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Artigo

É possível aplicar a
psicanálise à educação
SIGMUND FREUD,
n o s t e r m o s de u m a
profilaxia das neuroses A EDUCAÇÃO E
do ato c i v i l i z a c i o n a l ?
1
N o s textos de F r e u d ,
essa q u e s t ã o o s c i l a en- AS C R I A N Ç A S
tre o n e c e s s á r i o e o
contingente, próprio
das c o n d i ç õ e s p o l í t i c a s ,
s o c i a i s e r e l i g i o s a s de
sua é p o c a .
Psicanálise e educa-
ção; c i v i l i z a ç ã o ; edu-
cação dc crianças L e a n d r o de L a j o n q u i è r e

S I G M U N D FREUD, THE
E D U C A T I O N A N D THE
CHILDREN
Is it possible to
apply psychoanalisis to
education in terms ot
Em não poucas oportunidades, Freud exprimiu
neurosis prophylaxis
and civilization action? sua pretensão de que a psicanálise não viesse a ficar
In the works of Freud, restrita ao âmbito da "cura de certas formas da ner¬
this question hesitates
v o s i d a d e " (1913a, p. 1851). Em 1913, afirmou em
between the necessary
and contingent, Scientia que a psicanálise reveste um múltiplo interes-
constitued by political, se. Já em 1932, lembrou o auditório i m a g i n á r i o da
social and religious
Lección XXXIV da pertinência das "aplicações não
conditions of this time.
Psychoanalisis and médicas da psicanálise" (1932a, p. 3184). Porém, não
education; civilization; se l i m i t o u a colocar o acento na p o s s i b i l i d a d e de
education of children
expandir a teoria para além das fronteiras estritas da
clínica. De fato, deteve-se também a justificar expres-
samente o manuseio da própria psicanálise por parte
de profanos, como em 1926, por ocasião do affaire
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Reik . Obviamente, depois de um século de psicaná-
lise, nem a i m p u g n a ç ã o do m o n o p ó l i o médico no
exercício clínico nem o m ú l t i p l o interesse da teoria
analítica "para as ciências não psicológicas" são objeto
de surpresa (Freud, 1913a, p. 1847). Entretanto, a
questão da incidência da psicanálise além das suas
fronteiras disciplinares hoje consagradas volta ao cen-
tro do debate quando se lembra que, nessas mesmas
oportunidades, Freud fez referência ora à "aplicação
da psicanálise à pedagogia", ora ao exercício de "ana-
líticos pedagogos ou pedagogos analíticos".

• Psicanalista, Professor Associado d a Universidade de


São Paulo, C o - C o o r d e n a d o r d o LEPSI.
O que se começou a chamar nos últimos tempos, e em alguns
países, de conexão p s i c a n á l i s e - e d u c a ç ã o , cuja origem remonta às
referências que o próprio Freud fez à educação infantil e ao ide-
ário pedagógico de sua época, dista de ser u m campo de grandes
acordos. Talvez não pudesse ser de outra forma, considerando-se
não só que - como o próprio Freud o confessara em várias passa-
gens de sua obra - o seu "aporte pessoal a esta aplicação da psica-
nálise" foi de fato escasso, mas também porque é em torno das
crianças que gravitam todas as ilusões adultas sobre u m " m u n d o
melhor" (1925, p. 3216). Além do fato de Freud não ter sido ex-
plícito o suficiente, poder-se-ia também pensar que essa falta de
consenso revela que, precisamente, neste contexto de suposta "apli-
cação" revela-se implicada uma incidência possível da psicanálise no
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social e no p o l í t i c o . Assim, não teríamos muito do que estranhar,
pois o debate acerca dessa incidência recobre, por sua vez, aquele
outro em torno dos limites da própria psicanálise.
Mais ainda, caberia também afirmar que o fato de os adultos
perderem a clareza e s p i r i t u a l q u a n d o t a n t o se fala de c r i a n ç a s
como dos tempos futuros pode alertar no sentido de não nos es-
pantarmos com os próprios ziguezagues freudianos em matéria da
"aplicação da psicanálise à pedagogia". C o m o se sabe, Freud feste-
jou os empreendimentos de sua filha Anna, bem como não dei-
xou de esperar que esta "aplicação não m é d i c a " viesse a garantir
u m futuro não só para essa, mas também a sua outra estimada
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criatura - a p s i c a n á l i s e .
Nos primeiros tempos desta "aplicação" - que se chamou de
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p e d a g o g i a p s i c a n a l í t i c o - os empreendimentos e adeptos não fo-
ram, como sabemos, poucos. Entretanto, em contraposição ao en-
tusiasmo pouco cuidadoso dos pioneiros, hoje em dia já conta-
mos com um pouco mais de duas décadas de ceticismo e cuida-
do reflexivo. De fato, a e l u c i d a ç ã o da i m p o s s i b i l i d a d e de u m a
pedagogia analítica, empreendida dentre outros por C. Millot, J -
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C. Bigeault e G. T e r r i e r , acertou as contas com a ilusão psicana-
lítica na educação.
Porém, a impugnação criteriosa da suposta pertinência de uma
educação justificada psicanaliticamente - fruto da superposição dos
lugares do analista e do educador e, portanto, dotada de suposta
potestade profilática em matéria psíquica - incorreu, por sua vez,
n u m pequeno descuido q u a n d o , sem m a i s , s e n t e n c i o u , por u m
lado, que as referências freudianas ao assunto devem ser considera-
das como meras "exortações à mesura" (Millot, 1979, p. 204) e, por
outro, que "a incidência da psicanálise na civilização moderna não
passa em m o d o a l g u m por u m a reforma educativa" (p. 157). Ao
nosso ver, embora ambas afirmações sejam em certo sentido verda¬
deiras, as incursões de Freud na Pe-
dagogia r e c l a m a m um outro exame
na espera de se poder recolocar sob
outro ângulo a pergunta pela possi-
bilidade da incidência da psicanálise
no social e no p o l í t i c o , ao m e n o s
quando se trata de crianças.
Dessa forma, e m b o r a t a m b é m
seja verdade, conforme a p o n t a Mi¬
l l o t , que "o ú n i c o a u x í l i o que a
psicanálise parece capaz de apontar à
educação (..). seja de caráter (...) ana-
lítico", talvez se possa pensar que esse
" a u x í l i o a n a l í t i c o " não se r e d u z à
proposta de cura analítica em massa
para crianças e educadores.

