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Experiência com LSD

PRIMEIROS PASSOS

No último sábado de agosto de 1962, às 14h30, eu entrava num apartamento da Rua


General Glicério, pela primeira vez. Diante do Dr. Murilo Pereira Gomes ia submeter-me
à experiência da dietilamida do ácido lisérgico. Cinco ou dez minutos depois, já tinha
ingerido três bolinhas coloridas e aguardava. Por quê?
A experiência me seduzia em si mesma, mas certas informações talvez esclareçam
melhor as raízes de minha curiosidade. Quando me dirigia para Laranjeiras o dia estava
tão luminoso, a temperatura tão agradável, as cores tão nítidas, que pensei: hoje não é
vantagem sofrer os efeitos dum psicotrópico. Reparei sobretudo na intensidade
cromática duma flor que não sei se tem o nome de laburno. Na verdade brincava comigo
mesmo: meu desejo de conhecer a conseqüência da droga era profundo - e esse é o
adjetivo preciso para o caso.
Por que profundo? Resumo com a maior economia possível uma série de fatos e
circunstâncias que cobrem um período de mais de 20 anos.
Quando era adolescente e resolvi fazer-me escritor, ou achei que era escritor, comprei
três cadernos: num fui copiando poemas sobre a morte; no outro anotava todos os
trechos que me pareciam pertinentes ao problema do tempo; transcrevia no terceiro
verso e prosa que se referissem à solidão. Tempo, solidão, morte. No way out.
Em vez de sair para o mundo, mesmo que ficasse em casa, eu me fechava num quarto
escuro; mesmo que saísse para a rua, estava confinado a três dimensões depressivas.
Por um motivo ou por outro, eu me negava a própria vida sobre a qual tinha a pretensão
de escrever. Fechando as portas da comunicação do mundo exterior (e também do
interior, quase por uma conseqüência), fadava o meu destino de escritor a uma
frustração cruel. Mas não sabia. Pior que isso, e ignorando ainda mais as conclusões de
minhas três premissas, criava condições intoleráveis a meu destino de homem
simplesmente.
Aos 20 anos de idade, trabalhando numa biblioteca de medicina, dei para ler tratados
sobre a loucura, tóxicos estupefacientes, os únicos que eu podia entender ou que de
certo me interessavam naquela sala. Foi assim que me caiu nas mãos e na alma o
tratado dum médico francês sobre um princípio ativo do qual nunca ouvira falar: o
Anhalonium Lewinii, extraído da raiz dum cacto mexicano chamado peyotl. Falei com
entusiasmo a médicos e leigos sobre o livro. O desconhecimento da mescalina era total.
Obrigando-me ao silêncio até há poucos anos, quando li As portas da percepção de
Aldous Huxley. Dessa vez, com sensacionalismo, o mundo científico e cultural entrou
em contato com a mescalina, tendo sido preciso para isso que um escritor de grande
sedução intelectual experimentasse a droga e transcrevesse suas vivências.
Li com muita curiosidade o livro de Huxley há alguns anos e o reli há poucos dias,
antes de realizar a minha própria experiência. Os pontos que me chamaram mais a
atenção nas duas leituras são sensivelmente diversos: também nós fazemos parte do
texto, e este pode transformar-se à medida que nos transformamos. Atribuo esse meu
deslocamento de foco sobretudo a algumas leituras sobre zen-budismo, feitas
recentemente. Em resumo diria que me sinto muito menos seguro sobre minhas
percepções da realidade do que, por exemplo, há dois anos atrás.
Fisiologicamente, o ácido lisérgico, como a mescalina, inibe a produção de enzimas que
regulam o suprimento de glicose nas células cerebrais. Os sintomas provocados se
devem em essência a essa redução da taxa normal de açúcar de que o cérebro
apresenta constante necessidade.
Aldous Huxley, advertindo que a reação individual, aqui como em tudo o mais, sempre é
de rara importância, faz uma súmula possível dos sintomas gerais de todas as pessoas
que ingerem mescalina: redução da capacidade de lembrar e pensar diretamente;
impressões visuais grandemente intensificadas, o olhar recuperando a inocência da
percepção infantil; diminuição do interesse pelo espaço; o interesse pelo tempo caindo
quase a zero; experiência nos mundos interior e exterior simultânea ou
sucessivamente; o registro de impressões extra-sensoriais não é comum.
Bem, eu estava na sala do apartamento do médico e aguardava com um máximo de
curiosidade mas sem a menor ansiedade. Os primeiros sintomas surgem em geral
depois de uma hora, disse-me o médico. Passado esse tempo, comecei a alimentar
ligeiramente duas desconfianças: quem sabe se o hábito do álcool não me criasse no
organismo uma resistência muito forte à pequena dose ingerida? Quem sabe se o médico
me ministrara uma pílula inócua e estivesse a realizar comigo uma simples experiência
de sugestão?
Pouco depois passei a sentir uma leve pressão no cérebro, entre o couro cabeludo e o
crânio, as mãos e os pés bastante frios. Uma pessoa presente me pergunta se a música
da vitrola me incomoda. Já estava a responder sinceramente que não, quando essa
pessoa se sentou numa cadeira, ocultando-me uma garrafa de cerveja colocada no
assoalho e da qual o sol arrancava reflexos. Notei então que estava sentindo em relação
àquela garrafa um interesse desusado, um interesse aparentemente fora do comum,
embora não muito intenso. Passei a olhar para um cinzeiro de metal, onde também
fulgia a luz solar, e achei que o objeto me parecia mais vivo, mais presente, mais
interiormente luminoso. Era divertido, mas permaneci desconfiado, pois o teor da
experiência não me é estranho em outros estados psíquicos.
Estenderam-me um pequeno álbum de reproduções de quadros de Matisse. Talvez as
cores me parecessem mais intensas; talvez, pensei, apenas o trabalho de impressão
fosse de boa qualidade. Olhei as páginas com interesse, mas um interesse que ainda
podia ser a própria curiosidade pela experiência. A sensação me parecia pobre.
Não sabia que dentro de poucos minutos seria lançado numa experiência psicológica
inteiramente nova.

