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Curso de Psicologia
Estágio Específico em Psicologia e Saúde I
Docente: Nadja Nara Barbosa Pinheiro
INTRODUÇÃO
Muitas são as inquietações que emergem com início das práticas clínicas, enquanto
psicólogo em formação (e atuação) através do estágio. Elas incluem desde questões da ordem da
recuperação e organização do conteúdo teórico “acumulado” ao longo dos anos de formação
sobre a perspectiva teórica escolhida, até e principalmente questões referentes a técnica, ou seja,
postura e manejo frente ao atendimento e acompanhamento clínico individual no CPA (Centro de
Psicologia Aplicada), proposta esta do estágio especifico em saúde com ênfase em psicanálise.
O meu imaginário, como recém estagiária sem a experiência anterior da disciplina de
triagem, sobre as expectativas que eu deveria atender enquanto futura profissional englobavam
tanto o domínio teórico como uma desenvoltura rápida a respeito da técnica. Ideais estes em
consonância com a perspectiva universitária. Frente a impaciência em relação a esse processo a
frustração foi inevitável. A cada novo atendimento, nova supervisão e sessão de analise pessoal
venho me defrontando com o fato de que em psicanalise as questões referente ao fazer clínico,
não são tão simples de se lidar. Elas implicam um outro movimento vivencial e de apropriação que
não o de evolução no sentido de progresso que condena e exclui os “erros”, mas sim de processo,
que contem sua riqueza justamente nas pedras, curvas e turbulências que lhe são intrínsecas.
Logo, a questão a respeito do saber me instigou, por um lado, eu tinha certas expectativas
sobre o meu fazer, que eu acreditava que eram um desdobramento direto do domínio teórico que
eu deveria apresentar. Por outro, fui me defrontando com uma exigência de outra ordem, uma
implicação que não estava descrita nos livros, um envolvimento atento e laborioso, próximo, por
sentido metafórico, ao início da aprendizagem do oficio de bordar: um ponto por vez, o desmanchar
e o rever, e o apostar como constitutivos do processo. Inicialmente me questionei sobre qual era
a concepção de saber com a qual a psicanalise trabalhava, com as supervisões - de ambos os
estágios que participo – e o estudo teórico essa pergunta foi sofrendo mutações. Frente a
constatação de que dentro do movimento psicanalítico (Birman, 1989), ou ainda já nos seus
primórdios a noção de saber já lhe era cara, produziu-se um giro na minha compreensão a respeito
do que estaria em jogo quando se fala em “saber”. Melhor dizendo, a psicanalise nasce, se
constitui enquanto movimento, e se sustenta até os dias de hoje justamente porque propõe uma
inversão não só da concepção de saber, mas de sua forma de enunciação. Quando sinalizo que
se trata de sua enunciação, estou apontando tanto para seu modo de apresentação, como o lugar
que ocupa, a posição que reclama a si, e consequentemente o peso que encerra (Birman, 1989;
1991).
O contato com a psicanalise que se dá inicialmente por via da universidade para muitas
pessoas, e a ameaça da impressão da sua lógica (busca por um conhecimento todo que
equivaleria a verdade) nos processos de aprendizagem e “transmissão” que acontecem em seu
interior atrelado a eleição da psicanálise como orientação teórica e ética no fazer futuro enquanto
psicólogo apresentam-se como subsidio para a sustentação do objeto e objetivo deste trabalho.
Bem como, a pontuação que Freud realizou no início de seu texto Caminhos da Terapia
Psicanalítica (1917/2010), a saber, de que a dificuldade em relação a proposta psicanalítica não
é uma dificuldade intelectual, mas sim uma de ordem afetiva, que se ergue como resistência, tanto
para seus potenciais “praticantes” como para o público científico no geral.
Mas do que se trataria esse campo de saber inaugurado pela psicanalise (Guedes, 2012),
que causa dificuldades de cunho afetivo e reverbera como um dos golpes narcísicos, junto aos
golpes cosmológico, com a descoberta de Copérnico, e biológico, com a descoberta de Darwin
(Freud, 1917/2010, pp. 184-186)? Logo, o objetivo perseguido neste trabalho é tatear algumas
considerações acerca do campo de saber introduzido pela psicanálise. Para tal, foram consultados
textos freudianos e de um comentador em especial, Joel Birman, além de artigos selecionados a
partir de uma investigação não sistemática sobre a temática.
DESENVOLVIMENTO
Por isso se faz tão necessária a seguinte advertência realizada por Birman (1989, p. 84) a
respeito do papel do analista, uma vez que é na relação com o mesmo que o analisando se
inscreve como sujeito, desde o registro do inconsciente, e a regra fundamental da associação livre
encontra seu sentido. O autor afirma que frente a desimplicação do analista no processo analítico,
seja pela via da identificação com o saber constituído em teoria explicativa, seja por um
esquecimento de sua própria posição subjetiva construída por sua experiência analítica originária,
que encerram sua mortalidade, singularidade do seu aparelho psíquico e de sua economia
libidinal, o que se produz é uma experiência de registro de acontecimentos psíquicos no outro.