O termo pedagogia psicanalítica


n ã o recobre o c o n j u n t o das incur-
sões psicanalíticas na educação. En-
tende-se por tal a p r e t e n s ã o de se
encontrar uma educação "no ponto",
ou seja, u m a matriz de intervenções
junto às crianças capaz de vir a con-
vertê-las em adultos sem padecimen-
tos psíquicos. Essa nova pedagogia,
resultante da conjugação de um pou-
co de e d u c a ç ã o e u m o u t r o t a n t o
de p s i c a n á l i s e teria, então, poderes
p r o f i l á t i c o s . Em s u m a , q u a n d o se
pensa em termos de pedagogia psica-
nalítica, almeja-se encontrar a fórmu-
la do b a l a n c e i o p a r a c r i a n ç a s do
processo civilizacional.
Hoje em dia, não há, ao menos
no campo psicanalítico, nenhuma pre-
tensão nesse sentido. Entretanto, sabe-
mos que não foi sempre assim. Basta
l e m b r a r o p i o n e i r i s m o de A n n a
Freud, dentre muitos outros empreen-
dedores no mundo da psicoprofilaxia
para crianças, em particular.
Toda pretensão de se preveni-
rem as neuroses e as perversões gra¬
ças a uma suposta educação adequada está alicerçada n u m a leitura
dos textos freudianos que desconhece a estrutura p a r a d o x a l do
desejo revelada pela experiência psicanalítica. Essa "leitura parcial"
de Freud pode ser creditada na conta do tempo, ou seja, no tem-
po que foi necessário para o advento lacaniano de u m "retorno a
Freud". Mas também cabe lembrar que a pretensão psicoprofilática,
que se reivindicou freudiana, esqueceu simplesmente de ler a adver-
tência da sua impossibilidade estrutural que o próprio Freud for-
mulara, com clareza e distinção, em Análisis terminable e intermi-
nable (1937). Em suma, mesmo tendo lhe sido possível brandir a
seu favor La ilustración sexual dei nino (1907) y La moral sexual
"cultural" y la nerviosidad moderna (1908), n ã o p o d e r i a n ã o ter
avançado mais u m pouco na leitura ao menos cronológica.
Entretanto, o fato de não haver dúvidas sobre a impertinência
da psicoprofilaxia não implica, necessariamente, a existência de um
"primeiro" e "segundo Freud" em matéria educativa como, dentre
outros, sustentara C. M i l l o t . Em outras palavras, a desilusão do
próprio Freud com relação à psicoprofilaxia não arrasta consigo
sua esperança de que a "aplicação da psicanálise (...) à educação das
gerações v i n d o u r a s " (1932a, p. 3184) venha a alterar o status quo
pedagógico, responsável pelo cumprimento imperfeito da sua devida
missão (p. 3186).
A esperança de uma outra educação é u m a constante nos tex-
tos freudianos. De fato, ela está, até certo ponto, colada à ilusão
profilática como, por exemplo, nos textos de 1907, 1908, no Pre-
facio para un libro de Oskar Pfister ( 1 9 1 3 ) , n a Lección XXIII
(1915-17) e em Análisis profano (1926), mas a separação processa-se
ao longo da obra. J á em 1909, por ocasião de Análisis de Ia fobia
de un nino de c i n c o anos, ao mesmo tempo em que reconhece ser
no m í n i m o problemática a questão da profilaxia, mantém a aposta
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na troca dos fins e d u c a t i v o s . Logo, na Lección XXXIV - consi-
derada classicamente como o enterro de toda esperança - Freud
observa mais uma vez a dificuldade de se levar à prática a profila-
xia junto às crianças, ao mesmo tempo em que esboça a análise
dos educadores como uma possibilidade sui g e n e r i s para que a edu-
cação venha a encontrar seu caminho.
Os remanejamentos do modelo pulsional, que culminaram no
postulado da irredutibilidade antinômica entre as pulsões de vida
e de morte, foram corroendo a ilusão profilática, quando possibi-
litavam o reconhecimento de que "o plano da Criação não inclui
o propósito de que o h o m e m seja feliz" (Freud, 1929, p. 3025),
até o a b a n d o n o e x p l í c i t o da m e s m a n o texto de 1937. Porém,
Freud manteve firme sua esperança a qual batizou, finalmente, de
"educação para a realidade" (1927, p. 2988). Essa, diferentemente
daquela proposta na sua época - em particular, pela "piedade cris-
tã" (1932b, p. 3205) à moda do idealismo germânico ou da cultu-
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ra norte-americana , mas também pelo bolchevismo russo - , deve-
ria evitar a "miséria psicológica das massas"(1929, p. 3049), apesar
de não poder m u d a r "notadamente a essência psicológica do ho-
mem" (1927, p. 2991). Em suma, a esperança freudiana manteve-se
constante na medida em que não se articula como mais u m a re-
forma educativa em sentido estrito, ou seja, em prol de u m fim
profilático desejado.
Por outro lado, cabe observar que ao longo dos textos freudi-
anos também se processa, de forma cruzada à anterior e não menos
tensa, u m a outra distinção importante: aquela que medeia entre a
psicanálise com crianças e a educação infantil resultante da dita
aplicação da psicanálise. No início, a primeira empresa se anuncia
através da segunda e ambas se confundem nas mãos de Pfister e de
A n n a . Porém, ambas deixam de se recobrir totalmente, embora
Freud continue a manter uma certa oscilação, talvez devida ao fato
de sua filha estar, precisamente, no meio deste affaire.
Dessa forma, primeiramente encontramos, sem lugar a dúvidas,
que ao processo educativo de uma criança pode se lhe acrescentar,
com fins profiláticos, um pouco de psicanálise como, por exemplo,