SENTIMENTO DO TEMPO

Uma experiência singular começou a realizar-se na minha consciência: eu me


desinteressava do tempo, não o apreendia como habitualmente, embora me fosse
possível, através de artifícios mentais, manter uma noção aproximada de determinados
espaços de tempo. Durante todo o apogeu da experiência (umas três horas, creio), essa
isenção em relação ao fluir do tempo intensificou-se, sem que sentisse por isso
propriamente prazer, mas indiscriminado alívio. O sentimento do tempo também
diminui nas outras intoxicações mais conhecidas, mas havia no caso uma diferença
qualitativa: no alcoolismo, depois da ligeira fase de lucidez aparente, a mente se
conturba; sob a ação do ácido lisérgico, pelo contrário, minha mente se clarificava o
tempo todo, só que centralizava sua atenção em objetos e percepções que antes viviam,
fora ou dentro de mim, sem suscitar maior curiosidade.
O médico cronometrava o desenrolar da experiência; a mim não seria possível indicar,
mesmo aproximadamente, a gradação cronológica dos diversos estágios vividos.
Quando indagaram de Aldous Huxley a respeito, respondeu ele que havia fartura de
tempo, plenty of it. Essa resposta me parece corresponder perfeitamente à minha
impressão de que, sob o efeito do ácido lisérgico, o tempo não está interessado em nós e
portanto não podemos nós estar interessados nele. O tempo existe: é fenômeno que não
nos concerne e do qual não podemos extrair nenhum elemento de angústia ou de
prazer. A vida passa, e estamos biologicamente condicionados para o passar da vida; o
penoso e inútil esforço de remar contra a corrente do tempo desaparecia de mim.
A conotação que me ocorreu depois da experiência foi esta: a criança vive normalmente
com o tempo, sem saber medi-lo ou sofrê-lo. Ela se confunde espontaneamente com o
tempo, integra-se à corrente, como se fosse fundamental à inocência infantil o profundo
e repousante desinteresse pela passagem das horas e pela aproximação gradativa da
decadência-e-morte. A perda da inocência, da naturalidade ou conformidade com o
mundo, equivale a adquirir consciência da velhice e da morte. Perdemos a inocência
quando aprendemos a olhar as horas. Mais importante que tudo, o tempo do adulto é
um imposto cobrado pela inteligência do mundo, um peso de que fomos libertos na
infância e de que podemos nos livrar em estados excepcionais de pureza, de
contemplação, de prazer, de intoxicação ou de loucura. Insisto nesse ponto porque,
adiantando conclusões, o ácido lisérgico pareceu demonstrar-me que, em nossa vida
cotidiana, seria-nos possível atingir a um estado maior de convivência (ou mesmo
conivência) com o tempo, poupando-nos angústias excessivas e apontando-nos
esclarecimentos sobre a natureza da readaptação dos neuróticos.
A diferença principal entre o ácido lisérgico e outros excitantes psíquicos ou
alucionogênios, tanto quanto posso saber, é essa de apresentar uma correlação
inequívoca com a experiência normal da pessoa, sugerindo, imediata e ricamente,
noções praticáveis de ordem psicológica ou psiquiátrica. Controlada cientificamente, ela
poderia permitir ao médico um corte rápido e profundo nas personalidades normais ou
anormais.
Não sou médico, nem me dedico responsavelmente ao assunto: dou com sinceridade um
depoimento leigo. Talvez os entendidos possam utilizá-lo de certo modo. Se tento tirar
conclusões da experiência, em vez de relatá-la simplesmente, é porque me desagradaria
fazer de outra maneira, sem utilidade visível. No entanto, pelo fato de exibir minhas
analogias ou conclusões não significa que dê a elas outro valor além da possibilidade.
Tenho mais de um motivo para desconfiar que as nossas faculdades perceptivas podem
ser aguçadas através da concatenação cada vez mais conseqüente de inúmeros dados
novos da filosofia e do psicossomatismo.
Certo ou errado, o primeiro contato com o ácido lisérgico me deu a impressão muito
razoável de se tratar dum elemento útil à pesquisa da natureza humana, no sentido de
redescobri-la para melhor. Não chego, como Aldous Huxley, a achar que a mescalina
deva ser facilitada à deprimida sociedade moderna, substituindo outras formas de
evasão. Dentro das limitações que eu mesmo imponho a essa idéia, não vejo bem o
caráter de evasão no ácido lisérgico, mas uma concentração da realidade, o antônimo
da evasão, pelo menos uma concentração de certos aspectos da realidade.
O ácido lisérgico a meu ver deveria ser um ponto de partida para uma recuperação da
realidade, dos dons de percepção e acomodação à vida. Não só nos indivíduos de
psiquismo anormal ou prejudicado há um terreno a ser recuperado. Também a
recuperação de espaços amortecidos no indivíduo normal é socialmente relevante e
imprevisível como energia psíquica.

