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Pietra Izabela Barbosa – GRR20141093

Curso de Psicologia
Estágio Específico em Psicologia e Saúde I
Docente: Nadja Nara Barbosa Pinheiro

CONSIDERAÇÕES ACERCA DO (NÃO) SABER INAUGURADO PELA PSICANÁLISE

INTRODUÇÃO

Muitas são as inquietações que emergem com início das práticas clínicas, enquanto
psicólogo em formação (e atuação) através do estágio. Elas incluem desde questões da ordem da
recuperação e organização do conteúdo teórico “acumulado” ao longo dos anos de formação
sobre a perspectiva teórica escolhida, até e principalmente questões referentes a técnica, ou seja,
postura e manejo frente ao atendimento e acompanhamento clínico individual no CPA (Centro de
Psicologia Aplicada), proposta esta do estágio especifico em saúde com ênfase em psicanálise.
O meu imaginário, como recém estagiária sem a experiência anterior da disciplina de
triagem, sobre as expectativas que eu deveria atender enquanto futura profissional englobavam
tanto o domínio teórico como uma desenvoltura rápida a respeito da técnica. Ideais estes em
consonância com a perspectiva universitária. Frente a impaciência em relação a esse processo a
frustração foi inevitável. A cada novo atendimento, nova supervisão e sessão de analise pessoal
venho me defrontando com o fato de que em psicanalise as questões referente ao fazer clínico,
não são tão simples de se lidar. Elas implicam um outro movimento vivencial e de apropriação que
não o de evolução no sentido de progresso que condena e exclui os “erros”, mas sim de processo,
que contem sua riqueza justamente nas pedras, curvas e turbulências que lhe são intrínsecas.
Logo, a questão a respeito do saber me instigou, por um lado, eu tinha certas expectativas
sobre o meu fazer, que eu acreditava que eram um desdobramento direto do domínio teórico que
eu deveria apresentar. Por outro, fui me defrontando com uma exigência de outra ordem, uma
implicação que não estava descrita nos livros, um envolvimento atento e laborioso, próximo, por
sentido metafórico, ao início da aprendizagem do oficio de bordar: um ponto por vez, o desmanchar
e o rever, e o apostar como constitutivos do processo. Inicialmente me questionei sobre qual era
a concepção de saber com a qual a psicanalise trabalhava, com as supervisões - de ambos os
estágios que participo – e o estudo teórico essa pergunta foi sofrendo mutações. Frente a
constatação de que dentro do movimento psicanalítico (Birman, 1989), ou ainda já nos seus
primórdios a noção de saber já lhe era cara, produziu-se um giro na minha compreensão a respeito
do que estaria em jogo quando se fala em “saber”. Melhor dizendo, a psicanalise nasce, se
constitui enquanto movimento, e se sustenta até os dias de hoje justamente porque propõe uma
inversão não só da concepção de saber, mas de sua forma de enunciação. Quando sinalizo que
se trata de sua enunciação, estou apontando tanto para seu modo de apresentação, como o lugar
que ocupa, a posição que reclama a si, e consequentemente o peso que encerra (Birman, 1989;
1991).
O contato com a psicanalise que se dá inicialmente por via da universidade para muitas
pessoas, e a ameaça da impressão da sua lógica (busca por um conhecimento todo que
equivaleria a verdade) nos processos de aprendizagem e “transmissão” que acontecem em seu
interior atrelado a eleição da psicanálise como orientação teórica e ética no fazer futuro enquanto
psicólogo apresentam-se como subsidio para a sustentação do objeto e objetivo deste trabalho.
Bem como, a pontuação que Freud realizou no início de seu texto Caminhos da Terapia
Psicanalítica (1917/2010), a saber, de que a dificuldade em relação a proposta psicanalítica não
é uma dificuldade intelectual, mas sim uma de ordem afetiva, que se ergue como resistência, tanto
para seus potenciais “praticantes” como para o público científico no geral.
Mas do que se trataria esse campo de saber inaugurado pela psicanalise (Guedes, 2012),
que causa dificuldades de cunho afetivo e reverbera como um dos golpes narcísicos, junto aos
golpes cosmológico, com a descoberta de Copérnico, e biológico, com a descoberta de Darwin
(Freud, 1917/2010, pp. 184-186)? Logo, o objetivo perseguido neste trabalho é tatear algumas
considerações acerca do campo de saber introduzido pela psicanálise. Para tal, foram consultados
textos freudianos e de um comentador em especial, Joel Birman, além de artigos selecionados a
partir de uma investigação não sistemática sobre a temática.

