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A disciplina como Emanação do Trabalho Organizado

na Sala de Aula

O trabalho organizado numa escola democratizadora

Com a democratização do ensino, a pedagogia uniforme deixou de funcionar. A

avaliação diagnóstica pode constituir alguma ajuda na preparação da estratégia

pedagógica mas as diferenças culturais dos alunos e a atual dinâmica do conhecimento

trazem o imprevisível às nossas aulas. Importa que o professor saiba não apenas gerir,

mas reinventar o programa, tendo em conta os perfis sociocognitivos dos alunos. Esse

imperativo pedagógico obrigará o professor a não seguir obedientemente a ordem dos

programas, mas a criar uma ordem dependente das motivações dos alunos e a ter em

conta ainda que há conceitos e competências fundamentais que todos precisam de

dominar em ordem ao futuro académico e pessoal de cada um.

Entre as caraterísticas dos alunos dependentes das suas histórias de vida situam-

se as suas diferenças culturais. Uma pedagogia diferenciada (Perrenoud, 2000; Heacox,

2006) está atenta à expressão pessoal de cada aluno, porque o insucesso começa com

situações em que dificuldades discursivas impedem a comunicação professor/alunos e

criam antipatia para com uma disciplina. Lembremos a relação entre linguagem e

pensamento em Vigotsky: “o pensamento não é simplesmente expresso por palavras: é

por meio delas que passa a existir” (1996, p.108). As caraterísticas da linguagem dos

alunos significam diferentes modos de pensar que é imperativo ter em conta.

A dinâmica do trabalho de grupos torna possível a cooperação entre os diferentes

códigos culturais dos alunos. A relutância de alunos de bom aproveitamento em

cooperar com alunos com necessidades tende a desaparecer quando verificam que, ao
terem de reformular em termos simples certas noções, estas se tornam mais claras

também para eles-próprios. A dinâmica cooperativa pode ter assim uma função de ajuda

a outros, de melhoria própria e de formação democrática. Essa dinâmica de entreajuda

funciona melhor, todavia, no ensino fundamental. À medida que se aproximam os anos

finais e se aproximam provas específicas de acesso à universidade, nem sempre é aceite

por certos alunos uma cooperação constante com colegas menos dotados. O que implica

uma pedagogia diferenciada flexível, mas de finalidade democratizadora, porque

procura ajudar os alunos frágeis, mas estimulando também os melhores alunos, como

vou propor.

Esta estratégia pressupõe que o professor reflita em que medida alguns objetivos

são fundamentais e estruturantes pois é pelo menos esses objetivos que todos os alunos

precisam de dominar. É isso que procuro exemplificar no quadro nº 1, quanto aos

objetivos 2,5,8, como fundamentais, por confronto com outros menos importantes

(1,3,4,6,7,9):

Quadro 1. Dinâmica de grupos (grupos de necessidades e de descoberta)

Objetivos do programa

1 2 3 4 5 6 7 8 9
outros 1º t outros =2 =2
todos

2º t
alunos p/ consolidação

Ao começar por um objetivo fundamental, simbolizado pelo algarismo 2 (que

pode não ser o primeiro implicado pelo currículo oficial), a estratégia vai permitir que

alguns alunos consolidem, num segundo "tempo" (2ºt, no esquema acima), com auxílio

do professor ou de outros alunos, conceitos ou competências não dominadas no


primeiro tempo (1ºt, no esquema). Assim, simultaneamente nestes 2ºs tempos, outros

alunos que já dominaram esse objetivo, desenvolvam objetivos complementares ou

mesmo outros objetivos do programa. Fazem-no com relativa autonomia, porque já

demonstraram mais facilidade de aprendizagem. Essa relativa autonomia deixa ao

docente alguma disponibilidade para ajudar mais diretamente os alunos mais frágeis.

Assim, um 1º momento é para todos os alunos, com os objetivos 2, 5 e 8, mas, num 2º

momento, podem funcionar grupos de necessidades em resposta a dificuldades sentidas

por alguns alunos e grupos de descoberta, para alunos mais avançados.

Alguns autores sublinham o rigoroso imperativo da cooperação e discordam

destes “tempos” diferenciados que incluam trabalho para grupos com necessidades e

outros trabalhos para grupos de alunos mais avançados. Mas, sublinhe-se, os grupos de

trabalho não serão fixos, pois, face a uma determinada necessidade em alunos que vão

constituir um determinado grupo, estes, logo que aquela necessidade seja superada,

dividir-se-ão por outros grupos de modo a propiciar-se uma enriquecedora interação na

sala de aula. A finalidade desta estratégia é que os alunos mais frágeis fiquem a

dominar, pelo menos, os objetivos fundamentais do currículo, pois, numa estratégia

uniforme para todos os objetivos, como é tradicional, o resultado é que os alunos mais

frágeis se sintam perdidos num nevoeiro de palavras e ocupem o tempo com outras

“atividades” e daí a indisciplina...