O MUNDO É COLORIDO

Já devia ter ingerido o ácido lisérgico há uma hora e meia quando coisas obscuras
começaram a se passar comigo, levando-me até a varanda, um segundo andar dando
para o trecho ajardinado da Rua General Glicério. Foi então a rua mais bela que vi em
minha vida. Digo bela por faltar-me palavra que identificasse melhor minha correlação
com aquela paisagem; talvez fosse mais certo escrever que foi a rua mais significativa
que vi em minha vida.
Significava o quê? Significava ela mesma, a própria rua, um trecho do universo e o
próprio universo, a relva, as árvores, os prédios, as cores. Estas saltavam aos meus
olhos com uma importância inimaginável. A tarde era nitidamente luminosa e meio fria,
homens, mulheres e crianças, quase todos, usavam agasalhos de lã.
Eu me fartava de verde, de azul, de roxo, de amarelo, de vermelho...
As latas na mercearia do lado oposto me seduziram tanto quanto as flores. Por um
tempo impreciso, embora remotamente cônscio de minha existência como um todo, os
planos de minha consciência cederam ao significado direto das cores.
Naquele momento infinito o meu estar-no-mundo era intensamente o ver as cores.
Receava apenas que o médico viesse distrair-me da descoberta. As pessoas que
passavam em roupas coloridas, eu as notava com rara complacência, mas sem maior
interesse. Nos próprios seres humanos as cores me prendiam muito mais do que as
figuras e expressões do rosto. Foi então, por exemplo, que notei a importância cromática
da epiderme preta, mais intensa do que a epiderme clara. (Já havia notado antes que
os cinegrafistas de documentários, quando filmam em cores, preferem focalizar os
negros). Durante o apogeu dessa verdadeira inauguração do mundo cromático só me
lembro de ter reparado com a maior curiosidade na figura de duas meninas japonesas
gêmeas. A beleza das mulheres era desimportante diante da cor das saias, das blusas,
dos cabelos. Tentei propositadamente sublevar em mim a atitude normal do macho
diante da fêmea, isto é, a imanência sexual do olhar masculino diante da figura
feminina. Em vão. Sabia apenas, como se fosse de cor, se a mulher devia ser atraente:
ela não me atraía. Insisti na tentativa e vi que contemplava no momento um mundo
assexuado, minha relação com a realidade daquele instante era sexless. As cores me
absorviam e bastavam. Impossível conceituar essa vivência cromática. As cores
significavam elas mesmas. Verde significava verde, azul significava azul. Era como se eu
houvesse sido aceito na sociedade secreta das cores e estas me admitissem
profundamente.
O médico trocou comigo algumas palavras. Eu lhe disse: estou vendo pela primeira vez -
e desejei que ele se satisfizesse com a resposta. Desagradava-me a hipótese de ser
solicitado a traduzir em conceitos verbais minha visão. Ver como eu via era de todo
mais transcendente do que tentar exprimir aquilo que eu via. Ainda que meu silêncio
frustrasse a possibilidade científica da experiência (só depois soube que isso não era
verdade), teria preferido ficar calado naquela hora. Felizmente entregaram-me um
álbum de reproduções de quadros modernos, e pude assomar ao segundo ato da minha
estréia no palco visual. Era como se fundasse de novo o meu ser através da vista.
Há muito tempo que gosto de ver quadros de arte, reconhecendo embora, muito cedo,
que o mundo da pintura não me pertencia. Por isso mesmo, procurei educar-me
razoavelmente para a visão plástica em museus, exposições e livros. Aprendi a ver um
pouco melhor, me informei das noções mais elementares do valor estético e da evolução
da pintura. Mas, ali na varanda, sob o efeito do ácido lisérgico, o álbum que segurava
não me transmitia nenhuma experiência radicalmente parecida com as minhas
habituais curiosidades plásticas. Antes de mais nada, não tive o mais leve desejo de
avaliar a qualidade estética dos trabalhos ali reproduzidos. Não notei o título do livro,
nem a origem da impressão, e não quis indagar que denominador comum agrupava os
pintores daquele álbum, como também não quis identificar ao pé da página os nomes
dos pintores, embora reconhecesse aqui e ali o estilo dum artista.
Sintetizando toda essa especial disposição interior, posso dizer que a pintura, como
categoria civilizada da estética, não tinha maior importância para mim, não era a
verdadeira coisa a ser vivida no momento (de certo modo esse momento era toda a
minha vida).
Apesar de permanecer consciente até certo ponto dos valores culturais aprendidos,
apesar de ter à disposição da memória minhas inclinações plásticas e minhas
cogitações artísticas, as reproduções me fascinavam ao acaso, sem idéias, sem a
tentação de confrontar ou de medir a intensidade estética dos trabalhos. Via como
nunca vi quadro algum. A tonalidade das cores e a profundidade do desenho me
pegavam pelos olhos, gritavam aos meus olhos. Ver era extremamente fácil e
significativo em si mesmo, sem qualquer consideração de ordem estética. Os quadros
não me pareciam propriamente belos mas dotados dum sentido cósmico não conceitual.
Algum tempo depois substituíram-me o álbum por uma revista colorida, e não cheguei a
lamentar a troca. Era ainda como se visse fotografias coloridas pela primeira vez; como,
se depois de decorrido um prazo qualquer do meu nascimento, visse aquelas fotos sem
prejuízo dos conhecimentos adquiridos em 40 anos de vida. Os dois planos, o da
criança e o do adulto, não entravam em conflito. A criança era mais forte ou mais
novidade, no que se comprazia o adulto. E eu via, via lentamente, muito lentamente,
com um gosto lento, muito lento. Uma serenidade sem tempo era o meu ser. Como se
uma membrana tivesse sido arrancada de cima das coisas, todo o meu ser VIA,
serenamente, lentamente, muito lentamente.

