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RESENHAS 197

HOUSEMAN, Michael e SEVERI, Carlo. próprios cruzamentos com a matemáti-


1994. Naven ou le Donner à Voir. Essai ca, a lógica, a biologia, William Blake...
d’Interprétation de l’Action Rituelle. Naven é uma experiência, uma ten-
Paris: CNRS-Éditions de la Maison des tativa de descrever o comportamento
Sciences de l’Homme. 224 pp. humano mediante o reconhecimento de
que o observador faz parte do próprio
comportamento observado. O cruza-
Gustavo Blázquez mento entre descrição e interpretação
Mestrando, PPGAS-MN-UFRJ obriga-o a realizar uma opção metodo-
lógica – descrever a sociedade a partir
O texto apresentado por Houseman e de um de seus aspectos – e uma opção
Severi propõe mais que uma simples teórica, extraída da biologia – a descri-
interpretação de um tipo particular de ção dos mecanismos que operam “em
ritual – o naven – praticado por um gru- um único microorganismo pode revelar
po da Nova Guiné, os Iatmul, ritual no mecanismos essenciais para compreen-
qual os homens se vestem de mulher e der qualquer organismo” (:23).
vice-versa. O segundo cruzamento se daria en-
O livro, na verdade, é uma tentativa tre Bateson e o próprio Bateson. Em sua
de combinar a discussão teórica de leitura de Naven, os autores enfatizam
temáticas fundamentalmente relacio- as diferenças entre o Bateson da pri-
nadas com os rituais, a investigação meira edição de 1936 e o da segunda de
empírica realizada por Gregory Bateson 1958. Em 1936, Bateson mostra que um
nos anos 30 e por integrantes do Museu comportamento pode ser explicado de
Etnográfico da Basiléia a partir dos modo estrutural, funcional e ethológico.
anos 70, e a problematização de ques- As normas comportamentais se diferen-
tões relativas à história da antropologia. ciam a partir de um processo de intera-
Os autores convidam-nos a discutir ções, denominado cismogênese, que po-
e cruzar a explicação da ação ritual em de ser de tipo simétrico ou complemen-
geral com a análise de um tipo específi- tar. Em 1958, já estabelecido em Palo
co de ritual. O potencial explicativo de Alto, na Califórnia, e com uma teoria da
sua teoria do ritual é posto à prova a comunicação já desenvolvida, aplica o
partir da análise do naven. Para realizar conceito de cismogênese ao ritual: este
o que denominam um “experimentum é considerado, então, como um meca-
crucis” (:13), propõem, ao longo dos nismo para controlá-la. No capítulo 2,
oito capítulos que formam o livro, o que os autores apresentam uma crítica a
poderíamos considerar como uma série essa tentativa de aplicar uma teoria
de cruzamentos. cibernética ao ritual, proposta por Bate-
O primeiro deles se estabeleceria son e desenvolvida por Handelman.
entre Bateson e a tradição funcionalis- O terceiro cruzamento aplica-se a
ta. Formado na Inglaterra malinowskia- Bateson e o Museu Etnográfico da Basi-
na, Bateson escreve Naven, texto que léia. A partir do capítulo 3, os autores
se inicia com uma crítica radical do con- cruzam os dados etnográficos dos anos
ceito de função utilizado nas ciências 30 com as recentes etnografias produzi-
sociais de sua época, que confundiriam das por pesquisadores suíços.
as causas do fenômeno a ser estudado Bateson descreve o naven como
com os propósitos do mesmo. Bateson uma série de cruzamentos de palavras
realiza tal crítica, baseando-se em seus e ações entre sujeitos travestidos, que
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tem lugar quando se realiza pela pri- seman e Severi apresentam, no capítulo
meira vez uma determinada prática. 7, um conjunto de críticas às teorias do
Sua análise toma como elemento cen- ritual, que se centram em sua função ou
tral a relação entre o Ego (laua) e seu em seu significado, e propõem uma ex-
tio materno (wau), que se comporta co- plicação da ação ritual centrada na
mo mãe e esposa do laua. A partir des- identificação do nível organizacional. É
sa inversão, produzem-se outras, que apenas a partir deste que se poderia co-
Bateson, entretanto, não leva em consi- meçar a pensar no significado e na fun-
deração, e que Houseman e Severi res- ção do ritual.
saltam, como por exemplo, a da tia pa- Essa teoria é cruzada com naven,
terna (yau) que atua como pai e esposo ritual considerado desprovido de cone-
de Ego. Naven expressaria, portanto, o xão com a política, a economia, o xama-
conflito entre os sexos característico do nismo etc. Tal afirmação nos parece um
ethos Iatmul. As etnografias recentes tanto arriscada se levarmos em conta
criticam esses desenvolvimentos e colo- que durante o ritual o Ego “escolhe”
cam em cena outro conjunto de cerimô- entre todos os possíveis Wau seu Wau,
nias que os Iatmul também denominam servindo o ritual como contexto para
naven e que Bateson não levou em con- determinar a identificação da relação
ta. Essas novas investigações propõem avuncular classificatória. Mais do que
considerar o ritual iatmul como uma isso, o laua classificatório está destina-
cerimônia tipicamente feminina. do a ser o wau real dos descendentes de
Houseman e Severi servem-se des- seu wau classificatório e vice-versa,
se corpus etnográfico para analisar três dando lugar a um tipo particular de
tipos diferentes de naven, ou três moda- aliança. E é “a relativa pobreza do na-
lidades diferentes de naven. Sua análi- ven que pode nos ajudar a esclarecer as
se centra-se em torno de duas questões: modalidades de transmissão do simbo-
por que ações muito diferentes são re- lismo ritual através da ação, encontra-
conhecidas por seus atores como na- das em outros lugares de maneira tão
ven? Por que são diferenciadas de ou- mais complexa que geralmente é im-
tras práticas que também incluem o tra- possível detectá-las. Naven é, de fato,
vestismo? “Estas duas perguntas só tanto por sua forma quanto pelos perso-
admitem uma resposta. Trata-se de nagens que envolve, um ritual relativa-
identificar nos dois casos um nível orga- mente simples” (:193).
nizacional que, ligando as diversas oca- Em sua elaboração de uma explica-
siões cerimoniais, defina o conjunto de ção para o simbolismo ritual, House-
traços que permitem (aos Iatmul e a man e Severi valem-se de certos desen-
nós) reconhecê-los sempre como naven volvimentos de Dan Sperber que lhes
e diferenciá-lo de outros rituais” (:170). permitem estabelecer o que diferencia
Esse nível organizacional é entendido uma ação ritual de uma não ritual, e
como “uma série de regularidades que como se apreende uma ação ritual pro-
o contexto impõe à ação” (:171) e pode priamente dita. Esta nova teoria do ri-
ser buscado tanto na encenação ou, tual utiliza cinco conceitos-chave: con-
como sustentam os autores, na configu- densação, forma relacional, estilo, cam-
ração de relações estabelecidas em tor- po relacional e trabalho do rito.
no de Ego pela própria ação ritual. A ação ritual condensa uma série de
O quarto cruzamento relaciona o relações e oposições entre os sexos; prin-
naven com a teoria da ação ritual. Hou- cípios matrilineares e patrilineares; pro-
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criação e ancestrais totêmicos; cópula e ethos ao negar a possibilidade de uma


