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I a edição
2013
Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida, sejam quais forem os meios
empregados, sem autorização por escrito do Autor. Os infratores responderão
às penas previstas em lei.
ISBN : 978-85-89168-02-1
IMPRESSO N O BRASIL
P R IN TED IN BRAZIL
Reis, Douglas
D299e Explosão Y : adventismo, pós-modernidade e gerações
emergentes / Douglas Reis. — Ivatuba : Instituto Adventista
Paranaense, 2013-
272 p.
ISBN: 978-85-89168-02-1.
- Marcos Faiock Bomfim, diretor dos departamentos de Saúde e Família da Divisão Sul-Americana da LASD
Numa época em que todas as crenças e instituições são questionadas, a Igreja Adventista
do Sétimo Dia se transformou numa grande vidraça contra a qual muitos não hesitam em ati
rar suas pedras. Sob uma chuva de pedras, cada vez mais pessoas têm perdido ou relativizado
sua fé. O quadro exige atitude. Requer um olhar mais introspectivo, de redescoberta das pró
prias raízes da igreja. Exige também outro olhar igualmente importante, mais voltado à men
talidade pós-moderna. Neste livro, Douglas Reis propõe esse duplo olhar, Encara o desafio de
a igreja manter sua identidade, sem jamais descuidar das pessoas as quais pretende alcançar.
Alerta para os perigos da pós-modernidade, ao mesmo tempo em que destaca a urgência de
nos tornarmos compreensíveis a ela. É uma ótima leitura para todos os que acreditam que,
como movimento, não estamos aqui por acaso.
- }ael Eneas, Diretor de Desenvolvimento Espiritual e Pastor do UNASP campus Hortolândia, SP.
Desde o seu surgimento, no início dos anos 1800, o adventismo entende a si mesmo como
detentor da missão de ‘reparar brechas e restaurar verdades bíblicas, pisoteadas ou ignoradas
pelos demais grupos religiosos. Obviamente, a conscientização dessa realidade o torna diferen
te desses outros segmentos. Porém, passados quase dois séculos, o mundo mudou radicalmen
te, e as transformações culturais e sociais nos trouxeram à assim chamada era pós-moderna,
com seu relativismo generalizado, sua aversão a verdades absolutas bem como à igreja ins
titucionalizada, além de valores e estilos comportamentais tremendamente diferenciados da
filosofia original adventista. Presente no mundo e na sociedade, e com a missão de transformá-
-los, a Igreja Adventista do Sétimo Dia não está, entretanto, imune às influências do que po
deríamos chamar de cristianismo pós-moderno. Quais são os estilos de vida e adoração que
ameaçam fazê-la mudar? Quanto disso parece estar se imiscuindo sutilmente em suas fileiras?
O que deve ser feito a fim de evitar a perda do rumo? Essas e outras muitas perguntas são ma
gistralmente respondidas por Douglas Reis neste livro de conteúdo atual, oportuno e relevante.
2. O Y da questão..................................................................................................... 25
3. Quem se im porta com a c o sm o v isão ............................................................. 41
.
6 Tolerância intolerável........................................................................................ 70
7. Deus: o R é u .......................................................................................................... 84
Bibliografia 257
Introdução
Quando comecei a escrever meu primeiro livro, Paixão Cega,1li bastante a respeito
da pós-m odernidade. Embora houvesse me familiarizado com o termo na faculdade
de Teologia, apenas na ocasião pude entender melhor seu significado. Minha abor
dagem inicial visava contextualizar a vivência da espiritualidade cristã no período
pós-m oderno. O livro não tencionava se aprofundar na questão da pós-m odernidade
em si, apenas defini-la de form a restrita para meus interesses imediatos.
Mesmo quando terminei de escrever Paixão Cega, no primeiro semestre de 2008,
minha pesquisa sobre pós-m odernidade prosseguiu. Assim, foi natural que em meu
segundo trabalho, Marcados pelo futuro,2 dedicasse maior espaço a ela. Além de ca
pítulos escritos exclusivamente sobre o assunto, ali a pós-m odernidade se fazia mais
presente. Porém, o livro gravitava em torno da parousia (volta de Jesus); mais espe
cificamente, seu enfoque tratava de obstáculos a um com promisso com a esperança
na segunda vinda (com o o evolucionismo, a desconfiança na Bíblia, a espiritualidade
difusa, além da própria pós-m odernidade).
Finalmente, posso dizer que, no presente trabalho, a pós-m odernidade recebe um
tratamento mais amplo. Foi necessário um período de maturação de informações
garim padas em cerca de sete anos. Mas por que dedicar tanto tempo a escrever sobre
esse assunto? Qual a importância em se conhecer sobre pós-m odernidade? Aparen
temente, pós-m odernidade soa para alguns cristãos como um termo tão hermético
ou filosófico que seria um esforço inútil empreender um estudo de seu sentido. Logo,
é preciso que se esclareça que não estam os tratando de algo “filosófico” e abstrato,
sem nenhum tipo de consequência prática mensurável.
Com o pastor, tenho percebido uma diluição dos valores adventistas entre os que
fazem parte dessa denominação, sejam membros regulares ou líderes. Em parte, a assi
milação de valores da pós-m odernidade tem enfraquecido conceitos caros à denom i
nação, como, por exemplo, a afirmação de que temos uma verdade a ser dada ao mundo.
1. Douglas Reis, Paixão Cega: o herói que precisou perder a visão para enxergar (Tatuí, SP: Casa Publica-
dora Brasileira, 2010).
2. Idem, Marcados pelo futuro: vivendo na expectativa do retorno do Senhor (Niterói, RJ: ADOS, 2011).
In t r o d u ç ã o / 7
Já conversei pessoalmente com muitos adventistas que acreditam que deveríamos ser
mais “humildes” e reconhecer que “não som os melhores do que os outros”. Segundo
eles, se continuarmos nos intitulando “os donos da verdade” afastaremos as pessoas.
N ossa m issão seria conduzir outros a Cristo, não à nossa denominação, porque as
doutrinas não são importantes e, sim, o relacionamento com a pessoa de Cristo.
Por trás dessas afirmações, encontramos sérios problemas. Afinal, se as doutrinas
não importam, por que sustentá-las? Por outro lado, o crer em Cristo, não é em si
m esm o um a doutrina (um ensinamento)? Sendo assim seria essa a única doutrina que
teríamos o direito de compartilhar com as pessoas? Partindo do pressuposto de que
todos têm o direito a ter suas crenças particulares, nosso respeito pela opinião e cren
ças alheias não deveria nos impedir de querer “forçar” as pessoas a crerem como nós?
E, se isso for assim mesmo, como concluiremos a “grande comissão” (Mt 28:18-20),
a ordem de Jesus para pregarmos a todas as pessoas, de todos os lugares e culturas?
Assim , me parece que alguns estão confundindo genuína humildade com relati-
vismo, a ideia de que todas as crenças não representam a verdade última, somente
opiniões equivalentes, uma vez que seriam todas culturalmente condicionadas. Será
que o adventismo está fadado a ser isso - uma opinião qualquer de um determinado
grupo religioso que está feliz em manter uma política de não interferência em relação
a outros grupos sociais, assumidamente religiosos ou não?
Esse pensamento não se restringe a muitos adventistas que encontrei; trata-se de
algo de amplitude maior. O pós-m odernism o é um a forma de pensar e viver de toda
a sociedade ocidental (e influencia ate m esm o culturas orientais que adotam com
portam entos ocidentais). Por isso, não causa surpresa que muitos cristãos tenham
escrito, palestrado e feito conferências sobre o assunto, especialmente nos últimos,
diríam os, trinta anos. Os adventistas, por sua vez, não estão alheios aos desafios da
pós-m odernidade. Teólogos e pensadores do movimento vêm dedicando atenção ao
tema. Quero destacar alguns escritos recentes que expressam preocupação com a
influência pós-m oderna sobre a igreja.
Em que resultaria a interação de adventistas pós-m odernos com outros membros,
digamos, m ais conservadores? Reinder Bruinsma, teólogo e líder adventista, respon
de à indagação em Is the Postmodern Adventist a threat to the Unity ofhis Church [O
adventista pós-m oderno é uma ameaça à unidade de sua igreja?].3 Bruinsma assume
que cristãos pós-m odernos ainda mantenham a crença em doutrinas básicas do cris
tianismo, m as montam “suas próprias coleções de verdades”. A questão para ele não
seria tanto de natureza teológica, m as relacionada à estrutura mental.
Adventistas pós-m odernos teriam “uma atitude diferente para com a doutrina”.
Não estariam interessados prioritariamente em saber se algo é verdadeiro, como os
pioneiros adventistas se perguntavam; ao contrário, querem saber como a crença os
afeta de m odo prático. Eles necessitam experimentar a religião e dão preferência à
3. Reinder Bruinsma, "Is the Postmodern Adventist a threat to Unity of his Church?”, in: Borge Schantz e
Reinder Bruinsma, Exploring the frontiers of faith: Festschrift in honour of Dr. Jan Paulsen (Lueneburg,
Germany. Advent-Verlag, 2009),
8 / E x p lo são Y
S. Idem 3, p. 133-135.
9. Fernando Canale, “ The eclipse of Scriptura and the protestization of the adventist mind: Part 2: Prom
the Evangelical Gospel to Culture” in: Journal of adventist theological society, vol. 22, n" 1, p. 108-109.
10. Reinder Bruisma, The body of Christ: an Adventist understanding of the church (Hagerstown, ÍV1D:
Review and Herald publishing association, 2009), p. 193.
10 / E x p l o s ã o Y
Cada capítulo foi escrito dentro de uma temática própria, sendo possível efetuar
sua leitura de forma independente. Entretanto, o leitor atento não deixará de perce
ber as conexões entre cada tema. Muitos dos capítulos existiram inicialmente como
textos menores utilizados na série de estudo bíblicos O resgate da Verdade.11 Desse
m odo, eles servem com o material complementar para aqueles que ministrarem os
assuntos. Alguns textos também foram publicados em periódicos denominacionais,
entre os quais Conexão JA, Revista Ministério e a publicação acadêmica Kerigma.
Nesses casos, ampliações e atualizações do material fizeram com que fossem apresen
tados com m ais exatidão na form a presente.
O livro se inicia relembrando quem são os adventistas, quais tendências, grosso
modo, convivem na denominação e como recuperar a essência do movimento (capí
tulo 1). Em seguida, trata do surgimento de uma nova mentalidade, sob a influência
da revolução digital e suas implicações para o adventismo (capítulo 2). O terceiro
capítulo aborda o conceito de cosm ovisão e zeigeist, duas ferramentas úteis usadas
no decorrer do livro.
A partir daí, promove-se uma investigação m ais efetiva da pós-m odernidade,
procurando definir seus conceitos básicos (capítulo 4), suas noções morais (capítulo
5) e a concepção pós-m oderna de tolerância (capítulo 6). Além disso, um a questão
bastante séria, que parece corroborar a ideia de que D eus seja intolerante com outros
povos, é lidada no capítulo (7) seguinte.
A seguir, discute-se as implicações de um cristianismo que adote os pressupostos
pós-m odernos, utilizando para isso um estudo de caso (capítulo 8). O ceticismo pós-
-moderno é revisto, bem como sua influência em seriados populares (capítulo 9), O
próximo capítulo revela como a compreensão correta sobre Deus afeta substancial
mente a vida dos cristãos.
Passam os a análise dos questionamentos recorrentes sobre o papel dos escritos de
Ellen G. White no adventismo, inicialmente avaliando o fenômeno de inspiração em
seus escritos e na própria escritura (capítulo 11); segue-se uma breve digressão sobre
cristianism o e cultura (capítulo 12); na sequência, volta-se a avaliar os testemunhos
de Ellen G. White e sua implicação tanto para a filosofia educacional (capítulo 13),
quanto para os critérios musicais utilizados no ato de prestar culto (capítulo 14), visto
que essas áreas sofrem forte influência da mentalidade pós-m oderna.
O papel da Igreja Católica Romana e sua reação à pós-m odernidade recebem aten
ção e a interpretação adventista sobre eles é destacada (capítulos 15 e 16), um a vez
que a identidade adventista se acha vinculada ao estudo das profecias apocalípticas.