UMA INOCÊNCIA CÓSMICA

Ainda vivendo a plenitude da acuidade cromática, colocaram-me nas mãos uma página
branca para desenho. O médico, estendendo-me também um lápis, me disse para fazer o
que quisesse, escrever ou desenhar. Não sentia vontade de fazer nem uma coisa nem
outra. Mas - indaguei a mim - quem sabe se agora, por um compromisso tácito, tenho a
obrigação de descrever o que se passa profundamente em mim? Talvez fora convidado à
experiência somente para isso. Permaneci indeciso e desapontado, pois já descobrira,
quando contemplava as gravuras, que me transformara em criança, e o sintoma intenso
dessa regressão era um esvaziamento quase total do conteúdo das palavras. Perdera
minha confiança nas palavras, abandonara-me a esperança de comunicar-me através
de conceitos. Curioso é que alguma coisa me impedia de tentar expor ao médico essa
mesma dificuldade. Com esforço físico e mental escrevi: "Eu nunca vi." A anotação me
pareceu insatisfatória demais, sem que pudesse fazer nada. Acrescentei com lentidão:
"Tenho certa morosidade nos dedos." Percebi com absoluta certeza que me era
impossível traduzir em linguagem adulta o que se passava.
A verdade inesperada, profunda quanto o que há de mais profundo na criatura, era
esta: havia em mim um abismo de inocência, um abismo do qual podia conhecer
apenas os primeiros estágios, as primeiras vertigens. Embora vagamente receoso do
ridículo, confessei por escrito: "me sinto inocente". A delicadeza imensurável que
experimentava em todo o meu corpoespírito, ao mesmo tempo que me divertia
conscientemente, isolava-me de todas as outras criaturas, próximas ou distantes. De
certo modo as aceitava muito mais facilmente do que antes, mas o meu mundo era, em
medidas indizíveis, por demais lento e delicado para que existisse comunicação entre
mim e os outros.
Essa delicadeza não apresentava a mais leve analogia com sensações por mim
conhecidas. Como se dentro da delicadeza houvesse uma segunda delicadeza, e dentro
desta uma terceira, uma quarta, uma quinta, e só lá no fundo de não sei qual película
sutil estivesse, intacta, a verdadeira delicadeza. Mas esse imprevisível tesouro não
implicava a menor nuança de medo: estava inocente por demais para que o mal e a
violência me atingissem. Meus próprios erros e brutalidades não me tocavam.
Só não me agradava a possibilidade de ser reconduzido para trás, ao meu estado
habitual, ao universo convencional dos conceitos, das palavras, dos apetites e das
ansiedades. Como que justificando a sutileza de minha relação íntima com os outros,
escrevi sempre inseguro da palavras: "Eu me afasto, mas não é solidão." Não estava
sozinho naquela hora; os outros talvez estivessem.
Acelerava-se o processo que me distanciava da ordem vocabular. Com espanto, notei
que o próprio gesto mecânico de escrever ia ficando gradativamente mais difícil para
mim. Registrei lentamente: "Não sei escrever, quer dizer, escrevo como se não
soubesse." A idéia de que isso podia ser interpretado como presunção me fez esclarecer:
"Esta letra não é minha. Alguma coisa a faz muito vertical." A espaços demorados de
tempo fui acrescentando frases de que dou alguns exemplos: "Parece que estou
aprendendo a escrever." - "A sensação de que minha mão não sabe escrever é
curiosíssima. Não é desagradável." - "A letra cada vez é menos minha." -
"A impressão de que sou um menino é muito forte. É ótima. Não sei se é assim que se
diz." - "Não sei escrever depressa." - "Paz. Sinto-me em paz."
Entre mais apontamentos ressalvo o seguinte: "Há duas mãos na minha mão direita."
Já a impressão era iniludível: uma vocação completa, praticamente inelutável,
carregava-me para a infância, chegando a influir nos estímulos motores. O medo de ser
devolvido ao convencionalismo me levou a escrever esta coisa, gramaticalmente tola,
mas cheia de sentido para mim: "Só queria que não me levassem para onde eu vim."
Virei a folha. A caligrafia tornava-se mais infantil. Ondas obscuras me percorriam a
consciência como se a lavassem. Devagar, escrevi, como se os descobrisse, os nomes de
minha professora e do grupo escolar onde estudei. Dentro de um retângulo mal
desenhado escrevi: 3° ano. Desenhei elementarmente um vaso com uma flor e um
menino. Escrevi, caprichando sem saber, o meu endereço naquele tempo. Fiz em
garranchos uma divisão simples e uma multiplicação (vi que as operações estavam
erradas mais tarde). Escrevi outras coisas: "D. Biela era a vice-diretora." - "Esse teste é
bobo."
A certa altura o risco de grafita ficou muito leve: com esforço bem maior escrevi meu
nome, todo torto, acrescentando: "Não tenho força na mão." - "Infantil."
Já com mais vigor anotei: "Se eu pensar demais eu volto." (À realidade: o transe era
absorvente, mas sem qualquer sacrifício da consciência.) Estava cansado de escrever:
"Quebrou a pon" - foi a última anotação. Não o fiz de propósito, mas, indago agora, se
uma força clandestina não nos faz quebrar a ponta quando estamos cansados. Por um
instante tentei refazer o lápis; com a mão insegura, temendo cortar-me na gilete, e
sobretudo sem mais vontade de escrever, desisti.
Tudo o que se passou acima é em grande parte informulável, independente de maior ou
menor capacidade de expressão. Quero apenas reafirmar que o mais intenso nesse
estágio era o sentimento de inocência de que falei. A palavra abismo é indispensável
para tornar mais clara a sensação vivida e ouso dizer que a prefiro no plural:
havia em mim abismos de inocência.
Mais tarde, procurando reencontrar a raiz desse abismo, falei em inocência pré-natal.
Havia em mim uma inocência que só posso chamar de pré-natal. Mas o abismo pré-
natal, se me permitem, não era o fundo de minha suspeita; mais fundo, muito mais
fundo, em minha soma de carne e espírito, nos espaços ilimitados de meu tempo,
suspeitei (vislumbrei? rocei? - o verbo é improvável) a presença duma inocência
cósmica, e esta se passava tão longe que nem se pode exprimir, em nebulosas ignoradas
e quase cantantes à força de silêncio. Mas, caso ela fosse atingida, caso talvez eu
ousasse, seria a árvore, a relva, a pedra,a mesa; sem dor e sem medo eu me integraria
indescritivelmente no cosmos.

