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Se o diabo veste Prada o negócio não é abraçar o capeta?

No ano passado acompanhei um debate muito peculiar pelo twitter, sobre o filme “O diabo
veste Prada”, clássico da sessão da tarde dos anos 2000 com Meryl Streep (muitíssimo bem no
papel, pra variar) e Anne Hathaway. Um rapaz escreveu, em tom de brincadeira, que o filme na
verdade não era a história de uma moça idealista corrompida em seus valores éticos
fundamentais pela fábrica de moer gente que costumamos chamar de mercado de trabalho,
nas mãos de uma patroa sádica que a trata como escrava. E sim sobre um “boy lixo fracassado
dissuadindo a namorada de ter uma carreira de sucesso e ganhar melhor do que ele”.

O interessante dessa história é que a piada do rapaz acabou por gerar um longo e infrutífero
debate (com mais de 35 mil curtidas e 12 mil compartilhamentos) que tomava a sério o
argumento forçado, mesmo depois do próprio autor desmentir a história como brincadeira
(“por favor, parem de levar esse tweet a sério pelo amor de Deus”) – comentário que teve
apenas 500 curtidas. A maioria das pessoas compartilhavam a “sacada” como uma grande
revelação, comprando a perspectiva do protótipo de sinhá Miranda Priestly como se esta fosse
algo a se celebrar: a história de uma carreira de sucesso conquistado por uma mulher
empreendedora, ignorando todos os custos humanos e sociais que são atirados em nossa cara
pelo filme de forma bem didática (diga-se de passagem, não foi assim que o público
conservador leu o Tropa de Elite 1, como o esforço de Matias para se tornar um policial
exemplar, contrariando a intenção do diretor de mostrar o nascimento de um monstro)? É
interessante observar o conjunto de reversões apresentadas nesse caso cômico e bizarro, mas
ainda assim revelador: a tomada de atitude da personagem principal que decide abandonar
aquele contexto de humilhação cotidiana porque percebe que estava sendo destroçada é
interpretada pela geração Y como sinal de derrota, o fracasso de alguém que não se esforçou o
suficiente ao vestir a camisa da empresa. Mas, como a exposição desse fracasso mancharia a
fábula do empoderamento, a culpa é atribuído ao namorado lixo, um personagem
absolutamente secundário e bastante sem graça, que se limita a reclamar das cada vez mais
prolongadas ausências da namorada. O quiproquó é tão grande que algumas pessoas ficaram
revoltadas porque a discussão (fake) sobre o boy da moça estava roubando o protagonismo das
personagens femininas do filme, problematizando a problematização da falsa
problematização...

Ou seja, o debate na verdade nunca foi sobre o filme, mas sobre o conjunto de valores
compartilhados pelos membros daquela comunidade do twitter. Menos debate de ideias do
que afirmação de pertencimento a uma mesma seita, em detrimento da própria realidade.
Parece algo bobo, e de fato é, mas elevado a enésima potência no whatzap, e devidamente
direcionado, ajudou Bolsonaro a vencer as eleições.

A materialidade da coisa – no caso, do filme, mas também de toda notícia “real” ou “fake” –
era totalmente sobreposta por camadas de interpretação que giram em maior ou menor
medida em torno do próprio ego, que dispensam a realidade e a substituem por fábulas em
que sua própria perspectiva é vendida como ideal a se aplaudir. A distinção entre o que é
“fake” ou “real”, verdade ou simulacro, deixa de ser operacional. A mensagem motivacional
boboca do filme (“não vale a pena se vender”, “acredite nos seus sonhos”, etc.) é simplesmente
invertida, substituída por outra ainda mais perversa, estilo Big Brother e cultura da ostentação,
característica do capitalismo atual (“tudo vale a pena por um bom salário\prêmio – inclusive se
tornar um escroto que passa por cima de todos a seu redor”). O que vale é mesmo é a imagem
postada no Instagram. Os dois discursos celebram o modelo liberal americano, mas somente
um deles transforma em um dado opositivo aquilo que há de mais perverso no sistema.
A cereja do bolo nesse caso é que a visão canalha do patrão é legitimada não por um discurso
liberal conservador, mas por um conjunto de boas intensões progressistas, que transforma
canalhice em vitória - os que ficaram pelo caminho são invejosos recalcados que não se
esforçaram o suficiente mesmo com todos os seus privilégios. Podemos imaginar um “Diabo
Veste Prada” colonial, em que Miranda é uma senhora de escravos particularmente perversa
que busca uma discipula para a substituir e escolhe uma jovem humanista que vai
progressivamente se tornando tão monstruosa quanto ela, até assumir seu império de tortura
e morte. Que essa história possa ser lida como uma narrativa de sucesso sobre a emancipação
da mulher por um grupo que se identifica como progressista dá uma boa dimensão do
tamanho do buraco em que o “lado certo da história” se meteu.