Não olvidamos questões essenciais, como a natureza da comunidade cristã em
meio à influência pós-m oderna (capítulo 17) e a genuína experiência de salvação
(capítulo 18). O enfoque missionário, que envolve sacrifício e disposição de se dedi
car ao Senhor Jesus, é assunto de dois capítulos (19 e 20). Finalmente, a alegria cristã
11. Michelson Borges (ed.), O resgate da Verdade (Brasília, DF: Divisão Su)-Americana da Igreja Adven
tista do Sétimo Dia, 2012).
In t r o dução / 11
Possuo um a m em ória de infância sobre um diálogo que tive com meu pai.
A lem brança está incom pleta, m as algum as cenas do episódio ficaram bastante
m arcadas. Talvez eu devesse ter cinco ou seis anos. N ão me recordo exatam en
te do assunto sobre o qual conversávam os. Sei que em algum ponto do diálogo,
desabafei: “pai, eu queria ser americano.” “N a verdade, D ouglas, nós o som os”,
respondeu-m e ele.
Imagino que meu desabafo veio de uma noção errada: concebi, talvez por influên
cia de filmes, que aqueles que nasciam nos Estados Unidos da América eram, de fato,
os americanos. Na m inha mente infantil, a América era um país, não um continente
(talvez minha confusão seja um reflexo indireto do macartismo, m as a conclusão
seria especulativa). Em todo caso, naquela noite meu pai me explicou o que, de fato,
significava ser um americano.
É possível que muitos de nós tenham falsas concepções sobre sua identidade. Às
vezes, não sabem os muito sobre quem som os e nossas origens para além de par
cas histórias contadas em reuniões de família. Posso dizer que, toda vez que minha
esposa e eu viajamos nas férias para a casa de parentes, sempre aprendemos mais
um sobre o outro. Nas últimas viagens, convivi com tias alemãs e verifiquei como
mulheres fortes e decididas povoam o clã dos Kirsches, uma família gaúcha muito
apegada a valores tradicionais e de cunho evangélico. Por outro lado, a cada relato
sobre minha infância - passada em Guarulhos, São Paulo, em uma família composta
por professores e funcionários públicos, - minha esposa se convence sobre algo: se
minha mãe não estiver exagerando, deveriam ter diagnosticado déficit de atenção em
mim (as duas pensam que eu ainda sofro disso; mas prefiro acreditar que os relatos
são exagerados).
Q uando tratam os do adventismo, não é muito diferente. Da perspecti
va que abordam os, é crucial que cada adventista do sétim o dia entenda o sig
nificado de fazer parte desse movimento, sobretudo os m ais jovens. D esde o
principio, o estudo das Escrituras se constituiu a tônica do movimento. William
Miller, um deísta que se converteu e passou a frequentar a igreja batista, na qual
seu tio era pastor, tornou-se dedicado estudante das profecias. Suas séries de con
ferência sobre Daniel 8:14 e o iminente dia da volta de Jesus atravessaram o país.
A d v en tista s a té os e x t r e m o s / 13
1. Value Genesis: A Study o f the Influence o f Family, Church and School on the Faith, Values and Com
mitment o f Adventist Youth (Silver Spring, Md.: North American Division, 1990), citado em Steve Case,
“Podemos DançarV\ in: Diálogo Universitário, vol 6, n" 2, p. 16-17, 29.
2. Quem se interessar pelo assunto, poderá consultar: (a) Richard W. Schwarz e Floyd Greenleaí, Porta
dores de Luz (Engenheiro Coelho, SP: Unaspress, 2009); (b) C. Mervyn Maxwell, História do Adventismo
(Santo André, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1982).
14 / E x p l o s ã o Y
Adventistas fanáticos
Já dizia um ex-professor que tive no seminário: “o fanatismo é uma parte da
verdade que ficou louca”. Esse aforism o consegue expressar com genialidade duas
ideias-chaves sobre o fanatismo: (a) sua identificação com a verdade: se o fanatism o é
uma parte da verdade, ele se opõe, a princípio, e na maior parte dos casos, à heresia,
que consiste em um a - ou mais - doutrina espúria, a qual concorre com a verdade.
O fanático nasce a partir de uma motivação antagônica: o herético odeia a verdade;
o fanático am a tanto a verdade que idealiza, segmenta e, por fim, distorce; (b) sua pe
culiaridade perniciosa: o fanatism o se sobressai em relação ao conjunto doutrinal de
que se origina pela tendência de manter certas ênfases, em detrimento do conjunto.
Eis a peculiaridade do fanatismo. Também não podem os igualar fanatismo a uma
m era excentricidade religiosa, já que ele tom a certa carga de virulência, infectando
tudo e todos ao redor, implícita ou explicitamente. Eis sua perniciosidade.
Em bora o fanatismo não esteja restrito ao cristianismo, é relevante o número de
cristãos fanáticos. Geralmente, o fanático inverte o zelo autêntico do testemunho
cristão - enquanto um genuíno servo de D eus estaria disposto a morrer pela verda
de, o fanático, em contrapartida, dispõe-se a matar por aquilo que considera como
a vontade divina. D essa forma, o fanático abandona o posto de súdito do Reino do
Céu, condição na qual se acata a legislação do Evangelho, e se torna, ele próprio, o le
gislador, agindo coercitivamente sobre outros, a fim de que acatem seu dogmatismo.
Entre os adventistas do sétimo dia, o fanatismo achou um cam po vasto. E por uma
razão bem simples: sendo o adventismo uma fé abrangente, reunindo sob os auspí
cios de “verdade presente” um conjunto bem concatenado de postulados bíblicos,
não se torna difícil o surgimento daqueles que se apaixonam loucamente por umas
poucas dessas verdades. Levando em conta que, se o aforism o inicial reza ser o fana
tismo um a parte enlouquecida da verdade, pode-se definir o fanático como aquele
que se apaixona loucamente por uma parte da verdade.
Passo a expor algumas ideias a respeito do fanatismo no adventismo (em muitos
aspectos, bem similar ao fanatismo de outros arraias). Não proponho que todos os
3. Reinder Bruinsma questiona o valor desses rótulos, argumentando haver uma lacuna entre as categorias e
propondo que conservadores e liberais seriam mais bem representados caso adotássemos as nomenclaturas “ad
ventistas modernos” e “adventistas pós-modernos”, para nos referir a eles, respectivamente. Ver Reinder Bruins-
ma, "1$ the Postmodern Adventist a threat to Unity ofhis Church?”, p. 75. Porém, o fato de haver subcategorias não
me parece motivo suficiente para anular o conceito de liberais e conservadores dentro do adventismo. F.m outra
instância, sempre houve liberais no seio do movimento, até em períodos que antecederam o advento da pós-
-modernidade. Talvez se possa atribuir à mentalidade pós-modema uma legitimação ao liberalismo religioso,
bem como uma nova configuração; porém seria incabível atribuir a ela a gênese de todo liberalismo.
A d v en tista s até os ex t r em o s / 15
fanáticos entre nós sejam iguais - uns se revelam mais apaixonados, outros, menos,
mas sempre existe a equivalência entre a paixão e a loucura que desenvolvem a curto,
médio ou longo prazo. Dito isso:
4. O episódio se acha relatado era J. H. Merle D’A ubigné, História da Reforma Protestante do décimo sexto
século (São Paulo, SP: Casa Editora Presbiteriana, s/d), vol. 5, capítulo VU do livro X II1; consultar espe
cialmente p. 99-100. Usamos o caso de Lutero para exemplificar a teimosia, sem com isso lhe atribuir o
epíteto de fanático.
16 / E x p l o s ã o Y
Adventistas liberais
Já tratamos sobre adventistas fanáticos, os quais se identificam com os fariseus em
seu zelo inverso (e controverso). Por melhores que fossem suas intenções primárias,
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8. Mas não nos esqueçamos: “A tradição farisaica não é pior que nossas próprias idiossincrasias.” Mi
roslav Kis, “Biblical Authority and Moral Responsibility: lhe Word Cannot Be Silenced} But Must Not Be
Made Void”, in:Journal of Adventist Iheological Society, vol. 10, n" I, p. 69.
A d v en t ist a s até os extrem os / 19
9. Para uma análise mais detida da crise de Desmond Ford, ver Glauber Araújo, “Desmond Ford e a
doutrina do Santuário: análise comparativa de duas fases distinta", in: Kerigma, vol. 3, n" 1.
20 / E x p l o sã o Y
risco de que um a abertura sem critérios perm ita a infiltração de princípios que con
trariem o próprio movimento (capítulo 8). Saduceus eram o pedaço m ais helenizado
de Israel. O cristianism o alemão, em fins da década de 1930, era tão insípido que não
tardou em apoiar, grosso modo, o nazismo. Não é incomum adventistas liberais par
ticiparem de eventos gospel ou incorporarem ao seu estilo de vida comportamentos
contrários àquele defendido pela denominação (como sexo pré-marital e frequência
a ambientes com o cinemas e festas noturnas).
No fundo, o relativismo é a conclusão de que não importa no que creiamos ou
com o vivamos. O que im porta são os sentimentos, o amor a Deus e o amor ao próxi
m o - e o próprio emprego desses termos não é feito senão em termos gerais, suficien
tes para esvaziar seu conteúdo bíblico (capítulo 2). Afinal, quanto menos contornos e
mandam entos (m esmo os bíblicos!), m ais o liberal sente-se em casa. Claro que uma
incoerência tão marcada leva muitos à conclusão razoável de que, se realmente não
há diferença, é melhor abandonar de vez o adventismo.
Da m esm a form a que ocorria na época de Jesus, o liberalismo hoje cresce em
influência. A m issão da igreja enfrenta fortes obstáculos, e as características da
denom inação são extirpadas por com prom issos com o atual Zeigeist (capítulo 3).
O antídoto? Segundo um amigo, restam duas possíveis soluções: ou reavivamento
ou perseguição.
10. Fernando L. Canale, “Importance of our worldview” in: Ministry, Dezembro de 1995, disponível em
<https://wwws.ministrymagazine.org/archive/1995/December/itnportance-of-our-worldview>. Accs-
so: 14 de dez. de 2012.
11. Idem, “Completando Ia teologia Adventista”, Parte I>p. 58.
12. Para uraa análise, consultar (a) Raúl Kerbs, "El Método Histórico-Crítico En Búsca De Su Estructu-
ra Básica Y De Las Interpretaciones Filosóficas Subyacentes (Parte l)'\ in: DavarLogos, vol. 1, 11 “ 2; (b)
Idem, “El Método Histórico-Crítico en Búsca de su Fstructura Básica y de las Interpretaciones Filosóficas
Subyacentes (Parte 2 )”, in: DavarLogos, vol. 2, n" 1; (c) Angel M. Rodriguez, “O uso da versão modificada
da abordagem crítico-histórica por eruditos adventistas”, in\ George W. Reid (ed.), Compreendendo as
Escrituras: uma abordagem adventi>ta (Engenheiro Coelho, SP: Unaspress, 2007).
A d v en t ist a s até os ex tr em o s / 21
Claro que a declaração acima trata apenas dos sintomas mais perceptíveis do pro
blema. Outra consequência: tornou-se corrente que muitos adventistas pensem que
sua denominação seja apenas m ais um a dentre as muitas que juntas constituem “o
corpo visível de Cristo, a igreja”,16 o que contraria a teologia do remanescente com
13. Para ver um pouco mais sobre esse caso e outros exemplos de influência liberal, consultar Samuel Koran-
teng-Pipim, Must We Be Silent? Issues dividing our church (An Ar bor, Michigan: Beran Books, 2001).
14. Fernando Carnale, “ The eclipse of Scriptura and the protestantization of the adventist mind: Part 2",
p. 105-106.
15. Shane Anderson, How to kill adventist education (and how to give it a fighting chance!, (Hagerstown,
MD: Review and Herald Publishing Association, 2009), p. 18-19.