CONCEITOS

Os conceitos aqui formulados constituem uma tentativa de síntese: a tese é o mundo


normal, o mundo da ansiedade, ainda não penetrado por uma percepção incomum; a
antítese é o misterioso estado perceptivo da situação lisérgica. As implicações dessa
duplicidade são duas: fora da situação lisérgica, eu não penso do modo que relatarei; no
entanto, mesmo fora da situação lisérgica, a realidade para mim não é a de antes, pois
um dado novo introduziu possibilidades inumeráveis no meu comportamento diante da
existência. Um azar imprevisível passou a correr no páreo. Muitas percepções que, antes
da experiência, permaneciam no limbo intuitivo, incertas ou confusas, tornaram-se
concretas ou pelo menos concretizáveis. Antes de mais nada, a porta lisérgica aclarou-
me o espaço que há algum tempo já se estendia diante de mim: a disponibilidade
perceptiva, a certeza de que posso ampliar o campo de minha percepção do universo.
Sou hoje (semanas depois da primeira experiência) um homem mais desamarrado,
sobretudo bem mais livre de mim mesmo. A experiência me ajudou antes de tudo a não
comer gato por lebre, isto é, hoje, dentro e fora de mim, posso apreender melhor o que
é duvidoso ou falso, o que passava por certo e era mediocremente veraz. Livrei-me de
algumas túnicas da minha fantasia, quase todas depressivas. Despertei certa manhã de
domingo, logo depois da primeira experiência, muito mais curioso do universo e muito
menos angustiado pela catástrofe humana.
Existir ficou um pouco menos difícil. Aos 40 anos de idade, eu imaginava várias vezes a
luz e a escuridão, mas não vira nem uma coisa nem outra.
Desconhecia-me; em contrapartida, os outros não tomavam real conhecimento de mim;
a reação química homem mais universo não se processava; registrava-se apenas o
fenômeno físico, a luta corporal, o triângulo amor-ódio-indiferença; e nenhuma
intimidade molecular. É claro que isso pode ser uma nova malícia de minha inquietude,
uma fantasia diferente. Pouco me importa: atinjo na madureza plena a plena
possibilidade. Não sei nada. O alívio decorrente dessa conclusão de aparência negativa
paga a pena: é uma regressão à inocência animal. Negando em mim a sabedoria, talvez
tenha feito pela primeira vez com o meu ser integral um gesto sábio.
E vamos aos conceitos anunciados: o mundo não é alegre, nem triste, nem neutro.
Estas palavras não significam. O mundo possui uma força; esta força é inominável.
O homem não é bom, nem mau, nem pobre-diabo; o homem possui (ou é) a mesma
força inominável. Se fizermos justiça às coisas, seremos justificados (ou justiçados); se
as reconhecermos, seremos reconhecidos; se passarmos a ser as próprias coisas, elas
passarão a ser nós mesmos.
Mas que são as coisas? As coisas não são as palavras. As coisas não são os símbolos.
Nosso caminho mais fácil é o símbolo, instrumento por demais complicado para nós, os
homens cotidianos. A rosa não é a nossa esperança, nem o nosso desespero; não é nem
um símbolo nosso, nem é mais importante do que a folha, a haste, a raiz. A rosa é a
rosa, e sem deixar de ser integralmente a rosa, é também Gertrude Stein, você e eu.
Uma rosa é uma rosa é uma rosa - está certo. Mas uma rosa não é uma rosa não é
uma rosa - também está certo.

Nosso erro principal é nos contrastarmos com as coisas, simbolizá-las ou defini-las sem
possibilidade de retorno. A dor não é o contraste do prazer, nem o bem é o contraste do
mal. Uma pomba e um bode não são contrastes, mas formas diferentes da mesma força.
As coisas não são descritíveis - e para isso existem as palavras.
Para a inteligência, a ciência é a ordem suprema; para o coração, entretanto, para a vida
não convencional, a ciência é um dado um pouco excessivo do problema.
Coração é uma entidade a ser reexaminada.

LIÇÃO DE COISAS

Olhei para uma vasilha cheia de azeitonas e tive... respeito. Vivemos habitualmente,
todos nós, sobre os nervos, em ritmo mais acelerado que a percepção. Essa nervosidade
um sucedâneo: finge a vida, não é a vitalidade. Vivendo com a velocidade dos nervos, a
importância duma azeitona me escapava. A própria presteza de minha percepção
nervosa me impedia de ver o que é lento, dentro e fora de mim. Só podia ver aquilo que
possuía a velocidade aproximada à de meus nervos. Daí não existir nada mais estranho,
para mim ou para você, do que uma azeitona, um monge do Tibé, um pedaço de
madeira - identidades antípodas ao ritmo vertiginoso de nossos nervos.
O contemplativo, pelo contrário, descobre a vida sem os nervos, libertando-se do
desacerto fundamental dos dois ritmos. A contemplação é o espírito devolvido ao ritmo
do universo; o ritmo do universo é um movimento que é ao mesmo tempo quietude. O
pequeno fruto movimentava-se na sua quietude; sentia as suas fibras consagradas ao
ritmo de existir; o pedúnculo, que se oferecia com dignidade; adivinhava em meu tato e
no paladar o resto da inelutável e importante verdade da azeitona. A azeitona não estava
sozinha no universo; só o homem tem a capacidade de estar sozinho no universo. Mas,
naquele momento, também eu não estava só, porque surpreendera o ritmo da azeitona,
porque acertara o meu modo de existir ao compasso do universo, ao consentimento das
coisas.
Há na sabedoria mahaiana um contra-senso que se compara à minha atitude diante
daquela azeitona: é a palavra tathata. Para os sábios budistas de há duzentos ou
quatrocentos anos antes de Cristo, tathata é o mundo como é o mundo, a coisa como é
a coisa. Não a coisa em si, mas a coisa ela mesma, não-verbalizada e não-verbalizável,
não constrangida pelo conceito. A palavra sânscrita tat (isto) surgiu, ao que se cogita, do
esforço oral da criança ao apontar um objeto. Uma azeitona é assim porque é assim;
uma azeitona é isto. O reconhecimento dessa identificação é tathata - só aparentemente
um retrocesso no caminho da percepção. Pois o mundo não é a palavra - e esta foi
exatamente uma das percepções mais intensas e duradouras durante a experiência.
Uma azeitona não é a palavra azeitona - é tathata, é isto, uma coisa única e ao mesmo
tempo integrada na unidade universal. Aqui, de acordo com os hindus antigos, inicia-se
o caminho da libertação.

