “os homens […] devem submeter-se à lei do darwinismo
social”, isto é, à “seleção [...] entre os indivíduos que podem se desenvolver – ‘os vencedores’ – e os que
podem apenas sobreviver – “os perdedores” (Nogueira da Costa, 2010, grifos do original).
110
Enfoques Vol.1, n.14.
35
No original: “Who is interested in extricating this information? Have the ‘subaltern’ groups asked to be
studied? Who may eventually profit from such knowledge production? [...]. What will the ‘subaltern’ social
groups gain from such knowledge production?”.
36
Para Dussel (2000: 48), “o moderno ego cogito foi precedido mais de um século pelo ego conquiro (eu
conquisto) prático do hispano-lusitano que impôs sua vontade [...] ao índio americano. A conquista do
México foi o primeiro campo do ego moderno. A Europa (Espanha) tinha uma superioridade óbvia sobre
as culturas astecas, maias, incas etc., em particular por suas armas de ferro [...]. A Europa moderna usa,
desde 1492, a conquista da América Latina [...] como trampolim para ganhar ‘vantagem comparativa’
decisiva sobre suas antigas culturas antagônicas (turco-muçulmana etc.). Sua superioridade é, em grande
parte, resultado da acumulação de riqueza, de experiência, conhecimento etc., que vai recolher a partir
da conquista da América Latina”. Não será possível traçar um paralelo com o papel atual do exército
dos Estados Unidos, um dos maiores responsáveis – se não o maior responsável – pelo avanço do
conhecimento e da pesquisa científica intrinsecamente ligada à conquista militar?
37
Reconhecendo, como se disse, que tal categoria não existe realmente, não passando de construção
teórica.
38
Gostaria de agradecer os comentários de uma das pareceristas sobre esta seção em particular e no
que concerne à problemática de estudar “o subalterno” ou estudar as “articulações de poder”. Importa
talvez esclarecer que não se procura rejeitar totalmente a primeira abordagem, tanto quanto se pretende
111
Enfoques Vol.1, n.14.
rejeitar essa categorização (e quem tem a “legitimidade” de fazê-la) e de avançar o argumento que, ao
compreender e “partilhar” os mecanismos dos poderosos, exista a possibilidade (mesmo que ínfima)
não só de inverter a tradicional hierarquia do conhecimento como também de servir a essa dita classe
subalterna.
39
Existe uma vasta literatura sobre a projeção mais “correta” do globo terrestre. A resposta é nenhuma,
visto que a distorção está sempre presente ao “esticar” uma esfera. Então, a discussão passou, por meio
da projeção Gall-Peters, por exemplo, por suas implicações políticas, vista como uma projeção (pró-)
terceiro-mundista. Não pretendo, por falta de espaço, discutir todas as projeções e seu impacto. Todavia,
Roberts, citado em Hall (1992: 9, grifos meus), destaca a projeção de Mercator, que se tornou dominante,
como tendo influenciado uma visão dos europeus de si próprios, (literalmente) no centro do mundo:
“Mercator’s new ‘projection’, first used in a map in 1568 [...] drove home the idea that the land surface
of the globe was naturally grouped about a European centre. So Europe came to stand in some men’s
minds at the centre of the world [...]. It did not often occur to them that you could have centred Mercator’s
projection in, say, China, or even Hawaii, and that Europeans might then have felt very different. The idea
still hangs about, even today. Most people like to think of themselves at the centre of things [...]. Mercator
helped his own civilisation to take what is now called a ‘Eurocentric’ view of the world.” É nesse sentido que
utilizo o exemplo de Mercator, sem pretender afirmar que o alemão tenha propositalmente influenciado o
pensamento eurocêntrico ou negar que sua projeção tenha servido sobretudo para navegações marítimas.
112
Enfoques Vol.1, n.14.
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Aliás, embora esse último uso possa ter sido predominante, serviu inegavelmente não só à conquista
marítima e ao tráfico de população escravizada mas também como consequência (direta ou indireta) a
estabelecer o “norte” geográfico no topo do mundo e a projetar a imagem de certos países e continentes
como “centrais” (dominação simbólica), além de ser um excelente exemplo da conjugação entre ego cogito
e ego conquiro. A projeção de Mercator serve assim como resumo e bom exemplo da tese principal deste
artigo.
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Enfoques Vol.1, n.14.
Resumo
Em A revolução brasileira, Caio Prado Jr. critica a análise do Brasil feita pelos teóricos
marxistas do Partido Comunista Brasileiro (PCB). O autor aponta para o problema de se
fazer uma análise com conceitos produzidos nos centros hegemônicos, pois, por serem
inspirados em outros contextos sócio-históricos, implicam interpretações errôneas das
condições socioeconômicas do país. Importado, o arcabouço teórico-conceitual adotado
se mostrou inadequado à economia e à história brasileiras ao não articular teoria e práxis.
Procura-se, então, discutir brevemente a crítica da utilização pela “periferia” do pensamento
produzido nos “centros” a partir da obra de Caio Prado, mostrando como esta evidencia
os limites epistemológicos da teoria sociológica clássica (no caso, a sociologia marxista
utilizada pela agenda política dos membros do PCB).
Palavras-chave: Geopolítica do conhecimento; Caio Prado Jr.; teoria e práxis; PCB; sociologia
marxista
Abstract
Caio Prado Jr., in A revolução brasileira, criticizes the analysis made of Brazil by Marxist
theorists in the Brazilian Communist Party (PCB). The author points out the problem that
drawing an analysis based on concepts produced in hegemonic centers may result in
erroneous interpretations of the socio-economic conditions of Brazil, due to their being
inspired by different socio-historical contexts. The imported theoretical and conceptual
framework which has been adopted has proved to be inappropriate to the Brazilian
economy and history, with an absence of any connection between theory and praxis.
This paper seeks to briefly review the use by the “outskirts” of the theory produced
in the “centers” based on the work of Caio Prado to show how this highlights the
epistemological limits of the classical sociological theory (in this case Marxist sociology
used by the political agenda of PCB members).
Keywords
Geopolitics of knowledge; Caio Prado Jr.; theory and praxis; Brazilian Communist Party;
Marxist sociology
i
Alexandre Loreto de Mello é mestrando em Sociologia e Antropologia - PPGSA/UFRJ. Email:
almello@hotmail.com
118
Enfoques Vol.1, n.14.
Introdução social.
O presente artigo visa analisar Marcada pela importação de
brevemente, à luz da geopolítica do teorias dos países centrais (Comissão
conhecimento, a crítica feita por Caio Gulbenkian, 1996: 29), a análise da
Prado Jr., em A revolução brasileira institucionalização das ciências sociais
(1966), aos teóricos marxistas do no país revela-se fecunda por meio da
Partido Comunista Brasileiro (PCB)1. obra de Caio Prado Jr. Os primeiros
Em outros termos, busca-se pensar a impulsos, como a tradução de obras
institucionalização das ciências sociais europeias e a elaboração de compêndios
no Brasil, marcada pelos paradigmas por parte de uma pequena elite intelectual
centrais da Europa, como consequência brasileira (Meucci, 2007), aliados a
de uma subjugação bélico-intelectual, questões sociopolíticas (Costa Pinto,
de um imperialismo acadêmico (Alatas, 1949), expõem seu caráter eurocêntrico.