em Multiple interés dei psiconálisis, Prefacio para un libro de
Pfister e em Análisis profano. Freud refere-se ao resultado dessa
conjunção em termos de "tratamento misto" e "análise de crianças".
Assim, a psicanálise enxerta-se na educação e produz como novida-
de u m tratamento psicoprofilático que, por sua vez, reforça a de-
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fesa freudiana do exercício profano da p s i c a n á l i s e .
Entretanto, em segundo lugar, em Prefacio para un libro de
A. Airchhorn (1925), Freud declara, por u m lado, que a tarefa
pedagógica é algo sui g e n e r i s que não pode ser confundida nem
substituída pela influência psicanalítica e, por outro, a "psicanálise
de c r i a n ç a s " pode intervir como " u m recurso a u x i l i a r " q u a n d o
assim for necessário. Mais ainda, apesar de a psicanálise do adulto
neurótico ser equivalente a u m a reeducação, frisa que a educação
das crianças reclama "outra coisa diferente da análise mesmo que
coincida com ela no objetivo". Esta "outra coisa" só pode ser uma
outra educação que não a proposta pela pedagogia da época. Ela,
em virtude de ser o resultado da "aplicação" de u m a sobre a ou-
tra, passaria a compartilhar o objetivo da "situação analítica" que
pelo fato de exigir "o desenvolvimento de determinadas estruturas
psíquicas e uma atitude singular perante o analista" não pode ser
aplicada a um "ser imaturo". Essas "condições particulares" faltam
também no "jovem abandonado" - campo de intervenção de Aich¬
horn - e no "criminal impulsivo". Aquilo que falta - sinal de uma
espécie de imaturidade que reclama à m a i s do q u e a j u d a , i s t o o c u p a o
educação - é condição da operativida- foco das preocupações de u m Freud
de da situação a n a l í t i c a que, em se sempre "fascinado" pelos "problemas
tratando de adultos, eqüivale a u m a culturais" - como diria de si mesmo
reeducação. Em suma, lembrando que em Autobiografia (1924).
o objetivo de uma análise é, em ter-
mos freudianos, levar o adulto neuró- A crítica freudiana à pedagogia
tico a reconhecer a q u i l o de que se da época c o m e ç o u a ser e s b o ç a d a
defende sintomaticamente - a lei do em Tres ensayos para una teoria
desejo - devido a um inevitável defei- sexual ( 1 9 0 5 ) q u a n d o da a v a l i a ç ã o
to educativo, podemos concluir que a do estatuto da educação na produ-
imaturidade infantil reclama por uma ção d o s " d i q u e s a n í m i c o s q u e se
intervenção que, à diferença da peda- o p õ e m ao i n s t i n t o s e x u a l " . Logo,
gogia da época, enverede a criança em Ilustración sexual dei nino,
rumo à castração que humaniza. Freud a c o n s i d e r o u e x p r e s s a m e n t e
F i n a l m e n t e , na Lección XXXIV, perniciosa do ponto de vista psíqui-
Freud manifesta rapidamente sua sa- co, u m a vez que se fundamenta no
tisfação pelo fato de sua filha estar "engano no terreno sexual e na in-
empenhada naquilo que ele considera t i m i d a ç ã o no terreno r e l i g i o s o " . J á
tanto importante quanto promissor. em La moral sexual cultural y la
Porém, logo mais, detém-se a exami- nerviosidad moderna, volta à crítica
nar a "missão primeira da educação", da educação, pois ela veicula desde
declara que até esse momento a edu- a infância a "moral sexual cultural"
cação c u m p r i u imperfeitamente sua em causa na "nervosidade moderna"
missão, bem como a "educação psica- que atinge os adultos.
n a l í t i c a " visa fazer da c r i a n ç a u m Dessa forma, parece q u e , se a
"homem sadio e eficiente", que não crítica visa ao caráter excessivo da
venha a se colocar "ao lado dos ini- moral adulta em voga e veiculada já
m i g o s d o p r o g r e s s o " . Em s u m a , na i n f â n c i a p e l a e d u c a ç ã o , e n t ã o
Freud acaba recuperando a distinção, Freud pressupõe que o mal-estar na
apresentada em 1925, entre a psicaná- civilização é contingente, a total satis-
lise c o m c r i a n ç a s e u m a e s p e r a d a fação p u l s i o n a l é possível, bem
educação, capaz de submeter as cri- como urge u m a reforma e d u c a t i v a
anças à castração que de outra forma com fins profiláticos à l u z da psica-
bem p o d e r i a vir a n ã o operar psi- nálise. Mais ainda, se assim fosse, te-
quicamente. ríamos u m " p r i m e i r o Freud" que a
Dessa forma, temos que a psico¬ p r o m o ç ã o da p u l s ã o de m o r t e na
profilaxia ou garantia antecipada de teoria a n a l í t i c a teria se encarregado
bem-estar é, de fato, abandonada; a de soterrar, apesar do d e s c o n h e c i -
nascente psicanálise com crianças re- mento dos partidários da pedagogia
vela-se incapaz de substituir a educa- psicanalítica. Porém, parece-nos, por
ç ã o primordial, bem como esta últi- u m l a d o , q u e t a n t o esses ú l t i m o s
ma, ao reclamar o auxílio analítico, quanto seus justos detratores supõem
u m a vez que a pedagogia a t r a p a l h a que o problema em pauta na época
seria quantitativo e, por outro, que,
embora o próprio Freud tenha feito
várias referências à possibilidade da
psicoprofilaxia, já há elementos nos
textos, anteriores a 1920, que tanto
i n v a l i d a r i a m a i l u s ã o da h a r m o n i a
quanto permitiriam ler, ao contrário,
n u m a chave q u a l i t a t i v a a c r í t i c a à
pedagogia da época.
Na contramaré das aparências de
u m " p r i m e i r o Freud", encontramos
