You are on page 1of 3

04/03/2018 Folha de S.

Paulo - A eficácia do ícone - 14/09/2003

UOL

São Paulo, domingo, 14 de setembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

EM ENTREVISTA DADA POUCO ANTES DE


MORRER, O CRÍTICO DESTACA A IMPORTÂNCIA
DA SEMIÓTICA PARA COMPREENDER A ARTE, A
POESIA E O CINEMA

A EFICÁCIA DO ÍCONE
Renato Becker
especial para a Folha

A conversa com Haroldo de Campos tinha o objetivo de


esboçar as significações do mundo por meio da arte para,
depois, entender essa relação como modelo fundamental na
construção comportamental das sociedades. Ainda no início,
disse a ele que a entrevista seria publicada na revista
"Espresso", uma revista sobre cafés finos e os seus diversos
ambientes de consumo, e ele mostrou um admirável
conhecimento etimológico da palavra café, das propriedades
alimentares, dos quadros de Portinari homenageando o café,
e, se não parássemos, talvez passássemos o dia todo no tema.
Quando entramos no assunto previsto para a entrevista, ele
começou com uma contextualização das origens dos
pensamentos em comunicação e semiótica para discutir, em
seguida, as noções de criatividade, referencial,
condicionamento, estética, arte concreta e, por fim, realidade
virtual. A conversa, da qual se reproduz um trecho a seguir,
aconteceu ao longo de três semanas, entre maio e junho deste
ano, tanto pessoalmente como por troca de faxes.

Como o senhor explica comunicação e semiótica?


As disciplinas comunicação e semiótica [objeto do curso de
pós-graduação da PUC-SP] procedem de matrizes diversas.
A semiótica foi fundada por Charles Sanders Peirce (1839-
1914), o maior filósofo americano e um dos maiores do seu
tempo, falando-se em termos mais amplos. De formação
variada, aluno de Harvard, Peirce era químico,
meteorologista, matemático e, sobretudo, filósofo, de certa
forma ligado à posteridade hegeliana. Suas peculiaridades de
caráter e conduta extravagante acharam por incompatibilizá-
lo com a puritana sociedade da Nova Inglaterra e, apesar de
ter começado a carreira promissoramente, a partir de uma
certa altura de sua vida as universidades americanas lhe
fecharam as portas. Teve de sobreviver como conferencista
avulso e escritor independente. A ele se deve o pragmatismo,
que se costuma atribuir, sem maiores considerações, a seu
amigo filósofo William James. Após sua morte, embora

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1409200308.htm 1/3
04/03/2018 Folha de S.Paulo - A eficácia do ícone - 14/09/2003