2003: 606). Procura-se, assim, analisar Nesse cenário, há ainda os intelectuais
os limites da imaginação sociológica do PCB que, segundo Prado Jr. (1966),
europeia, uma vez que as teorias aplicaram a teoria marxista à realidade
cristalizadas como cânones – os brasileira sem quaisquer adaptações, o
clássicos (Alexander, 1999: 24) – não que implicou interpretações errôneas
se mostram adequadas e eficazes da realidade socioeconômica do país.
para dar conta de outros panoramas Embora essa produção teórica fosse
sócio-históricos. Segundo Connel, pautada por fins de prática política,
a elaboração de conceitos é uma as análises elaboradas pelos teóricos
reificação da experiência social (2012: do PCB estavam marcadas por um
10), evidenciando que há limites para eurocentrismo epistemológico, uma
sua transnacionalização. vez que se baseavam em conceitos
A institucionalização das ciências elaborados em outra conjuntura sócio-
sociais como disciplinas universitárias, histórica, evidenciando um caráter de
no Brasil, só se deu a partir de 1930,2 dependência acadêmica (Alatas, 2003:
em virtude de esforços individuais de 600).
alguns estudiosos autodidatas da elite A crítica de Prado Jr. evidencia
brasileira (Costa Pinto, 1949: 279). Costa que não houve articulação necessária
Pinto (1949) aponta que as mudanças entre teoria e práxis para uma análise
estruturais pelas quais passava o país, cientificamente adequada da sociedade.
em decorrência da Revolução de 1930, Pretende-se, assim, elaborar aqui uma
propiciaram o panorama para que discussão bibliográfica relacionando sua
ocorresse tal processo. A elite do Brasil crítica à adoção ortodoxa da sociologia
buscava a habilitação de pessoas para marxista pelos teóricos do PCB com
pensar a sociedade de forma científica, a relação acadêmica entre centro e
e não apenas juridicamente. Como periferia como consequências da divisão
relata o autor, esse processo deve ser social do trabalho nas ciências sociais
também objeto de análise sociológica, (Keim, 2008: 30). Será feita uma análise
visto que também é um produto da vida considerando a ótica da dependência
1
Ressalta-se que, até 1960, o nome dessa organização política era Partido Comunista do Brasil.
2
Toma-se esse ano como marco analítico. Para mais informações, ver Costa Pinto (1949) e Meucci (2007).
119
Enfoques Vol.1, n.14.
grande êxodo rural em busca de emprego suas publicações. Alguns anos depois,
nos centros urbanos. Foi nesse contexto, surgiu a revista Brasiliense, que, com
aliado à expansão da consciência inspiração marxista e nacionalista, tratou-
sociológica, que as obras de Karl Marx se de uma publicação político-cultural
e de Friedrich Engels foram traduzidas. independente e crítica em relação às
No entanto, a trajetória da publicação teses do PCB. Foi veiculada pela editora
de suas obras, entre 1930 e 1964, foi Brasiliense, fundada por Prado Jr. em
muito conturbada em decorrência de 1943. Embora a revista tenha parado
elementos como a Segunda Guerra de circular com a implementação da
Mundial e a conjuntura política do ditadura militar em 1964, a editora
Brasil, que envolvia a ilegalidade do continuou publicando livros e difundindo
Partido Comunista Brasileiro (PCB) – o marxismo.
principal difusor das teorias de Marx e Caio Prado Jr. e o Partido Comunista
Engels. Houve ainda grande limitação Brasileiro
de publicações, tanto em termos de
quantidade quanto de títulos. Procurava- Nascido em 1907, de origem
se, em primeira instância, traduzir aristocrática, formado em direito e em
e publicar obras que divulgassem o geografia, Caio Prado Jr. integra o quadro
marxismo, visando a uma propagação dos intelectuais que fizeram parte da
mais imediata de seus ideais. institucionalização das ciências sociais
De acordo com Novais Azevedo no Brasil (Reis, 1999: 1). Estudioso das
(2010: 120), essa pressa e esses teorias marxistas, escreveu na revista
obstáculos influenciaram negativamente Brasiliense, ao longo dos anos 1950,
a interpretação das nuanças da realidade diversos artigos nos quais analisava
brasileira pelos membros do PCB. Até a estrutura político-econômica do
os anos 1960, segundo Costa (2011), a Brasil. Nessa época, os estudos sobre
difusão da literatura de Marx no Brasil a realidade brasileira se pautavam
teve como maior colaborador o PCB, por no desenvolvimento econômico e na
meio de seus aparatos político-culturais possibilidade de reforma nas instituições
como editoras, jornais e revistas. Em políticas. Questionamentos sobre a
sua maioria, as publicações eram de estrutura econômica e o passado
cunho simplificador, caracterizando-se nacional permeavam as interpretações
por resumos cujo foco era a divulgação das questões agrárias do país,
das obras. Cabe ressaltar que, em destacando-se o debate sobre qual teria
geral, todas as traduções eram feitas sido o sistema herdado do colonialismo
da língua francesa ou espanhola, ou (feudalismo ou capitalismo).
seja, eram traduções de traduções. Considerado uma condição
Mesmo com a repressão decorrente intrínseca à elaboração de políticas
da Revolução de 1930, o PCB conseguiu de transformação social, esse debate
manter alguns de seus aparatos político- ocorreu em um momento complicado
culturais, como a revista Espírito Novo, para o Partido Comunista Brasileiro
que contou com a participação de (PCB), pois havia um conflito interno em
diversos intelectuais, entre os quais decorrência da submissão do partido ao
Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral pensamento marxista-leninista inspirado
e Caio Prado Jr. No entanto, com o pela União Soviética. Alegando que
governo Dutra, em 1947, acirrou-se a essa submissão o afastava da realidade
repressão ao comunismo, censurando do país, aqueles que criticavam as
121
Enfoques Vol.1, n.14.
tipo de realidade social, uma vez que meio de suas produções; e, por fim,
foram elaborados em outros panoramas possuir reconhecimento e prestígio por
sócio-históricos. Embora a reflexão sobre suas análises. Dentre esses, destacam-
a realidade social se dê sob condições se aqui o consumo e o prestígio de suas
distintas, os intelectuais da periferia pesquisas, ilustrados neste artigo pelo
estão marcados pelo uso de elementos debate entre Prado Jr. e os teóricos do
do pensamento das metrópoles PCB. Para além da importação teórica,
(Connell, 2012:13) em virtude do caráter a institucionalização das ciências sociais
eurocêntrico da institucionalização das no Brasil foi marcada pela dependência
ciências sociais. Buscou-se, neste artigo, em relação a instituições e ideias que
ilustrar essa questão por meio da influenciaram as agendas de pesquisa.
análise da recepção e da apropriação Influenciaram até os resultados – como
ortodoxa da teoria marxista pelo PCB, bem aponta a crítica de Prado Jr.