uma reflexão sobre a irredutibilidade
e s t r u t u r a l do desprazer p s í q u i c o e,
p o r t a n t o , da i m p e r t i n ê n c i a de pre-
tender encontrar u m a dosagem me-
lhor das restrições civilizadoras.
Já antes de 1900, no Manuscrit
K, e n d e r e ç a d o a Fliess em 0 1 / 0 1 /
1896, Freud, reexaminando o estatu-
to da relação entre pudor, moralida-
de, recalcamento e desprazer, afirma
que "deve haver na sexualidade u m a
fonte independente de desprazer; se
essa fonte existir, ela pode alimentar
as sensações de nojo e dar força à
m o r a l i d a d e " (1987-1902, p. 131). Na
carta datada de 1 4 / 1 1 / 1 8 9 7 , afirma
que a m o r a l , ao c o n t r á r i o do que
poderia se pensar, resulta do recalca-
mento que, por sua vez, possui "um
elemento orgânico" - "abandono das
antigas zonas sexuais" devido à con-
q u i s t a da p o s i ç ã o ereta do h o m e m
(p. 2 0 5 ) . A i r r e d u t i b i l i d a d e do des-
prazer p s í q u i c o é t a m b é m referida
no Projeto de una psicologia para
n e u r ó l o g o s (1895). A organização psí-
quica é pensada em termos de u m a
"adquisição biológica" de "barreiras"
contra a "ameaça de desprazer", deri-
vada da própria "tendência básica do
11
sistema rieurônico" . Assim, haveria
uma "defesa normal" e um "recalque
histérico" perante uma invariável
ameaça de desprazer. Por outro lado, Freud alude ao caráter res-
tritivo inevitável da civilização, quando afirma, no Manuscrit N,
em 3 1 / 0 5 / 1 8 9 7 : "o incesto é um fato anti-social ao qual a socie-
dade deveu aos poucos renunciar para poder existir" (p. 186).
Logo após a virada do século, Freud se refere, em Tres en¬
sayos, à existência de impulsos em si mesmos perversos que po-
dendo acarretar só desprazer reclamam pela "ação de forças psíqui-
cas contrárias". Em 1912, em Sobre una degradación general de la
vida erótica, declara que o resto de insatisfação, inerente à "natu-
reza mesma do instinto sexual", é "fonte de máximos rendimentos
culturais" quando "submetido às primeiras normas da civilização".
E, finalmente, em El males tar en Ia cultura (1929), Freud afirma,
já sem rodeios, que o desprazer é o efeito inevitável da h u m a n i -
zação, devido à tensão c o n t r a d i t ó r i a i n e r e n t e à b i s s e x u a l i d a d e
constitutiva, ao fato da relação erótica comportar t a m b é m "ten-
dências agressivas diretas", bem como, fundamentalmente, à "adoção
da postura bípede e à desvalorização das sensações olfativas".
Dessa forma, em se tratando de uma impossibilidade estrutu-
ral de haver uma satisfação total e prazerosa, Freud não se ilude
nunca com uma educação "no ponto" capaz de não implicar des-
prazer psíquico. Mais ainda, se houvesse a possibilidade de encon-
trar a quantidade certa de satisfação/restrição, daí não reservaria à
educação um papel modesto na modificação do quadro de base.
Desde o início, consta o reconhecimento de u m a eficácia li-
mitada à educação ou, em outras palavras, do fato de a margem
de manobra dos adultos junto às crianças padecer de uma certa li-
mitação intrínseca. Em Tres ensayos, após afirmar que os "diques"
contra o "instinto sexual" são obra da educação, Freud declara que
a evolução sexual encontra-se "organicamente condicionada e fixa-
da pela herança e pode se produzir sem auxílio n e n h u m da edu-
cação" de forma tal que essa ú l t i m a se m a n t é m "dentro de seus
limites, restringindo-se a seguir as trilhas do organicamente pré-
formado ". Pois bem, se lembrarmos que o apelo às teses da he-
rança filogênica e da pré-formação orgânica ou adquisição bioló-
gica era o recurso disponível na época para se estabelecer na refle-
xão uma determinação estrutural, então Freud reconhece no adul-
to u m a p o s s i b i l i d a d e l i m i t a d a de vir a conjurar a d e s a r m o n i a
quantitativa implicada na evolução da criança.
Essa oposição necessário/contingente se reinscreve, em Multiple
interés dei psicoanálisis, na forma espontâneo/exterior. Na oportu-
nidade, afirma que a "repressão violenta dos instintos" "produzida
do exterior" não eqüivale à "produção espontânea" de repressões
por parte da própria criança que, assim, repete "uma parte da his-
tória da civilização", a qual "produzida do exterior" significa de
12
forma extemporânea ou sem guardar as devidas proporções no
interior de u m processo de evolução psíquica determinado estrutu-
13
r a l m e n t e , ou seja, em si mesmo "espontâneo", u m a vez que n ã o
obedece ao livre-arbítrio dos partícipes.
Em suma, Freud, apesar de se i l u d i r com a possibilidade da
profilaxia, não cifra suas esperanças em um manejo quantitativo da
intervenção educativa.
Nesse s e n t i d o , se l e m b r a r m o s que a crítica à e d u c a ç ã o da
época é u m a constante nos textos freudianos, ainda caberia anali-
sar qual seria o objeto da mesma, ou seja, o estofo de sua criti-
cada v i o l ê n c i a não-natural. Para tanto, pensamos ser necessário
colocar o problema n u m viés qualitativo. Isto é, n ã o se trataria
de pressupor que Freud n u m p r i m e i r o m o m e n t o iludiu-se com
u m a educação menos repressiva, mas sempre esperou por u m a
qualidade diferente de intervenção dos adultos junto às crianças -
ou seja, que os adultos pudessem vir a se endereçar às crianças
em nome de outra coisa que a moral de seu tempo - batizada
de "educação para a realidade".