AS COMPORTAS DO INCONSCIENTE

Nada mais enferrujado do que as comportas dum velho açude, cheio de lodo e matéria
orgânica putrefata; nada que mais se emperre do que as corrediças de ferro
mergulhadas há muitos anos em águas quietas, perigosas. A impressão é de que
nenhum poder humano será capaz de reabrir as comportas; o ferro enferrujado range
com o esforço; a não ser que o metal apodreça e se quebre, as águas continuarão
represadas, forçando com o seu peso a muralha. Mas, como por milagre, as comportas
foram abertas, um jorro caótico de água e pedaços de coisas se precipita do outro lado.
Purificado pelas águas novas que continuam chegando, o açude fica outra vez
transparente, revelando aqui uma caveira de boi, ali um tronco carcomido, objetos cuja
presença ignorávamos, objetos pesados, incrustados no lamaçal do leito, e que as águas
novas não conseguiram arrastar.
O ácido lisérgico, digo na minha leiguice, abre as comportas do inconsciente. A difícil e
estreita passagem entre os nossos dois mundos é franqueada com vigor, estabelecendo
um convívio obscuro entre os dois personagens que existem em cada criatura humana.
É extremamente lamentável a tentativa de tentar descrever o que então se passa. A
sensação é profusamente rica, sutil, misteriosa. Em mim, atingido esse estágio da
situação lisérgica, senti vibrações internas e externas, impossíveis de conceituar
claramente.
Ondas sucessivas dum estado letárgico parecido ao sono, num torpor muito agradável,
eram intervaladas por pequenos espaços de tempo que me devolviam o prazer da
atividade. Durante o ciclo de cada convívio obscuro, a participação da consciência era
sensivelmente reduzida, mas nunca chegava à nulidade; nos intervalos entre os ciclos,
pelo contrário, reaviva-se a luz da consciência.
Além do torpor emoliente, o ciclo trazia a sensação de frio, sobretudo nas extremidades
do corpo. Era a hora do grande mergulho nas raízes de meu próprio ser.
Em parte, dirigia meus pensamentos, em parte eles vinham fluentes e se acomodavam
no fundo dum leito desconhecido. Mas o pensamento, tal qual o conhecemos, não era o
significativo nesses mergulhos. O não pensamento é o que importava. Valia a torrente
profusa das percepções. Fiz os melhores esforços, usei os mais ardilosos estratagemas
mentais, durante a própria experiência, para captar, com alguma lucidez, pelo menos
uma pequena parte daquilo que realmente acontecia na ocorrência desses ciclos
obscuros do conhecimento. O resultado foi mínimo, o tesouro permaneceu quase
intacto. Apesar de tudo, repito, era um conhecimento.
Que cada ciclo parece reproduzir o fenômeno do nascimento é certo para mim. Creio no
entanto que é esta apenas uma faixa da experiência. Outras sensações, e todas elas
aparentemente cíclicas, são revividas intensa e simultaneamente nesses curtos espaços
de tempo.
Quantas faixas? Quantas rememorações obscuras de minha existência ocorrem
simultaneamente? A pergunta me abisma: não sei; podem existir, em cada ciclo, não sei
dizê-lo, três, sete, vinte, mil, cem mil re-vivências, reduzidas à sua expressão mais
simples ou direta, mas não conceitual.
A faixa que reproduz o nascimento, essa é apreensível; se a pessoa se aninha sobre um
sofá, como no útero materno, sente um aconchego inexprimível, uma paz doce e
infinitamente irresponsável. Sensações obscuras continuam fluindo, o coração bate
depressa, o interesse cultural pela própria experiência tende a diminuir. Vivendo uma
vez essa fase, inclinei a cabeça de certo modo nada confortável, e tive a certeza
momentânea de que era aquela a posição de meu crânio antes do nascimento.
De repente, a onda cessava e me levantava com disposição, com energia, como se
acordasse, e sentia fome. Mesmo bem alimentado, era grande o desejo de beber e comer
alguma coisa. Vinha a vontade forte de lavar as mãos, o rosto, tomar um banho. Já nos
ciclos finais desse estágio, tomava sempre consciência do espaço interno de meus
pulmões, respirava melhor, euforicamente. Nunca pensei que coubesse tanto ar em
meus pulmões, disse na primeira vez que isso aconteceu, sentindo o desejo de andar,
movimentar-me. A sensação de pureza, de limpeza interior, era inegável. À medida que
os ciclos se reproduziam, essa sensação de alívio e pureza era sempre mais intensa,
acabando por configurar perfeitamente dentro de mim um menino, mas um menino
muito melhor do que fui. Uma vez, em pleno ciclo, fui possuído pela idéia de que,
apurando os ouvidos, poderia ouvir a parede. Outra vez, estendi meus braços para a
parede, dominado pela impressão de que poderia enraizar-me, tornar-me, sem qualquer
medo, parte integrante da matéria que me cercava. Resistindo ao desejo de fechar os
olhos, fiquei um instante sem tempo fascinado pelo desenho duma peça de madeira, os
nódulos escuros figurando para mim óvulos fecundados em revolução no caos.
Embora a sensação de tempo desapareça, um ciclo deve durar alguns minutos.
Também alguns minutos (cinco? dez? quinze?) deve durar o intervalo que separa esses
transes cíclicos. Nessas pausas, aprofunda-se gradativamente a regressão infantil ou, se
assim posso dizer, a purificação do consciente pelo inconsciente. O sentimento lustral de
banho interior é o que predomina. Durante um intervalo, tentei ler páginas dum livro,
uma biografia de Van Gogh, e verifiquei com espanto, prazer e comicidade que estava a
ler exatamente como uma criança de oito anos, sincopado, com dificuldade, entendendo
muito mal a narrativa. A estranheza de certas palavras, a dificuldade de certos nomes
geográficos davam-me vontade de rir, pois, apesar do transe, conjuntamente,
continuava certo do meu conhecimento daquelas palavras: apenas não queria ou não
podia elucidá-las. O termo "nervrótico" por exemplo me fez rir muito, rir porque o
menino achava "nervrótico" engraçado; e rir porque o adulto se ria do menino que se ria
da palavra. Insisto nisso porque essa intercomunicação de transe e consciência deve ser
a chave da possibilidade do ácido lisérgico como fator terapêutico em neuroses.
Por fim, outra vez, uma azeitona. Não sou muito de azeitonas. Pois, reintegrado à
infância, passei uma eternidade comendo uma azeitona, deliciado com o paladar, com a
quantidade de caldo, com a ternura, com o mistério do caroço. É isso mesmo que
escrevi, passei uma eternidade comendo uma azeitona.