Mas sublinho quatro condições na dinâmica de grupos:

- A primeira é que as atividades a propor pelo professor sejam impulsionadas por

situações problematizadoras e, por isso, estimuladoras da curiosidade pelo saber, de

modo a desencadear desejo de procurar soluções para essas situações. Na última parte

deste artigo veremos exemplificações dessas atividades.


- A segunda é que todos os trabalhos, sobretudo os dos grupos com mais autonomia,

sejam apresentados à turma.

- A terceira é que para essa apresentação, os grupos preparem sínteses obrigatoriamente

escritas numa página ou meia página, para serem lidas à classe, de modo a evitar

exposições orais propiciadoras de hesitações, intervenções longas, e consequente

quebrar do interesse.

- A quarta condição é a de que a função de porta-voz dos grupos seja sorteada entre os

participantes ou pelo menos negociada só no final dos trabalhos, para que alguns

estudantes não se remetam a uma natural passividade ocasionada quando há um porta-

voz previamente escolhido.

Em suma, a participação em atividades motivadoras tendo em conta as

caraterísticas dos estudantes traz à aula uma atmosfera oficinal e “uma disciplina

racional emana naturalmente do trabalho organizado”, como propõe Freinet, (1973,

p.27). A dinâmica dos trabalhos de grupo, acolhedora das caraterísticas individuais de

cada jovem, com a assistência mais discreta ou mais atenta do professor segundo as

necessidades dos alunos, mas em que todos tenham tarefas a cumprir, leva à

participação de todos os jovens nos trabalhos da aula. Por outro lado, uma orientação

estratégica que privilegie os objetivos fundamentais dos programas e os faça dominar

por todos os alunos, mas incentivando todos a avançarem, na medida do possível, para

objetivos de desenvolvimento, são uma garantia de uma escola e de uma sociedade mais

participativas. Por isso, a aprendizagem de todos os alunos ganhará um novo impulso,

se ao método expositivo, que tendia a ser preponderante na prática recente, se juntarem

estrategicamente os métodos de “descoberta” e de instrução direta. Segue análise dos

três métodos.
Método expositivo, para lá da aparente facilidade

O método expositivo não desaparecerá numa escola atualizada. Mas deve ser

reassumido numa perspetiva problematizante. Como propõe Lebrun: “mesmo num

auditório numeroso, a qualidade do exposto, os casos ou problemas descritos podem

interpelar o estudante, desequilibrá-lo em relação às suas conceções ingénuas, fazê-lo

evoluir nos seus conhecimentos e representações” (2008, p.204). Este método vai

esquematizado no quadro nº2.

Quadro 2. Faseamento do método expositivo, adaptado de Arends (2008) e Lebrun (2008)

1. Apresentar objetivos de modo a interessar os estudantes na matéria a expor


2. Apresentar organizadores prévios, interligando o que os alunos sabem e o que vão aprender
3. Expor a matéria, assegurando uma sequência lógica, mas procurando interpelar os
estudantes sobre as suas conceções acerca desses conceitos
4. Consolidar e generalizar o raciocínio, encorajando o pensamento crítico.

Sobre a terceira fase, sublinhe-se a preocupação com a significação dos conceitos para

os jovens, numa interligação do vocabulário corrente com o vocabulário da disciplina.

Arends insiste pertinentemente nas qualidades de economia da exposição de modo a

apresentar ideias essenciais (e não um amontoado de factos) numa organização “lógica e

direta” desses conceitos que possa propiciar a organização de “mapas concetuais”. Mas

Arends, ao descrever as qualidades de uma exposição eficaz, sublinha também, como

vemos no quadro 2, o encorajamento ao pensamento crítico, fundamental para o

renovar/despertar do interesse dos alunos pelas matérias tratadas.

Método de instrução direta: em causa competências básicas

Quanto a este método, a ideia subjacente é a de que em todos os saberes há

conhecimentos e competências básicas que são fundamento de outras aprendizagens

mais complexas. Como acima propus, certos conceitos e competências podem ser

apreendidas por alguns alunos num primeiro momento, mas outros alunos podem

precisar, num segundo momento, de um acompanhamento mais direto, em que importa


ter em conta os momentos de uma cadeia de raciocínio que vai dos momentos mais

simples aos mais complexos. Os momentos deste método vão esquematizados no

quadro nº 3.