16. Fernando Carnale, “The eclipse o f Scripture and protestantization of adventist mind: Part 2”, p. 107. “No
Apocalipse, o remanescente consiste numa realidade pública, eclesiástica e social, composta por aqueles
que foram chamados, constituindo uma assembleia (eklésia) dos fiéis adoradores do Senhor. Nada nos
permite escapar à noção de que o remanescente é uma entidade visível, identificável e eclesiástica, não
22 / E x p lo sã o Y
Nada disso serve para que desanimemos, porque Deus dirige o Seu povo. Os fieis
não serão confundidos. Aqueles que se apegarem à Bíblia e aos escritos de Ellen White
terão condições de identificar os enganos em nosso meio, sejam tais sofismas prove
nientes de grupos dissidentes, ou mesmo de pessoas dentro da denominação que es
tejam equivocadas. Estamos, de fato, vivendo nos dias finais da História deste mundo!
O movimento adventista surgiu do estudo da Bíblia. Por meio de reuniões de oração e
pesquisa bíblica, os pioneiros buscaram a orientação divina para sistematizar um corpo de
doutrinas baseadas nas Escrituras. Conforme consideramos, a tendência fanática no ad
ventismo representa uma séria distorção da herança dos pioneiros. Ao mesmo tempo, o
adventismo em sua vertente liberal se traduz em negação (ao menos parcial) dessa herança.
A questão com a qual o movimento adventista se depara hoje é como avançar,
mantendo condignamente a sua essência, legada pelos pioneiros.
deixando de ser, ao mesmo tempo, uma realidade sociológica espiritual” Richard R Lehmann, “O rema
nescente no Apocalipse”, in: Ángel Manuel Rodriguez (org.), Teologia do remanescente: uma perspectiva
eclesiológica Adventista (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2012), p. 108.
17. Ángel Manuel Rodriguez (org.), Opus c i t p. 18-19, 21.
18. Fernando Carnale, “ The eclipse of Scripture and protestantization of adventist mind: Part 2”, p. 110.
Canale menciona como um dos veículos dessa compreensão o livro Adventism for a New Generation, de
Steve Dayle, sobre o qual trataremos no próximo capítulo.
19. Clifford Goldstein, “Seventh-day Darwinians”, disponivelem <http://www.adventistreview.org/2003-
1530/story4.html>. Acesso: 1° de set. de 2012.
A d v en tista s até os e x t r em o s / 23
Até os extremos
O adventismo é um movimento cristão de singularidade profética, não apenas por
que historicamente se interessou pelo estudo dos livros de Daniel e Apocalipse, mas pela
convicção de que possui uma vocação divina, conferida mediante chamado profético. O
movimento surgiu do cumprimento das profecias e com o propósito de ser usado por
Deus para testemunhar ao mundo sobre o plano de salvação expresso na Bíblia e detalha
do nas profecias.22 Portanto, o adventismo encontraria a justificativa de sua existência em
“viver e apresentar seu projeto teológico alternativo, baseado na Bíblia a todo o mundo.”23
Crucial para a essência do adventismo é a doutrina do grande conflito cósmico,
a luta entre Cristo e Satanás. Atrelada a essa compreensão está a doutrina do santu
ário, com sua tipologia que apontava para a realidade do pecado, necessidade de um
salvador-substituto, expunha os m eandros do juízo e expressava a redenção final. No
coração do adventismo, temos amua. Apocalipse 14:1-6, passagem que traz a evange
lização na condição de convite à adoração do único Deus verdadeiro.24
Para compreender bem a interação entre esses três elementos mencionados, re
corram os às palavras do teólogo adventista Fernando Canale:
Sem dúvida, a mensagem dos três anjos em Apocalipse 14 serviu para im pul
sionar o adventismo, dando-lhe um sentido de urgência, além de integrar as dou
trinas do movimento nascente.26 O próprio contexto de Apocalipse 12-14 já ca
racteriza o remanescente como entidade fiel às Escrituras, capaz de experimentar
a vitória “através da presença de Jesus em cada fibra de seu ser.”27 Em Apocalipse
14:6 se diz que a mensagem deve ser pregada “àqueles que habitam sobre a Ter
ra”, um termo técnico no livro para designar “descrentes e inimigos de Deus”.2íi O
texto que melhor define a identidade do remanescente dos últim os dias é A po
calipse 14:12. “Guardar os mandamentos de Deus” se relaciona à observân
cia de um conteúdo normativo cuja origem remonta ao próprio Senhor Jesus.29
Em verdade, pode-se dizer que a cosm ovisão do remanescente reconstrói o mundo a
partir de um a perspectiva oposta à “daqueles que habitam sobre a Terra”
26. Consultar especialmente Alberto R. Timm, O Santuário e as Três Mensagens Angélicas: Fatores integra-
tivos no desenvolvimento das doutrinas tídve«frstas(Engenheiro Coelho, SP: Unaspress, 2009), 5‘ ed.
27. Richard P. Lehmann, Opus Cit., p. 90-91.
28. Larry L. Lichtenwalter, "Worldview Transformation and Mission: Narrative, Theology, and Ritual in
John’s Apocalypse” in: Journal o f adventist theological society, vol. 21, n'%1, p. 215-216. Lichtenwalter ofere
ce as seguintes passagens para confirmar o significado da expressão “aquelas que habitam sobre a Terra”:
Ap 3:10; 6:10; 8:13, 11:10; 13:8, 14; 17:2, 8. Além disso, seguindo o autor, esse grupo estaria associado
intimamente com a idolatria (13:8, 12, 14; 14:6-13; 17:2, 8, cf. 8:13, 9:20, 21).
29. Richard P. Lehmann, Opus Cit., p. 100.
30. Larry L. Lichtenwalter, “Worldview Transformation and Mission ’, p. 219.
31. Com efeito, assinalou Fernando Canale: “Em boa parte, as divisões teológicas mencionadas ante
riormente surgem quando novas gerações de adventistas não chegam a se familiarizar ou usar consis-
tentemente a hermenêutica e o método teológico implicitamente descoberto pelos pioneiros.” Fernando
Canale, “Completando la teologia Adventista - parte II", p. 130.
O Y da questão
Surgimento do conceito
Inquestionavelmente, grandes mudanças na sociedade afetam a forma com o in
divíduos refletem sobre o mundo, seu papel nele e as diversas interações sociais. As
gerações “podem ser consideradas produtos de eventos históricos.” 1
1. Fernando Luiz Krüger e Dulce Márcia Cruz, "Jogos (virtuais) de simulação da vida (real): o 'lhe Sims e
a Geração Y’\ in: Ctberlegenda - UFF, v. 9, 2007, p. 3.
2. Sara Savage, Sylvia Collins-Mayo, Bob Mayo e Graham Gray, Making sense of Generation Y: the world
view of 15-25-years-old (London, UK: Church House Publishing, 2006), p. 5.
3. Peri da Silva Santana e Janice Natera Gonçalves Gazola, "Gestão, comportamento da Geração Y”, in:
XIII Seminários em Administração (Programa de Pós-Graduação em Administração da FEA/USP, SP), 9
a 10 de setembro de 2010, p. 3
4. Sara Savage et a i Opus cit., p. 5-7.
5. Cristiane Ferreira dos Santos, Marina Ariente, Marcos Vinicius Cardoso Diniz e Aline Aparecida Dovigo,
“O processo evolutivo entre as gerações X ,Y e Baby Boomers”, in: XIV Seminários em Administração (Progra
ma de Pós-Graduação em Administração da FEA/USP SP), 13 a 14 de outubro de 2011, p. 2.
O Y DA QUESTÃO / 2 7
“O conceito de ‘Geração Y ’ surgiu nos Estados Unidos, para delimitar as novas ge
rações que nasceram no final da década de 1970 ou início dos anos 1980.”6 Apareceu
pela primeira vez no periódico Advertising Age, de agosto de 1993.7 Atualmente, os
estudos sobre Geração Y se concentram, grosso modo, nas áreas de gestão e marke
ting, administração, publicidade e propaganda, comunicação.
Características gerais
Não há consenso sobre datas iniciais e limítrofes quando se trata de gerações, e
quando se fala da Geração Y a divergência não é menor. Alguns autores situam os
indivíduos dessa geração como nascidos entre 1978 e 1994,“ entre 1980 e 1990,9 entre
1980 e 1999ID, entre 1980 a 2000,11 ou m esm o a partir de 1982.12 Poderíamos situar essa
geração entre os anos iniciais da década de 1980 e os anos finais da década seguinte.
Alguns propõem um a nomenclatura m ais recente, a Geração Z, a partir do ano
2000, a qual seria m arcada pela total presença da tecnologia digital, ao contrário da
Y, com posta por pessoas que presenciaram o advento da internet e da globalização
em plena adolescência.13 Entretanto, os teóricos ainda não conseguiram diferenciar
com clareza a Geração Y da suposta sucessora, além de que estam os diante de um fe
nômeno que carece de maiores estudos antes de ser melhor apresentado. Logo, nosso
interesse se fixará apenas na Geração Y.H
20. Embora a possibilidade de interação social fosse vislumbrada desde fins dos anos 1960s, o termo
"comunidade virtual" apareceu em um artigo de Howard Rheingold, em 1987. A primeira rede social
moderna surgiria apenas dez anos depois, com o lançamento do site www.sixdegrees.com. Consultar
David Kirkpatrick, O efeito Facebook: os bastidores da história da empresa que conecta o mundo (Rio de
Janeiro, RJ: editora Intrínseca, 2011), p. 77-78.
21. Mariane Cara, Opus cit., p. 71.
22. Paulo Sérgio do Carmo, Culturas da rebeldia: a juventude em questão (Sào Paulo: Editora SENAC São
Paulo, 2003), 2a ed, p. 199-220.
23. ACI Pesquisa e Estudo de Mercado, apud. Peri da Silva Santana e Janice Natera Gonçalves Gazola,
Opus cit., p. 15.
24. Adam Thomas, Opus. cit., p. 3.
25. Consultar Rebecca Huntley, The world according Y: inside the new adult generation (Crowns Nest,
NSW: Allen & Unwin, 2006).
30 / E x p l o sã o Y
26. Larissa Guerra, “Qual é a d a Geração V", in: A Notícia, ed. 25.797, ano 88, terça-feira, 6 de dezembro
de 2011, p. 5, 6.
27. Cristiane Ferreira dos Santos et a i, Opus cit., p. 12.
28. Idem.
29. Luciana Santos, Opus cit., p. 2.
30. Idem, p. 4-5.
O Y DA QUESTÃO / 31
preza o esforço. Para a autora, a Geração Y “tudo isso sofre, sofre muito, porque foi
ensinada a acreditar que nasceu com o patrimônio da felicidade. E não foi ensinada
a criar a partir da dor.”3J
A despeito de algumas das mudanças da revolução digital serem muito benéficas, há
pontos preocupantes. Cada vez mais as pessoas estão dependentes da internet. O Brasil
é considerado o país líder em tempo de navegação: em média, o brasileiro fica 45 horas
online por mês, enquanto ingleses e americanos, segundo e terceiro lugares na pesquisa,
ficam 40 e 37 horas, respectivamente.32 O tempo gasto na internet pode criar dependên
cia da rede.33 Junte-se a esse fator o tipo de interação superficial que se tornou comum
em redes sociais, onde uma mentalidade exibicionista e fútil muitas vezes impera.31
Conform e temos visto, estamos diante de um a nova geração, que está há poucos
anos no m ercado de trabalho, m as que já atrai empresas pelo seu potencial criativo,
suas múltiplas habilidades e, ao mesmo tempo, desperta preocupações, quer por sua
informalidade (que passa por desrespeito à hierarquia), quer por seu foco em cres
cimento pessoal e valorização de valores que destoam daqueles das empresas tradi
cionais (o que soa aparentemente como descom prom isso). A Geração Y é aficionada
por entretenimento (internet e games); é multitarefa e valoriza a inovação, padrões
informais e flexíveis, a individualidade para expressar sua opinião; busca constante
reconhecimento no ambiente de trabalho e a conectividade.35 Veremos agora como
isso se relaciona à mentalidade pós-moderna.
31. Eliane Brum, “Meu filho, você não merece nada”, in: Época, 11 de set. de 2011. Disponível em:
< http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0„EMI247981-15230,OO.htmlx Acesso em: 9 de maio
de 2012.