criticada por Caio Prado Jr. por não Para definir os países
possibilitar a articulação entre teoria e intelectualmente dominantes, Alatas
práxis. Esse autor elaborou então uma utiliza o termo center – um lugar que
análise do cenário socioeconômico do emana influência (Alatas, 2003: 603). Essa
Brasil partindo da realidade brasileira, hegemonia intelectual é consequência
evidenciando os limites de uma de séculos de dominação político-
dependência epistemológica. econômica, implicando reverberações
Segundo Alatas, podem-se culturais em períodos recentes. Evidencia,
chamar de discurso alternativo críticas portanto, uma relação desigual entre a
ao imperialismo acadêmico (2010: 230). produção científico-social dos países
Esses discursos são produzidos em um centrais em relação aos países do
contexto de dependência acadêmica, que, denominado Terceiro Mundo. O âmago
de acordo com o autor, é um contexto dessa desigualdade se encontra na
análogo à dominação econômica divisão social do trabalho das ciências
colonial. Tem-se em questão, no âmbito sociais, que foi moldado a partir da
das ciências sociais, uma relação em dominação colonial (Alatas, 2003: 606).
que paradigmas de um lugar imperam O fator mais ilustrativo dessa questão
sobre outros (Alatas, 2003: 601). Para é a produção de teorias, feita somente
compreender esse fenômeno, deve-se nos centers, enquanto a periferia se
olhar para a história, para o período de limitou a fazer pesquisas empíricas.
colonização, no qual havia uma educação Isso, para o autor, é um entrave ao
imposta às colônias, desde as missões progresso científico, uma vez que limita
civilizatórias. Se antes a dominação era as pesquisas a análises apriorísticas.
bélico-econômica, atualmente se dá pela Em outros termos, utilizam-se, em
dependência acadêmica, evidenciando realidades distintas daquelas de suas
um neocolonialismo (Alatas, 2003: 602). origens, conceitos, teorias, modelos e
O autor supracitado estabelece métodos produzidos alhures.
alguns critérios para reconhecer os O modelo centro-periferia é
países que exercem a dominação uma boa ferramenta analítica para
acadêmica: produção de dados compreender o processo de produção,
científicos em forma de publicações de difusão, recepção e comunicação das
livros, revistas e artigos; ter alcance ciências sociais em nível global. Keim
mundial de suas produções; influenciar (2008: 23) relata que há uma diferença
o pensamento de outros lugares por
125
Enfoques Vol.1, n.14.
3
A autora cita Ibn Khaldun, que buscava fundar uma ciência da civilização. Para mais informações, ver
Alatas & Sinha (2001).
126
Enfoques Vol.1, n.14.
theory (Maia, 2009: 156). Procurou-se não se limitem a falar somente de Marx,
ressaltar, assim, como essa obra pode Durkheim e Weber, incluindo pensadores
ser lida a partir da geopolítica do não europeus. Esses esforços serão
conhecimento, evidenciando o caráter fecundos se houver uma comunicação
iminente da revolução na teoria social. maior entre os cientistas sociais do
Mais especificamente, as ciências sociais Terceiro Mundo (Alatas, 2003: 609-610).
podem dar voz aos marginalizados, Esta abordagem se mostra
engendrando críticas às estruturas de relevante por evidenciar a camisa de força
poder, possibilitando a democratização do campo da sociologia formada pelos
da teoria, isto é, a produção e a clássicos (Alexander, 1999: 24). Buscou-
circulação de conhecimento social se ressaltar sua presença na sociologia
(Connell, 2012). brasileira com o intuito de questionar os
Para reverter a dependência limites da imaginação sociológica, uma
acadêmica, ou o colonialismo acadêmico, vez que teorias e conceitos cristalizados
Alatas propõe a expansão de estudos como paradigmas não se mostram
teóricos e empíricos sobre o tema. eficientes para realidades diferentes
Esses estudos devem ser difundidos das quais são frutos. Dessa forma, o
no ensino em universidades e por estudo da influência da geopolítica do
meio de publicações em periódicos e conhecimento no Brasil traz à tona a
conferências internacionais. Deve-se necessidade de se partir da realidade
também ir além dos estudos e escrever para chegar à abstração, conjugando,
livros de teoria sociológica clássica que assim, teoria e práxis.
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128
Enfoques Vol.1, n.14.
Resumo
O artigo analisa pressupostos liberais contidos em proposições-chave na discussão
sobre democracia que perpassa autores centrais do pensamento social brasileiro.
Detêm-se em três intérpretes, responsáveis por modos influentes de se analisar a
democracia no Brasil: Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e Florestan
Fernandes. Aponta como uma concepção liberal de democracia orienta as análises
de Buarque e Faoro sobre as heranças ibéricas da nossa política. E argumenta que
Fernandes, num momento inicial da sua trajetória, concebe que a democracia somente
é possível no Brasil com o desenvolvimento concomitante da ordem social competitiva.
O artigo termina por apontar como a apropriação do liberalismo democrático pode
ser simultaneamente o fundamento de críticas sociais progressistas e uma limitação
em termos de perspectivas políticas.
Abstract:
i
Aristeu Portela Júnior é professor assistente do Departamento de Educação da Universidade Federal Rural
de Pernambuco (UFRPE), mestre e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE), e bolsista do CNPq. Integrante do grupo de pesquisa “Sociedade Brasileira Contemporânea: Cultu-
ra, Democracia e Pensamento Social”, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE, e
do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB) da UFRPE. E-mail: aristeu.portela@gmail.com.
129
Enfoques Vol.1, n.14.
conception of democracy guided Buarque’s and Faoro’s analyses of the Iberian legacy
found in Brazilian politics. And it argues that Fernandes, at an early phase of his
career, concludes that democracy is possible in Brazil only with the concomitant
development of competitive social order. The article ends by pointing out how the
appropriation of democratic liberalism may be both the basis for progressive social
criticism and a limitation in terms of political perspectives.
Keywords
Democracy. Liberalism. Patriarchy. Patrimonialism. Development.
1
Importante frisar que não estamos fazendo um estudo exaustivo de suas obras, mas apenas tratando de
aspectos específicos das mesmas, relevantes para o tema em questão. Para outras visões acerca dessa
problemática, ver Ricupero & Ferreira (2005), Rodrigues (2007), Souza, L. (2007).
2
A análise que segue está focada nas suas obras mais influentes – Raízes do Brasil (publicada inicialmente
em 1936 e depois, substantivamente reformulada, em 1948) e Os Donos do Poder (que teve a primeira
edição publicada em 1958 e a segunda, muito ampliada, em 1975). Para uma comparação entre as difer-
entes versões das respectivas obras, ver Waizbort (2011) e Balbino (2002).
131
Enfoques Vol.1, n.14.
134
Enfoques Vol.1, n.14.
3
Na caracterização da “ideologia liberal”, tomamos como guia principal a sistematização de Heywood
(2010). Mas nos servimos também do suporte de Bobbio (2007) e Merquior (1991).
135
Enfoques Vol.1, n.14.
136
Enfoques Vol.1, n.14.
137
Enfoques Vol.1, n.14.
4
É esta a razão pela qual o nosso estudo não se concentra nos arranjos institucionais delimitados pela
tradição liberal para a conformação de um governo democrático. Dado o próprio conjunto de temas tra-
balhados pelos autores aqui analisados, nos interessa menos questões como divisão de poderes e gov-
ernabilidade, por exemplo, e mais o modo como a própria formação da sociedade brasileira dificultaria a
concretização dos pressupostos ideológicos da democracia liberal.
138
Enfoques Vol.1, n.14.
140
Enfoques Vol.1, n.14.