DESENVOLVIMENTO

Costumeiramente, seja no senso comum ou dentro da própria universidade, saber é


assimilado como campo da teoria, da razão, em última instância como campo do conhecimento.
Saber seria entendido como algo que se apreende conscientemente, exclusivamente pelo
pensamento; sempre passível de enunciação, ou seja, quem pensa claro, fala também de forma
clara; e tal enunciado se institui como universal, sua validade se sustenta na independência de
seu anunciador. Esses princípios, estabelecidos pela modernidade científica no qual Descarte é o
referencial paradigmático, vem a formar, entre outros, o ensino universitário, que tem como
norteador a ideia de saber capaz de ser transmitido, uma vez que é adquirido (Figueiredo & Vieira,
1997, p. 25).
A psiquiatria como herdeira da medicina e responsável por enunciar a verdade e o saber
sobre a loucura e a psicologia por responder a respeito da relação entre a psique ou a consciência
com a realidade material tendo por finalidade a adaptação do indivíduo ao mundo externo,
compactuam com as premissas apresentadas anteriormente constitutivas do saber enquanto
conhecimento. A concepção epistemológica nos casos dos saberes psiquiátrico e psicológico
privilegiam um delineamento a priori da verdade que é impresso sobre o fenômeno da loucura ou
sobre as condutas não adaptativas, no qual a postura adotada é de normalização desses
indivíduos, seja pela via pedagógica ou biológica – uso de medicação. Outra característica
fundamental dessa lógica, a saber, da concepção cientificista, compreende a anulação da
subjetividade da pessoa que supostamente detém o conhecimento, ou seja, das figuras do
psiquiatra e do psicólogo. Bem como, seja na medicina somática ou mental, há a utilização
exclusiva da estratégia do olhar como principal metodologia clínica (Birman, 1991, p. 159). Faz-se
necessário a ressalva de que tal posicionamento em relação aos saberes propostos pela
psiquiatria e a psicologia não é de “condenação”, mas sim de crítica tendo em vista a contraposição
com o projeto e o movimento psicanalítico, que será melhor explanado a diante.
Adentrando o campo dos primórdios da prática psicanalítica com as experiências iniciais
de Freud, temos inicialmente uma especial atenção sua em relação a histeria, pseudo da doença
segundo o discurso médico-psiquiátrico, uma vez que as investigações dos sintomas manifestos
não possuíam nenhuma correspondência biológica. Logo a histeria era desqualificada como forma
de expressão de sofrimento ou ainda que o quadro histérico não passava de um fingimento. Freud
acreditou no sofrimento dessas pessoas e passou a investigar o que estaria em jogo, ou seja,
houve um movimento de reconhecimento daquela experiência, daquele sofrimento enquanto
legítimo. Essa legitimação também foi se dando no trajeto de seu manejo com esses pacientes ao
perceber o lugar fundamental que tinha escuta-los. Bem como, a partir dessa disponibilidade de
escuta a sexualidade foi ganhando o seu destaque como articulador de uma dinâmica psíquica
que mais tarde Freud vai defender em termos de consciência e inconsciente (Masotta, 1917).
Portanto, o que se vislumbrou foi uma passagem da lógica ver/ser visto, dominante na medicina,
para uma logica de falar/escutar, passa a ser uma clínica da escuta (Birman, 1991, p. 160).
A proposta psicanalítica também se constituiu como clínica da escuta e deslocada do
enfoque na consciência, com o estudo sobre afasias realizado por Freud. A concepção
localizacionista das afasias foi sistematicamente desconstruída. Desse modo, a linguagem foi
situada funcionalmente, compreendendo certa autonomia e independência do mapeamento
anatômico do sistema nervoso. O registro tópico ficou em segundo plano frente ao privilegio dado
pelo pai da psicanálise ao registro funcional: “[...] Enuncia-se uma concepção em que a psique é
fundada na linguagem” (Birman, 1991, p. 17).
O espaço de escuta a partir da experiência com os sujeitos histéricos, acompanhado da
implicação daquele que escuta, junto a atenção para o papel que a sexualidade ocupa nesses
enunciados e ainda, o destaque a linguagem enquanto função apartado de seu correlato
anatômico, constituem a matéria-prima da formação da experiência psicanalítico originária, termo
este forjado por Birman (1989; 1991), para designar a experiência que se realiza no espaço
analítico, que é tanto condição de possibilidade do saber como da ética psicanalítica. Matéria-
prima esta que pode ser compreendida como inter-subjetividade e linguagem (1989, p. 17), ambos
termos traçados por Birman. O autor também nos notifica que é pela ênfase atribuído a esta
experiência, enquanto pressuposto fundamental, que o vínculo com a tradição psiquiatria é
quebrado e a loucura é retirada do registro médico da enfermidade.
Melhor situando, o eixo norteador da intersubjetividade, diz respeito a um processo que se
dá entre uma pessoa que fala e alguém que a escuta, figuras estas que se inscrevem no contexto
psicanalítico em decorrência dos efeitos que comportam e que são de ordem trágica, porque é um
relacionamento que não atende a um quadro no qual há um portador de um saber e alguém
desprovido de qualquer verdade, um papel que transfere e um outro que espera e atende
inalterado, mas sim uma relação no qual é fundamental para se caracterizar como intersubjetivo
que o analista se implique no processo psicanalítico enquanto sujeito, só assim deixa de ser
apenas uma interação interpessoal. É esta relação intersubjetiva que constitui o cerne fundamental