Quadro 3. Faseamento da instrução direta, com base em Arends (2008)


1. Apresentar objetivos
2. Demonstrar o conhecimento ou competência, de forma pormenorizada e progressiva (pelo
que antes deve fazer-se análise cuidada da tarefa)
3. Proporcionar prática guiada, verificando o desempenho dos alunos
4. Certificar-se da compreensão do conhecimento ou desempenho da competência
5. Proporcionar prática alargada e transferência.

Em suma, a instrução direta, ou talvez melhor, o acompanhamento direto,

implica uma atitude ativa de diálogo, de reflexão sobre aspetos relativos aos processos

mais que aos produtos, para consolidação das noções essenciais, de modo a promover a

compreensão do aluno e a levá-lo a organizar os conhecimentos numa estrutura mental

cada vez mais complexa. Essa complexidade põe à prova a eficácia dos professores. O

“estudo dirigido” e a “tutoria” organizados pelas escolas em horários próprios

constituem ocasião de promover momentos de auxílio direto a necessidades didáticas de

cada aluno. Mas já sublinhei que o professor ou outros alunos, na própria aula, podem

ajudar alunos com dificuldades em noções básicas, já consolidadas por outros alunos – e

o conceito de instrução direta é aqui esclarecedor.

A esse propósito, lembro, como algo transversal a todas as matérias, o domínio

das competências da leitura e da escrita que implicam um contato direto do professor

com o aluno, mas que, se envolve os primeiros anos de escola, também implica, em

níveis mais avançados, a eficácia dos professores de todas as matérias, dependente do

modo como acompanham a organização escrita e oral pelos alunos dos conceitos a

apreender. Essa ajuda pode ser fundamental, quer se trate de notas ou textos mais

desenvolvidos como resumos, sínteses, comentários e mesmo definições (levando a


evitar o preguiçoso começo “é quando…” ou outros bordões comuns de apoio). A

avaliação formativa, sobre quaisquer textos, incluindo os textos incluídos nos testes de

avaliação, tem aqui um lugar fundamental.

Nos vários níveis de ensino, importa exemplificar, por exemplo, como dividir os

longos parágrafos das primeiras versões de textos dos estudantes (descobrindo, por

exemplo, através da leitura oralizada, as cadências descendentes da leitura e o

correspondente lugar dos… pontos finais). Tal é uma primeira organização de um texto,

seja expositivo ou argumentativo, ou de outro tipo. E sublinhe-se que esta tarefa e

outras mais complexas acima mencionadas são também da responsabilidade de cada

professor na sua disciplina, pois disso depende a organização do discurso de cada jovem

face ao “discurso específico” de cada matéria.

Método crítico ou de descoberta: ilusão?

Contra este método, eis algumas objeções correntes: O aluno descobre sozinho

conceitos e leis que o debate entre os cientistas levou séculos a criar? O método de

descoberta não é puro engano e perda de tempo? A estas objeções (frequentes entre

professores e nos media) responde-se que o método de descoberta (ou “modelo crítico”,

nos termos de Arends ou o método de “aprendizagem por resolução de problemas” de

Lebrun) não funciona sem o apoio discreto ou forte do professor, consoante a sua

observação do processo e das dificuldades de cada aluno. Lembremos Lebrun:

“convidar os estudantes a percorrer um caminho de reconstrução dos saberes a partir das

suas conceções ingénuas ou iniciais é proveitoso para uma aprendizagem capaz de se

adaptar a uma aprendizagem para toda a vida” (2008, p.205). Esse o desafio, continua

Lebrun, aplicável à escola de um modo geral: “os atributos enunciados são geralmente

semelhantes aos do investigador: criatividade, competências de alto nível, de entre as

quais o sentido crítico, a aptidão para a comunicação e para o trabalho de equipa”


(p.206). Em suma, é por esta via que a escola prepara os jovens para estudos

posteriores e para… a vida.

Também para Arends (2008), com base no “pensamento reflexivo” de Dewey,

os objetivos deste método são ajudar os alunos a formular problemas, procurar respostas

para as suas interrogações, aprender a pensar, adquirir competências de pesquisa e

autonomia. Mas o faseamento deste método parece melhor estabelecido em várias

páginas de Lebrun (2008, pp. 157 a 162) que, no quadro n.4, se integram com alguns

pormenores de Arends:

Quadro 4. Faseamento do método de descoberta (com base em Lebrun, 2008 e Arends,


2008):
1. Descrever uma situação concreta “que coloca um problema” e que constitui o ponto de
partida da atividade
2. Pôr à disposição dos estudantes variados recursos discentes de maneira a “instruir” o
dossier.
3. Incentivá-los a fazerem perguntas acerca da situação problemática e a formular hipóteses
4. Empreender diferentes ações (consultar fontes, fazer sínteses), incluindo integração de
conhecimentos de diferentes disciplinas e alternando tempos de trabalho de equipa com
tempos de trabalho individual
5. Interpretar e avaliar as diferentes soluções em função de critérios dependentes do contexto
6. Estabelecer uma síntese e conclusões. Analisar o processo de pesquisa.