5
Uma “economia capitalista ou de iniciativa privada organizada em linhas mercadológicas” é mesmo uma
das principais características de um regime liberal-democrático, conforme Heywood (2010: 52).
143
Enfoques Vol.1, n.14.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
6
Esse é certamente o caso de Florestan Fernandes, que escapa, em desenvolvimentos posteriores da sua
obra, do horizonte fixado pela incorporação do liberalismo democrático, quando passa a se assumir ex-
plicitamente como socialista (ver. Tótora, 1999; Portela Júnior, 2013).
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145
Enfoques Vol.1, n.14.
146
Enfoques Vol.1, n.14.
Resumo
Com o propósito de compreender a noção de poder no pensamento social árabe-
muçulmano, realiza-se um estudo dos conceitos de umma e assabiya, em diálogo
com Ibn Khaldun (1332-1402), na obra Al-Muqaddimah, e seus interlocutores. Neste
sentido, articulo elementos da narrativa biográfica do profeta Mohammad (Maomé, ou
Muhammad) com o propósito de construir uma sociogênese da umma, unidade político-
social precursora do Império Árabe-Islâmico. Por fim, retorno a Ibn Khaldun e a seu
conceito de assabiya, que tem como propósito designar os laços de solidariedade
advindos do parentesco, comunidades ou nações, traduzido com “espírito de corpo”
ou “solidariedade de grupo”.
Palavras chave: Poder; Política; Islã clássico; Ibn Khaldun; Pensamento social árabe-
muçulmano.
Abstract:
To understand the notion of power in the Arab-Muslim social thought, this research
makes a study of the umma and assabiya concepts in dialogue with Ibn Khaldun
(1332-1402) in Al-Muqaddimah and his interlocutors. For the purpose of building a
sociogenesis of the umma – the political and social unit precursor of the Muslim
Empire –, we introduced the biographical narrative of the Prophet Muhammad (or
Mohammed). Finally, to demonstrate the socio-cultural intermingling of these two
concepts, we return to Ibn Khaldun and his concept of assabiya, which is designated
as bonds of solidarity arising from kinship, communities or nations, translated as
“Spirit of Corps” or “Group Solidarity”.
Keywords: Power; Policy; Classical Islamic philosophy; Ibn Khaldun; Islamic social
thought.
i
Carlos Douglas Martins Pinheiro Filho é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pesquisador vinculado ao Núcleo de
Pesquisas em Sociologia da Cultura (NUSC/UFRJ). Atualmente é professor de Sociologia pela Fundação de
Apoio à Escola Técnica do Estado do Rio de Janeiro (FAETEC), na Escola Técnica Estadual Henrique Lage.
147
Enfoques Vol.1, n.14.
1
Utilizo o conceito de sociogênese inspirado nas obras de Norbert Elias, O processo civilizador,
volumes 1 e 2 (Elias, 1992, 1993), em que define sua abordagem dos processos históricos, com-
preendendo sociogênese e psicogênese como elementos relacionais articulados em um processo
mais amplo de longa duração. A sociogênese, grosso modo, refere-se às mudanças gerais e es-
truturais deste mesmo processo histórico. Assim, Elias estudava um determinado processo civiliza-
tório, europeu, que acabou por influir nos demais, num sentido universal. Porém, destacamos que
compreendemos sua teoria como método, não sendo aplicáveis os mesmos pressupostos relativos
ao processo civilizatório europeu, como descrito por Norbet Elias, como modelo de compreensão
ético para o processo histórico específico da cultura árabe-muçulmana.
148
Enfoques Vol.1, n.14.
levantar elementos para compreender que Jesus era mais que profeta.
o entrelaçamento entre a religião e a (Lawrence, 2008: 27)
comunidade no islã, explorando o viés
sociopolítico do debate. Assim, descreve- Osvaldo Coggiola (2007) em
se como o profeta Mohammad tornou- Islã histórico e islamismo político,
se líder daquela comunidade ao fundar cita Karen Armstrong ao descrever a
a umma, e cujo poder decorre de uma origem do islamismo, dizendo que o
racionalidade política, comunitária e autor relacionou seu nascimento com
suprarreligiosa. mudanças significativas na vida social
Por fim, busca-se descrever dos coraixitas2 da região de Meca.
o conceito de assabiya a partir dos “Especificamente com uma mudança
estudos de Ibn Khaldun (1987) a respeito rápida e dramática de uma vida nômade
da ascensão e queda dos Estados, que nas estepes da Arábia para uma vida
trata de elementos do islã clássico, muito próspera baseada no comércio
outros acontecimentos históricos e da região de Meca” (Coggiola, 2007: 5).
acontecimentos de sua atualidade no O autor comenta que o Islã,
Norte da África. quando Mohammad começou a defini-lo,
recebeu uma variedade de influências,
Os Primórdios do Islã especialmente do Judaísmo e do
Na Meca pré-islâmica, Alá, que Cristianismo, religião com comunidades
significa o Deus em árabe, era mais um crentes na região. Após a queda do
dos 360 ídolos de pedra em torno da reino judeu de Asmoneus, em 37 a.C., e
Ka’ba, onde diversos cultos conviviam uma nova diáspora, os judeus haviam se
conjuntamente. A peregrinação e as sete instalado em toda a Península Arábica.
voltas em torno da Pedra Negra eram Era grande a sua comunidade em Meca
práticas comuns em diversos cultos. e nos arredores. Os cristãos também
eram numerosos na Arábia pré-islâmica
A Ka’ba havia se tornado uma Casa e o Cristianismo havia se espalhado
Sagrada muito frequentada, um lugar
pela península e pela África, onde a
que Abraão partilhava com outros,
com ídolos que representavam
Igreja Copta era forte e o Egito figurava
deuses locais e divindades tribais. como reino cristão.
Dizia-se que esses ídolos possuíam O Islamismo era uma síntese nova,
um poder que rivalizava com o do capaz de transcender e de superar
Deus de Abraão. Algumas pessoas as divisões entre as tribos, unindo os
iam a Meca lançavam dúvidas sobre árabes. Das condições novas de vida
o poder dos ídolos, dizendo que, surgia a necessidade, tanto como a
após Abraão, haviam surgido outros possibilidade, da união dos árabes
profetas, todos proclamando um sobre as divisões tribais. (Coggiola,
deus não presente nos ídolos. Alguns
2007: p. 6)
dos não-partidários dos ídolos eram
os judeus, cujo profeta era Moisés. Citando Armstrong, Coggiola
Outros eram os cristãos, cujo
(2007) apresenta como Mohammad foi
profeta era Jesus, embora alguns
o agente de uma nova espiritualidade
deles fossem mais longe, afirmando
ajustada às suas próprias tradições
2
Os coraixitas foram os integrantes da tribo dominante na cidade de Meca.