da psicanalise, que se apoia e organiza em torno da transferência e a resistência (Birman, 1989,
p.17).
Logo a loucura, a partir de uma perspectiva no qual devolva-se o sentido de sua
experiência, provoca um restabelecimento do sujeito como seu pilar, como detentor de um saber
sobre si mesmo, bem como revelador de uma verdade. O louco volta a ocupar o centro de sua
experiência, portando uma verdade singular. É aí que entra “o psicanalista”, como o único a
passível presentificar essa verdade, uma vez que ocupa a posição de escuta. Isto significa que a
verdade não pode provir, uma vez constituída e instituída a priori, por este – o psicanalista (Birman,
1989, p.40). Sentido e verdade estão o tempo todo distribuídos entre as duas figuras do cenário
analítico, bem como o eixo que embasa a resistência analítica como o eixo que é a base do desejo
de análise. Em última instância, nenhum dos agentes em jogo é privilegiado de qualquer destes
elementos (Birman, 1989, p. 41) e por encerrar tal dinâmica o discurso psicanalítico realizou um
afastamento da verdade codificada fundamentalmente como explicação. É o sujeito da experiência
que passa ser o referencial originário da verdade psíquica.
É a partir dessa experiência psicanalítica originaria, pautada na intersubjetividade e na
linguagem, regulada pela transferência e pela resistência, caracterizando uma inversão da ordem
de prioridades estabelecida pelo discurso psiquiátrico, que pressupostos básicos como a
sexualidade infantil, a teoria da libido, a teoria do recalque e o completo de Édipo, se forjaram.
Qualquer outra proposta que abra mão de algum desses pressupostos não pode se intitular
psicanalítico. Nas palavras de Freud, “A psicanálise leva apenas uma vantagem: a de não afirmar
abstratamente as duas teses, tão dolorosas para o narcisismo, da significação psíquica da
sexualidade e da inconsciência da vida mental, mas demonstrá-las com um material que concerne
pessoalmente a todo indivíduo e o força a tomar posição ante esses problemas” (Freud,
1917/2010). Tal explicitação freudiana a respeito do processo psicanalítico, a saber, orientado pela
posição tomada pelo sujeito diante sua verdade e o embate com as suas resistências, corresponde
a mesma funcionalidade teórica e ética que Freud exigia do movimento analítico.
É nesse sentido, que apresentamos algumas pontuações de cunho metodológico que
engendram essa composição epistemológica.
Primeiramente, é em relação a regra fundamental do espaço psicanalítico, a da associação
livre, no qual se convida que a figura do analisante fale livremente o que lhe ocorrer. É apenas por
meio dela que a loucura se inscreve no registro da palavra e sai do universo da desrazão em que
foi situada pela lógica racionalista da representação cartesiana. Além disso ela sustenta que se
tenha acesso ao universo de sentido da subjetividade, ou seja, desde Freud justamente o sonho,
o lapso, o ato falho e o chiste já se tornaram os fenômenos a serem priorizados. Esses fenômenos
foram privilegiados porque estão em concordância com a noção de sujeito proposto pela
psicanalise, melhor explicitada na sequência.
A regra fundamental do espaço analítico encontra sua fundamentação, primeiro na
extrapolação do campo da consciência. Freud denominou de metapsicológico o corpo de
conceitos que foi extraindo e conectando a partir da prática de sua clínica, tal nomeação significa
que a psique é tomada desde uma perspectiva desconscialista. O inconsciente ergue-se como um
registro psíquico excedendo o campo da consciência, apontando assim para uma noção de sujeito
estruturalmente cindido. Logo a verdade em jogo para a psicanalise responde a isso, ou seja, parte
da máxima posta por essa divisão, que o sujeito porta um saber do qual não sabe que detém, se
diz mais do que se quer dizer (Figueiredo & Vieira, 1997, p. 25), um saber enredado na linguagem,
por conseguinte é por meio de suas manifestações, aparentemente desconexas ou arbitrárias –
como por exemplo o chiste, ou o ato falho – que se tem notícias do seu registro. (Birman, 1991,
pp. 14-16).
É nesse sentido, a partir de tal concepção de sujeito, que o discurso freudiano presa pela
existência da interpretação (e inaugura sua concepção de (não) saber – explicitado adiante). Ou
ainda, não há esse sujeito, com tais contornos, se não há ao mesmo tempo a consideração da
interpretação. Em última instância o sujeito sustentado por esse discurso é necessariamente um
interprete, constituindo assim como mais um fundamento para amparar e legitimar a regra
fundamental da associação livre. Segundo Birman (1991, p. 14) o sujeito interprete o é assim,
fundamentalmente, porque se assenta em “pressupostos histórico e simbólico”. Portanto fica
evidente que para a psicanalise é a realidade psíquica que ocupa o lugar de eixo epistemológico
fundamental diante a realidade material (Birman, 1991, p. 58).
A realidade psíquica do sujeito se apresenta como campo, matéria-prima a ser decifrada,
no qual a interpretação se apresenta como um modo de saber que se forma e circula entre as
duas figuras envolvidas, possibilitando à analista e analisando se defrontarem frente os mesmos
enigmas e ascenderem suas singularidades. Nesse processo o que ainda não teve estatuto de
sentido pode encontrar seu espaço para existir e assim desvelar suas junções significativas
(Birman, 1991, p. 46). Birman (1991, p. 72) sintetiza a reverberação dessa concepção de sujeito,
que se alicerça na concepção de inconsciente:

“Para Freud, o sujeito se revela fundamentalmente – e de modo fulgurante


– pelas fendas rompidas na totalidade de seu ego, ou seja, exatamente ali
onde a individualidade psicológica se apresenta como falha nas
possibilidades de realização ideal de suas funções mentais, consideradas
em conjunto. O resíduo passa a ser o paradigma metodológico da revelação
subjetiva. A enunciação da verdade do sujeito pode ser apreendida num
flash quando se rompe, mesmo momentaneamente, a individualidade
psicológica, concebida nos termos da referência à realidade material”

Por isso se faz tão necessária a seguinte advertência realizada por Birman (1989, p. 84) a
respeito do papel do analista, uma vez que é na relação com o mesmo que o analisando se
inscreve como sujeito, desde o registro do inconsciente, e a regra fundamental da associação livre
encontra seu sentido. O autor afirma que frente a desimplicação do analista no processo analítico,
seja pela via da identificação com o saber constituído em teoria explicativa, seja por um
esquecimento de sua própria posição subjetiva construída por sua experiência analítica originária,
que encerram sua mortalidade, singularidade do seu aparelho psíquico e de sua economia
libidinal, o que se produz é uma experiência de registro de acontecimentos psíquicos no outro.
Todavia o conteúdo desse registro não possui qualquer impacto na realidade psíquica do analista
como sujeito. A repercussão imediata é a anulação da linguagem enquanto trama, bem como o
silenciamento da visão de psíquico como mítico-fantasmática. Logo o psiquismo é tomado a partir
de uma perspectiva comportamental. A escuta empreendida pelo psicanalista deixa de orientar-se
pelas fendas abertas no seu ego, ou pensamento/lógica consciente, a partir da sua experiência
analítica originária, para responder ao discurso teórico aprendido. Nas palavras de Birman (1989,
p. 84):
“[...] o psicanalista se transforma num técnico do inconsciente do outro,
visando a sua “cura” com a utilização da “droga” interpretação, não estando,
portanto, nunca em questão na sua posição subjetiva pelos enigmas
colocados pelo outro no processo psicanalítico. [..] O analista seria o
detentor de um saber praticamente soberano no que se refere a experiência
psíquica e aos seus desvios, sustentando-se num código sofisticado sobre
as enfermidades psíquicas e reduzindo, assim o saber analítico ao modelo
médico-pedagógico.”