Sublinho que a formulação que Arends faz para a aprendizagem cooperativa,

quanto à obrigação do professor em auxiliar e avaliar o trabalho à medida que as

equipas o vão realizando, deve também aplicar-se aqui, o que significa que o aluno não

ficará a investigar sozinho, mas é acompanhado adequadamente pelo professor. Por

outro lado, se Lebrun chama a este método “aprendizagem por solução de problemas”,

como vimos, carateriza-os depois como “problemas concretos extraídos de situações” e

não exercícios construídos “para revelar o funcionamento de uma teoria” (p.157). Nesse

sentido, Fabre acusa a escola de predominantemente verbalista, mesmo quando ensina o

aluno a manipular problemas “para acionar noções adquiridas” (caso dos exercícios ou

problemas só no fim das aulas ou dos manuais escolares). Propõe, por isso, uma
estratégia ativa que desenvolva nos estudantes a curiosidade pelo saber e a capacidade

de “invenção” de soluções para situações problemáticas (1999, p.86). Nesta

problemática se situa o atual debate acerca de um ensino que procure desenvolver

competências e não apenas noções memorizadas.

Pedagogia diferenciada e a curiosidade pelo saber

Alguns autores (Fabre, 1999, 2008; Gerard e Roegiers, 2003; Meirieu, 2004)

reconhecem a situação problemática, apresentada no início de uma aprendizagem,

como uma maneira de desenvolver conceitos e competências, explorando e mobilizando

diferentes saberes e saberes-fazer. Nessas situações, o estudante conhece alguns

conceitos mas desconhece outros que a situação desafia a encontrar. De um modo mais

geral, pode pensar-se que os capítulos dos manuais ou as aulas devem começar por

situações de desafio, problemáticas ou de algum modo motivadoras. Trata-se da

motivação por curiosidade, alargando o conceito de curiosidade epistémica de Berlyne,

adotado por Flemming e Levie (1993), que emerge de uma discrepância entre uma

situação estimulante e o conhecimento anterior de um indivíduo: “ao despertar-se a

curiosidade epistémica, um indivíduo é motivado a procurar mais informação para

resolver essa discrepância” (p.3).

O que está em causa para a atual escola é o desenvolvimento de atividades onde

os alunos possam fazer mais do que limitar-se a receber informação sobre factos, isto é,

que sejam chamados a agir, a construir o seu conhecimento, a um nível mais exigente, o

da descoberta ou criatividade. Fabre (1999) sublinha, justamente, «uma ênfase sobre o

problema e não o teorema, sobre a invenção mais do que o já encontrado» (p. 87),

podendo generalizar-se a outras disciplinas o que este autor, na esteira de Vigostky,

afirma sobre uma aprendizagem da Matemática a partir de situações problemáticas (em

francês, “situations-problèmes”):
a) O aluno deve ser capaz de intervir na resolução de problemas, poder
imaginar o que o problema necessita como tipo de solução possível (…), o
problema deve permanecer na zona de desenvolvimento próximo do aluno.
Nem demasiado perto nem longe demais daquilo que já sabem. (p. 90);
b) Os conhecimentos dos estudantes normalmente são insuficientes para
resolver o problema de imediato. Isto reflete as características de um
verdadeiro problema (p. 90).

Mas Fabre acentua o que outros autores deixam implícito quando definem

competência como capacidade de mobilização de conhecimentos para um conjunto de

situações ou para novas situações, pois explicitamente declara que “os conhecimentos

dos estudantes normalmente são insuficientes para resolver o problema de imediato”.

Por outras palavras, na nova situação problemática deve haver aspetos inovadores que

obriguem o jovem a refletir e procurar informação. É a “curiosidade epistémica”,

mencionada acima.

Acima assumimos que a pedagogia diferenciada permite interessar na

participação na aula alunos com diferentes perfis de aprendizagem, assumindo mesmo

num mesmo momento tarefas de consolidação para alunos mais difíceis com

acompanhamento direto do professor e tarefas de descoberta ou desenvolvimento para

alunos mais dotados de autonomia – o que deixa ao professor algum tempo para ajuda

aos mais frágeis. Seguem algumas situações que poderão ser adaptadas a outras

disciplinas.

