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O poder não existe. Quero dizer o seguinte: a ideia de que existe, em um determinado
lugar, ou emanando de um determinado ponto, algo que é um poder, me parece baseada
em uma análise enganosa e que, em todo caso, não da conta de um número considerável de
fenômenos. Na realidade, o poder é um feixe de relações, mais ou menos organizado, mais
ou menos piramidalizado, mais ou menos coordenado. Portanto, o problema não é de
construir uma teoria do coordenado. Portanto, o problema não é de construir uma teoria
do poder.
Não existe “Algo unitário e global chamado poder, mas unicamente formas díspares,
heterogêneas, em constante transformação. O poder não é um objeto natural, uma coisa; é
uma prática social e, como tal, constituída historicamente”.
Lembra-nos Castor B. Ruiz que a palavra poder esteve sempre associada, dentro de uma
herança de definições históricas, ao estigma do mal, diferentemente das conotações
outorgadas à palavra liberdade ou à palavra amor. Em que pese isso, o poder (como
símbolo) representa uma “dimensão exclusiva do ser humano”.
Ou seja, ao mesmo tempo em que pode estar associado a práticas de dominação, o poder
também “conota uma dimensão humana sempre criativa e, portanto, indefinível”.
Não esqueçamos, no entanto, que a investigação acerca do poder não se imiscui somente
nos mecanismos de formação, direção e modificação do comportamento humano. Além
dessas atividades, serão desenhados os fins em relação aos quais a ação e a inércia do (os)
indivíduos(s) deverão se pautar. Eis um cenário mais amplo em que poder-se-ão observar
relações de poder não limitadas somente àquelas havidas entre um indivíduo e um saber
específico.
Dreyfus e Rabinow, em consonância com o que apresentamos até aqui, elencam algumas
características referentes ao tema do poder, em Foucault8. Apontam eles que as relações de
poder:
A mobilidade do poder decorre, por sua vez, do fato de que o poder não é, como frisamos,
uma coisa e tampouco o controle de um conjunto de instituições. Para analisá-lo é preciso
observar o modo segundo o qual ele opera. Ou seja, para compreender o poder é preciso
que nos remeamos à análise de seu funcionamento diário, “ao nível das micropráticas, das
tecnologias políticas onde nossas práticas se formam”.
A isso se liga a afirmação de que as relações de poder “são intencionais e não subjetivas”,
de modo a caracterizar que não é necessário buscar pelas motivações secretas ou
subliminares às ações dos atores e, tampouco, necessidade de vislumbrar a ação dos
políticos a partir da imagem de pessoas hipócritas ou de “peões do poder”, pois as práticas
locais operadas por indivíduos e grupos não estão destituídas de consciência, visto que “os
atores sabem mais ou menos aquilo que eles estão fazendo, quando o fazem e podem”.
Não obstante, isso não significa que “as consequências mais amplas destas funções locais
sejam coordenadas”.
O legado de Foucault não nos conduz à ideia de equilíbrio, não nos entrega um sistema e,
portanto, não há espaço para afirmarmos algo como uma lógica de estabilidade inerente (ao
sistema) para que se pudessem estabelecer as premissas para uma investida a esse modo
(funcionalista).
A temática abordada pela perspectiva de Foucault não estaria apta à dedução de uma teoria,
mas à investida de uma análise, o que, de fato, é o que Foucault irá nos propor: uma
analítica do poder. Se essas são as características apontadas como próprias às relações de
poder, podemos afirmar que o poder não é:
a) uma coisa;
b) o controle de um conjunto de instituições;
c) a racionalidade escondida da história;
d) em sua essência, dominação.
Sobre o Micropoder
O “que Foucault chamou de microfísica do poder significa tanto um deslocamento do
espaço da análise quanto ao nível em que esta se efetua”. Essa afirmação, portanto, tenta
dar conta do seguinte: a proposta de análise do poder, em Foucault, opera um
deslocamento espacial ao focalizar o tema do poder a partir das extremidades. Com isso,
queremos dizer que o objeto fundamental da análise não está localizado no estado, que
traduziria a figura do centro.
Assim, dentro da dinâmica das relações de poder poderíamos desenhar um quadro em que
o centro estaria representado pelo Estado e nos pontos periféricos figurariam as
instituições (a família, a polícia, a escola, o hospital, sanatório, o presídio, etc.).
Não se tratava, porém de minimizar o papel do Estado nas relações de poder existentes em
determinada sociedade. O que se pretendia era se insurgir contra a ideia de que o Estado
seria o órgão central e único do poder, ou de que a inegável rede de poderes das sociedades
modernas seria uma extensão dos efeitos do Estado, um simples prolongamento ou uma
simples difusão de seu modo de ação, o que seria destruir a especificidade dos poderes que
a análise pretendia focar.
Em vez de realizar uma análise no sentido descendente, que seria representado por uma
investigação que partiria dos efeitos do poder, tendo como profusor do estado (centro),
Foucault orientará suas análises no sentido inverso, partido do nível periférico.