Na mesma Lección XXXIV, Freud afirma, por oposição ao


ideário pedagógico hegemônico no início deste século, que a edu-
cação deve "buscar seu caminho entre o laisser-faire e a frustração",
14
bem como a " m i s s ã o " da "educação p s i c a n a l í t i c a " consiste em
fazer do educando um "homem sadio e eficiente" com vistas a não
acabar se colocando "ao lado dos inimigos do progresso". Ou seja,
estabelece uma diferença substancial entre o que deveria ser o fruto
da, assim chamada por Freud, "aplicação da psicanálise" e a educa-
ção de sua época, implementada à luz de uma pedagogia de cunho
religioso-moral. Nessa oportunidade, não faz mais do que recupe-
rar a diferença já assinalada em "El porvenir de una ilusión" entre,
por u m lado, a natureza "irreligiosa" da "educação para a realida-
de", promovida pela psicanálise, e, por outro, o "programa peda-
g ó g i c o " da época, centrado na "demora da evolução sexual e a
precocidade da influência religiosa", responsável pela coerção da
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atividade e curiosidade i n t e l e c t u a i s .
A e d u c a ç ã o para a realidade a d q u i r e sentido por oposição
àquela promovida pela pedagogia religiosa das primeiras décadas do
século XX. A realidade para Freud está longe de ser a dita realida-
de c o t i d i a n a e, p o r t a n t o , o seu anseio n ã o deve ser e n t e n d i d o
16
n u m sentido p s i c o l ó g i c o - a d a p t a c i o n i s t a . Por um lado, cabe lem-
brar que essa proposição educativa está sobreposta à definição da
e d u c a ç ã o , em si m e s m a , c o m o "o e s t í m u l o ao v e n c i m e n t o do
princípio de prazer e a substituição do mesmo pelo princípio de
realidade" (Freud, 1911, p. 1641) e, por outro, a realidade cotidi¬
ana, p r o d u t o das ilusões religiosas,
não é outra coisa que u m a espécie
de grande "neurose coletiva" - obje-
to de um futuro estudo sobre a "pa-
tologia das c o m u n i d a d e s c u l t u r a i s "
(1929, p. 3067).
Assim sendo, educar para a reali-
dade é s i n ô n i m o de educar para o
d e s e j o ou, se preferirmos, de educar
com vistas a possibilitar o r e c o n h e c i -
mento da impossível realidade do de-
s e j o - ou seja, o caráter artificialista
de seu estofo -, aquela que, precisa-
mente, as ilusões religiosas mascaram.
Em c o n t r a p a r t i d a , é p o s s í v e l
apurar o teor da crítica à moral re-
ligiosa no contexto da análise freu-
d i a n a a c e r c a da i m p e r t i n ê n c i a de
considerar a teoria psicanalítica uma
Weltanschauung p a r t i c u l a r . Freud
afirma que "a religião...explica (aos
homens) a origem e gênese do Uni-
verso, assegura-lhes proteção e gozo
final nas vicissitudes da vida e ori-
enta suas opiniões, bem como seus
atos c o m p r e s c r i ç õ e s que s u s t e n t a
com toda sua a u t o r i d a d e . C u m p r e ,
a s s i m , três funções: (...) satisfaz a
vontade de saber dos h o m e n s (...);
mitiga o medo dos homens perante
os perigos e as vicissitudes da vida
(...); formula prescrições, proibições
e r e s t r i ç õ e s " (1932b, p. 3193). Con-
tinuando, sustenta que "As exigências
éticas, às q u a i s a r e l i g i ã o quer dar
sustentação, demandam, pelo contrá-
rio, u m fundamento diferente, pois
são indispensáveis à sociedade huma-
na" (p. 3197).
Em s u m a , a c r í t i c a à r e l i g i ã o
não parece ser o reverso de u m a in-
gênua esperança libertária, embora
seja, como o próprio Freud confes-
sara ao pastor Pfister, u m p r o d u t o
de sua condição de "herético e í m p i o " (1909-1939, p. 162). A reli-
gião parece focalizar de fato seu c u n h o justificacionista, isto é,
obturadora da mesmíssima dimensão ética do agir humano. Freud,
por um lado, parece estar persuadido de que, na medida em que
17
o h o m e m obedece em nome de algum D e u s , sua ação encontra
justificativa em uma realidade espiritual transcendente à vida social,
bem como ganha u m a certeza subjetiva. Assim, q u a n d o de suas
mãos escorrega toda ilusão divina, torna-se possível formular a per-
gunta sobre o d e s e j o que anima seu ato e, por conseguinte, venha
a se perfilar no horizonte uma nuvem de incerteza espiritual ou
inquietação moral. Entretanto, Freud assinala não só a necessidade
em si das exigências morais mas também de vir a lhes outorgar
18
um outro " f u n d a m e n t o " . De fato, acredita-se possível considerar
a e m p r e i t a d a f r e u d i a n a de s u b s t i t u i r os m o t i v o s r e l i g i o s o s da
moral por outros puramente terrenos, como uma crítica a todo es-
sencialismo ético, tendente sempre a recusar, como lembrara Lacan
no Seminário VII, o caráter ex nihilo das criações discursivas mo-
rais ou, se preferirmos, a fragilidade inerente à existência artifici-
alista do homem.
Nesse sentido, a "moral sexual cultural" dos adultos, considera-
da "hipócrita", pois impede o homem de "viver com regularidade
sua verdade psicológica" (Freud, 1915, p. 2107), apõe-se no início
da reflexão freudiana à moral "natural". Isto é, na "moral sexual
cultural", o homem não pode se reconhecer enquanto d i v i d i d o e
desejante. Mais ainda, a pedagogia da época produz "conflito psí-
quico" (1908, p. 1264) ou "recalque violento" (1913a, p. 1866) uma
vez que, ocultando sistematicamente o sexual e intimidando no ter-
reno religioso, torna a tramitação das pulsões infantis um fato de
difícil acontecimento, e não, como muitos autores pensaram, por-
que ela exagerasse na quantidade de restrições comportamentais.
Embora cientes do caráter rico em nuanças, bem como espi-
nhoso, do debate religião-psicanálise e/ou ciência, consideramos ser
possível observar que Freud não chega em momento algum a sus-
tentar em nome da psicanálise a inverdade das doutrinas religio-
sas, embora, é claro, o tenha feito em nome próprio. Apenas, na
medida em que indaga a significação psicológica das mesmas, con-
clui que se trata de ilusões, isto é, crenças não necessariamente er-
radas nem improváveis de responderem aos cânones da razão cien-
tífica da época.
Nesse sentido, poder-se-ia afirmar que pretendia elucidar um as-
pecto em especial das doutrinas religiosas que, hoje, bem poderia ser
chamado de fundamentalismo r e l i g i o s o . Assim, caberia a possibilidade
de se demarcar uma diferença sutil entre religiosidade e fundamen-
talismo, isto é, uma crença fora de medida ou de toda razão.
Em suma, seria psiquicamente possível acreditar em doutrinas
religiosas sem cair nas garras do fundamentalismo religioso ou no
impasse próprio de u m justificacionismo ético, seja ele religioso
ou não. Como reza a letra de uma música popular latino-america-
na - "solo le pido a Dios que el futuro no me sea indiferente"
(L. Gieco) - , o sujeito bem pode apenas pedir a Deus que não
lhe tire sua própria responsabilidade pelo futuro, a possibilidade
de se e m p e n h a r existencialmente n u m ato ou de vir a agir em
19
nome do d e s e j o . Mas também seria psiquicamente possível bran-
dir u m certo ateísmo e, entretanto, estar espiritualmente tomado
num ilusionismo fundamentalista como, por exemplo, no caso do
bolchevismo russo. Bem como, finalmente, um sujeito irreligioso -
no caso Sigmund Freud - bem pode ter a esperança de que o fu-
turo da humanidade seja desprovido de ilusões religiosas, ou não,
apesar de estar ciente da d i f i c u l d a d e de que tal coisa venha a
20
acontecer .
Nesse contexto, parece que a persistente crítica freudiana à
educação da época não só não é a expressão de nenhuma espécie
de cinismo socioeducativo, como aponta para o aspecto central do
ideário educativo hegemônico nas primeiras décadas - seu justifi-
cacionismo pedagógico, epifenômeno do fundamentalismo cultural
que tomava conta da cultura, em particular no mundo germânico,
nos EUA e na Rússia.
A e d u c a ç ã o para a realidade, que Freud "iludiu", poderia ser
pensada como uma educação além do justificacionismo pedagógico
de c u n h o moral-religioso hegemônico na sua época. E provável
que essa idéia tenha acompanhado Freud durante anos, pois consta
ter afirmado, já em 1907: "A substituição do catecismo por um tra-
tado elementar dos direitos e deveres do cidadão, como a imple-
mentada pelo Estado francês, parece-me u m grande progresso na
educação infantil" (Freud, 1907, p. 1248).
Dessa forma, Freud estaria esperando apenas que o futuro
nos reserve uma "educação libertada das doutrinas religiosas" mes-
mo se ela não for capaz de mudar "notadamente a essência psico-
lógica do homem" (1927, p. 2991), isto é, de produzir a harmonia
psíquica que faz falta. Mais ainda, Freud considerava que, apesar de
ser improvável que sua esperança viesse algum dia a se concretizar,
"valia a pena tentar" (1927, p. 2987).
Nesse contexto, caberia afirmar que a crítica freudiana à pe-
dagogia da época, imbuída de certo fundamentalismo religioso ou
não, pressupunha a possibilidade de uma e d u c a ç ã o à s e c a . Freud
estaria criticando a pedagogia fundamentalista enquanto apostava
numa humilde educação sem fundamento transcendental algum e,
portanto, na possibilidade de que o homem já adulto viesse a ex¬
p e r i m e n t a r algo c o m o "o m u n d o n ã o é u m a n u r s e r y " (Freud,
1932b, p. 3197) ou, se preferirmos, que o homem u m a vez adulto
21
suportasse a vida preparando-se para a m o r t e . Em outras palavras,
mesmo que seja inevitável a vida se sustentar em ilusões, nada im-
pede que o homem saiba inconscientemente que elas são isso mes-
mo, ou seja, a marca do desamparo existencial e não indícios de
nenhuma transcendência. Assim, quando uma ilusão se sabe ilusão
fica resguardada a distância entre o sujeito e o registro dos ideais,
que não é outra que a fenda mesma do d e s e j o .