32. Brasil é o país que passa mais tempo na internet, diz Ibope, disponível em <http://wwwl.folha.uol.
com.br/tec/781897-brasiI-e-o-pais-que-passa-mais-tempo-na-fMfeme/-diz-ibope.shtml>. Acesso: 23 de
dez. de 2012.
33. No Brasil, um site chamado www.100Face.com se propõe a desenvolver uma espécie de “terapia
de grupo” para aqueles que se reconhecem viciados na rede social Facebook. Nas palavras de Felipe
Teobaldo, o criador do site, os comentários postados no lOOFace pelos seus usuários parecem “com os
de gTupos de recuperação, de gente que está sem usar uma droga. São sobre dependência, abstinência
e recaída.” Consultar a entrevista em Fabrício Lobel, “A vida sem Facebook", in: Veja, 31 de outubro de
2012, seção “Panorama” p. 68-69.
34. Estima-se que entre os usuários homens do Facebook, a rede social mais popular do mundo, ao
utilizarem o site, 82% veem fotos de amigos, 74% “curtem" as fotos, outros 74% leem as atualizações;
quanto às mulheres, ao entrarem na rede, 79% comunicam-se com seus contatos, 77% reencontram ve
lhos amigos e 67% acompanham online a vida de amigos. Essas e outras estatísticas se acham disponíveis
em Amanda Kamanchek, “Te achei no Facebook", in: Folha de São Paulo, 5 de Dezembro de 2012, p. C6.
35. Sidnei Oliveira, Opus cit., p. 64.
32 / E xplo sã o Y
Em bora seja um anseio humano basear suas escolhas em guias seguras, o que
aliviaria sua responsabilidade, dada a ambiguidade moral, as pessoas não encontram
autoridades nas quais confiar, pelo menos, não em quem confiar a todo tempo. Bau-
man assim define o que para ele seria o “aspecto prático mais agudo e importante do
que justamente se descreve como a crise moral pós-m oderna’”.41
Segundo certo autor, a “a m aioria dos pensadores pós-m odernos está fascinada
pelas novas possibilidades de inform ação e da produção, análise e transferência de
conhecim ento”42 Atualmente, há um a tolerância maior a qualquer tipo de crença e
ideologia, porque as inform ações e perspectivas fluem na internet (e na mídia em
geral) com m aior velocidade. Certo e errado são term os que expressam atualmente
Fritz Guy, teólogo adventista, declarou: “É um erro imaginar que experiência, prática e
crença sejam exatamente os mesmos em cada lugar, como o é supor que sejam exatamente
os mesmos em cada geração.”48 Nesse sentido, a nova moralidade desperta inúmeras pre
ocupações. Outro teólogo adventista, Vogel, tratando do que ele chama de 'nova mente”
revela que pesquisas mostram a reação de adultos, de gerações passadas, e adolescentes a
imagens de tortura e assassinato. Enquanto adultos revelam compaixão, revolta ou repulsa,
os adolescentes julgaram os vídeos pela qualidade da imagem ou tipo de ação oferecida,
demonstrando desinteresse quando o material estava abaixo da qualidade esperada. Ele
apura ainda que psicólogos têm notado a incongruência de se aceitar a violência na ficção
e rejeitá-la na vida real, um tipo de contradição que leva à constatação de que, se “anterior
mente essa habilidade poderia ser chamada de esquizofrenia”, hoje “tomou-se normal”49
Com essa “normalização” da esquizofrenia”, a ética se torna flutuante, e surgem situ
ações que parecem fugir por completo do que seria ordinário. Veja os seguintes casos:
se um homem flagrasse sua esposa expondo a nudez a outro homem, por meio de uma
web camera, isso seria suficiente para que ele se divorciasse dela? Se um adolescente
disponibilizasse, em algum site de compartilhamento de dados, a música de seu grupo
cristão favorito, isso seria infringir os direitos autorais dos músicos, mesmo que ele ale
gasse estar evangelizando os amigos?50 Utilizar chats no dia de sábado seria adequado
com aquilo que a Bíblia diz ser pertinente para esse dia, considerado santo (Ex 20:8-11)?
Uma sociedade calcada no transitório não pode ela mesma subsistir de forma
perene. Assim, deve-se repensar sobre o que estam os valorizando. N um a época em
que se gasta mais com publicidade que em construção de igrejas, tudo indica que
algo está muito errado. Claro que cada um tem condições de contribuir no sentido
de promover um resgate da autêntica valorização do potencial humano, a partir de
critérios mais humanitários e em basados em genuíno amor pelo próximo. Creio ser
esta a rota da esperança a fim de projetar uma imagem melhor sobre mundo, imagem
para além da mera imagem. Vogel pondera:
A fascinação com computadores, os quais têm feito a vida tão fácil e, assim,
tão bastante dependente das máquinas, tem levado a um novo entendimento
do mundo em que vivemos. Ele tem se tornado muito menor na percepção
humana, mas, ao mesmo tempo, tem se tornado mais difícil para captar.S1
48. Fritz Guy, Thinking Theologically - Adventist Christianity and the interpretation of Faith (Barrien
Springs, MI: Andrews University Press, 1999), p. 233, apud. Reinder Bruinsma, "Theological diversity: a
threat, an asset, or what?’’, in: Ministry, dezembro de 2010, p. 18.
49. Winfried Vogel, “Biblical Truth in the context o f new modes of thinking”, in: Journal of Adventist The
ological Society, vol. 9, n" 1, p. 115-116.
50. A Fecomércio RJ divulgou pesquisa que indica que entre os consumidores 48% consideravam baixar
músicas pela internet uma prática legal, número que subiu para 59% em 2012; em contrapartida, apenas
32% dos entrevistados consideravam o ato um crime, índice que caiu para 22% em 2012. Ver Denise
Luna, “Mais pessoas acham que baixar música sem pagar não é crime”, in: Folha de São Paulo, 6 de De
zembro de 2012, seção “mercado” p. B 11.
51. Winfried Vogel, Opus cit., p. 117.
O Y DA QUESTÃO / 3 5
Será que influímos nesse contexto como sal, representando o Evangelho do M es
tre e assum indo o Seu senhorio ou nos encontramos, malgrado, repercutindo os
m esm os bordões seculares? Com o interpretar a herança adventista nesse momento
histórico imediato, quando som os chamados a testemunhar à Geração Y?
52. Carlos Mendoza-Álvarez, O Deus escondido da pós-modernidade: desejo, memória e imaginaçao escatoló-
gica. Ensaio de teologia fundamental pós-moderna (São Paulo, SP: Realizações Fditora, 2011}, p. 37-38.
53. Erwin McManus, "A intersecção global", in: Leonard Sweet, A igreja na cultura emergente: cinco pon
tos de vista (São Paulo, SP: Editora Vida, 2009), p. 221.
36 / E xplo são Y
pela qual tem os tantos tipos diferentes de igrejas - batidas diferentes para p e sso
as diferentes” 54
Obviamente, estamos tratando de uma mentalidade cúltica que envolveria um “méto
do de adoração que é mais experimental, participativo, baseado na imagem e conectado”,
classificado como “pós-moderno”, mas também um novo estilo de vida, uma vez que para
“Jesus a verdade não consistia em proposições na propriedade de sentenças. Ao contrário,
a verdade era o que estava revelado por intermédio da participação e interação com Ele,
com outros e com o mundo”55 Daí a tendência de as igrejas emergentes se envolverem
com a justiça social, em uma tentativa de levar o amor de Jesus e transmitir uma men
sagem inovadora e positiva, em contraponto com a carapuça de negativismo que os não
cristãos atribuem à igreja.56 Plenc assim resume as características do movimento:
54. Andy Park, Em espírito e verdade: cultivando o coração do líder de louvor e adoração (São Paulo,SP:
Editora Vida, 2002), p. 302-303.
55. Leonard Sweet, Post-modern pilgrims: first century passionfor the 2 lst century world (NashviLIe, Ten-
nesse: Broadman & Holman Publishers, 2000), p. 157.
56. Dan Kimball, Eles gostam de Jesus, mas não da igreja: insights das gerações emergentes sobre a igreja
(São Paulo, SP: Editora Vida, 2011), p. 110.
57. Daniel Plenc, “igrejas Emergentes: análise das características e dos riscos de um movimento supostamen
te evangelizador da cultura pós-moderna” in: Ministério, ano 84, n" 499, mar-abr de 2012, p. 13.
O Y DA QUEST ÃO / 3 7
oferecida pela cham ada igreja emergente.5” Porém, essa assimilação não se constituiu
a exceção; ao contrário, trata-se, infelizmente, de uma tendência natural: onde quer
que os cristãos tenham dado, m esm o que inconscientemente, prioridade às norm as e
conceitos da cultura dominante, sua fé se descaracterizou.
O processo de descaracterização já vem afetando os jovens adultos adventistas,
muitos dos quais mantêm as m esm as crenças, mas sob um novo prisma. Para eles,
por exemplo, evangelizar outros compartilhando sua fé é algo apenas subjetivo. De
alguns dos ensinos adventistas eles não discordam - apenas deixam de enfatizá-los.59.
Na década passada, o livro que talvez melhor representou essa tendência foi o Adven-
tismfor a new generation, de Steve Daily.
Daily se propôs a escrever para jovens adventistas em uma era pós-cristã, mas
suas opiniões refletiram uma postura infectada pelas ideias pós-m odernas. Ele afir
mou, por exemplo, que o significado de 1844 é embaraçoso para os adventistas e
acabou por fazer uma série de aplicações meramente existenciais da doutrina do san
tuário; m ais à frente, ele lamentou que a doutrina do santuário tenha sido usada por
“líderes da igreja adventista para remover e excomungar um dos m ais cristocêntricos
teólogos que a igreja produziu, num evento por meio do qual muitos jovens adven
tistas se desiludiram.” A referência é óbvia: trata-se do teólogo australiano Desmond
Ford, que no início dos anos 1980 negou a doutrina adventista da expiação a par
tir de 1844. Além disso, Daily insistiu haver tensões entre nossa afirmação de crer
simultaneamente no princípio Sola Scriptura e na inspiração dos escritos de Ellen
White. A solução? Segundo ele, precisamos voltar a atenção para Cristo, “por ser esse
o objetivo de toda reforma e todo profeta.”60 Em outras palavras, sua proposta parece
indicar que se o que Ellen White escreveu parece divergir da Bíblia, o intérprete não
deve conciliar - aceite a Bíblia e rejeite os escritos dela! Daily faz supor que ser cris-
tocêntrico consiste em negar doutrinas distintivas.
Para muitos, as doutrinas e norm as da igreja são parte da “burocracia eclesiásti
ca” que impede a verdadeira comunhão com Deus. Os preceitos seriam considera
dos algo negativo ou secundário, enfatizados em detrimento do aspecto relacional.61
58. “Esse cristianismo sincretista é mais evidenciado em qualquer lugar do mundo, mesmo em países em de
senvolvimento, onde a Nova Era e elementos do fenômeno da Igreja Emergente misturam diversas expressões
das religiões mundiais de espiritualidade não bíblica.” Larry L. Lichtenwalter, Opus cit., Idem.
59. Rubén René Dupertuis, “ Young Adults Make Adventism Their Own” in: Adventist Today, March-
-April 1997, p. 20, apud. Winfried Vogel, Opus cit.,p. 119,
60. Steve Daily, Adventism for a new generation (Oregon: Better living Publishers, 1994), p. 62, 180, 76, 77.
Para o teólogo Timm, o livro de Daily esfriou “lamentavelmente muito do entusiasmo tradicional adventista a
respeito de eventos futuros.” Alberto R. Timm, "Escatologia Adventista do Sétimo Dia, 1844-2004: breve pano
rama histórico') in: Alberto R. Timm, Amin A. Rodor e Vanderlei Dorneles (ed.), O futuro: a visão adventista
dos últimos acontecimentos: artigos teológicos apresentados no V Simpósio Bíblico Teológico Sul-Americano em
homenagem a Hans K. Larodelle (Engenheiro Coelho, SP: Unaspress, 2004), p. 280.