Todavia o conteúdo desse registro não possui qualquer impacto na realidade psíquica do analista
como sujeito. A repercussão imediata é a anulação da linguagem enquanto trama, bem como o
silenciamento da visão de psíquico como mítico-fantasmática. Logo o psiquismo é tomado a partir
de uma perspectiva comportamental. A escuta empreendida pelo psicanalista deixa de orientar-se
pelas fendas abertas no seu ego, ou pensamento/lógica consciente, a partir da sua experiência
analítica originária, para responder ao discurso teórico aprendido. Nas palavras de Birman (1989,
p. 84):
“[...] o psicanalista se transforma num técnico do inconsciente do outro,
visando a sua “cura” com a utilização da “droga” interpretação, não estando,
portanto, nunca em questão na sua posição subjetiva pelos enigmas
colocados pelo outro no processo psicanalítico. [..] O analista seria o
detentor de um saber praticamente soberano no que se refere a experiência
psíquica e aos seus desvios, sustentando-se num código sofisticado sobre
as enfermidades psíquicas e reduzindo, assim o saber analítico ao modelo
médico-pedagógico.”
Ao final deste trabalho percebe-se que a psicanalise tem uma posição bastante peculiar
em relação ao campo do saber. Não compartilha com os ideais de saúde e normalidade da
medicina, mas tem sua gênese a partir desta. Compactua com os ideais de ciência, entretanto
colocando em jogo, inconsciente ou sujeito, coisas que lhe são drasticamente estranhas.
Aparentemente se assemelha a filosofia na investigação teórica, porém não se ocupa da formação
de um corpo conceitual todo, coerente e sistemático, muito pelo contrário, se coloca justamente
uma teimosia em fechar esse corpo conceitual que segue mutável a cada dado novo provindo da
experiência clínica.
Conclui-se que há, com a proposta da psicanalise, uma inversão completa das diligências
epistemológicas e metodológicas, uma absoluta reestruturação do campo de fenômenos que
deveriam ser valorizados e interpretados nos caminhos investigativos, que faz da mesma um
campo totalmente original no que diz respeito ao saber, isso também se dá a partir de uma ruptura
de cunho epistemológico com a psicológica explicativa e a psiquiatria.
A temática da verdade se descola de uma noção de saber totalizado/absoluto/completo e
passa a ser considerada como sentido, onde a oposição ser/não se destaca ganhando um lugar
central, deixando de responder as oposições verdadeiro/falso e adequado/inadequado a realidade
externa. Essa oposição privilegiada (ser/não ser) sintoniza com a noção de sujeito defendida pelo
discurso analítico, a saber, caracterizado pela divisão, uma vez que é um ser falante (Teixeira,
2002). A linguagem se destaca de seu correlato anatômico e revela uma dinâmica própria que dá
notícias de um outro registro psíquico, o inconsciente. E é por via justamente desse outro registro
que se envereda a psicanalise, a partir da abertura de um espaço de escuta d(isso) por parte da
figura do analista, numa relação intersubjetiva, no qual a intervenção é no sentido de fazer o sujeito
saber daquilo que sabe mas que não sabe do que fala, ou seja, engendrar um processo de
deciframento, e não para saber o que o analisando não sabe. Segundo Birman (1991, p. 46) a
experiência psicanalítica proporciona uma troca mutua, o papel do analista possibilita ao
analisando “aceder à singularidade de sua verdade, e a figura do analisando possibilita ao analista
a revelação de certas particularidades de sua história”.
A peculiaridade da psicanálise no campo do saber se faz presente também por via da
ênfase ao peso da subjetividade do “médico” na sua prática terapêutica, e principalmente por
retira-lo da posição soberana, ou seja, ele deixa de equivaler a uma figura que ocupa um lugar
absoluta da verdade e do saber. Tais potências passam a se distribuírem e circularem entre as
figuras do analista e do analisando. E mais, o saber em jogo é da ordem do singular, e do
inconsciente – ou ainda desde do conflito que implica essa divisão primeira -, portanto não-todo,
inconsistente, que deixa sempre um resto. Logo o funcionamento da economia psíquica do
analista é uma dimensão fundamental no apontamento das condições epistemológicas principais
para a o movimento do saber psicanalítico (Birman, 1991).
REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS
Coelho, D. M. (2011). Saber e autoridade em Freud e no mundo contemporâneo. ECOS, 9 (1), 94-
104.
Figueiredo, A. C. & Vieira, M. A. (1997). Sobre a supervisão: do saber sobre a psicanálise ao saber
psicanalítico. Cadernos IPUB, 9, 25-30.
Freud, S. (2010). Caminhos da Terapia Psicanalítica. In P. C. Souza (Org. & Trad.), Obras
completas, volume 14: História de uma neurose infantil (“O homem dos lobos”), Além do princípio
do prazer e outros textos (1917 ‑ 1920). São Paulo: Companhia das Letras. (Obra original
publicada em 1917).