Aula-oficina e o pensamento crítico

Um manual de história recente parece um bom exemplo para a pedagogia em

geral. Os manuais de história tradicionais (e os professores são influenciados pelos

manuais) tendem a apresentar fatos históricos como algo indiscutível. Daí resulta que,

nas intervenções ou nos testes, os estudantes tentam lembrar esses fatos em atividades
situadas em níveis elementares de taxonomias. Pode um professor ou um livro de

história levar os alunos a interpretar as fontes e a propor a sua visão pessoal da história e

a debatê-la com colegas e professor? Na introdução a esse manual, os autores propõem

que a aula de história seja uma aula-oficina em que os professores selecionam

conteúdos em diálogo com os alunos e selecionam as fontes históricas pertinentes para a

problemática em causa. Os autores propõem que o objetivo é permitir que os alunos

façam a sua própria interpretação da história, analisando fontes, por vezes com

diferentes perspetivas, e desenvolvendo competências críticas. A finalidade é envolver

os jovens no debate das interpretações e confronto depois com as propostas dos

historiadores.

Por exemplo, quanto à controvérsia do sec. XVI sobre o heliocentrismo, esse

manual apresenta, ao lado do retrato de Copérnico, frade católico, um texto da

dedicatória ao papa em que o autor explica que resistiu à publicação dos seus pontos de

vista, por medo da crítica. Na mesma página, o livro apresenta algumas frases da

abjuração de Galileu sobre o heliocentrismo perante o inquisidor em 1633. Em

consonância com os princípios mencionados acima, a primeira pergunta aos alunos, ao

lado dos dois textos, é sobre “o que encontram de comum às duas fontes”. A segunda

pergunta indaga se encontram atualmente a mesma atitude em relação à ciência.

Concluamos que este modo de estudar parece promissor para a generalidade das

disciplinas pela reflexão crítica realizada em tarefas de grupo que levem a desenvolver a

capacidade de saber pensar face à multiplicidade de informação trazida pelos manuais

escolares/livros didáticos (no Brasil) e pelos diferentes media. Para todas as disciplinas,

a apresentação de situações contrastantes relacionadas com a génese dos conhecimentos

específicos das disciplinas implicados levará à curiosidade face à problemáticas

apresentadas e estimulará a procura do saber.


Um outro exemplo a adaptar a outras disciplinas. No ensino secundário em que

trabalhei uma dúzia de anos, ao pretender que os alunos lessem o volumoso romance

“Os Maias”, de Eça de Queirós, constatava que eles se limitavam aos resumos de

variada proveniência. O modo de suscitar curiosidade pela leitura dessa obra foi

apresentar algumas problemáticas centrais do livro que tivessem relação com as

vivências dos estudantes. Mas um outro problema surgia: vários alunos tinham clara

dificuldade em decifrar o texto de Eça mesmo a nível linguístico (vocabulário afastado

do vocabulário comum) e também textual (construções sintáticas inabituais nos textos já

conhecidos, por exemplo o uso do discurso indireto livre). Esse grupo de alunos foi

diretamente acompanhado pelo docente no desenvolvimento da competência de leitura

durante as aulas de várias semanas.

As problemáticas que a seguir brevemente enuncio deixaram alguma autonomia

para ajudar aquele grupo de alunos a consolidar a competência de leitura. Esclareço que,

depois de melhorada essa competência, esses estudantes puderam participar no trabalho

sobre as problemáticas que seguem e que foram acolhidas por grupos de alunos que se

organizaram em função das temáticas preferidas:

- Uma problemática de interesse, sabendo também que a medicina é uma carreira

largamente desejada, foi a de pedir para descreverem como descobriu Carlos a vocação

de médico.

- Outra problemática: Pedro e Carlos tiveram educação diferente; como foi essa

educação e que influência teve nas suas vidas, sabendo que, face a problemas

complexos na vida amorosa, vão ter atitudes diferentes?

- Uma problemática que interessou sobretudo as meninas foi a de saber se Maria

Eduarda, depois que Castro Gomes a descreveu a Carlos como alguém que vivia “por

conta” dele e que agora passaria a viver “por conta” de Carlos, tentou ou não, apesar
dessa imagem da sua situação pessoal, influenciar Carlos no sentido de este levar a sério

as atividades de que tão entusiasticamente falava com Ega.

- Outra problemática foi a do debate entre o Padre Custódio e Afonso da Maia a

propósito da educação de Carlos.

- E a problemática do debate no Hotel Central, sobre uma situação cultural e financeira

com “alguma” semelhança com a atual.

Este recurso às problemáticas de uma obra assemelha-se à proposta de Arends

(2008), que exemplifica com o clássico "Não matem a cotovia", ou com a proposta de

Freire (1970) quanto a "temas geradores", em relação com a realidade dos educandos,

como forma crítica de pensar o mundo (1970). Esta abordagem parece extensível à

aprendizagem em qualquer área científica procurando partir de problemáticas do mundo

atual e não de conceitos isolados.