O MUNDO DO SILÊNCIO

As músicas colocadas na vitrola não chegavam a interessar-me. Talvez porque estivesse


por demais interessado nos periódicos mergulhos em meu inconsciente. Por outro lado,
não tive oportunidade de ouvir uma única peça musical que me atraísse antes da
experiência. Continuo sem saber o que se passaria se ouvisse, sob a ação do ácido
lisérgico, uma canção popular de meu tempo de infância, uma página de Debussy na
qual projetei meu niilismo adolescente ou As quatro estações de Vivaldi, pasto inefável
de minha fome amadurecida. O espectro lisérgico parece tão largo e variado que, dentro
e fora da gente, somos obrigados a escolher uns poucos caminhos experimentais que se
apresentam ou se apresentariam.
A certa altura ouvi com uma sensação vagamente agradável uma canção francesa
conhecida. Pouco depois, estando submerso em camadas profundas do inconsciente,
percebi que a vitrola transmitia um solo de violão. A composição em si não me prendia,
nem mesmo chegava a acompanhar o desenho melódico, mas sem abrir os olhos, sem
encetar a viagem de volta ao mundo exterior, fascinou-me o som do violão, como se
descobrisse naquele instante os timbres musicais e a dádiva maravilhosa do sentido da
audição. O gosto miraculoso de ouvir o som em estado nascente era tudo - a composição
por si mesma não me falava. O menino que encontrara nos fundos do meu poço
deleitava-se com a virgindade do som, com a renovação (ou inauguração) do campo
auditivo.
Sou um sujeito especialmente irritável pelos ouvidos. Faço minhas estas palavras não
me lembro mais de quem: é difícil viver com os homens porque o silêncio é difícil. De
Nietzsche, se não me engano. O inferno para mim não são propriamente os outros, mas
o barulho. Amo o sono mais pelo silêncio do que pelo repouso. Abomino a vulgaridade
das pessoas que falam com estridência, que chamam a atenção para si mesmas por
intermédio do barulho. Soerguem-me ímpetos monstruosos quando uma criança
estridula perto de mim com aquela certeza de que descobriu um meio infalível de
torturar os adultos. Os fãs de rádio estragaram muitas tardes e noites de minha vida.
Gosto dos velhos porque valorizam a quietude. Enervam-me os cães, os gatos, os
papagaios, as ventanias ululantes. Aprendi sem deliberação a pisar leve,
a fechar portas com delicadeza. A primeira coisa que noto na mulher, depois da
qualidade da expressão do rosto, é a tonalidade da voz. Chateio muito Gabriela, minha
filha, buscando corrigir-lhe os excessos prolatórios, repetindo-lhe um verso do Rei Lear:
"Her voice was ever soft, gentle, and low, - an excellent thing in a woman."
Já tomara a droga há algumas horas (ainda me refiro à primeira experiência), quando
reparei em certa qualidade diferente na minha comunicação auditiva com o mundo.
Parecia existir um silêncio aveludado em meu redor. Atentando no fenômeno, desfiz a
desconfiança inicial de estar ouvindo menos. Não, os sons eram os mesmos de sempre,
a acuidade de meus ouvidos não sofrera qualquer diminuição. A diferença que se
verificava era qualitativa. A intensidade dos sons era transmitida normalmente aos
meus centros nervosos, mas estes recepcionavam (é a palavra que me convém no caso)
os ruídos de maneira muito mais delicada, sem qualquer irritabilidade. O grito duma
criança, a estridência duma buzina acomodavam-se em meus nervos, e eu só os
percebia com nitidez se lhes prestasse maior atenção. Era como se estivesse acolchoado
por dentro. Em relação aos sons adquirira uma tranqüilidade inesperada.
A partir dessa surpresa fui elaborando uma teoria, que funcionou para o meu caso
àquela vez: sob a ação do ácido lisérgico os ruídos não estilhaçavam o silêncio, mas se
inseriam na massa do silêncio, assim como pedaços de frutas ficam dentro da gelatina.
Já não sofria rancor ao ouvir dissonâncias e ruídos agudos. O ouvido é o instrumento
da audição, mas em minha vida habitual os meus nervos é que se encarregavam de
transformar os ruídos em torturas mentais. Ouvira errado até aquele momento. Mais
certo ainda: eu mesmo escolhera meu destino auditivo, comprazendo-me de certo modo
na impaciência que me provocava um mundo estrepitoso. Ou talvez minha irritação
fosse apenas o expediente de que me valia para justificar o deplorável funcionamento
de meus nervos.
Era urgente reformar-me, era urgente, cessado o efeito da droga, agarrar-me àquela
descoberta leniente de que o mundo é silencioso, de que a gente só ouve aquilo que
deseja. A paz que encontrara no convívio de meu próprio inconsciente conseguira domar
o barulho: o acolchoamento psicológico aparava dentro de mim todo o fragor que
chegasse de fora.
Essa lição direta da experiência foi nítida: o mundo, mesmo nesta cidade do Rio de
Janeiro, pode ser silencioso. Isso depende de cada um de nós. Não existem ruídos
lancinantes; nós é que modelamos o sentido da audição à imagem de nossa
instabilidade nervosa. Nós é que somos lancinantes.
O MILAGRE DA VOZ

