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A Filosofia do Talmud - Introdução

Judaísmo: Uma Teocracia Democrática

Muitas tentativas têm sido feitas para formular uma abordagem coerente e
sistemática da teologia judaica.
Todavia, todas elas têm fracassado, pois o judaísmo nunca se preocupou
muito com doutrinas lógicas.
Ao invés disso, buscou desenvolver um corpo de práticas e um código de
atos religiosos que estabelecessem um modo de vida religioso.
É verdade que esses atos e práticas derivam de conceitos teológicos e
morais básicos; porém, de forma muito significativa, essas teorias
teológicas judaicas permanecem sempre ocultas, apreensíveis somente
através das práticas religiosas a que deram origem.
Por isso, grandes filósofos e eruditos do Talmud chegaram a um consenso
maior em seu Minian Hamitsvot - a classificação dos 613 mandamentos
religiosos que a Torá coloca para o judeu - do que em suas tentativas de
apresentar os princípios judaicos básicos na forma de artigos de fé.
Moisés Maimônides relaciona treze princípios básicos, porém Iossef Albo
estabelece apenas três.
Portanto, é inútil tentar descobrir um corpo de doutrinas articulado e
organizado que possa ser caracterizado como uma "Teologia Judaica" no
sentido pleno do termo.
No judaísmo, crenças e teorias religiosas não podem ser separados da
prática.
O primeiro judeu a procurar apresentar uma teologia judaica provavelmente
foi o grande filósofo Filo de Alexandria (Philo Judaeus); no entanto, até
mesmo ele estava mais interessado em uma filosofia do judaísmo - ou
melhor, em uma filosofia da prática judaica - do que no simples dogma
teológico. Filo não seguiu nem os estóicos, que consideravam a teologia um
ramo da medicina, nem Aristóteles, que concebia a teologia como um ramo
da filosofia.
A seu ver, a teologia é parte do ramo mais elevado da filosofia — a Ética —
e diz respeito ao culto a Deus e à regulamentação da vida humana de
acordo com as leis Divinas da Torá.
Portanto, em um certo sentido, Filo deu voz ao conceito judaico
fundamental de que a teologia e as regras de conduta humana são
praticamente inseparáveis.
Josefo, o grande historiador, ao definir o judaísmo para um mundo não-
judaico, estava tão ciente desse conceito fundamental que sentiu a
necessidade de cunhar um novo termo para expressar a singularidade da
religião judaica.
A palavra que escolheu foi "teocracia", e ele escreveu: "Algumas pessoas
delegaram poderes políticos supremos a monarquias, outros a oligarquias, e
outros ainda às massas. Nosso legislador, Moisés, não teve atração por
nenhuma dessas formas de constituição política, mas deu à sua constituição
a forma que — se nos for permitida uma expressão forçada — pode ser
chamada de teocracia".