61. “Reconheço que o ambiente da chamada pós-modernidade, acolhedora do relativismo e de rejeição racio-
nalista, por muitas vezes tem sido abrigo de opiniões diversas e divergentes de muitos cristãos, justificando a
tudo e a todos nessa caminhada de ser ou de não ser igreja.” Nelson Bomilcar, Os sem-igreja: buscando cami
nhos de esperança na experiência comunitária (São Paulo, SP: Mundo Cristão, 2012), p. 53.
38 / E x p lo sã o Y
Talvez a face mais radical dessa tendência seja o que se convencionou denominar
“religião sem religião”, experiência resultante da “racionalidade digital” própria das
sociedades pós-industriais.62
O relaxamento do com promisso com a identidade adventista, principalmente en
tre os m em bros do movimento que se enquadram nos critérios de Geração Y, teste
munha do crescimento de tendências pós-m odernas em nosso meio,63 as quais são
responsáveis pela “perda da credibilidade das igrejas”, junto com outras instituições
da m odernidade. Essa “crise de credibilidade” teria se instaurado com filósofos como
Nietzsche e seus predecessores. Logo, as “expressões religiosas” do cristianism o fo
ram afetadas pelo “fenômeno do esgotamento da religião”. Eica o desafio para o cris
tianism o em geral, e para o adventismo em particular:
62. Carlos Mendoza-Álvarez, Opus cit, p. 61. Na mesma página, o autor ainda descreve essa experiência
como “um Logos digital e não analógico, porque este último funciona de modo binário e é capaz de dar
multiplicidade de relações que constitui a cada sujeito individual e coletivo, integrando-o numa vasta
rede de significados e ações sempre em movimento, metamorfoseando-se para alcançar novas configu
rações de identidade, de significados, de valor e de sentido.”
63. “Adventistas pós-modernos certamente não são raras exceções - e o número e a influência deles es
tão crescendo, não apenas em muitos países da Europa, mas também em toda parte do mundo.” Reinder
Bruinsma, “Is the Postmodern Adventist a threat to Unity of his ChurchT\ p. 76.
64. Carlos Mendoza-Alvarez, Opus cit., p. 66, 68, grifos no original. Cabe, a título de observação, que a
dita emancipação do sujeito não pode ser definida nem, por um lado, dentro de uma concepção natura
lista, nem, pelo outro, em termos de razão pós-moderna, em vista de que ambas se opõem à Revelação
como fonte última do conhecimento. Entrementes, o enunciado do desafio cristão elaborado pelo autor
de forma lúcida merece ser considerado seriamente.
65. Bryan W. Ball, "Towards an Authentic Adventist Identity” in: Borge Schantz e Reinder Bruinsma, Exploring the
frontiers of faith: Festschrift in honor of Dr. Jan Paulsen (Lueneburg, Germany: Advent-Verlag, 2009), p. 57.
O Y DA QUEST ÃO / 39
Apresentação do Cristo vivo: Jesus afirmou que quando fosse levantado na cruz
atrairia todos a Si mesmo (Jo 12:32), Ealta que O exaltemos como Salvador crucificado,
Redentor ressurreto, sumo Sacerdote atuante e Rei vindouro. Quando Ele for apresenta
do em todos os aspectos, as pessoas perceberão que o Evangelho é mais do que a velha
história do “Jesus morreu por você”. É óbvio que nosso Senhor veio morrer pelos seres
humanos. O que sucede é que essa mensagem passou a ser repetida inutilmente como um
bordão acinzentado, em apresentações simplórias que transmitem aos não cristãos a im
pressão de que os crentes são intelectualmente rasos e superficiais. Nada mais contrário à
verdade: o Evangelho verdadeiro aponta para um Cristo suficiente em todos os aspectos,
presente em nossa vida e autor de um intrincado plano para reverter o abismo entre Deus
e homem. A pessoa de Jesus, em conexão com Suas doutrinas, numa apresentação clara
e culturalmente compreensível, constitui a solução para as necessidades da Geração Y.
Em nível pessoal, cada cristão deve fazer uso apropriado da internet. Quando al
guém se expressa na rede, também está afirmando sua identidade, por meio de pre
ferências e da forma como se apresenta. Cristãos adventistas não deveriam abrir mão
de oportunidades para o testemunho m esmo quando conectados; pelo contrário: ao
aproveitar o leque de possibilidades virtuais, estariam dizendo que é possível gozar
momentos de lazer sadio e expressar opiniões coerentes com os valores que professam.
No oceano de futilidade que nos cerca, podem os acrescentar alguns ca
racteres diferentes em nossas mensagens, Não fotos de quem se pretenda m o
delo profissional ou links para vídeos de humor vulgar; mas o suave perfu
me do Evangelho em todas as mídias, como uma declaração consciente de que
pertencemos não a este mundo. Usar a novidade das tecnologias para falar da novi
dade que a esperança em Jesus oferece é uma necessidade no século XXI.
Este capítulo tencionou introduzir o leitor no contexto desafiante da pós-modernidade,
momento do pensamento humano que inclui a Geração Y. A partir de agora, iremos revi
sar com maior precisão alguns dos postulados pós-modemos. Se nosso entendimento da
pós-modernidade se limitasse ao que dissemos anteriormente, ele seria bastante restrito e
insuficiente para resolver todas as questões que se lançam contra o movimento adventista.
Diríamos, a título de comparação, que a Geração Y é a ponta do iceberg. Desafio o leitor para
seguirmos juntos e mensurar o iceberg completo.
69. Ellen G. White, Testemonies for Church {Nampa, Idaho; Oshavva, Ontario, Canada: Pacific Press
Association, s/d), vol. 2, p. 251.
Ml
Quem se importa com
a cosmovisão?
Fui levado às pressas para o hospital. Sentia dores na região abdominal e nem
sequer disfarçava os urros. O primeiro médico que me viu não teve dúvidas e diag
nosticou: pedras nos rins - que, segundo alguns, causam dores mais fortes que as do
parto. Confesso que, até ali, eu nem me dera conta da relevância dos meus rins (con
quanto eles funcionassem, continuariam quase completamente irrelevantes). Não co
nheço pessoas que se importem com suas amígdalas ou seu apêndice, antes que eles
inflamem e tornem necessária a intervenção cirúrgica!
Algumas coisas são como esses órgãos - se funcionam dentro da normalidade, pas
sam despercebidos. Apenas em meio a uma crise despertam nosso interesse (vez ou
outra, sou dolorosamente lembrado de que meus rins existem). O mesmo raciocínio
se aplica ao padrão que orienta nossas escolhas: ele está lá, mas não nos dam os conta.
Nesse capítulo, definiremos alguns conceitos-chave, os quais, embora tenham
sido m encionados previamente, passam a orientar de form a decisiva o que se seguirá
no restante do livro. Além disso, veremos quais fatores tornam a contemporaneidade
um contexto hostil ao cristianismo bíblico.
1. Zygmunt Bauman, Ética Pós--moderna (São Paulo, SP: Paulus, 1997), p. 41.
42 / E xplo sã o Y
2. Ronald A. Simkins, "Worldview", in: David Noel Freedman; Allen C. Myers; Astrid B. Beck, Eerdmans
Dictionary of the Bible (Grand Rapids, MI: W.B. Eerdmans, 2000), edição eletrônica.
3. Chaltal J. Klingbeil, “Iglesia y Cultura jAmigas o Enemigas?”, in: Gerald A. Klingbeil, Martin G. Klin-
gbeil e Miguel Angel Niines, Pensaria Iglesia Hoy: Hacia una eclesiologia adventista - Estúdios teológicos
sudamericano etn honor a Raoul Dederen (Libertador San Martin, Entre Rios, Argentina: Editorial Uni-
versidad Adventista del Plata, 2002), p. 353, 352.
4. Fabiano de Almeida Oliveira, “Reflexões Críticas Sobre Weltanschauung: Uma análise do processo de
formação e compartilhamento de cosmovisões numa perspectiva teo-referente”, in: Fides Reformata, vol.
XIII, nM , p. 33.
5. De forma concisa e didática, a seguinte definição é útil: “Os naturalistas se opõem ao sobrenatural.
Eles negam a existência de fantasmas, duendes, deuses e outras entidades assombrosas.” Jack Ritchie,
Naturalismo (Petrópolis, RJ: Vozes, 2012), p. 12. O autor menciona que essa é a principal corrente aceita
pela maioria dos filósofos do século XX, embora poucas tratem abertamente de explicá-la.
Q uem se im p o rta com a c o s m o v is ã o ? / 43
Visões em conflito
Estam os em um período marcante de transição de pensamento. As mu
danças tecnológicas propiciam o surgimento de uma cultura digital. A G era
ção Y é o reflexo desse contexto e precisamos entendê-la para dissem inarm os
apropriadamente o evangelho (capítulo 2). Diante da realidade contemporânea, o
choque entre visões de mundo conflitantes é inevitável, porque em um mundo plural
como o nosso, constantemente interagimos com pessoas que possuem grades concei
tuais distintas, razão de haver mal-entendidos, divergências, conflitos ou desenten
dimentos mais sérios.
Para exemplificar: no episódio piloto da série Lie to me,8 o Dr. Cal Lightman (Tim
Roth) lida com o caso de um adolescente preso pela acusação de haver assassina
do a professora em North West. Lightman é especialista em detectar mentiras por
meio de m icroexpressões faciais e presta consultoria para agências de investigação
do governo. Durante a investigação, ele percebe o conflito que havia entre a falecida
professora e os pais do garoto, que são testemunhas de Jeová. A visão religiosa deles
chocava-se com a visão da professora, a qual eles consideravam liberal demais. O jo
vem acusado, por outro lado, tinha uma atração sexual pela professora, e sentia uma
culpa reprim ida por isso.
Sem dúvida, situações correspondentes aparecem na vida real. Minha esposa fazia
pós-graduação na área de séries iniciais e gestão escolar. Em determinada aula, uma
das professoras começou a discorrer sobre o comportamento humano como resulta
do da evolução darwinista. O que fazer neste caso? Ela deveria se manifestar e expor
os motivos pelos quais não acredita na teoria da evolução? Deveria ao menos procu
6. Leonard Brand, “A teoria da evolução é científica?” in: Diálogo Universitário, vol. 24, n" 1, p. 20.
7. Barry D. Oliver, “Can or should Seventh-day Adventist belief be adapted fo culture?”, in: John L. Dyb-
dahl (ed.), Adventist Mission in the 21st Century: The joys and challenges of presenting Jesus to diverse
world (Hagerstown, MD: Review and Herald Publishing Association, 1998), p. 75.
8. A série Lie to me, inspirada no trabalho verídico do psicólogo Paul Ekman, é transmitida pelo canal
FOX.
44 / E xplo sã o Y
rar a educadora e sugerir que não apresentasse o darwinismo como a única forma de
explicar o comportamento? Ou deveria simplesmente ignorar? Nem sempre é fácil
lidar com essas situações conflitantes.
O que agrava o quadro é o escopo diferenciado dado às cosmovisões. Geralmente,
como o assunto não é discutido em termo de pressupostos envolvidos, uma cosm o
visão é tom ada como verdadeira apenas por estar mais dissem inada do que outras.
Neste caso, quando alguém sustenta uma visão contrária, enfrenta dificuldades para
ganhar o direito de ao menos ser ouvido. Às vezes, determinada cosm ovisão ultra
passa limites de famílias, clãs e países, influenciando grande m assa de pessoas. Nesse
ponto, tal visão de m undo chega ao patam ar de espírito do tem po (zeitgeist). Essa
visão de mundo mais dissem inada passa a exercer controle sobre as demais, influen-
ciando-as e restringindo-as.*
Para entender bem com o isso ocorre, pense na seguinte situação: o bairro X de
uma grande metrópole é famoso por seu comércio. Depois de alguns anos de desen
volvimento urbano, surge um Shopping Center ali. O potencial comercial do shop
ping é capaz de sufocar as lojas menores, ao m esm o tempo em que se encarregará de
agregar em suas dependências lojas maiores que possuam perfil compatível com sua
proposta. De forma similar, o espírito da época saberá agregar visões de mundo com
patíveis com sua proposta filosófica, enquanto acabará encurralando no ostracismo
aquelas cosm ovisões que se lhe opõem. É exatamente este o dilema que o cristianis
mo enfrenta no atual panoram a cultural.