Na primeira vez que ingeri ácido lisérgico, senti, após três ou quatro horas de
experiências intensas, uma extraordinária sensação de alívio, paz, conformidade em
minha vida de relação e misteriosa purificação, como se o lodo de meus erros houvesse
escorrido numa torrente de água limpa. Estava ansioso para desfrutar minha liberdade
interior, mais que isso, meu sentimento de que, dentro e fora de mim, fora inaugurada
qualquer coisa como um bazar de novidades. Disse ao médico que iria dali a uma festa
em casa de amigos. O comentário dele me provocou viva comicidade: "Ótimo: vamos ver
como reage o Paulo novo diante duma situação velha."
Até aquele momento da experiência, minhas modulações psíquicas, se posso dizer
assim, eram serenas e santas; sorrira algumas vezes, mas não rira; achara graça, mas
não percebera uma só vez o cômico ou o ridículo. A condição que aquela frase
enunciava me divertiu infantilmente. Devo dizer, entretanto, que, durante uma outra
experiência lisérgica, tendo regressado à infância, fui acometido dum acesso de riso
que seria inoportuno e imotivado para um homem adulto.
Notei na rua apenas uma ligeira insegurança nos meus gestos e uma incapacidade de
fixar a atenção num objeto. Olhava para as pessoas sem a inquietação normal da
curiosidade humana, mas também com uma aceitação maior do que nunca. Pouco
antes, num arrebatamento do inconsciente, apreendera o seguinte: quem perdoa a todos
é também perdoado. Ali fora, vendo homens, mulheres, crianças, fisionomias brutas ou
delicadas, simpáticas ou hostis, meu sentimento era de amplo perdão, uma anistia
universal concedida por mim, e da qual recebia logo o reflexo liberatório. Não havia
mais grades dentro de mim: libertara os outros e os outros me libertavam. Ou o
contrário.
Nas próximas horas, pouco a pouco, iria descobrir um fenômeno que considero dos mais
conseqüentes da experiência. Conseqüente porque não se tratava mais de qualquer
alucinação: era um fato que podia comprovar com absoluta lucidez.
Naquela noite, encontrei-me com muitas pessoas, conhecidas e desconhecidas, tomei
táxis, entrei em bares, fui a uma ceia em casa de amigos. Pois bem: ainda dominado
pelo sentimento de inocência ou purificação, reparei que as pessoas me tratavam como
se soubessem ou adivinhassem de certo modo que e u estava inocente ou purificado.
Os outros todos me falavam com incomum delicadeza.
Deslumbrado com a descoberta, procurei elucidá-la de maneira mais segura a fim de
obter a certeza de que aquilo realmente acontecia, sem qualquer contingente ilusório
provocado pela droga. Da observação inicial, de que me falavam com rara gentileza,
passei logo a outra verificação: antes de tudo, era eu mesmo quem falava aos outros
sem qualquer aspereza, desconfiança, ressentimento ou temor. Os outros me
respondiam com a mesma afabilidade.
Fiz várias experiências a fim de sitiar bem a esplêndida aventura. Os outros, sobretudo
as pessoas mais modestas culturalmente, mais instintivas, menos dissimuladas pelo
hábito da polidez, respondiam-me todos com uma docilidade surpreendente, mais ou
menos como o hipnotizado responde ao hipnotizador. Motoristas de táxi, de cenho rude,
amansavam-se miraculosamente perante minhas ordens, chegavam a ficar vagamente
roucos e tímidos quando se dirigiam a mim. É duro para mim escrever uma coisa
dessas, mas, que hei de fazer, é a pura verdade. A fim de testar melhor a observação
passei a falar-lhes sem os suportes corteses da linguagem, sem dizer "senhor", "por
obséquio" etc. Vire à direita, siga em frente, encoste do outro lado... As respostas me
encantavam pela delicadeza: sim senhor, pois não, perfeitamente... Que poder novo eu
possuía sobre os outros? Precisava encontrar uma explicação racional.
Antes de mais nada, há mais coisas entre o céu e a terra... Dito o que, aí vai mais uma
teoria, válida para mim até que outros possam explicar em termos mais científicos a
razão do fenômeno: todos transmitimos em nossa voz vibrações sutis que retratam as
condições de nossos nervos, a radiografia de nosso ego em determinado momento.
Se estou infeliz, minha voz irradia infelicidade; se estou rancoroso, transmito rancor; se
estou em paz, meu contágio é a bondade. Mas isso deve ser tomado ao pé da letra e não
num sentido vago: nossa voz irradia, transmite e contagia de fato a nossa paz, a nossa
indiferença ou o nosso desespero. De nada valem aqueles suportes corteses da
linguagem: irradiamos o que somos - as palavras do disfarce nada podem contra a
nossa verdade. O fenômeno, em seus aspectos mais abstratos, não é desconhecido das
pessoas atentas. A ação do ácido lisérgico apenas me permitiu observá-lo com nitidez,
enquadrá-lo de modo mais concreto. Naquelas horas estava despojado de rancor; daí o
milagre de minha voz. A comparação não presta, mas por um momento eu era uma
espécie de São Francisco de Assis falando ao lobo. O lobo também sabe que amor com
amor se paga.

Frases

Endereço Quando eu me for, para onde for, seja lá o que for - vai ser o Céu.

Nunca tive cachorro nem gato; só tive árvore.

Nunca poderei ser mais do que sou - nem desejarei!

A constrição constante da morte me ajudou a ganhar a vida.

Abaixo da minha gana graciosa pela justiça, minha desesperançada e doce indiferença.

A aspiração precoce a uma velhice respeitável foi uma constante de todos os muros
honrados que vi nascer e viver.

Ricorso
Cheguei afinal à infância da morte: tudo é novo outra vez.

Infinito em câmara lenta Uma tarde em Paris Amei uma Geneviève com tanto cuidado e
carinho como se ela fosse o ALÉM e eu fosse o DEVAGARINHO.

Sapiência
54 anos e uma conclusão: eu teria sido milionário com muito pouco dinheiro.

Fim de linha
E minha morte morrerá comigo.

Minihaicai
Minhas Esquinas Anoiteceram

Bar Bebi-me lentamente.


Tudo em torno era simples como um copo.
Bebi-me lentamente com muito gelo.
Roído pelos olvidos meus, me vou.

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