Isto, ele explica, significa "colocar toda a soberania nas mãos de Deus".4 De
acordo com os termos da própria definição de Josefo, a caracterização do
judaísmo como uma teocracia é verdadeira.
O judaísmo sustenta que a soberania do homem é dependente da soberania
de Deus; que um homem deveria ver cada ato que desempenha como a
realização do desejo do Reino dos Céus.
Este é o significado das sempre repetidas determinações talmúdicas de que
o homem deveria agir "de acordo com os Céus", e tomar sobre si mesmo o
"jugo do Reino dos Céus".
Ao se aceitar isto como um conceito fundamental no judaísmo, torna-se
claro por que é inútil aos pesquisadores do judaísmo histórico tentar
descobrir ou investigar dogmas teológicos abstratos.
A pesquisa deveria, isto sim, buscar desvendar os motivos religiosos que
fundamentam o corpo da prática judaica e o conceito judaico de
moralidade.
A filosofia — ou se preferirem, a teologia — do judaísmo está contida em
boa parte na Halachá — o sistema jurídico judaico — que se preocupa não
com a teoria, mas primordialmente com a prática.
Portanto, é na Halachá que a filosofia do judaísmo deve ser procurada.
Infelizmente, esta não é a direção que a pesquisa moderna sobre judaísmo
tem tomado. Ao invés de procurar explorar os motivos espirituais e
religiosos que determinam o pensamento talmúdico, a erudição judaica
moderna tem buscado explicar o judaísmo em termos que lhe são alheios e
que não se aplicam a ele, e tentado enquadrar até mesmo aquelas práticas
e rituais que definem o relacionamento do homem com Deus nos moldes
das teorias sociológicas e econômicas atuais.
De repente, um Sábio torna-se um "liberal" e outro um "conservador";
acredita-se que o primeiro tenha um modo de vida "progressista" enquanto
o último é taxado de "reacionário".
É claro que as divergências entre fariseus e saduceus estavam, de certo
modo, relacionadas à vida social e econômica da comunidade, e o mesmo
vale para as diferenças haláchicas no meio dos Tanaím (Tanaítas), os
Sábios mishnáicos.
Entretanto, na maioria das vezes essas divergências não surgiam de causas
sociais ou econômicas, tampouco os que divergiam estavam interessados
em defender uma classe social contra a outra.
Os Tanaím estavam interessados, acima de tudo, em criar um código de
vida através do qual o homem, em suas práticas diárias, pudesse servir
melhor a Deus, segundo um sistema tal que os deveres do homem para
com seus semelhantes fossem parte integrante dos seus deveres para com
seu Criador.
O principal interesse dos nossos Sábios era encontrar um sistema pelo qual
o homem, em sua conduta, pudesse aplicar os princípios religiosos básicos
expostos na Torá.
Confrontadas com os conceitos ocidentais práticos de justiça social, as leis
talmúdicas — registradas na Mishná, na Tossefta, no Midrash Haláchico e na
Guemará — parecem quase impraticáveis.
De fato, vistas de um ponto de vista secular e social, muitas leis talmúdicas
são difíceis de entender ou compreender. Porém, isto se dá apenas porque
os princípios fundamentais — e até mesmo as regras de procedimento da lei
talmúdica — provêm de profundos conceitos religiosos e teológicos e,
definitivamente, não se baseiam em teorias sociais.
As leis relativas ao "crime", por exemplo, resultam muitas vezes do conceito
religioso de "pecado", e as leis que governam a vida da comunidade
derivam diretamente do conceito talmúdico relativo ao caráter sagrado da
personalidade individual.
As leis dos "tribunais do homem" são vistas como reflexos das "leis dos
Céus", e as normas de conduta do homem em suas relações com o próximo
são governadas pela relação do homem com Deus.
A "praticidade" humana ou social nunca foi aceita como um fator
determinante na lei judaica.
Nossos Sábios ocasionalmente instituíram leis práticas, mas apenas quando
sentiam que as regras fortaleceriam a crença e a prática religiosa,
aproximariam o homem de Deus e o ajudariam a atingir o objetivo final da
penitência.
Invocando a autoridade talmúdica, às vezes eles aprovavam leis para
ajudar os pobres ou para assegurar uma conduta correta no mercado;
algumas vezes decretavam leis rigorosas para a proteção das mulheres.
Estas leis práticas eram classificadas como tacanót, ou seja, estatutos
necessários para proteger e ajudar os penitentes, os pobres e os fracos.
O exemplo clássico de uma tacaná, o Prosbol, foi decretada para ajudar o
devedor necessitado de um empréstimo e não para proteger o credor.
Na medida em que se estuda essas inovações talmúdicas ou tacanót, torna-
se muito claro que os Sábios eram relutantes em decretá-las.
Eles teriam preferido muito mais manter intactas as práticas estabelecidas
nas leis da Torá, e somente decretavam tacanót quando se sentiam
obrigados, sobretudo para apoiar e fortalecer a conduta religiosa da
comunidade.
Dada esta compreensão do corpo de práticas judaicas como uma lei Divina
projetada para a proteção e defesa do indivíduo, o judaísmo pode muito
bem ser caracterizado como uma "teocracia democrática", usando o termo
"teocracia" no sentido que Josefo lhe deu, e não como é entendido pelos
intelectuais de hoje.
É uma teocracia, pois a força motriz da moralidade judaica não é a proteção
do Estado ou da comunidade de forma abstrata, ou de nenhuma forma de
governo humana.
Todo o sistema da moralidade judaica deriva e é fundado no conceito da
soberania de Deus.
É uma democracia pois, diferente de qualquer outro sistema legal, o código
talmúdico coloca toda a ênfase no valor e caráter sagrado infinitos do ser
humano. No judaísmo, o reconhecimento do demos — o valor individual e
infinito da sua personalidade — é uma conseqüência necessária da
aceitação do theos de Deus (do Seu governo), uma relação resumida na
frase "teocracia democrática".
Se o segundo elemento na frase deve ser entendido no sentido dado por
Josefo, o primeiro elemento é usado conforme a definição de Filo, que
procurou explicar a constituição política da Torá a um mundo não judaico.
De acordo com Filo, a democracia é "a melhor e a mais tolerável das
constituições".
Deve se entender que Filo não usou o termo "democracia" no sentido
moderno de um governo eleito por toda a população, em que cada pessoa
tem o direito de ter um mandato.
Para Filo, a democracia, como uma forma ideal de governo, "honra a
igualdade e tem a lei e a justiça como seus governantes".
Pouco importava a Filo se, na antiga constituição política do judaísmo, o
governo funcional fosse baseado em uma monarquia, em uma aristocracia
ou em uma casta sacerdotal.
Para ele, o judaísmo significava a soberania de Deus conforme revelada na
Torá, a constituição Divina que tem como objetivo a extensão da justiça
para todos.
Foi neste sentido que Filo caracterizou o judaísmo como uma democracia e,
como apontou o professor Harry Wolfson, ele praticamente cunhou o termo
"teocracia" mais tarde usado por Josefo para descrever o Estado Mosaico.

A filosofia do judaísmo se apóia nestes princípios gêmeos — a soberania de


Deus e o caráter sagrado do indivíduo.
Enunciada não simplesmente como uma teoria, esta filosofia está
claramente refletida na Halachá.
De fato, somente através de uma compreensão apropriada do conceito
judaico de Reino Divino e valor humano é que podemos entender
plenamente muitas instituições legais e espirituais do judaísmo.
Também é verdade, porém, que uma vez que o judaísmo está mais
interessado na prática do que na teoria, apenas um exame de perto da lei
judaica pode revelar as suas bases filosóficas.
Este estudo é uma tentativa nessa direção.
Ao definir, em termos "semipopulares", conceitos talmúdicos básicos, e ao
estudar as leis sancionadas pelos rabinos para governar as várias áreas da
atividade humana, busca-se descobrir as doutrinas religiosas que inspiram
as definições legais de homem e sociedade no judaísmo.
Não sendo um estudo sistemático da lei talmúdica, e longe de ser completo,
este trabalho toca em apenas alguns poucos conceitos fundamentais do
modo como são revelados na literatura talmúdica, para demonstrar como a
moral judaica e os princípios religiosos se manifestam nas regras de
conduta e prática formuladas pela Halachá.

Continua

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