Portanto, o analista pode se tornar um obstáculo para o processo psicanalítico do


analisando, e ainda sua função pode retornar a uma dinâmica no qual verdade e saber são
recolocados como fundamento, típica funcionalidade do discurso psiquiátrico, silenciando assim a
marca da originalidade epistemológica da psicanálise.
Quando a figura do analista para no espaço da teoria, outro impedimento se coloca, uma
vez que sua figura lhe demanda um permanente movimento “entre a singularidade de sua
experiência analítica e a universalidade da teoria psicanalítica” (Birman, 1991, p. 43). Para que
esse movimento constante se dê é necessário que o funcionamento econômico psíquico do
analista esteja o tempo todo aberto a emersão da surpresa enquanto experiência, ou seja, abertura
de escuta ao sentido singular que se dá na relação intersubjetiva. E é a partir desse
posicionamento e dinâmica que inclusive o discurso teórico pode se desdobrar em outros rumos
e mesmo retificar-se (Birman, 1991, p. 48).
Exercer a psicanalise, ou seja, ocupar o lugar de analista demanda em primeiro lugar a
análise pessoal, espaço atravessada por dúvidas, angustias, questões das mais diferentes ordens,
na busca de alivio das dores de seu próprio viver, constituindo assim o referencial da formação
enquanto psicanalista. Freud já sinalizava e advertia a respeito disso, como é possível contatar no
seguinte fragmento de seu famoso texto Recomendações ao médico para o tratamento
psicanalítico (1912/2017, p. 100) “Há anos, quando perguntando sobre como nos transformamos
em analistas, respondi: através da análise dos próprios sonhos”, e mais adiante em seu texto alerta
que na negligencia quanto a própria autoanálise o psicanalista perde de aprender com seus
pacientes, com toda a pluralidade de singularidades que encerram. Ele não só tem essa perda
como pode produzir perigo para os outros – pacientes, na medida que sua tendência seja a de
projetar para fora particularidades suas atribuindo sua validade a teoria enquanto discurso geral,
para Freud isso causa uma desvalorização do método psicanalítico.
A partir do pontuado até o momento é possível demarcar que para psicanálise todo saber
é atrelado ao sujeito que o enuncia, um Eu que não é senhor em sua própria casa (Freud,
1917/2010). A partir de sua clínica, ou seja, da experiência analítica originária, o saber inaugurado
pela psicanálise é “furado, lacunar, vazado” (Figueiredo & Vieira, 1997, p. 25), da ordem de um
conteúdo não conhecido, formado singularmente. Em resumo, se trata de um falado que é
simultaneamente silenciado, se fala mais do que se sabe. A originalidade trazida pela psicanalise
neste campo consiste em justamente tomar o saber pela via da negatividade, em contrapartida da
noção empreendida na tradição das ciências médica e psicológica que se atrela a ideia de um
saber maior, absoluto, que assegura a verdade, e que em algum momento será atingido, basta
persegui-lo. É justamente a falta de uma garantia última que atribui ao saber sua inconsistência
não como incompleto, mas sim como descompleto. Portanto, é um saber fundamentalmente
inconsistente, sua transmissão não ocorre sem resto, e tal dinâmica é generalizada para todo o
saber, incluso para o saber psicanalítico. Figueiredo e Vieira (1997, p. 27) afirmam que a
psicanálise nos ensina a respeito do saber precisamente “a ideia de deslocar o saber desse lugar
de fetiche e supô-lo como causa de desejo, do mesmo modo que Freud supôs o objeto perdido.
Cada encontro se dá como um reencontro. Mas também como ilusão, falácia. Este pode ser um
modo de traduzir o saber como furado”. E por fim é exatamente esse postulado acerca do saber,
tão caro a psicanalise, que a possiblidade engendrar sua episteme e método.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao final deste trabalho percebe-se que a psicanalise tem uma posição bastante peculiar
em relação ao campo do saber. Não compartilha com os ideais de saúde e normalidade da