Penso que Sproul foi muito feliz ao identificar o conflito entre Humanismo secu
lar e teísmo como gravitando em torno da busca pela verdade definitiva - “só pode
haver um definitivo”, afirma ele. Com lucidez, ele ainda pondera a respeito da “tole
rância entre duas visões de mundo concorrentes” : “Uma nação secular pode escolher
‘tolerar o Cristianism o em algum grau enquanto este for visto meramente como a
expressão de uma forma de religião humana, m as não pode tolerar as alegações de
verdade do mesmo.” !0 Em outras palavras: no caso citado, o Hum anism o secular
jam ais tolera o Cristianismo, m as uma versão inofensiva dele. De m odo geral, a reli
gião perderá sua influência na esfera pública - o que chamamos de secularização, um
fenômeno que cresce no Ocidente.
pessim ista leva em conta dados do censo desses países, que constatou o alarmante
crescimento de pessoas que se declaram sem-religião.11 Chamam os à perda de refe
rência e sentido religioso de secularização.
Por que um a sociedade entra em processo de secularização? O que suscita o afas
tamento de pressupostos religiosos? Sugiro que a inocuidade da religião, pensando em
concepção de vida, assume o posto de fator preponderante. Para sermos justos, diver
sos fatores contribuem para o processo. Não obstante, o mero desenvolvimento indus
trial e tecnológico, e as demandas da vida consumista nos grandes centros urbanos, per
si, constituem explicações incompletas. A meu ver, a mutilação da estrutura religiosa
(condicionalmente esvaziada pelo zeigeist da sociedade secular) explica melhor a pro
blemática; afinal, se a fé falha em prover com suporte holístico o homem do século XXI,
por que manter sua estrutura conceituai? Por suporte holístico compreende-se as expli
cações unificadas para as grandes questões da vida. Quando uma cosmovisão falha em
prover direcionamento para áreas importantes da vida, ela se torna descartável
Logo, as religiões (incluindo, infelizmente, o cristianismo) se mantêm em um sen
tido diametralmente oposto ao da racionalidade pessimista, que sub-repticiamente se
instalou na modernidade, desembocando na pós-modernidade(capítulo 3). O que pode
salvar o cristianismo? O escritor Harry Blamires coloca a questão nos seguintes termos:
Se hoje a igreja se calar e ficar inerte em relação àqueles pontos de nossa civili
zação por meio dos quais se molda o pensamento desta época, as decisões são to
madas, as ações planejadas, ou a mente de futuras gerações moldadas, a influência
dela neste século estará apodrecida em seu cerne. A tradição de nossa igreja é que
a vida cristã é uma vida para o homem pleno. Não há espaço no cristianismo para
uma cultura do espírito que negligencie a mente, para uma disciplina da vontade
que não passe pelo intelecto. Pode ser que o mal de nosso tempo [...] seja f...] a de
sintegração do pensamento humano e da experiência humana em compartimentos
separados e não relacionados. Pois uma caracterização da condição corrompida da
sociedade moderna é a segmentação das faculdades humanas - as físicas, as emo
cionais, as intelectuais e as espirituais - em categorias distintas, exploradas separa
damente. O homem está desmembrado. [...] Como a igreja nutre o cristão esqui
zofrênico, a própria igreja contribui para o processo de desmembramento, embora
seja de sua alçada checar esse desmembramento e agir contra ele.”12
11. “Estudo indica que religião pode ser extinta em 9 países ricos” disponível em <http://www.estadao.
com.br/notiaas/geral,estudo-indica-que-religiao-pode-ser-extinta-em-9'paises-ricos,695510,0.htm>.
Acesso: 25 de jul. de 2011.
12. Harry Blamires, A mente cristã: como um cristão deve pensar? (São Paulo, SP: Shedd Publicações,
2006), p. 82-83. lon Paulien também fala em “ [...] existência esquizofrênica, na qual a fé afeta a vida
por um curto periodo apenas, cada dia, seguida por uma existência essencialmente secular durante o
restante do tempo” Jon Paulien, Deus no mundo real: segredos para viver o cristianismo na sociedade
moderna (Tatui, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2008), p. 82.
46 / E xplo são Y
13. Aleixei Bueno (org.), Olavo Bilac: Obra Reunida (Rio de Janeiro, RJ: Nova Aguilar, 1997), reimpres
são da 1J ed, p. 257.
Q u e m se im p o r t a c o m a c o sm o v isã o ? / 47
14. Ken McFarland, The Called... The chosen: God has always had a people (printed by Review and He
rald Graphics), p. xi.
48 / E xplo sã o Y
M uitos poderiam dizer que a religião, independente de ser verdadeira, é útil pela
sua contribuição no campo da moral (capítulo 5). Entretanto, um ‘senso de
necessidade5não justifica a crença das pessoas”, observa Os Guiness,
“As pessoas não passam a crer nas respostas que procuram por causa da
necessidade - isso seria irracional e tornaria o crente vulnerável à acusação de
que a fé seja uma muleta. Na verdade, os que estão à procura de respostas des~
creem daquilo em que antes acreditavam, por causa de poucas perguntas que
15. William Lane Craig, “Féy razão e a necessidade da apologética \ in: Francis J. Beckwith, Witlian Lane
Craig e J.P. Moreland, Ensaios Apologéticos: um estudo para uma cosmovisão cristã (São Paulo, SP: Hag-
nos, 2006) p. 22-25.
16. trartcis Schaeffer, O Deus que intervém {Sào Paulo, SP: Editora Cultura Cristã, 2002), p. ] 94.
17. Ravi Zacharias, Por que Jesus é diferente {São Paulo, SP: Mundo Cristão, 2003), p. 13, 68.
Q uem se im p o rta co m a c o s m o v is ã o ? / 49
18. Os Guinness, O chamado: uma iluminadora reflexão sobre o propósito da vida e seu cumprimento (São
Paulo, SP: Cultura Cristã, 2001), p. 20.
N ão dá para viver assim!
Você pode dizer que Jesus mudou sua vida, mas é inadmissível declarar
que Ele é o único caminho para Deus. Em primeiro lugar, tais afirmações não
são imparciais, porque tornam Jesus superior aos outros líderes religiosos e
ofendem a maioria da população. Além disso, essas declarações podem não
ser objetivamente verdadeiras, sendo apenas as reflexões da tendência religiosa
particular da pessoa. Fim da discussão/1
1. Dexter surgiu como personagem dos romances de JefF Lindsay (cinco livros foram escritos pelo autor,
que, curiosamente, é esposo da sobrinha de outro grande nome da ficção americana, Ernest Hemingway).
2. Erwin W. Lutzer, Quem é você para julgar? (Rio de Janeiro, RJ: Casa Publicadora das Assembléias de
Deus, 2005), p. 22-23.
NÃO DÁ PARA V IV E R ASSIM ! / 51
Durante uma sem ana de oração que realizei no litoral de Santa Catarina, fui con
vidado a dirigir o estudo da lição da Escola Sabatina em um a classe de adultos. D u
rante os momentos de interação, um dos membros da igreja afirmou: “Temos que to
mar cuidado quando afirmamos a verdade de nossas doutrinas, porque apenas uma
minoria da população acredita na Bíblia. N ossas doutrinas são verdadeiras apenas
para essa m inoria ”
À saída de um culto, em uma igreja na zona leste de São Paulo, o pianista da igre
ja me abordou, questionando a mensagem da pessoa que havia pregado. “Ele falou
muito em igreja verdadeira”, comentou o músico, “e acho que não podem os sair por
aí dizendo isso! N ão podem os nos achar superiores aos outros.”
Uma aluna do ensino médio declarou em um a aula, perante a turma: “Eu sou
adventista ‘de berço’ e acredito nas doutrinas, na Bíblia, em Jesus. Hoje eu não abriria
mão da minha crença, porque fui educada nela. Mas, às vezes, fico pensando que se
tivesse nascido em outro país, tivesse outra cultura e fosse ensinada em outra religião,
aquilo seria a verdade para m im ” Na verdade, a m oça não foi a única aluna adventis
ta a se expressar dessa forma (e desconfio que, infelizmente, não será a última).
Será que a verdade é um a questão de perspectiva? Podemos crer em uma verdade
objetiva, universal? Ou isso seria uma atitude arrogante, ou coisa pior - um a for
ma mal disfarçada de totalitarismo?3 Antes de lidarm os com tais questionamentos, é
mister considerar algum as características do pós-m odernism o. A tarefa não é fácil,
porque sob o rótulo de pós-m odernidade se abrigam diversas tendências e correntes
de pensamento. Entretanto, analisaremos o que pensadores seculares, pós-m odernos
ou não, e cristãos têm escrito sobre o assunto, a fim de representarmos adequada
mente o fenômeno em suas linhas gerais.
ponder ao relativismo, para expressar sua fé corajosamente e viver vidas fiéis em uma
cultura moralmente desencorajadora.”4
Mas o que seria o relativismo pós-moderno? Ele pode ser definido como a doutrina
4que considera todo conhecimento relativo como dependente de fatores contextuais, e
que varia de acordo com as circunstâncias, sendo impossível estabelecer-se um conheci
mento absoluto e uma certeza definitiva.”5 Os estudiosos apontam duas formas principais
de relativismo: o relativismo forte e o fraco. No relativismo forte, não há verdade absoluta,
sendo o acesso a ela impossível pela experiência humana. No relativismo fraco, as diver
sas verdades de diferentes correntes religiosas e ideológicas são tidas por equivalentes, às
vezes válidas por determinadas épocas ou restritas a culturas e ambientes específicos.6
O relativismo gravita em torno da epistemoiogia pós-m oderna. A epistemologia
lida com questões referentes ao conhecimento - “o que podem os conhecer?”, “como
podem os ter acesso ao conhecimento?” “como nos certificar sobre o grau de confia
bilidade de nosso próprio conhecimento?” Uma vez que os pensadores pós-moder-
nos advogam que o conhecimento humano é limitado, condicionado por fatores his-
tórico-sociais e passível de interpretação, não se pode afirmar que ele seja universal,
ao contrário do que se afirmava no modernismo. A diferença entre a epistemologia
m oderna e a pós-m oderna fica clara no trecho a seguir:
4. Paul Copan, “True for you buí not for me": deflating the slogans that leave Christians speechless (Bloo
mington, Minnesota: Bethany House Publishers, 2009), p. 11-12.
5. Hilton Japiassú e Danilo Marcondes, Dicionário básico de filosofia (Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar
Editor, 2008), 5a ed„ p. 238, verbete “relativismo”.
6. Nicola Abbagnamo, Dicionário de filosofia (tradução da P edição brasileira coordenada e revista por
Alfredo Bosi; revisão da tradução e tradução de novos textos por Ivone Castilho Benedetti; São Paulo,
SP: Martins Fontes, 2007), 5a ed. Revista e ampliada, p. 994-995, verbete “relativismo”.
7. D.A. Carson, Carson, D. A. Becoming a conversant with emerging church: understand a movement and
its implications (Grand Rapids, MI: Zondervan, 2005), p. 27.
NÃO DÁ PARA VIV ER AS SIM ' / 53
8. Miguel Rubio> O contexto da modernidade e dapós-modernidade in Marciano Vidal (org.), Ética Teo
lógica: conceitos fundamentais, (Petrópolis, RJ: Vozes, 1999), 125.
9. Uma descrição sucinta e acessível de como o racionalismo moderno desembocou na irracionalidade
pós-moderna se acha em }. R Moreland, O triângulo do reino: restabelecendo a mente cristã, renovando a
alma, restaurando o poder do Espírito (São Paulo, SP: Editora Vida, 2011), p. 85-119.
10. Miguel Rubio, Opus cit., 127.
11. Arno Anzenbacher, Introdução àfilosofia ocidental (Petrópolis, RJ: Vozes, 2009), p. 187.
12. Giovani Reale e Dario Antiseri, História da Filosofia: do Romantismo até nossos dias (São Paulo, SP:
Paulus, 1991), Coleção Filsofia, V ed., p. 950.