Entretanto, independentemente de que semelhantes suposições


possam dar lugar a uma questionável "psicologia do autor", cabe
observar que estamos persuadidos de que na letra freudiana opera
em f i l i g r a n a u m a diferença entre e d u c a ç ã o e p e d a g o g i a . Isto é,
entre, por u m lado, os efeitos subjetivantes ou formativos deriva-
dos para a criança de sua relação com os adultos e, por outro, o
conjunto dos saberes positivos sobre u m a suposta adequação entre
os meios e os fins da educação. M a i s a i n d a , pensamos que essa
disjunção educação-pedagogia é capaz de elucidar também os impas-
ses da educação de nossos dias.
A " e d u c a ç ã o " atual - em p a r t i c u l a r no i m p é r i o e s p i r i t u a l à
moda ianque - está impregnada, à diferença de outrora, de certo
fundamentalismo psiconaturalista. A educação nos dias de hoje é
pensada como o processo de estimulação metódica e científica de
uma série sem fim de capacidades psicomaturacionas. Assim reduzi-
da, por u m lado, a criança fica como objeto de saberes psicológi-
cos especializados e, por outro, as vicissitudes do ato de educar
para o desenvolvimento de uma racionalidade didático-instrumental
acabam tornando improcedente ao adulto manter aberta a interro-
gação sobre o impossível em torno do qual se articula sua própria
relação com a criança.
O fundamentalismo psiconatural que alimenta o ideário peda-
gógico atual é, na mesma linha dos ganhos religiosos, capaz de er-
r a d i c a r a v o n t a d e de saber, bem como de m i t i g a r o m e d o dos
adultos perante os perigos e as vicissitudes da vida - escolar ou
não - junto às crianças, na medida em que formula prescrições,
proibições e restrições sempre justificadas.
Porém, em u m ponto, as ilusões psiconaturalistas de hoje ga-
nham das religiosas do tempo de Freud no que diz respeito à edu-
cação: tornam o reconhecimento do desejo que anima o ato um fato
de difícil acontecimento e, portanto, reduzem toda e qualquer ins-
tância ou práxis educativa a u m a resignada prática psicopedagógica.
A insistência religiosa em dominar o desejo, como, aliás, toda
empresa neurótica, não faz senão colocar, uma e outra vez, o sujei¬
to em uma mesma encruzilhada, qual
seja aquela do reconhecimento de sua
impossível realidade. Mas, embora a
r e l i g i ã o n ã o recuse a r e a l i d a d e do
desejo, ela condena o sujeito à reite-
ração do fracasso do recalque. Entre-
t a n t o , essa " n e u r o s e c o l e t i v a " que
toma conta do mundo adulto alimen-
ta, s e g u n d o Freud na Lección XX-
XIV, o risco das crianças virem, num
futuro, a se colocar do lado dos "ini-
migos do progresso". Além disso, a
forclusão do desejo, implicada nas ilu-
sões psicopedagógicas atuais, dá mar-
gem a que as crianças venham a ado-
ecer de resignado cinismo.
Há, por d e f i n i ç ã o , antinomia
entre a natureza artificial do d e s e j o
e o justificacionismo moral, próprio
de todas as ilusões pedagógicas. Mas,
o fato de a pedagogia moderna estar
imbuída de um justificacionismo na-
turalista, ou seja, da certeza de que
haveria uma adequação natural entre
a intervenção educativa e o suposto
nível psicológico da criança, implica
a forclusão do d e s e j o . C o m o Lacan
o a s s i n a l a r a no seu Seminário VII,
trata-se da marca própria da espiritu-
a l i d a d e cientificista a t u a l , s o l i d á r i a
c o m u m a m o r a l ao " s e r v i ç o d o s
bens" e, portanto, antinômica a uma
"ética do desejo".
O b v i a m e n t e , tanto u m q u a n t o
outro risco de fracasso educativo, ou
seja, tornar-se u m i n i m i g o do pro-
gresso ou u m c í n i c o , r e l e v a m u m
problema político. Assim, neste pon-
to, a p s i c a n á l i s e e n c o n t r a seu pró-
prio l i m i t e e o dever que se acaba
colocando é, simplesmente, aquele de
a g i r n o m e s m o n í v e l p o l í t i c o do
p r o b l e m a , c o n f o r m e o b s e r v a r a , de
forma expressa, M a u d M a n n o n i em
Education impossible (1973). Por si- um limite já não mais deslizante. Se-
nal, talvez, ela tenha, nesse p o n t o , melhante situação reclama do analista
s a b i d o s e g u i r Freud, apesar de ele um outro engajamento para dar sus-
ter deixado em aberto a questão por tentação a u m a verdade c o n s t r u í d a
ocasião da Lección XXXIV. De fato, paradoxalmente pela " a p l i c a ç ã o " da
é factível que Freud tenha querido própria psicanálise, bem como vivi-
marcar uma precavida distância das fica a teoria, u m a vez que esta se
posições de Reich, para assim prote- confronta com o seu avesso.
ger a sua c r i a t u r a p s i c a n a l í t i c a do A p s i c a n á l i s e espreita-se na
22
n a z i s m o . Mas, por que não pensar, fronteira com a e d u c a ç ã o e a s s i m
também, se, ao afirmar que "não é g a n h a après coup u m l i m i t e , en-
missão do analítico decidir entre os q u a n t o o a n a l i s t a perde tal condi-
p a r t i d o s em p u g n a " u m a vez que, ção, por ter acabado passando dos
por u m lado, "toda educação é par- l i m i t e s . P o r é m , u m a vez l i v r e do
cial" e, por outro, a psicanálise não dever de a n a l i s a r , pode tomar par-
está n o r t e a d a por u m fim p a r c i a l , tido em n o m e p r ó p r i o nas discus-
Freud estaria, aqui, assinalando um sões educativas visando, como dizia
limite intransponível para a psicanáli- 2 3
H a n n a A r e n d t , colocar uma e
se? ( F r e u d , 1932a, p. 3 1 8 6 / 7 ) . Se, o u t r a vez o m u n d o no seu ponto
porventura, assim fosse, então, chega- justo e dessa f o r m a i n o c u l a r n a s
dos à beira do limite, seriamos obri- c r i a n ç a s o g e r m e do movimento
gados a deixar de analisar. de tentar o impossível. •
Antes de chegarmos às fronteiras
da psicanálise, cabe prestar um auxí-
lio a n a l í t i c o . O c u m p r i m e n t o desse
dever desloca sempre mais um pouco REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
o l i m i t e da p r ó p r i a p s i c a n á l i s e ,
como Freud d e m o n s t r o u com suas
incursões além do terreno terapêuti-
Arendt, H. ( 1 9 9 6 ) . La c r i s i s de la e d u c a c i -
co. Em princípio, a expansão ao in- ón. In Entre el pasado y el futuro.
finito converteria à psicanálise numa Barcelona: Península.
visão de mundo. Todavia, semelhante Bigeault, J-P. et Terrier, G. (1978). L 'illusion
risco só existe na medida em que o psychanaly fique en education. Paris: PUF.
analista venha a esquecer que, apesar C i f a l i , M. ( 1 9 8 2 ) . Freud pedagogue?. Paris:
de sua insistência, nem tudo é anali- InterEditions.