tardiamente (entre 1931 e 1958), a universidade norte-


americana acabou curvando-se à sua grandeza. Harvard
editou em oito volumes seus escritos, que ele em vida teve
de dispersar por diferentes pequenas revistas e publicações
avulsas. Mais recentemente foi lançado um novo projeto,
mais completo, de edição prevista para cerca de 20 volumes,
e que está sendo levado a efeito sob a tutela da Associação
Internacional de Semiótica, fundada por Jakobson, de que
Décio Pignatari, eu e Maria Lúcia Santaella ocupamos,
sucessivamente, uma das vice-presidências. O filósofo, a
quem Décio Pignatari chamou "Marx do signo", criou a
semiótica, assentando-se numa divisão tricotômica do signo
(verbal ou não-verbal), que abrange ícones (pense-se na
metáfora, tão empregada na poesia), índices (ou sinais
dêiticos, como, por exemplo, uma biruta de aeroporto, que
assinala a direção dos ventos) e símbolos (entidades mais
complexas, que servem à linguagem lógico-discursivo-
conceitual). Essas três manifestações sígnicas não são
estáticas, fechadas em si mesmas, monadológicas, mas
dinâmicas, dialéticas (assim a metáfora verbal, antes
mencionada, tem elementos com estatuto simbólico e
participa da natureza do ícone; a configuração ou desenho
coreográfico da sintaxe de uma língua é um diagrama e,
como tal, participa das condições de ícone e de símbolo). A
teoria triádica de Peirce, nesse sentido dialético de raiz
hegeliana, supera as limitações da escola francesa de estudo
dos signos, promovida pelo grande linguista genebrino
Saussure (1857-1913), que é binária, trabalhando com as
categorias de significante e significado. Já a teoria da
comunicação deriva, entre outras, fontes, sobretudo de
natureza científico-matemática, da cibernética de Norbert
Wiener; envolve a polarização ordem
(homeostisis)/desordem (caos, entropia, ruído num processo
intercomunicativo).
Para a Gestalt, o processo de significação das coisas se dá
por meio da associação. Se considerada como correta essa
afirmação, não estará um artista submetido à criação do
novo sempre em referência ao anterior?
Literatura se faz e se retroalimenta ("feedback") de literatura.
O novo é sempre um acréscimo (uma nova combinação de
elementos?) ao acervo do passado. Este é revivificado
(repristinado) pela mirada sincrônica do presente. Em outra
linha de idéias: no plano da sintaxe, do poema e de outros
produtos artísticos como os do cinema, a associação
gestáltica de formas (por justaposição) é o que explica o
"método ideogrâmico", em poemas de Ezra Pound ou a
montagem no cinema de Einsenstein e no teatro dialético de
Brecht.
O senhor considera que a fragmentação da mensagem
visual é o que justifica sua atratividade, pois não exige
atenção concentrada do receptor, ou de fato a informação
visual, preservada de seu valor estético original, é mais
encantadora que a grafia linear?
O cérebro humano tem dois hemisférios: um digital (linear,
associação por sequência de dígitos), outro analógico
(associação por justaposição de imagens). A criatividade dos
japoneses nas artes (não importando, aqui, o decisivo
contributo chinês à escrita nipônica) pode ser, talvez,
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1409200308.htm 2/3
04/03/2018 Folha de S.Paulo - A eficácia do ícone - 14/09/2003

explicada pelo fato de que os filhos do sol nascente se


utilizam, em sua comunicação escrita, de uma combinação
de ideogramas (Kanji, analógicos) e de um silabário
alfabético-digital (hiragana). Assim, desde a infância, faz o
japonês, necessariamente, um aprendizado caligráfico
analógico-digital, que manipula fragmentos de visualidade
(pictogramas, complexificados em ideogramas) e sequências
digitais (a escrita hiragana). Talvez, na era computacional em
que vivemos, essa, por assim dizer, ductilidade ou abertura
tradicional da mente nipônica possa servir de diretiva.
Como é um poema verbivocovisual?
Um poema verbivocovisual é aquele que tira partido de
signos analógico-visuais e também (de maneira redutiva) de
signos digitais (sintáticos). A dimensão vocal-frasal, a
acústica e a visual estão conectadas no poema e em processo
de mútua ativação, para o escopo de recepção. A expressão
procede de Joyce.
Qual o nível de importância da arte concreta para uma
sociedade que caminha para o ciberespaço? E por quê?
A poesia concreta é, reconhecidamente, premonitória em
relação ao "mosaico televisivo" (Mc Luhan) e às
possibilidades abertas pela rede computacional. Dos poetas
que constituíram o grupo Noigandres, Augusto de Campos,
meu irmão, é o que mais adiante tem levado essa linha de
pesquisa e exploração poética, de um modo rigoroso e
original. Augusto, hoje, produz todo um livro de poemas
diretamente no computador. Walter Benjamin profetizou que
o poeta do futuro seria aquele que desenvolveria uma escrita
de eficácia icônica.

Renato Becker é editor da revista "Espresso".

Texto Anterior: Um mestre no horizonte do imprevisto


Próximo Texto: Uma medida concreta
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em
qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1409200308.htm 3/3

You might also like