149
Enfoques Vol.1, n.14.
que se oferecia aos árabes, mas à sua frente. Disse Gabriel: “Recita!”
que também poderia proporcionar, Mohammad era analfabeto, porém disse
ao mesmo tempo, um conhecimento as palavras sem as ler, saíram de sua
universal para poder comerciar. Neste boca como se fizessem parte dele
sentido, o caráter “multicultural” do (Lawrence, 2008: 28-29).
povo muçulmano é interpretado como Assim se faz a “revelação” de
garantia de sobrevivência comercial, Deus a Mohammad, tornando-o a
adotando a tolerância como forma de última voz a serviço divino. O então
relação com o “outro” e de convívio negociante de Meca se transformará em
com a alteridade (Coggiola, 2007: 6). profeta, centrando-se na pregação do
O surgimento de Mohammad monoteísmo e no discurso da salvação
operou sérias mudanças na vida do juízo final. Sua voz, legitimada pela
cotidiana daquela sociedade. Ele sua experiência visionária da escritura
estava decidido a trilhar uma vida sagrada do “livro-visão”, muda sua vida,
moral ascética, com preces e jejuns, levando-o a pregação em Meca.
procurando uma “doutrina clara para A oralidade é um aspecto de
substituir o caos de divindades e os notória importância, reflexo não apenas
matadouros que eram os sacrifícios de do islã, mas de toda tradição oral pré-
sangue realizados em volta do templo islâmica na qual Mohammad estava
de Meca” (Rogerson, 2004: 101). inserido, fato traduzido no Corão, um
Do Comerciante ao Profeta livro para ser lido em voz alta, com
rimas que imprimem uma determinada
Mohammad era um comerciante entonação, fazendo da fala um canto. A
oriundo de uma família pobre da compreensão do Corão está ancorada
poderosa tribo dos Banu Quraysh ou “no patrimônio de récitas legendárias
coraixitas, força sociopolítica dominante que constituíam o fundo comum da
em Meca. A despeito de sua origem, era poesia árabe” (Bissio, 2012: 133).
órfão de pai e mãe, criado inicialmente Diga-se de passagem, antes de ser
pelo avô e, depois do falecimento um livro escrito, o Corão era um “livro-
deste, pelo tio Abu Talib. Por indicação memória” que o profeta Mohammad
deste tio, começou a trabalhar logo na recitava para sua esposa Khadijah e os
infância com a condução de camelos. primeiros muçulmanos e, depois, para
Amadurecido, casa-se com a viúva toda a comunidade muçulmana, a umma.
Khadija, muitos anos mais velha do Destaco uma elucidativa passagem
que ele, e membro de família de ricos de Bruce Lawrence (2008), recordada
comerciantes mecanos. Desta maneira, da discussão sobre a transformação
Mohammad torna-se um comerciante e do comerciante de vida mundana no
passa a dirigir caravanas. profeta do Islã:
Tinha o costume, como muitos
comerciantes de Meca, dentre eles Tinha de suportar longos períodos
muitos cristãos e judeus, de jejuar e em eu não havia voz interior. Sempre
meditar nas cavernas de Hira, onde que a ouvia, repetia o que escutara
costumava passar o mês sagrado do para que os outros pudessem lembrar
as palavras exatas. Acima de tudo,
Ramadã. A primeira revelação, ocorrida
contava com sua amada [...] esposa
ali enquanto meditava, consiste num Khadijah. Ela se tornou a primeira
diálogo com o anjo Gabriel que ordena muçulmana [...]. (Lawrence, 2008: 31)
que ele recite um pergaminho que surge
150
Enfoques Vol.1, n.14.
3
Cito Muniz Sodré (2009: 84) que, partindo dos estudos de Aristóteles, define: “Hexis é a pos-
sibilidade de instalação da diferença na imposição estaticamente identitária do ethos. O sujeito
se apropria dos costumes herdados e tradicionalmente reproduzidos (portanto, concretamente, da
moral, socialmente condicionada e limitada) com a disposição voluntária e racional de praticar
atos justos e equilibrados dirigidos para um bem, uma virtude, um dever-ser [...]. Satisfaz deste
modo uma exigência propriamente ética [...]”.
151
Enfoques Vol.1, n.14.
4
Parentesco por sanguinidade de linha masculina.
154
Enfoques Vol.1, n.14.
155
Enfoques Vol.1, n.14.
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Rogerson, Barnaby. (2004). O profeta Maomé, uma biografia. Rio de Janeiro: Record.
157
Enfoques Vol.1, n.14.
158
Enfoques Vol.1, n.14.
Resumo
O intuito, neste artigo, é discutir uma organização de caráter neonazista da perspectiva
da teoria dos movimentos sociais. Com base nas contribuições teóricas e empíricas
de Alain Touraine e Sidney Tarrow, a proposta é pensar como essa teoria pode
contribuir para a compreensão da organização neonazista Blood & Honour e como
esta se encaixa nas proposições contemporâneas acerca dos movimentos sociais.
Além disso, são considerados os apontamentos de Axel Honneth acerca das lutas
por reconhecimento em um caso emblemático, no qual a capacidade dos agentes de
se sentirem reconhecidos e estimados depende da desigualdade material e jurídica
entre eles e aqueles a quem se opõem.
Palavras chave: Teoria dos movimentos sociais; neonazismo; luta por reconhecimento;
racismo, violência
Abstract:
The article aims to discuss a neo-Nazi organization from a Social Movement Theory
perspective. Based on the theoretical and empirical contributions provided by Alain
Touraine and Sidney Tarrow, our purpose is to evaluate how such a theory can contribute
to the understanding of the neo-Nazi organization Blood & Honour and how this
organization can be classified according to the contemporary propositions regarding
social movements. Furthermore, we will also consider Axel Honneth’s arguments on
the struggles for recognition in order to understand such an emblematic case, in
which the possibility for the agents to feel recognized and valued depends directly
on the material and legal inequalities between themselves and those they oppose.
Keywords: Power; Policy; Classical Islamic philosophy; Ibn Khaldun; Islamic social
thought.
i
Eric Monné Fraga de Oliveira é mestre em Sociologia e bacharel em Ciências Sociais pela Universidade
Federal Fluminense (UFF) e atualmente é doutorando em Sociologia no Instituto de Estudos Sociais e Políti-
cos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), conduzindo pesquisa independente. E-mail:
ericmfo@hotmail.com.
159
Enfoques Vol.1, n.14.
1
Disponível em <http://www.bloodandhonourworldwide.co.uk>. Acesso em abr. 2015.
2
Desse modo, apresentamos dois tipos de informação: as de primeira mão, obtidas da organ-
ização, sem o uso de intermediários; e as de segunda mão, conseguidas por meio de mediadores.
Com isso, oferecemos mais riqueza e complexidade à análise.
3
O conceito de hooliganismo tem sido intensamente disputado por vertentes divergentes e apre-
senta uma problemática bastante profunda, dada a multiplicidade de formas de uso da violência
física no contexto de futebol que se pretende abarcar em cada análise. Para fins de esclareci-
mento, todavia, optamos por utilizar a definição oferecida por Spaaij (2006: 11): “Hooliganismo
no futebol é definido aqui como a violência competitiva de grupos de fãs de futebol socialmente
organizados, dirigida sobretudo contra grupos de fãs opostos [Football hooliganism is defined here
as the competitive violence of socially organized fan groups in football, principally directed against
opposing fan groups]” (grifo do original).