Aliás, é possível imaginar infinitas variações desse revisionismo tosco – a direita mais escrota se
especializou em criar perfis fakes a partir dessas leituras frágeis, mas que existem. Michael
Corleone seria um descendente de imigrantes italianos que conquistou um lugar ao sol com
muito esforço, empenho e dedicação. Criminoso? Sim, mas não porque escolheu esse caminho,
e sim porque este foi o único possível no interior da falsa democracia da sociedade norte
americana. Tanto é que durante toda vida Michael lutou para tirar seus negócios da ilegalidade.
Dart Vader, por sua vez, é um claro exemplo de um deficiente físico que levou uma vida de
sofrimento e angústia, mas conseguiu superar todas as dificuldades e conquistar um cargo
militar de altíssima responsabilidade em uma das mais poderosas forças militares do universo.

Alguém aqui já parou para pensar no salário extraordinário que Vader deve receber, além de
outros benefícios (a manutenção daquela armadura, por exemplo, deve custar o olho da cara).
Isso a Globo não mostra...

O mais interessante dessas des-leituras é que elas partem de aspectos que não são
propriamente falsos (a ideologia nunca é de todo falsa). Sobretudo no caso de “Diabo veste
Prada” e “Star Wars” é fácil reconhecer a dimensão ideológica mais explicita dos filmes,
totalmente pró-modelo liberal norte americano. Os Jedis estão longe de serem honestos e
puros do lado do bem, e o “Viva seus sonhos” liberal do “Diabo veste Prada” é falso até a
medula. Da mesma forma, Michael Corleone está longe de ser um vilão caricato, e toda trilogia
de Copolla é uma crítica radical ao mito do sonho americano. Contudo, o que move as
interpretações contemporâneas da geração Y não é uma crítica a dimensão ideológica das
obras (ou das notícias, da política, etc.), mas uma sobreposição narcisista de valores que, no
limite, legitimam o que essas apresentam de mais desprezível, como se o defeito dessas obras
fosse não ser suficientemente perversas. No caso do campo progressista a coisa fica ainda pior,
pois essa adesão perversa é feita em nome do Bem.

A dinâmica das redes sociais tende a tratar com um reducionismo binário aquilo que mesmo na
arte de entretenimento mais leve comporta uma carga muito mais interessante de
ambiguidade. E é nesse ponto que o compromisso com o não-existente da ficção se aproxima
muito mais da realidade, da dinâmica crua da existência, do que os direcionamentos
ideológicos diversos das redes, que transformam a realidade em publicidade de si mesmo. As
narrativas nas redes são avessas a ambiguidade, posto que movidas pela autopromoção e por
uma ética do trabalho em que todos são, ao mesmo tempo, clientes potenciais e patrões. Ou
seja, sujeitos cujos afetos precisam ser manipulados – e nós fazemos isso o tempo todo,
enquanto trabalhamos de graça para o Instagram, Tweeter ou Facebook. O compromisso no
caso não é com a realidade, mas com a transformação da própria imagem em produto de
sucesso. Por isso a linguagem crítica, aquela que considera as obras enquanto carregadas de
alteridade, é substituída por gestos de mímica que reproduzem seu próprio conjunto de
valores continuamente. A tensão que a ficção consegue sustentar tranquilamente, mesmo
aquela mais simples, é recalcada pela linguagem binária das redes sociais para se adequar aos
valores algorítimos das respectivas bolhas. Na ficção, Dart Vader sofreu muito, é deficiente
físico e ao mesmo tempo é um maníaco psicótico, Miranda Priestly é uma mulher
empreendedora forte que vence num universo profundamente machista, e ao mesmo tempo
uma pessoa absolutamente desprezível que sente prazer em destruir todos a seu redor. E
Michael Corleone – de longe o mais interessante – é um homem que ama a própria família e
faz tudo por ela, inclusive matar o próprio irmão, a quem ama incondicionalmente. Na internet
essa ambiguidade precisa ser desfeita pois a lógica infantil das redes sociais precisa ser
acalentada em troca de likes. O objetivo principal da leitura deixa de ser a compreensão do
texto (nem no nível mais elementar de decodificação de seus elementos constitutivos básicos),
substituída pela adequação dos componentes textuais a uma perspectiva determinada de
antemão. A premissa construtivista de adequação ao horizonte do leitor sofre uma perversão
profunda quando a materialidade da obra se torna mero pretexto, legitimado por um
relativismo inócuo.

É claro que esse é um exemplo cômico, divertido e leve (estou deliberadamente fugindo das
tragédias que caem sob nossas cabeças todos os dias, e que nos fragilizam), mas a meu ver
esse tom infantil, deslocado, bobo e completamente equivocado não é uma exceção infantil,
mas a norma das redes sociais, que se alastra para as dinâmicas sociais em geral. Um padrão
de leitura de mundo e modelo de atuação e agenciamento que se alastra para diversos
âmbitos, substituindo a realidade por sofisticados sistemas de manipulação e vigilância
comprado pelos sujeitos como verdadeira emancipação.

O que nem Focault nem Deleuze poderiam imaginar (em parte por estarem na Europa) é que o
modelo mais bem acabado de sociedade de controle no Atlântico Sul fosse assumir a forma de
uma enorme mamadeira de piroca.

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