medicina, mas tem sua gênese a partir desta. Compactua com os ideais de ciência, entretanto
colocando em jogo, inconsciente ou sujeito, coisas que lhe são drasticamente estranhas.
Aparentemente se assemelha a filosofia na investigação teórica, porém não se ocupa da formação
de um corpo conceitual todo, coerente e sistemático, muito pelo contrário, se coloca justamente
uma teimosia em fechar esse corpo conceitual que segue mutável a cada dado novo provindo da
experiência clínica.
Conclui-se que há, com a proposta da psicanalise, uma inversão completa das diligências
epistemológicas e metodológicas, uma absoluta reestruturação do campo de fenômenos que
deveriam ser valorizados e interpretados nos caminhos investigativos, que faz da mesma um
campo totalmente original no que diz respeito ao saber, isso também se dá a partir de uma ruptura
de cunho epistemológico com a psicológica explicativa e a psiquiatria.
A temática da verdade se descola de uma noção de saber totalizado/absoluto/completo e
passa a ser considerada como sentido, onde a oposição ser/não se destaca ganhando um lugar
central, deixando de responder as oposições verdadeiro/falso e adequado/inadequado a realidade
externa. Essa oposição privilegiada (ser/não ser) sintoniza com a noção de sujeito defendida pelo
discurso analítico, a saber, caracterizado pela divisão, uma vez que é um ser falante (Teixeira,
2002). A linguagem se destaca de seu correlato anatômico e revela uma dinâmica própria que dá
notícias de um outro registro psíquico, o inconsciente. E é por via justamente desse outro registro
que se envereda a psicanalise, a partir da abertura de um espaço de escuta d(isso) por parte da
figura do analista, numa relação intersubjetiva, no qual a intervenção é no sentido de fazer o sujeito
saber daquilo que sabe mas que não sabe do que fala, ou seja, engendrar um processo de
deciframento, e não para saber o que o analisando não sabe. Segundo Birman (1991, p. 46) a
experiência psicanalítica proporciona uma troca mutua, o papel do analista possibilita ao
analisando “aceder à singularidade de sua verdade, e a figura do analisando possibilita ao analista
a revelação de certas particularidades de sua história”.
A peculiaridade da psicanálise no campo do saber se faz presente também por via da
ênfase ao peso da subjetividade do “médico” na sua prática terapêutica, e principalmente por
retira-lo da posição soberana, ou seja, ele deixa de equivaler a uma figura que ocupa um lugar
absoluta da verdade e do saber. Tais potências passam a se distribuírem e circularem entre as
figuras do analista e do analisando. E mais, o saber em jogo é da ordem do singular, e do
inconsciente – ou ainda desde do conflito que implica essa divisão primeira -, portanto não-todo,
inconsistente, que deixa sempre um resto. Logo o funcionamento da economia psíquica do
analista é uma dimensão fundamental no apontamento das condições epistemológicas principais
para a o movimento do saber psicanalítico (Birman, 1991).
REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS

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Coelho, D. M. (2011). Saber e autoridade em Freud e no mundo contemporâneo. ECOS, 9 (1), 94-
104.

Figueiredo, A. C. & Vieira, M. A. (1997). Sobre a supervisão: do saber sobre a psicanálise ao saber
psicanalítico. Cadernos IPUB, 9, 25-30.

Freud, S. (2010). Caminhos da Terapia Psicanalítica. In P. C. Souza (Org. & Trad.), Obras
completas, volume 14: História de uma neurose infantil (“O homem dos lobos”), Além do princípio
do prazer e outros textos (1917 ‑ 1920). São Paulo: Companhia das Letras. (Obra original
publicada em 1917).

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Sigmund Freud: Fundamentos da Clínica Psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica. (Obra original
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saber do psicanalista (pp. 29-43). Rio de Janeiro: Associação Científica Campo Psicanalítico.

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