4
Uma discussão aprofundada sobre o termo “subcultura” pode ser encontrada em Subculture:
the meaning of style (Hebdige, 1991), em Resistance through rituals: youth subcultures in post-war
Britain (Hall & Jefferson, 2004) e em Subcultures: cultural histories and social practice (Gelder,
2007). A fim de não fugir a nosso escopo, de forma resumida, podemos dizer que, com base nas
discussões das três obras citadas, o conceito de subcultura se refere a um sistema de práticas
culturais, crenças, ideologias, rituais e estilos de vida pertencentes a um grupo social – normal-
mente formado exclusiva ou majoritariamente por jovens – que se inclui dentro de uma comuni-
dade cultural maior, mas que procura ativamente se diferenciar desta por meio da contestação de
e da disputa por seus símbolos culturais.
160
Enfoques Vol.1, n.14.
5
De acordo com Andrade (2014), por exemplo, grupos brasileiros como o Valhalla 88 trazem o
foco de seu ódio sobretudo para nordestinos e nortistas migrados para as regiões Sul e Sudeste
do Brasil, além de homossexuais, judeus e comunistas.
6
Sobre as categorias de acusação, ver Velho (2008: 59-60) e Duque (2014).
7
Todas as citações em idioma estrangeiro foram traduzidas por mim. No caso dessa citação,
escolhi traduzir a expressão “a legal term” por “um termo jurídico”, em vez de “um termo legal”,
mesmo sabendo que não são sinônimos perfeitos, por ser uma opção que, sem mudar o sentido
original, oferece mais clareza e fluidez ao texto.
161
Enfoques Vol.1, n.14.
8
Na seção “Home” do site, a organização afirma ter sido fundada para acolher aqueles que lu-
tam por seu povo, “sendo eles racistas de direita, patriotas, nacionalistas ou nacional-socialistas
lutadores da liberdade”. Disponível em <http://www.bloodandhonourworldwide.co.uk/home1.html>.
Acesso em abr. 2015.
9
Disponível em <http://www.holocaust-education.dk/eftertid/nynazisme.asp>. Acesso em 12 abr.
2015.
162
Enfoques Vol.1, n.14.
10
Por questões práticas, cabelos e barbas compridos podem facilmente ser fatores negativos em
lutas físicas: podem se enroscar em lugares inoportunos, atrapalhar a visão e possibilitar puxões
desestabilizadores por parte dos adversários.
11
Segundo Salas (2006), a responsabilidade por isso recai sobre a ação da polícia, dos tribunais
e da imprensa contra esses jovens, cujas ações violentas se intensificaram e passaram a se rel-
acionar cada vez mais com o futebol depois da vitória da seleção inglesa no Mundial de Futebol
de 1966, criando o fenômeno hooligan.
163
Enfoques Vol.1, n.14.
12
Não se deve cometer o equívoco, todavia, de tomar todo grupo skinhead como um grupo de
ideologia neonazista. Em verdade, a maior parte dos grupos skinheads pode ser classificada de
três formas: 1) neonazistas; 2) anarquistas ou comunistas (em suas diversas vertentes), também
chamados de SHARPs, sigla para SkinHeads Against Racial Prejudice, ou seja, skinheads contra o
preconceito racial; e 3) apartidários, embora normalmente descontentes com a ordem política e
econômica atual.
13
Salvo exceção, utilizaremos o termo skinhead para nos referirmos aos skinheads neonazistas.
14
Disponível em <http://www.bloodandhonourworldwide.co.uk/home1.html>. Acesso em 14 abr. 2015.
164
Enfoques Vol.1, n.14.
15
Optamos por salientar a identidade inglesa, apesar da transnacionalidade do grupo, por ter sido
fundado na Inglaterra e ser lá onde se realiza a maior parte de suas operações.
16
Disponível em <http://www.bloodandhonourworldwide.co.uk/magazine/issue42/issue42p_3.html>.
Acesso em 15 abr. 2015.
165
Enfoques Vol.1, n.14.
17
Disponível em várias edições: <http://www.bloodandhonourworldwide.co.uk/magazine/issue42/is-
sue42p_3.html>;
<http://www.bloodandhonourworldwide.co.uk/magazine/issue41/issue41p3.html>;
<http://www.bloodandhonourworldwide.co.uk/magazine/issue19/issue19p02.html>;
<http://www.bloodandhonourworldwide.co.uk/magazine/issue40/issue40p3.html>. Acesso em 15 abr.
2015.
18
Supor que a “autodefesa da raça ariana”, como costuma ser dito pelos sujeitos que participam
dessas organizações, não passa de uma demagogia utilizada por eles é ignorar o sentido que es-
ses grupos têm para os agentes que deles formam parte. Embora reconheçamos que não existam
formas de preconceito racial direcionado à “raça ariana” e que são pessoas e grupos majoritari-
amente brancos que continuam a ocupar as principais posições de dominação, sobretudo no Oci-
dente, não podemos dizer que a crença ideológica da Blood & Honour seja meramente demagógi-
ca. Ao contrário, ela está ancorada em um modo específico de interpretar o mundo, por mais que
exista uma quantidade quase infinita de dados que demonstre a falta de adequação dessa crença
à realidade da dominação étnico-racial.
166
Enfoques Vol.1, n.14.
grupo sem considerar os dois objetivos para a Austrália. Para eles, essa seria a
em conjunto. É preciso interpretar tanto precondição para a Europa “reconstruir
o que o grupo diz quanto o que se diz sua antiga glória”, reafirmando a posição
sobre ele. Nesse caso, uma hipótese de superioridade da raça branca.
não precisa excluir a outra. Para o Para cumprir esse ideal, faz-se
Blood & Honour, o que eles entendem necessário destruir seus inimigos (os
como “defesa da raça ariana” aparece sionistas – designação destinada a
sempre junto ao ataque contra grupos todos os judeus – em sua economia
não arianos, sobretudo imigrantes ou neoliberal supranacional e os migrantes
judeus, ou de orientação política de que chegam à Europa, sobretudo os
esquerda – ataques advindos de uma negros – africanos, afro-caribenhos,
rejeição radical que não permite nenhum jamaicanos, sul-americanos, entre outros
diálogo com os grupos adversários. – e os muçulmanos – tanto os africanos
Sendo assim, o neonazismo em quanto os árabes e asiáticos – mas
geral e o Blood & Honour especificamente também orientais e latinos), os traidores
parecem se encaixar naquilo que Touraine (brancos europeus e americanos com
chama de “antimovimento social”, ou orientação política liberal – os quais são
seja, aquilo que surge “quando um ator vistos como traidores da causa branca
social identifica-se inteiramente com que buscam o lucro imoral do mercado
uma aposta cultural [...] e então rejeita liberal controlado pelos sionistas –
seu adversário como inimigo, traidor ou ou de esquerda, particularmente os
simples obstáculo a eliminar” (1998: 140). mais “radicais”, como anarquistas e
Dessa forma, os antimovimentos sociais comunistas) e seus maiores obstáculos
rompem com qualquer possibilidade (as políticas multiculturais, que incluem
de diálogo ao recusar completamente os estrangeiros nas terras europeias
qualquer legitimidade a seus e que, para o Blood & Honour, têm
adversários. Os skinheads neonazistas como efeito a destruição da identidade
do Blood & Honour constituem um tradicional branca europeia). A área
exemplo concreto dessa situação: do site da organização voltada para
estão completamente identificados citações de seu fundador, Ian Stuart
(ideológica e emocionalmente) com a Donaldson, oferece diversos modelos
proposta neonazista; esta não é uma dessa visão de mundo. Vejamos duas
posição política à qual se possa aderir que se demonstram exemplares:
apenas parcialmente.19 Sua “aposta
[1] Eu não sou o tipo de pessoa
cultural” é, primeiro, em uma Europa
que vai rastejar para um bando de
racial e culturalmente branca, livre de
esquerdistas pacifistas frouxos e
estrangeiros – e, em menor grau, com sionistas de duas caras. Você deve ser
menos importância, tal proposta também honesto para as pessoas em relação
serviria para a América do Norte20 e às suas crenças, especialmente
19
Embora a adoção da estética geralmente utilizada pelos membros desse grupo não precise ser
completa, especialmente entre as mulheres.