O estado não é o ponto de partida necessário, o foco absoluto que estaria na origem de
todo tipo de poder social e do qual também se deveria partir para explicar a constituição
dos saberes nas sociedades capitalistas.
Ainda que a distinção seja feita – entre centro e periferia, níveis macro e micro – ela não
ocorre com a intenção de “querer situar o poder em outro lugar que não o estado”. A
proposta foucaultiana vai, justamente, no sentido de afirmar que o(s) poder(es). “Não estão
localizados em nenhum ponto específico da estrutura social. Funcionam como uma rede de
dispositivos ou mecanismos a que nada ou ninguém escapa, a que não existe exterior
possível, limites ou fronteiras”.
O poder assim, não pode ser pensado a partir da ideia de posse, mas a partir da noção de
exercício ou funcionamento.
O Poder Soberano
Podemos identificar, assim que o poder soberano está associado ao poder de matar
(simbolismo da potência de morte).
Teremos três momentos sobre os quais Foucault irá tematizar formas de funcionamento ou
exercício de poder. O primeiro deles será o poder soberano. O segundo momento contará
com a figura da disciplina ou do poder disciplinar. O terceiro estará focado sobre a
regulações de populações, ou biopolítica.
O poder disciplinar
O intuito desse cuidado é caracterizado pela pretensão de regulação não mais do gesto que
o corpo do indivíduo deve produzir, mas sobre questões como a do nascimento, da
mortalidade, a duração (a média do tempo) de vida das populações, enfim, aos fenômenos
coletivos mais relevantes para assegurar a existência, a manutenção, a saúde desse corpo
social. Isso não significa, contudo, uma substituição ou desativação do poder disciplinar.
O biopoder, assim, pode expandir seus domínios sob o slogan da saúde – tornar as pessoas
saudáveis – da proteção, da securitização da vida (a arte de calcular, prever os riscos e os
acidentes) de um possível fracasso. Tal fracasso poderia sim representar “uma prova da
necessidade de reforçar e estender o poder dos especialistas”, de sua intervenção, ou seja,
talvez o campo de sua discricionariedade não tenha sido razoável, suficiente à prevenção
dos riscos que afligem o corpo social. Em suma: havia “a promessa de normalização e da
felicidade através da ciência e da lei. Seu fracasso justificava a necessidade de reforçá-las”.
A proposta genealógica irá propor outra ótica de avaliação do modo segundo o qual o
poder se realiza, ou seja, não irá seguir a trilha que utiliza a perspectiva de análise do direito,
queremos dizer como isso que não será possível tematizar o poder, de maneira adequada,
na proposta de Foucault, unicamente como “fenômeno que diz fundamentalmente respeito
à lei e à repressão”.
“Me parece que a noção de repressão é totalmente inadequada para dar contra do que
existe justamente do produtor no poder. Quando se define os efeitos de poder para
repressão, tem-se uma concepção puramente jurídica deste mesmo poder; identifica-se
poder a uma lei que diz não. O fundamental seria a força de proibição”.
O poder deve ser pensado também a partir de seu positivo, como produtor, transformador.
O ponto de intervenção do poder sobre o corpo do indivíduo se dá, ao mesmo tempo,
como aprimoramento de suas potencialidades, como adestramento.
Foucault assevera que o que faz com que o poder seja mantido e aceito decorre do fato de
ele não trabalhar somente como uma intervenção negativa sobre os corpos (“uma força
que diz não”), mas sim porque além dessa característica não lhe é menos pertinente outra,
aquela que representa uma “rede produtiva que atravessa todo o corpo social”.
Antes que fosse aplicado o mecanismo do poder disciplinar sobre uma massa confusa e
desordenada de pessoas, não era possível a identificação de uma figura como o do louco ou
a do delinquente.
Tanto o exemplo do nascimento da prisão (fins do século XVIII) e do isolamento celular
do preso como o exemplo do nascimento do hospício, antes de destruir ou eliminar a
“especificidade da loucura” ou a figura do delinquente, representam, pelo contrário, as
condições de possibilidade para que a emergissem essas figuras.
Pensado aqui não a partir da ideia do saber – considerado como ideia, pensamento,
fenômeno de consciência.
A relação teria sido posta em outros termos: “como se formaram os domínios de saber –
que foram chamados ciências humanas – a partir de práticas políticas disciplinares”, ou
seja, o saber aqui é considerado como “materialidade, como acontecimento”, como “peça
de um dispositivo político que, enquanto dispositivo, se articula com a estrutura
econômica”.
A cumplicidade será uma adjetivação para caracterizar essa relação entre poder e saber, na
medida em que as instituições estão ao lado do nascimento de saberes – como, por
exemplo, a escola estará ao lado do nascimento da pedagogia como domínio de saber, a
prisão estará ao lado do nascimento da criminologia e o hospício estará associado ao
nascimento da psiquiatria – e esses saberes, por sua vez, terão uma importância
fundamental para justificar e legitimar não só a existência dessas instituições como também
o exercício de poder decorrente de seu funcionamento.