Das situações problemáticas aos conceitos: sem molhar os pés… calcular a largura

de um rio

No início de um capítulo, um manual de matemática (designado livro didático,

no Brasil), para o 8º ano, expõe os diferentes “casos de semelhança de triângulos” ou

casos de “triângulos congruentes” (no Brasil): proporcionalidade dos três lados desses

triângulos; igualdade de dois ângulos; proporcionalidade de dois lados e igualdade do

ângulo por eles formado. No fim vem uma lista de “exercícios”. Esta ordem de

apresentação é aliás habitual na pedagogia corrente: primeiro a teoria e depois as

aplicações. Os livros didáticos podem fazer chegar aos conceitos através de situações

problemáticas, contrariando a exclusividade expositiva? A resposta é sim, mesmo

admitindo que, nalguns momentos do exemplo que vai seguir-se, o professor tenha de

dar uma ajuda. E admitamos ainda que a inserção de situações deste tipo ocupa mais

páginas que o modo expositivo. Mas pressupomos que a inserção, em certos momentos
do livro, possa desencadear alguma apetência e aptidão para a “descoberta” dos

conceitos de um programa.

Sem molhar os pés, calcular a largura de um rio – não será um problema capaz

de entusiasmar os jovens? Trata-se de um problema incluído naquele manual do 8º ano

(mas sem o desafio de calcular “sem molhar os pés”…), numa série de outros

exercícios, algo de habitual nos manuais e nas aulas, como se disse. Mas esse problema

parece mais complicado que um outro, que também pode ser motivador, incluído

depois. Este pede que se calcule a altura de um tronco de árvore, cuja sombra mede 2

metros, confrontando-a com a altura de uma haste ou cabo de vassoura de 1,20 cuja

sombra mede 0,40 m. Ou seja, em esquema, na figura nº 1.

Tronco da árvore
haste de vassoura

sombra sombra
Fig. nº 1

Ora, em vez de entrar, de modo expositivo, no conceito de “triângulos

semelhantes”, parece entusiasmante a situação problemática de descobrir a altura de

uma árvore … sem ter que subir nela. Será fundamental que o texto, com ou sem

gravuras, leve os alunos a perceberem que a sombra do tronco da árvore aumenta mais

rapidamente que a da haste da vassoura e que esse aumento é proporcional aos

respetivos tamanhos. Admito que a reflexão dos alunos (com ou sem a ajuda do

professor) os leve a conhecer a altura da árvore através de uma regra de três simples.

Então o texto, a partir da proporcionalidade dos dois lados de cada ângulo aos

lados do outro ângulo, cada um a cada um, e com a constatação de que se trata de
ângulos iguais, acrescentaria que com um terceiro lado (acima simulado com uma linha

descontínua) cada ângulo passaria a triângulo, donde resultaria aquilo que se designa

como triângulos semelhantes ou homólogos (neste caso com base num ângulo reto mas

que noutros casos poderia ser agudo ou obtuso). Assim, aquela situação problemática

levaria ao conceito de “semelhança de triângulos” dos programas de Matemática através

de uma situação da observação quotidiana.

Vejamos agora o interessante desafio de tentar medir a largura de um rio sem

molhar os pés que, por ser mais difícil, como disse, deveria, no manual, vir depois do

problema da árvore. A proporcionalidade de pelo menos dois lados, cada um a cada um,

dos dois triângulos no problema da árvore, manter-se-ia mesmo imaginando o segundo

ângulo em posição invertida:

Deslocando nessa posição o ângulo da direita, resolve-se o problema da largura do rio.

rio X 4m

12m 5m Fig.nº2
O esquema reproduz uma figura do manual mencionado, e o X significa a

largura do rio que se pretende conhecer. Como se vê, no triângulo retângulo mais

pequeno, desenhado ao lado do rio, indica-se a medida dos dois catetos e no outro

triângulo indica-se apenas a medida de um cateto (coincidente com a margem do rio)

pois o outro cateto desse triângulo retângulo constitui a largura do rio, que se pretende

descobrir. Também aqui a reflexão sobre uma proporcionalidade direta levará os alunos

a encontrarem a solução, através de uma regra de três simples, sem conhecerem em

pormenor a informação teórica das páginas anteriores sobre semelhança de triângulos. O

que será tanto mais acessível se o problema do cálculo da altura da árvore preceder o da

largura do rio.