sável neste, nosso ú n i c o , m u n d o . Freud, S. ( 1 8 8 7 - 1 9 0 2 ) . Lettres à W i l h e m Fli-


es s. In La naissance de la psychanalyse.
Nesse sentido, ao menos temos que,
P a r i s : PUF, 1956.
com a "aplicação da psicanálise" à edu-
( 1 9 0 9 - 1 9 3 9 ) . Correspondence avec
cação - consistente na tarefa de corro-
le pasteur Pfister. Paris: Gallimard,
ermos as ilusões (psico)pedagógicas no
1991.
interior mesmo do campo educativo (1895). Proyecto de u n a psicolo-
a fim de tentar sempre uma educa- gia para neurólogos. In Obras Com-
ç ã o para a realidade impossível do pletas (Vol.1). Madrid: Biblioteca Nue¬
desejo - , o a n a l i s t a depara-se com va, 1973.
( 1 9 0 5 ) . Tres e n s a y o s para u n a teo- la c o n c e p c i ó n del u n i v e r s o ( w e l t a n s c h a u -
r i a s e x u a l . In Obras Completas (Vol. u n g ) . In op. cit.
2 ) . M a d r i d : B i b l i o t e c a Nueva, 1973. (1937). A n á l i s i s t e r m i n a b l e e inter-
( 1 9 0 7 ) . La i l u s t r a c i ó n s e x u a l del m i n a b l e . In op. cit.
n i n o . In op. cit. Lacan, J . ( 1 9 5 9 - 6 0 ) . Le Séminaire. Livre VII:
( 1 9 0 8 ) . La m o r a l s e x u a l c u l t u r a l y L' éthique de la psyçhanalyse. Paris:
la n e r v i o s i d a d m o d e r n a . In op.cit. É d i t o n s du S e u i l , 1986.
( 1 9 0 9 ) . A n á l i s i s de la fobia de u n L a j o n q u i è r e , L. de ( 2 0 0 0 ) . P s i c a n á l i s e , M o -
n i n o de c i n c o a n o s ( c a s o Juanito). In dernidade e Fraternidade. In M. R.
op. cit. Kehl ( o r g . ) Função Fraterna. R i o de J a -
(1910). Psicoanálisis. Cinco confe- n e i r o , RJ: R e l u m e Dumara.
r ê n c i a s p r o n u n c i a d a s en la C l a r c k U n i - M a n n o n i , M. (1973). Éducation impossible.
versity. In op. cit. P a r i s : du Seuil.
( 1 9 1 1 ) . Los dos p r i n c í p i o s dei fun- M i l l o t , C. ( 1 9 7 9 ) . Freud AntiPedagogo.
c i o n a m i e n t o m e n t a l . In op. cit. B u e n o s A i r e s : P a i d ó s , 1982.
( 1 9 1 2 ) . S o b r e u n a d e g r a d a c i ó n ge-
n e r a l de la v i d a e r ó t i c a . In op. cit.
(1912-1913). Totem y tabú. In op. cit.
( 1 9 1 3 a ) . M ú l t i p l e interés del psico- NOTAS

a n á l i s i s . In op. cit.
( 1 9 1 3 b ) . Prefacio p a r a un l i b r o de
Oskar Pfister. In op.cit .
1 Versão portuguesa, p a r c i a l m e n t e modifi-
( 1 9 1 5 ) . C o n s i d e r a c i o n e s de a c t u a l i -
c a d a , do t e x t o p u b l i c a d o em L'Infantile,
dad sobre la g u e r r a y la m u e r t e . In o
n 1, p p . 3 1 - 4 8 , M a r t i n M e d i a È d i t i o n s e
op. cit.
U n i t é de R e c h e r c h e P s y c h o n è s e et P s y c h o ¬
( 1 9 1 5 - 1 7 a ) . Lecciones introductorias
p a t o l o g i e de P a r i s XIII, 2 0 0 1 .
al p s i c o a n á l i s i s - Lección XXI. Desarro-
11o de la l i b i d o y o r g a n i z a c i o n e s sexu¬ 2 Defesa e x p r e s s a d o e x e r c í c i o por parte
ales. In op. cit. de p e d a g o g o s , r e i t e r a d a na Autobiografia
(1915-17b). Lecciones introdutórias ( 1 9 2 4 ) , b e m c o m o n o Prefacio para un li-
al p s i c o a n á l i s i s - Lección XXIII. Via de bro de A. Aichhorn (1925).
formación de s i n t o m a s . In op. cit.
3 Possível implicância, vislumbrada por
(1924). Autobiografia. In Obras
Freud em " A n á l i s i s de la fobia de un
Completas. (Vol. 3 ) . M a d r i d : B i b l i o t e c a
n i n o de c i n c o a n o s " ( 1 9 0 9 ) .
Nueva, 1973.
4
( 1 9 2 5 ) . P r e f a c i o p a r a un l i b r o de Em carta a Pfister de 0 9 / 0 1 / 1 9 0 9 , expri-
A u g u s t A i r c h h r o n . In o p . cit . me " E s p e r a m o s q u e a c h a m a q u e preserva-
(1926). Análisis profano (psicoaná- mos l a b o r i o s a m e n t e de s u a e x t i n ç ã o a t i ¬
l i s i s y m e d i c i n a ) . In op. cit. ç a n d o - a em nosso t e r r e n o , transformar-se-á
(1927). El p o r v e n i r de u n a i l u ¬ no v o s s o n u m i n c ê n d i o n o q u a l nós pos-
s i ó n . In op. cit. s a m o s ir b u s c a r u m a b r a s a incandescente"
( 1 9 2 9 ) . El m a l e s t a r en la c u l t u r a . (p.48). Já numa outra, em 02/05/1912,
In op. cit. d e c l a r a " (...) eu estou t e n t a d o pela certeza
( 1 9 3 2 a ) . Nuevas l e c c i o n e s i n t r o d u c - de g a n h a r um novo c í r c u l o de leitores
t o r i a s - L e c c i ó n XXXIV. A c l a r a c i o n e s , entre os p e d a g o g o s (...) Nossa força de ex-
a p l i c a c i o n e s y o b s e r v a c i o n e s . In op. cit. p a n s ã o no m e i o m é d i c o é i n f e l i z m e n t e es-
( 1 9 3 2 b ) . Nuevas lecciones i n t r o d u c t o - t r e i t a ; é i m p o r t a n t e que b o t e m o s u m pé lá