13. André Constantino Yazbek, 10 Lições sobre Foucault (Petrópolis, RJ: Vozes, 2012), 2ã ed., p. 69.
14. Roberto Machado, Foucault, a filosofia e a literatura (Rf: Jorge Zahar, 2005), 3a ed., p. 39-40.
15. Michel Foucault, As palavras e as coisas (trad.: Salma tannus Muchail; São Paulo, SP: Martins Fontes,
2011), 3a tiragem da 9J ed., p. XV III-XIX.
54 / E xplo sã o Y
16. Dúvida (EUA, 2008), Direção: John Patrick Shanley, Distribuidora: Buena Vista.
17. Gene Edward Veith, Jr., Postmodern times: a Christian guide to contemporary thought and culture
(Wheaton, 111: Crossway books, 1994), p. 195.
18. Miguel Rubio, Opus cit., p. 121-122.
19. Zygmunt Bauman, Ensaios sobre o conceito de cultura (Rio de Janeiro, RJ: Zahar, 2012), p. 75-76.
20. Carlos H. Cerdá, Relación entre laodiceia y la sociedade posmoderna: efectos em la iglesia, em Gerald
A. Klingbeil, Martin G. Klingbeil e Miguel Ángel Núnes, Pensar la iglesia hoy: hacia una eclesiologia
adventista - estúdios teológicos sudamericano em honor a Raoul Dederen (Libertador San Martin, Entre
Rios, Argentina: Editorial Umversidad Adventista del Plata, 2002), p. 379.
21. Consultar Douglas Reis, Marcados pelo Futuro, p. 111.
22. “O Deus triúno da nova sociedade globalizada já não é o Pai, o Filho e o Espírito Santo da religião
cristã, mas o Dinheiro, o Consumismo e o Status. Eles se tornaram o objetivo final e a medida de todas
as coisas.” Carlos H. Cerdá, Opus cit., p. 384.
23. Gene Edward Veith, Jr., Opus cit., p. 195-196.
24. Miguel Rubi o, Opus cit., 129.
N ão d á p a r a v i v e r a s s i m i / 55
Conform e vim os, o relativismo pós-m oderno encara a busca pela verdade como
algo impossível, uma vez que nenhuma cosm ovisão pode estar certa. N ossas cren
ças nos im pedem de ver a realidade com o quer que ela seja, e não podem os sequer
saber se nós ou os outros estam os certos ou errados. Só nos resta escolher acreditar
no que satisfaça a preferência pessoal, e isso até em termos de religião. Dentro dessa
perspectiva dinâm ica, m udar de opinião segundo a conveniência é usual - as pes
soas trocam de marca de roupa e de religião sem nenhum peso na consciência. O
importante é ter muitas opções de escolha e experimentar sempre, para escolher do
seu jeito (não por acaso o consum ism o é um dos traços m ais fortes do com porta
mento pós-m oderno!).
Nesse contexto, muitos dos líderes cristãos se regozijam da abertura da pós-mo-
dernidade às religiões. De fato, a espiritualidade está em alta. Contudo, vale ques
tionar se esse tipo de espiritualidade, destituída de conteúdo cognitivo, esvaziada de
alicerces, é compatível com o que a Bíblia apresenta. Afinal, aceitar de forma acrítica
os preceitos pós-m odernos elencados acim a não seria suficiente para reconfigurar a
própria identidade do adventismo (e de toda expressão cristã)? Essa pergunta ficará
para mais tarde (capítulo 8). Por ora, cabe perguntar: será que a perspectiva pós-
-moderna garante a coerência necessária para os desafios da vida?
25. Norman Gulley, Christ is coming! (Hagerstown, MD: Review and Herald Publishing Association,
1998), p. 30-31.
26. Kenneth D. Boa & Robert M. Bowman Jr., An unchanging faith in a changing world: understanding
and responding to critical issues that Christians face today (Nashville, Tennessee: Thomas Nelson Publi
shers, 1997), p. 54.
56 / E x p l o s ã o Y
[...] por um lado, será que a sexualidade pode ser submetida, na realidade, à
legislação? De fato, será que tudo o que diz respeito à sexualidade não deveria
ser posto fora da legislação? Mas, por outro lado, o que fazer com o estupro, se
nenhum elemento concernente à sexualidade figura na lei? Eis a questão que eu
formei. [...] nesse domínio havia um problema que se deveria discutir, e para o
qual eu não tinha solução. Eu não sabia o que fazer com ele, é tudo.28
27. Norman Gulley, Opus cit., p. 32. Gulley segue Francis Schaeffer neste ponto.
28. Entrevista com Michel Foucault com J. François e J. de Wit, 22 de maio de 1981. Citado em Manoel
Barros de Motta (org.), Michel Foucault: a problematizaçâo do sujeito: Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise
(Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária, 2010), 31 ed., p. 340-341.
29. Stanley J. Grenz, Pós-modernismo: um guia para entender a filosofia de nosso tempo (São Paulo, SP:
Vida, 2008), 2» ed, p. 209-210.
30. Ellis, Against Deconstruction (Princeton, N.J.: University Press, 1989), p. 13-14, apud. Gulley, Opus cit.,p. 33.
31. Kenneth D. Boa & Robert M. Bowman Jr., Opus cit.,p. 56.
N ão d á para v iv er a ssim : / 57
ou para sair de um a incerteza generalizada. Nem deveria dirigir suas críticas a outras
crenças, porque não pode argumentar que estejam erradas. Concluí lamentando por
ele, porque até hoje não vi motivos lógicos e racionais para esposar o relativismo.
Em bora a crença no relativismo seja largamente esposada e difundida, se ela não
se justifica, deve ser abandonada. Quem sabe não é esse o momento de as pessoas de
nossa época (cristãos e não cristãos) buscarem uma nova compreensão da verdade,
ao invés de tentar negá-la.
Retorno à verdade
Se retornar à verdade é o que temos que fazer para dar sentido à existência, a qual
verdade retornaremos? Se há tantas visões de mundo, como garantir qual delas é a
correta? Ravi Zacharias nos oferece alguns critérios para aquilatar as propostas de
qualquer cosmovisão:
35. Ravi Zacharias, Opus cit., p. 88. “É um grande equívoco opor fé à razão e ao conhecimento.
Nada poderia estar mais distante da verdade, De fato, a fé - convicção, confiança - está enraizada
no conhecimento. M esmo em casos de fé mal direcionada, as pessoas costumam basear essa fé
naquilo que aprenderam a conhecer, talvez de maneira equivocada.” J. P. Moreland, O triângulo do
reino, p. 175.
36. ‘‘Mesmo que não se admitia isto abertamente, a busca da verdade está, não obstante, constantemente
presente, impelida pela necessidade de respostas incontestáveis a quatro perguntas inevitáveis, que tra
tam da origem, do sentido, da moralidade e do destino.” Ravi Zacharias, Pode o homem viver sem Deus?
(São Paulo, SP: Mundo Cristão, 1997), p. 131.
37. William Lane Craig, On guard: defending your faith with reason and precision (Colorado Springs,
CO: David C. Cook, 2010), p. 11.
38. Brennan Manning, O obstinado Amor de Deus (São Paulo, SP: Mundo Cristão, 2007), p. 105.
39. Para Nietszche, precursor do pensamento pós-m oderno, a necessidade de paz social leva ao sur
gimento da verdade, “quer dizer, descobre-se uma designação uniformemente válida e impositiva
das coisas, sendo que a legislação da linguagem fornece também as prim eiras leis da verdade: pois
aparece, aqui, pela prim eira vez, o contraste entre verdade e mentira Friedrich Nietszche, So
bre verdade e mentira (organização e tradução: Fernando de Moraes Barros; São Paulo, SP: Herda,
2008), p. 29.
40. “Não que a palavra seja imperfeita e esteja, em face do visível, num déficit que em vão se esforçaria
por recuperar. São irredutíveis uma ao outro: por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja
jamais no que se diz, e por mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens, metáforas, com
parações, o lugar onde estas resplandecem não é aquele que os olhos descortinam, mas aquele que as
sucessões da sintaxe definem.” Michel Foucault, Opus cit., p. 12. Foucault faz a afirmação no contexto de
sua análise do quadro As meninas, de Velásquez.
NÃO DÁ PARA VIV ER ASSIM ! / 59
fatores culturais, mas como dom de um Deus racional confiado aos seres feitos
à sua imagem e semelhança (Gn 1:26).41
Canale explica que, como nossa percepção necessita de múltiplos atos para melhor
compreender um determinado objeto, o processo do conhecimento transforma nossos
pressupostos iniciais.43 E quanto à própria noção de absolutismo - seria ela perigosa
e intrinsecamente má? D.A. Carson merece nossa atenção ao refletir sobre o assunto:
41. Douglas Groolhuis, Trulh Decay: defendingCristianity against the challenges ofpostmodernism (Downers
Grove, III: Intervarsity Press, 2000), p. 66. Grootbuis argumenta que os termos bíblicos associados à ideia de
verdade não indicam que ela signifique "crença ou mero costume social”. O termo hebraico emet significa
suporte e estabilidade; já a palavra grega aíetheia indica conformidade com o fato, equivalendo ao sentido de
‘emet. As palavras da família pis tos são traduzidas por fiel e confiável. Outro vocábulo hebraico, amém possui
129 ocorrências no NT, geralmente para enfatizar que algo é fidedigno e merece crédito. Idern, p, 60-63.
42. D.A. Carson, Opus cit., p. 112. Carson seleciona algumas passagens bíblicas sobre conhecimento e verdade.
Ele conclui: “Depois que você ler as passagens algumas vezes e ponderar sobre elas, é difícil não se admirar que
algo esteja errado tanto com a epistemologia, quanto com a teologia daqueles que estão incessantemente se sen
tindo desconfortáveis com tais afirmações sobre o conhecimento humano. Quando as Escrituras nos encorajam
a conhecer mais - quando elas dizem mesmo que foram escritas do modo que nós podemos conhecer ( Ilo 5:13),
e de fato conhecemos a certeza da história do evangelho (Ix 1:3-4) - somente uma contraditória arrogância
humilde (ou seria humildade arrogante?) nos manteria dizendo que não podemos conhecer, tomando os estu
dantes [da Bíblia] desconfortáveis com o que as Escrituras atualmente dizem sobre essas questões.” Idem, p. 200.
Entre os textos selecionados pelo autor, recortamos alguns: Mt 22:19; Jo 7:27, 21:24; ICo 13:9; 1Jo 2:3.
43. Fernando Canale, O princípio cognitivo da teologia cristã, p. 232-233.
60 / E x p l o s ã o Y
1. Código de conduta, EUA (2009), dirigido por: R Gary Cray, distribuidora: Imagem Filmes.
62 / E xplo sã o Y
náveis do ponto de vista da ética. Isso indica fortemente que há critérios morais acima
das leis e que, ao confrontar estas com aqueles, saberemos dizer quando uma lei é justa
ou injusta. Com isso, som os levados a outro ponto importante da discussão.
Quando nos referimos a critérios morais, entramos na área da filosofia conhecida como
ética. Para fins imediatos, definiremos ética como o estudo dos princípios que norteiam o
certo e o errado em todo tipo de interação realizada pelos seres humanos. Também nos
isentaremos de tentar distinguir ética de moral, uma vez que, aparentemente, há pouca dife
rença substancial entre os dois termos, o que leva diversos eticistas a fazer poucas distinções
significativas entre os dois termos ou simplesmente a empregá-los de forma intercambiável.2
Retornando à relação que detectamos acima, as leis sugerem critérios morais que
as embasem e que estejam acima delas próprias. Todos nós precisamos de noções m o
rais para viver. Invariavelmente, preocupações sobre o certo e o errado continuam im
pelindo o debate público e permanecem na ordem do dia, pelo menos de forma pre
sumida. Deputados sofrem inquéritos acusados de quebra de decoro parlamentar. Pais
e pedagogos discutem o que fazer com respeito ao acesso de crianças e adolescentes à
pornografia cibernética por meio de celulares de última geração. Vivemos envoltos em
inúmeras outras questões morais, ubíquas no tecido social. A moral constitui-se, sem
dúvida, fonte inexaurível de interesse humano, qualquer que seja a época.