homicídio; pares que devem permane- síntese final caracterizada pelo equilí-
cer separados de acordo com o ethos Iat- brio: “O ritual é ao mesmo tempo uma
mul. Estas condensações são incluídas manifestação do processo de reprodu-
em uma dinâmica que os autores deno- ção social [e] um mecanismo que con-
minam forma relacional, que, no caso tribui para orientar seu desenvolvimen-
do naven, pode se caracterizar como a to” (:87). Nesse sentido, a proposta de
condensação dos modos contraditórios descobrir em um caso supostamente
de cismogênese e dar lugar a um estilo simples propriedades universais de-
caracterizado por um tipo de travestis- veria ser objeto de uma análise mais
mo decididamente caricaturesco. detida, uma vez que aqui, acreditan-
O naven é construído sobre a base do apoiar-se em Bateson, nossos auto-
de um campo relacional vinculado às res talvez estejam mais próximos de
condições que definem a procriação, de Durkheim.
maneira tal que o trabalho do rito con- Tradução de Maria Macedo Barroso
siste na “colocação de um certo número
de laços constitutivos da identidade em
um universo de parentesco” (:206), uma MACHADO, Maria das Dores Campos.
abertura do parenthood ao kinship. 1996. Carismáticos e Pentecostais: Ade-
Naven, que em língua Iatmul significa são Religiosa na Esfera Familiar. Campi-
mostrar-se, mostraria o Ego no parent- nas: Ed. Autores Associados/ANPOCS.
hood e no kinship. 218 pp.
O quinto cruzamento estabelece a
relação entre Houseman e Severi, por
um lado, e Bateson, por outro. Partindo Clara Mafra
do multifacetado Bateson, de alguns de Doutoranda, PPGAS-MN-UFRJ
seus conceitos e de seu trabalho etno-
gráfico, os autores finalizam propondo Originalmente apresentada no IUPERJ
uma nova explicação tanto do naven – e premiada pela ANPOCS como me-
quanto da ação ritual. Bateson não apa- lhor tese de doutorado de 1995 – Caris-
rece, entretanto, apenas como uma máticos e Pentecostais vem a público
referência inicial. Pelo contrário, o livro em um momento de revitalização da
resgata o ethos batesoniano, antifuncio- produção acadêmica sobre o tema da
nalista, defensor de um trabalho teórico religião. Este livro apresenta os resulta-
próximo dos dados empíricos e de um dos de uma pesquisa realizada com
certo olhar clínico. A construção da ar- membros de diferentes igrejas pente-
gumentação de Houseman e Severi é costais e do Movimento de Renovação
fiel à idéia de entender o comportamen- Carismática Católico (MRCC), e tem
to como uma rede de relações comple- como tema central a compreensão das
xas, bem como, talvez, à mais radical mudanças sofridas pelos fiéis dessas
das propostas de Bateson: antes de tra- igrejas a partir da sua adesão religiosa,
balhar com a função ou o significado de e os efeitos, às vezes inesperados, des-
um ato é preciso realizar um estudo da sas mudanças sobre a vida pública. To-
forma das relações nele implicadas, de do um conjunto de questões diretamen-
seu estilo. te vinculadas à definição dos papéis de
Não obstante essas aproximações, gênero e aos arranjos familiares é abor-
nossos autores distanciam-se desse dado e desenvolvido com precisão e ori-

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