r i a s - L e c c i ó n XXXV. El p r o b l e m a de fora o n d e for p o s s í v e l " ( p . 9 6 / 6 ) . C o r r e s ¬


pondence avec le pasteur Pfister, Paris, do i n e v i t á v e l d e s p r a z e r o r g a n i z a ou educa
Gallimard, 1991. Vinte anos depois, na psiquicamente.
" L e c c i ó n XXXIV", refere-se à " a p l i c a ç ã o da
12 U m a i n t e r v e n ç ã o i n c a p a z de desdobrar
psicanálise à pedagogia" como a "ativida-
a metáfora parental.
de c a p i t a l da a n á l i s e " (p. 3 1 8 4 ) .
13 Por isso Freud d e c l a r a em "Multiple
5 Parece q u e o s u r g i m e n t o do t e r m o está
i n t e r é s dei p s i c o a n á l i s i s " que a " v e l h a afir-
atrelado à aparição em 1926 - saudada
m a ç ã o de q u e a n e r v o s i d a d e era u m pro-
com e n t u s i a s m o por Freud - de Zeitschrift
d u t o da c i v i l i z a ç ã o tem ( a p e n a s ) u m a par-
für psychoanalytische Pädagogik, sob a res-
te de v e r d a d e " (p. 1 8 6 6 ) .
p o n s a b i l i d a d e e d i t o r i a l de H e n r i c h Meng e
Ernest S c h n e i d e r . A p u b l i c a ç ã o encerrou-se 14 Observe-se q u e nesta o p o r t u n i d a d e em
em 1937 d e v i d o ao a v a n ç o n a z i s t a . l u g a r de u s a r o t r e m o pedagogia, Freud
vale-se de educação.
6 Freud AntiPedagogo, B u e n o s A i r e s : Pai-
dós, 1 9 8 2 ; L'illusion psychnalytique en 15 Cf. "La i l u s t r a c i ó n s e x u a l dei nino";
education, P a r i s : PUF, 1978. "La m o r a l s e x u a l c u l t u r a l y la n e r v i o s i d a d
moderna"; "El p o r v e n i r de u m a ilusión".

7 Propõe trocar a "dominação (...) dos


16 Cf. a a n á l i s e e x a u s t i v a de N e l s o n Coe-
i n s t i n t o s " pela tarefa de t o r n a r o " i n d i v í -
l h o J r . A Força da Realidade na Clínica
duo c a p a z de c u l t u r a e s o c i a l m e n t e u t i l i -
Freudiana, S ã o P a u l o , 1 9 9 5 . No entanto,
zável à c u s t a de u m mínimo de p e r d a de
nos d i s t a n c i a m o s no que d i z respeito ao
sua a t i v i d a d e " (p. 1 4 3 9 ) .
tratamento da " e d u c a ç ã o p a r a realidade",
v. pág. 103.
8 C o n s t a que Freud fez e x p l i c i t a m e n t e pre-
ocupadas referências à situação cultural 17 Na " L e c c i ó n XXXV", in o p . c i t , Freud
nos EUA em "El p o r v e n i r de u n a ilusión" coloca num mesmo patamar o lugar que
(p. 2 9 8 2 ) , "El m a l e s t a r en la c u l t u r a " ( p . as obras de Marx possuíam na Rússia
3 0 4 9 ) e em "El p r o b l e m a de la concepción com a Bíblia e o C o r ã o .
dei u n i v e r s o " (p. 3 2 0 5 ) .
18 Freud visava dessacralizar a moral
9 Freud, em "El p o r v e n i r de una ilusión",
religiosa de s u a é p o c a , ou seja, torná-la
refere-se à R e v o l u ç ã o B o l c h e v i q u e nos ter-
uma produção logicamente contingente
m o s de " g r a n d e e x p e r i ê n c i a c u l t u r a l " ( p .
da história dos homens, assim como o
2964), enquanto critica a pretensão de
era a própria tradição c i e n t í f i c a e, p o r -
uma "piedosa América" de vir a ser
tanto, não pretendia estabelecer uma fun-
God 'own country (p. 2 9 7 0 ) . Entretanto, damentação não-ilusória, num real empí-
cinco anos mais tarde, em a "Lección r i c o , de u m a nova m o r a l . A sua preten-
XXXV" c r i t i c a d e t i d a m e n t e o fato de a ex- são de embasar a moral numa espécie
p e r i ê n c i a b o l c h e v i q u e ter se c o n v e r t i d o em de c á l c u l o r a c i o n a l ou d i á l o g o f r a t e r n o a
m a i s u m a v i s ã o do mundo. s e r v i ç o de u m a sobrevida da e s p é c i e hu-
10 A s s i m , t a m b é m , i n s t a l a - s e , sob os ofí- mana com relação à "verdade psicológi-
c i o s de A n n a , uma ilusão pedagógica na ca" não implica necessariamente a deri-
origem mesma da p s i c a n á l i s e c o m crian- vação l ó g i c a de u m a moral do real da
ças, cuja impugnação primeira coube a ciência como se c o s t u m a pensar. Cf. de
M. Klein. minha autoria "Psicanálise, Modernidade
e Fraternidade". In M. R. Kehl (org.)
11 Logo m a i s s e n t e n c i a : "o d e s p r a z e r con- Função Fraterna, R i o de J a n e i r o , R J : Re-
tinua sendo o único m e i o de educação". lume Dumara.
A s s i m t e m o s q u e a defesa c o n t r a a a m e a ç a
19 Na " L e c c i ó n XXI", in op. cit., Freud
afirma que "o Édipo é, n o fundo, uma
obra imoral, pois s u p r i m e a responsabili-
d a d e do h o m e m " (p. 2 3 2 9 ) .

20 A l e i t u r a recente de Psicanálise, Judaís-


mo: Ressonâncias, S ã o P a u l o , SP: Escuta,
1987, de Renato Mezan, chamou nossa
atenção para um comentário de Freud em
u m a de s u a s c a r t a s ao P a s t o r Pfister. Esta
não tinha sido notada quando da reda-
ção o r i g i n a l deste texto. Nessa carta de 0 9 /
10/98 Freud refere-se a si m e s m o como
"um judeu absolutamente ateu". A sutil
a n á l i s e q u e M e z a n r e a l i z a da c a r t a a b r e a
p o s s i b i l i d a d e de r e t o m a r no f u t u r o a tese
apresentada neste parágrafo.

21 Cf. "Consideraciones de actualidad


s o b r e la g u e r r a y la m u e r t e " . In o p . cit.,
p. 2 1 1 7 .
22 Tese s u s t e n t a d a , em p a r t i c u l a r , p o r M.
C i f a l i em Freud pedagogue?. P a r i s : InterE-
d i t i o n s , 1982.

23 Cf. "La c r i s i s de la e d u c a c i ó n " . In En-


tre el pasado y el futuro. B a r c e l o n a : Penín-
s u l a , 1996.

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