20
A maior parte dos skinheads europeus tem uma posição confusa – até para eles – e mesmo
ambígua em relação aos Estados Unidos. Os motivos para essa confusão serão abordados mais
adiante.
167
Enfoques Vol.1, n.14.
21
Disponível em <http://www.bloodandhonourworldwide.co.uk/isd/quotes.html>. Acesso em 15 abr.
2015. Cabe observar que a inicial da palavra “branco” está em maiúscula. No original, o termo
“White man” também encontrava a inicial da palavra “white” em maiúscula. Isso não pareceu erro
de digitação, uma vez que tal ocorrência pode ser vista diversas vezes na página em expressões
como “White man” e “White people”. Acreditamos que esse uso seja a expressão, no uso da lin-
guagem, da crença na superioridade da raça branca.
22
Não é o escopo do presente trabalho discutir o termo globalização, o que, por si só, levaria
a um artigo ou a um livro inteiro, dependendo do motivo da discussão. Para nossos fins, é sufi-
ciente pensarmos a globalização nos termos que propõe Hall em Da diáspora: identidades e me-
diações culturais: uma intensificação ocorrida a partir da década de 1970 de um processo muito
mais antigo, que já havia tomado formas muito distintas, mas que, desde então, é regido sobretu-
do pelo fortalecimento de um sistema econômico em escala global, “no sentido de que sua esfera
de operações é planetária” (Hall, 2003: 56).
23
O editorial da edição n. 43 da revista nos oferece um exemplo: “Se racismo é admitir/ que ex-
iste diversidade racial,/ então você pode me chamar de racista/ e eu estou orgulhoso em sê-lo!/
Isso não tem a ver com odiar as outras raças/ isso tem a ver com amar a sua própria./ Então,
você vê, não existe nada de errado mesmo/ quando é demonstrado orgulho racial”. Disponível em
<www.bloodandhonourworldwide.co.uk/magazine/issue43/issue43p_2.html>. Acesso em 15 abr. 2015.
168
Enfoques Vol.1, n.14.
24
Vale notar, entretanto, que o primeiro álbum da banda, All Skrewed Up, lançado em 1977, não
contém nenhum elemento neonazista: a temática das letras é predominantemente sobre o senti-
mento de rejeição social, o que é perceptível pelos títulos das canções, como “An-Ti-So-Ci-Al”, “I
don’t like you” e “I don’t need your love”.
25
O que aconteceu cinco anos antes da fundação do Blood & Honour.
26
Não parece mera coincidência que o partido tenha alcançado seu auge nas eleições nacionais
gerais nesse mesmo ano. Entretanto, o partido entrou em queda vertiginosa depois dessa data,
demonstrando um tímido novo crescimento a partir de 2001.
27
Essa imagem permanece até os dias atuais aos olhos de boa parte do público que não está de
alguma forma envolvido com o movimento.
169
Enfoques Vol.1, n.14.
National (inspirado no National Front fundou, ainda que tenha bases também
britânico, embora não exista nenhuma na Holanda, na Suécia, na Hungria, em
relação de caráter oficial entre os dois), Portugal, na Nova Zelândia, no Canadá
presidido por Marine Le Pen, a qual e na Austrália. É interessante notar que,
recusa qualquer ligação com os jovens nos dois lugares onde é mais forte,
skinheads, indo contra a recomendação a Hammerskin se liga a elementos
de outros membros do partido. Marine diferentes: nos Estados Unidos, além
Le Pen foi candidata do Front National dos elementos que constituem o
às eleições presidenciais de 2012, na neonazismo na Europa, o ódio aos
França, e chegou a ser cotada para mexicanos e porto-riquenhos (incluindo,
figurar no segundo turno (Sage, 2011), sem dúvida, outros latinos) é um dos
obtendo mais de 6 milhões de votos principais focos mobilizadores de suas
no primeiro turno. Apesar dessa recusa ações. Já na Espanha, a Hammerskin
em aceitar o apoio explícito desses está presente nos estádios de futebol
setores, era inevitável que o Front de alguns dos principais clubes do
National – assim como outros partidos país por meio das chamadas torcidas
da direita nacionalista em outros “ultras”, como a Ultrassur, que apoia o
países europeus – o recebesse, pois Real Madrid Club de Fútbol.28
algumas de suas propostas estão em A relação entre Hammerskin e
acordo com as exigências do Blood Blood & Honour, entretanto, tem um
& Honour, particularmente na questão caráter muito fluido e instável: as duas
da imigração. Salas (2006) nota que, organizações não estão diretamente
na Espanha, partidos e movimentos interconectadas entre si por toda
de extrema-direita recebem apoio dos parte, embora alguns de seus membros
jovens neonazistas durante as eleições mantenham contato em virtude da
e oferecem recursos, especialmente música e da ideologia compartilhada.
financeiros, para que suas associações Em alguns países – na Espanha, por
(incluindo a Blood & Honour) mantenham exemplo –, existe mesmo uma rivalidade
suas atividades. entre as duas organizações (Salas,
Além das ligações extraoficiais 2006). Por outro lado, cabe observar
entre as organizações neonazistas e como exemplo que o site da Hammerskin
alguns partidos políticos de extrema- pôs à venda um DVD, produzido por sua
direita, existem, como o esperado, divisão australiana, a Southern Cross
relações íntimas dessas organizações Hammerskins, em 2007, em conjunto
neonazistas entre si, embora nem com a 9% Productions e a divisão
sempre de caráter oficial. O caso da australiana da Blood & Honour, cujo
Hammerskin, uma das maiores e mais conteúdo é a gravação de um concerto
importantes organizações neonazistas, realizado em homenagem a Ian Stuart
merece destaque por sua força na Donaldson.29 Podemos, portanto,
Espanha e nos Estados Unidos, onde se exemplificar a relação existente entre as
28
Embora haja outras torcidas de futebol ligadas à extrema-direita na Europa, a ligação entre a
Ultrassur e o Real Madrid é a mais evidente.
29
Disponível em <http://i564.photobucket.com/albums/ss90/BloodHonourAustralia/dvd-ad.jpg>. Aces-
so em abr. 2015.