Mas a passagem do primeiro problema para o segundo exemplifica bem a

dimensão transitiva e “potencial” de uma “competência” pois que é a sua possibilidade

de transferência de uma situação para situação relativamente nova (Fabre, 1999) que

constitui a característica fundamental desse conceito de competência. Parece assim que

competência é algo de flexível e relacionado com o progressivo domínio mental dos

saberes mas dificilmente inventariável, o que contraria as tentativas de listagem de

competências.

Mas vale a pena refletir no pormenor da linguagem, já que no Brasil é corrente o

termo de “congruência” em vez do de “semelhança”. Pergunto: o triângulo formado

pela árvore, sombra e respetiva hipotenusa é semelhante ao formado pela haste da

vassoura, sombra e hipotenusa? Então um não é maior que o outro? Não se ria

preferível dizê-los “proporcionais”? E, pelo menos, parece mais verídico o termo de

“congruente”, preferido na cultura brasileira, como sinónimo de relação harmoniosa

entre dois objetos. Mas o adjetivo proporcional seria o mais “realista”. Como
exemplifico também noutros momentos deste trabalho, a questão da linguagem não é

despicienda.

Uma reflexão de âmbito mais geral

O que a minha experiência com este manual me mostra (e imagino que isso se

poderá passar com muitos alunos) é que com base na curiosidade e intuição se podem

constituir momentos fundamentais da aprendizagem (momentos relacionados com o

habitualmente chamado método de descoberta) e que a partir daí se pode utilizar o

método expositivo, mas de fundo dialógico, para chegar a noções como a de triângulos

semelhantes ou congruentes e aos critérios de semelhança. A marcha da aula de

Matemática não poderia/deveria partir da observação de problemas da vida real para

chegar aos conceitos matemáticos? Pelo menos com alguma frequência, para que o

interesse dos alunos seja despoletado. Ora, como disse, no manual analisado, estes

problemas aparecem depois de toda a teorização sobre “casos de semelhança” de

triângulos. E aliás o primeiro problema aí incluído é o célebre problema em que Tales

de Mileto calcula a altura de uma pirâmide, que, embora interessante, parece mais

complicado que o de descobrir a altura da árvore… sem ter de nela subir.

As reflexões anteriores levam-nos à proposta de que momentos de descoberta

funcionem em alternância e em relação com momentos expositivos. Esses problemas

podem ser de origem escolar, vindos dos laboratórios, vindos dos manuais ou problemas

extra-escola – que são os mais motivadores…Nas aulas de Língua Portuguesa não será

interessante discutir o que há de “sentimental” ou de “análise social” numa telenovela e

daí chegar aos conceitos relacionados com os movimentos literários (romantismo,

realismo) consignados nos programas? Por outro lado, nas aulas tradicionais insiste-se

demasiado no texto narrativo e menos no texto argumentativo, bem necessário na vida

cívica e cultural. Uma situação problemática consistirá em apresentar diferentes textos


com argumentações divergentes sobre uma temática (literária, cultural, ou científica) e

estimular a realização de um texto em que cada aluno assuma a sua própria

argumentação.

Numa entrevista de que dou conta noutra obra (2005), perguntava um aluno por

que razão não se deveria partir da observação da Ponte 25 de Abril (comprida ponte

situada entre as duas margens do Rio Tejo em Lisboa) para depois estudar os conceitos

de força em Física. Sobre essa pergunta, alguns professores dessa disciplina

responderam que isso envolveria muitas variáveis difíceis de analisar e afastadas do

programa, o que obrigaria os professores a uma preparação complexa. Ora um dos

professores respondeu que tais questões poderiam ser analisadas pelo menos de modo

qualitativo de modo a satisfazer a curiosidade dos jovens.

Ainda quanto ao ensino da Física, assisti mais recentemente a um diálogo de

uma professora com jovens mostrando-lhes uma moeda no fundo de um recipiente,

pedindo para se afastarem e pararem logo que as paredes em alumínio do recipiente não

deixassem ver a moeda. Ao juntar água a pouco e pouco e estando os jovens imóveis,

num dado momento a moeda começava a ver-se. Porquê? – perguntava a professora. A

água serve de lente? - perguntava um dos jovens. De algum modo, dizia a professora,

pois os raios de luz, que a moeda recebe do Sol e que nos envia, e que nos fazem ver a

moeda são… refratados pela água. Refratados? Quê? – perguntava um dos jovens. A

professora pensou um pouco e sugeriu o termo “dobrado” como equivalente a

“refratado”. Mas pensei que “refratado” pode também ser explicado a partir de

“fratura”, pois os raios luminosos são, neste fenómeno, de algum modo “fraturados” ou

“partidos” ao passarem pela água. Em conclusão, os raios de luz permitiam neste

momento aos alunos ver a moeda pois eram “dobrados em ângulo” pela água. “Dobrar”,
palavra da linguagem corrente, para introdução do conceito de refração, motivado por

uma curiosa situação problemática, que os ajudará a reter o conceito.