170
Enfoques Vol.1, n.14.
duas organizações por meio destes dois para suas fileiras para poder fazer o
casos paradigmáticos quase opostos: antimovimento crescer e continuar a
rivalidade na Espanha (mesmo que, buscar por oportunidades políticas. Para
eventualmente, existam oportunidades isso, é necessária a mobilização de
de apoio mútuo) e parceria íntima recursos financeiros. A responsabilidade
na Austrália. Nos outros países, essa na realização dessa tarefa recai sobre
relação é menos óbvia, porém varia de as divisões nacionais do antimovimento,
acordo com cada caso, em algum lugar que o fazem sobretudo com a venda
entre os dois exemplos mencionados. de material de veiculação da ideologia
Os outros aliados desse neonazista (revistas, livros, CDs e
antimovimento são essencialmente camisetas de produção independente
associações neonazistas e skinheads ou semi-independente, além de outras
menores, além de pequenas lojas e mercadorias de menos importância)
gravadoras de música destinadas ao e com a realização de shows de
público skinhead neonazista. Dentre elas, música RAC (sigla de Rock Against
podemos destacar Rampage Productions, Communism, embora seu teor atual
Rune & Sword Productions, Final Conflict pareça majoritariamente voltado contra
Store, Dissident Mail-order, American imigrantes e seus descendentes, além
Front, Gesta Bélica e Associazione de judeus), com o apoio de outras
Culturale Veneto Fronte Skinheads – organizações neonazistas.
além da Falange, Democracia Nacional, Quanto às oportunidades de
Alternativa por la Unidad Nacional, que manifestação política, a situação da
não são associadas, mas estão sempre Blood & Honour, assim como de outras
no entorno das divisões espanholas de associações similares, é muito pouco
Blood & Honour e Hammerskin. São definida. A princípio, qualquer mobilização
todas, porém, aliadas menores. Não contrária à sua ideologia se torna uma
tendo êxito em se aliar oficialmente com possibilidade de oportunidade política:
os partidos de extrema-direita,30 que de passeatas do movimento pelos
temem ter sua imagem contaminada, direitos de homossexuais, bissexuais e
nas representações coletivas, pela transexuais às políticas de ação afirmativa
postura violenta dos skinheads, o Blood das populações afrodescendentes e de
& Honour acaba por não conseguir outras minorias, todos esses movimentos
oportunidades políticas no que tange à geram, como efeito colateral indesejado,
arena política estatal. oportunidades para a (re)ação física ou
Dessa forma, o antimovimento ideológica da Blood & Honour. Cada
social neonazista Blood & Honour está autoafirmação dos grupos aos quais
relativamente isolado, pois não pode a Blood & Honour se opõe é tomada
entrar nas vias políticas de fato,31 tendo por eles como tentativa de destruir a
que se restringir à captação de membros identidade branca e a cultura europeia
30
Salas (2006) chega mesmo a defender que os skinheads são manipulados como massa de
manobra por esses partidos.
31
A conduta violenta de seus líderes e sua recusa a participar do jogo político das democracias
liberal-burguesas impedem que entre eles se crie um habitus político profissional. O conceito de
habitus aqui se refere a Bourdieu (1998).
171
Enfoques Vol.1, n.14.
32
Há também referências simbólicas menores, como as divisões Panzer. Além disso, cada asso-
ciação neonazista conta com símbolos próprios. Na Hammerskin, por exemplo, um machado tat-
uado ou em uma camiseta substitui os símbolos do Blood & Honour, mobilizando a identidade
grupal com tanta força quanto a suástica.
173
Enfoques Vol.1, n.14.
33
A nação “é [uma comunidade] imaginada porque até os membros da mais pequena nação nun-
ca conhecerão, nunca encontrarão e nunca ouvirão falar da maioria dos outros membros dessa
mesma nação, mas, ainda assim, na mente de cada um existe a imagem da sua comunhão” (An-
derson, 2005: 25). Nesse contexto, de modo algum dizer que a nação é imaginada poderia implic-
ar que a nação não fosse também real.
34
Assim como ocorre na expressão “afro-americano”, fazendo referência ao país em que se vive
– os Estados Unidos da América – e ao continente de “origem” (real ou simbólica) – a África –,
conforme observou Eyerman (2004).
35
Existe vasta bibliografia sobre esse processo macroeconômico. Sugerimos Harvey (2008).
174
Enfoques Vol.1, n.14.
a uma nova condição histórica, unindo- “os símbolos culturais não estão
as a seu antigo espírito de rejeição automaticamente disponíveis como
da alteridade, pensada sempre como símbolos mobilizadores, mas exigem
algo inferior. Tanto o nazismo original agentes concretos para transformá-
quanto sua versão reformulada partem los em quadros interpretativos de
de um misto de sentimento de falta confronto” – e é precisamente o que
de reconhecimento da superioridade acontece com a Blood & Honour em
imaginada com um conjunto de ideias relação aos antigos símbolos nazistas:
que têm como foco a negação do a organização, por meio dos confrontos
reconhecimento de múltiplas formas de sociopolíticos, manipula e mobiliza
alteridade. esses símbolos para fornecer um
O fato de o nazismo ser, em “quadro interpretativo” de todos os
grande parte, motivado pela crise do elementos que compõem o confronto
liberalismo e pela humilhação imposta à em que se insere. A combinação do
Alemanha com o Tratado de Versalhes, novo quadro interpretativo da xenofobia
além do antigo antissemitismo presente pan-europeia com o antigo quadro do
em diversas populações europeias imaginário nazista, em uma “matriz
(Elias, 1997), junto com todo o contexto cultural” (Tarrow, 2009: 158), produziu
histórico e social em que estava envolvido, um “quadro interpretativo explosivo de
ajuda a explicar aquela que é a maior ação coletiva”, isto é, um quadro que
diferença entre ele e o neonazismo: o possibilitou o surgimento de um novo
caráter transnacional deste, diferente antimovimento social.
do caráter exclusivamente nacional do Em outras palavras, o neonazismo,
nazismo. O neonazismo não é, nem ao por meio de suas organizações
menos em parte, uma resposta alemã supranacionais, mobiliza antigos
a uma humilhação sentida estritamente símbolos nazistas dando-lhes um
no plano nacional: as duas principais novo significado – ainda enraizado no
organizações neonazistas foram criadas significado anterior –, fornecido pelos
por ingleses e por norte-americanos, conflitos sociopolíticos em que seus
respectivamente a Blood & Honour adeptos se encontram, organizando suas
e a Hammerskin. A unidade à qual o experiências de falta de reconhecimento
grupo apela deixou de ser a unidade em torno de uma luta pela negação
pangermânica, passando a mobilizar do reconhecimento e da legitimidade a
diversos níveis: 1) o nível nacional; 2) o seus opositores, em um contexto em que
nível continental-cultural (já que a maior muitos jovens enfrentam um mercado
parte do antimovimento é europeia); e de trabalho extremamente competitivo,
3) o nível étnico-racial. em uma economia que enfrenta crises
Embora utilizem símbolos do periódicas, fazendo que a presença de
passado nazista alemão, o antimovimento trabalhadores estrangeiros seja vista
social neonazista se situa para muito como ameaça à sua sobrevivência
além da Alemanha; esses símbolos são econômica. O neonazismo, por meio de
ressignificados de um contexto nacional organizações como a Blood & Honour,
para o supranacional, de um movimento funciona como uma ponte cognitiva
político – no significado mais tradicional que liga experiências de exclusão
da palavra “política” – para um social e de risco econômico, sentidas
antimovimento social predominantemente individualmente pelos sujeitos, a uma
juvenil. Segundo Tarrow (2009: 157), luta política por reconhecimento dentro
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Não é mera coincidência, portanto, que a maior parte do antimovimento seja composta de
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