Robert Yin (2005) insere uma interessante descrição de uma escola japonesa

(p.38). O autor dessa descrição ficara surpreendido com um certo ruído nas salas de aula

mas essa surpresa desapareceu ao verificar por exemplo a introdução do conceito de

cubo. Antes de tudo o mais, o professor pediu aos alunos que escrevessem nos cadernos

diários o que sabiam sobre esse conceito. Depois pediu-lhe que em grupos construíssem

cubos em papel e outros materiais. Um grupo decidiu fazer um cubo de um metro

cúbico, mas depressa se lamentou da grandeza da tarefa. Logo outros se entusiasmaram,

perguntando quantos alunos caberiam dentro. O professor confirmou a dificuldade do

trabalho e deu-lhes o resto da aula para o concluírem, o que aconteceria só no dia

seguinte. Aquela situação problemática iria levar os alunos a, digamos, “verem bem”

um cubo por dentro, a compreenderem intimamente um dado conceito… Lembrando-

me desta leitura, perguntei quantas faces ou lados tem um cubo a um jovem português

de 12 anos, que hesitou, disse primeiro quatro, depois cinco. Com aquela metodologia,

não teria hesitado.

Em suma, concluamos que através de situações problemáticas poderão

desencadear-se processos de desenvolvimento de competências numa perspetiva de

“saber em ação” e de autonomia na procura dos conceitos relacionados com essas e

outras situações problemáticas. A resolução de situações problemáticas cria

naturalmente uma capacidade mental de transferência para outras situações, ou pelo

menos uma apetência pela problematização e pelo pensamento crítico.

Conclusão: os professores como força de mudança

A indisciplina, os sinais de violência observados nas escolas atuais e o

desencanto de uma grande percentagem dos jovens pelo saber aí ministrado obrigam
imperativamente a refletir sobre uma necessária mudança da instituição escolar e levam

até alguns futurólogos a diagnosticar ou a antever a sua substituição por outros modelos

educativos.

Em resposta ao pessimismo com que alguns pensadores veem a escola mas

sobretudo face à urgência de uma transformação da instituição escolar, os professores

são chamados mais do que nunca (como propõe Fullan numa obra emblemática, 1993) a

fazerem a diferença na vida dos estudantes. E Fullan argumenta que, se a finalidade

última da escola é a de produzir uma sociedade aprendente (“learning society”), a chave

para essa aprendizagem é o professor (p.125). Por outras palavras, o trabalho do

professor pode ser um impulso fundamental na vida dos jovens.

Em suma, é imperativo que, para além da apresentação e discussão coletiva dos

conteúdos programáticos, o professor crie percursos individualizados e momentos de

assistência pessoal de forma a responder aos diferentes perfis dos jovens e a promover

em todos eles capacidades de autonomia face, por um lado, aos problemas do

quotidiano e, por outro, à múltipla e absorvente informação, incluindo a informação

escolar. Essa autonomia concretiza-se no desenvolvimento no aluno das competências

de análise, de síntese, de interpretação crítica, de pesquisa face aos diversos suportes

informativos da atualidade, no sentido de um saber-pensar face aos múltiplos

“discursos” envolventes.

Referências
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Fabre, M. (2008). Philosophie du problème et pédagogie de la connaissance (Dewey,
Bachelard, Deleuze, Meyer). Paris: Vrin
Fabre, M. (1999). Situations-problèmes et savoir scolaire. Paris : PUF
Fleming, M., & Levie, W.H. (1993). Instructional message design: Principles from the
behavioral and cognitive sciences (2nd ed.). Englewood Cliffs, NJ: Educational
Freinet, C. (1973). Para uma escola do povo. Lisboa: Presença
Freire, P. (1970). Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra
Fullan, M. (1993). Changing forces. Probing the depths of education reform. Londres:
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Heacox, D. (2006). Diferenciação curricular na sala de aula. Porto: Porto Editora
Gerard, F.-M. e Roegiers, X. (2003). Des manuels pour apprendre –
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Lebrun, M. (2008). Teorias e métodos pedagógicos para ensinar e aprender. Lisboa:
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Meirieu, PH. (2004) Faire l’école, faire la classe.Paris: ESF.
Perrenoud, Ph. (2000). Pedagogia diferenciada. Das intenções à ação. São Paulo:
Artmed
Vigotsky 1996. Pensamento e linguagem. São Paulo, Martins Fontes
Yin, R. K. (2005) (editor). Introducing the world of education. A case study reader.
Thousand Oaks: Sage Publications

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