Porém, boa parte do que se discute ou se escreve passa a falsa impressão de que não há
desavenças relevantes quando se recorre ao pronunciamento da moral. Entretanto, sempre
que alguém apela ao correto, ao justo, àquilo que é o apropriado em determinada situação,
deveríamos questionar: o que está sendo pressuposto? Qual é a definição implícita ou explí
cita de moral que um dado discurso apresenta ou sugere como sendo aplicável? Fica óbvio,
devido ao número e à divergência de entendimentos entre eticistas profissionais, que não se
pode falar em moral sem se explicitar qual compreensão do termo se tem em mente.'
Apelar à importância da moralidade, sem deixar claro que há critérios precisos
para fundamentar a moral, ou abster-se de expor tais critérios, torna o atual discurso
de alguns pensadores seculares extremamente vago, Talvez o seguinte exemplo elu
cide a questão: o educador Josef M aria Puig trata dos requisitos para a formação de
indivíduos morais. Para ele, “a educação moral é essencial no processo completo da
formação humana”, o “ponto central da educação” e o “aspecto-chave da formação
humana”. Porém, o processo todo constitui “um jogo que obriga a construir o modo
2. Um exemplo dessa tendência é encontrado em Sam Harris, The moral Landscape: how Science can
determ ine human values (New York, NY: Free Press, 2010), p. 55.
3. Há um interessante preâmbulo sobre isso em artigo de Guareschi e Pelizzoli. Ao analisarem criticamen
te o programa BigBrother Brasil, os autores apresentam algumas perspectivas, entre elas a transcendente,
que acaba rejeitada por eles. Entretanto, eles são honestos em admitir: "Enquanto permanecermos dentro
do que é humanamente instituído, sem apelar para o eterno e o transcendente, temos de reconhecer nossa
'limitude histórica. Ao reconhecer essa ‘limitude’ temos de deixar sempre uma porta aberta, a porta da
possibilidade de alternativas de crescimento, de transformações, de aperfeiçoamento.” Veremos adiante
que uma perspectiva ética veiculada, a um Deus transcendente, não é necessariamente estática. Pedrinho
A. Guareschi e Laura Helena Pelizzoli, Big Brother Brasil: a banalidade do cotidiano, Revista de Ciências
Humanas (Florianópolis, SC: editora da Universidade Federal de Santa Catarina), n° 35, Abr. 2004.
Q uem pr ecisa de certo ou errado ? / 63
com o se quer ser e o m odo como se quer viver” ; tal “construção moral” é “totalmente
individual e totalmente influenciada pela relação com os demais”.4
Em outras palavras: a construção da moral é fundamental, mas, em última análise, não
passa de uma construção pessoal. O indivíduo escolherá seu próprio conceito de moral, seja
ele qual for. Aliás, para que ensinar moral, se cada um escolherá a moral que lhe agradar? E
isso nos leva a outro questionamento: cada opção de moralidade é igualmente válida?
Em outro capítulo, analisam os o poder que a cosmovisão exerce sobre os pressu
postos, julgamento, opinião e conduta do indivíduo. Cosm ovisões diferentes levam a
variedades de posicionamentos éticos. A ideologia pós-m oderna também é respon
sável pela prom oção de um a ética relativista, que admite ser impossível determinar
um a verdade absoluta (em bora verifiquemos que “o relativismo pós-m oderno” seja
autocontraditório, ilógico e nada realístico).
As implicações desses fenômenos para o campo da ética nos ajudam a compreen
der eventos contemporâneos. Tome-se, por exemplo, a polêmica recente entre inicia
tivas para criminalizar a homofobia e aqueles que consideram a homossexualidade
com o algo imoral. A opinião pública sente-se majoritariamente inclinada para a pri
meira posição moral, porque ela se apoia no espírito de nossa época (pós-moder-
nismo), enquanto a segunda soa como um resquício de moralidade de outra época,
totalmente fora de sintonia com os sentimentos e aspirações de nossa sociedade.5
O pós-m odernism o advoga que não há critérios morais válidos para todos os
contextos.6 Tal posicionamento não se coaduna com a presente necessidade moral
inerente ao ser humano em suas diversas interações. Contudo, ao contrário da visão
predominante na atualidade, no cristianism o existem absolutos bem definidos: Deus
é o Criador do bem, e o que vai contra Sua vontade é, por oposição, o mal.
Na atualidade, contudo, utilizar noções cristãs para abordar questões morais soa
antiquado. Os críticos alegam que isso seria um “retorno à Idade Média”. Outros ar
gumentam que um a abordagem cristã seria de um particularismo tal que beiraria ao
preconceito para com outras crenças. Nesse caso, o melhor para a ética cristã seria
manter-se confinada na igreja. Apesar das críticas, é possível reabilitar a ética cristã?
Antes de responder a essa importante indagação, precisam os avaliar as alterna
tivas oferecidas pelo pensamento pós-moderno. Quais propostas morais estão em
voga no século XXI? São elas viáveis? Conquanto muitas formas de humanismo se
cular advoguem algum tipo de absolutismo moral,7 tom arem os tempo considerando
4. Josef Maria Puig, A construção da personalidade moral (São Paulo, SP: Fditora Ática, 1998), p. 24, 26-27.
3. Para sermos honestos, esta avaliação do problema específico da moralidade da homossexualidade e
sua consequente legalidade, não é suficiente; afinal, ela não consegue solucionar a questão, apenas pôr
em relevo dois posicionamentos diferentes e optar por aquele que possui maior apelo popular. Entre
tanto, ao se proceder assim, fica fora da avaliação o fundamento conceituai das duas propostas, que
deveriam apresentar seus embasamentos a fim de se promover uma discussão mais racional.
6. “O pós-modernismo forte argumenta que todas as distinções entre certo e errado não tem stalus absoluto,
mas, ao contrário, são construções sociais.” D. A. Carson, Becoming conversanting with emerging church, p. 112.
7. O maior exemplo dessa tendência talvez seja o mais recente livro de Sam Harris, The moral iMtuiscape.
64 / E x p l o s ã o Y
Não há valores, ou não há mais valores. Mais ou menos virtudes. Uma in
capacidade de distinguir claramente os contornos éticos e metafísicos. Tudo
parece bom e bem, o mal inclusive, tudo pode ser dito belo, até o feio, o real
parece menos verdadeiro do que o virtual, a ficção substitui a realidade, a his
tória e a memória nào fazem mais sucesso em um mundo devoto do instante
presente, desconectado com o futuro. O niilismo qualifica a época em que falta
toda cartografia: as bússolas fazem falta e os projetos para sair da floresta onde
estamos perdidos nem sequer são pensáveis.
Para ele, a moral não é dada, não é “um problema teológico entre homens e Deus”,
m as “história imanente que une os homens entre si, sem nenhuma testemunha”.
Logo, segundo o filósofo, “a moral universal, eterna e transcendente cede lugar à ética
particular, temporal e imanente”.9
8. Francis Schaeffer, O Deus que intervém (São Paulo, SP: Cultura Cristã, 2002), p. 166.
9. Michel Onfray, A Potência de Existir: manifesto hedonista (São Paulo, SP: Martins Fontes, 2010), p. 33,
47, Para uma caracterização do hedonismo da sociedade pós-moderna, com ênfase na supervalorização
da cultura jovem (sobretudo, na aparência), ver Paulo Sérgio do Carmo, Culturas de rebeldia: a juventu
de em questão (São Paulo, SP: Editora SENAC São Paulo, 2003), 2a ed„ p. 124, 199, 200.
Q uem pr ecisa de certo ou errado ? / 65
Para além do hedonismo de Onfray, existe a ética com unitária10 defendida pelo
falecido filósofo ateu Richard Rorty. Ele acreditava que verdade é um termo que se
refere a “entidades e crenças” que, por se mostrarem úteis, foram “incorporadas às
práticas sociais aceitas”. Não existe, portanto, verdade objetiva. Cada tradição intelec
tual ou religiosa encara a verdade de uma forma diferenciada, a qual não seria melhor
ou pior do que outras verdades.
“Tudo o que precisamos”, pondera Rorty, “é abandonar a ideia de que deveríamos
tentar encontrar um a maneira de fazer tudo permanecer unido, que dirá aos seres
hum anos o que fazer com suas vidas, dizendo a todos a m esm a coisa”.11 Ele explica
que, semelhantemente à oposição do iluminismo à verdade religiosa, o pragmatismo
que defende se opõem à verdade científica; assim, haveria certa continuidade do prag
matismo em relação ao iluminismo, como se o trabalho pragmático consistisse em
eliminar o ranço de pretensão à verdade que ainda restou após a “limpeza” humanista:
Dedicar-se a um ideal é como dedicar-se a outro ser humano. Quando nos apai
xonamos por outra pessoa, não nos questionamos sobre a origem ou sobre a natu
reza de nosso esforço em cuidar do bem-estar daquela pessoa. É igualmente inútil
fazê-lo quando nos apaixonamos por um ideal [.. .J é tolice pedir uma prova de que
as pessoas que amamos são as melhores pelas quais poderíamos nos apaixonar.1'
10. Aparentemente, essa segunda posição absorveria a primeira no contexto pós-moderno. “Sob a pós-mo-
demidade, moralidade pessoal facilmente se torna em uma construção social.” D. A. Carson, Opus cit., p. 101.
11. Richard Rorty, Filosofia Como Política Cultural (São Paulo, SP: Martins fontes, 2009), p. 24, 25, 28,61.
12. Idem, Pascal Engel e Richard Rorty, Para que serve a verdade? (trad. Antonio Olivier, São Paulo, SP: Edi
tora Unesp, 2008), p. 61,62. O livro é a transcrição do debate ocorrido entre os dois filósofos na prestigiada
Universidade de Paris-Sorbonne em 2002. A comparação não me parece justificável: afinal, (a) o Iluminismo
não queria destruir a noção de verdade, apenas substituir a verdade da religião por outra, a do racionalismo
humanista e (b) justamente por isso, Iluminismo e Pragmatismo estariam em conflito, não em relação de
continuidade. Por outro lado, concedo que exista, sim, relação causal, pois, historicamente, o Iluminismo
ultraconfiante na razão humana se desgastou no decorrer do século XX, o que levou à desconfiança perene
na razão e na sua verdade, o que se vê no Pragmatismo. Portanto, o pragmatismo não conflita somente com a
verdade religiosa, mas mesmo com a verdade científico-naturalista: Cf.: ‘'Tanto o monoteísmo quanto o tipo
de metafísica ou ciência que se arrogue a lhe dizer como o mundo realmente é será substituído pela política
democrática. Um consenso livre sobre quanto espaço para a perfeição individual podemos nos permitir uns
aos outros tomará o lugar da busca por valores objetivos, da procura de uma classificação das necessidades
humanas que não depende de um tal consenso.’’ Rorty. Filosofia como política cultural, p. 63.
13. Idem, Uma Ética Laica (São Paulo, Martins Fontes, 2010), p. 16. A argumentação de Rorty é extrema
mente reducionista ao estabelecer que o único critério para se escolher amar alguém é o sentimento, que
estaria acima de qualquer avaliação racional. Ainda que isso seja comum para muitas pessoas, também,
66 / E x p l o s ã o Y
Problemas à vista
Quando se observa a posição hedonista e a ética pragmática, percebe-se que, na
prática, elas trazem imensas dificuldades. Imagine que todos pudessem fazer o que qui
sessem, sem limites (como prega o hedonismo) - isso seria o caos. Igualmente, se cada
sociedade ou comunidade ideológica está tão certa quanto qualquer outra, elas não p o
deriam ser julgadas de nenhum modo. Em um diálogo com um ateu, ele fez referência
a países nos quais, culturalmente, não há problema em se agredirem mulheres. Mas isso
estaria correto apenas por ser a cultura daquelas pessoas? Ou as mulheres, assim como
os negros, vietnamitas ou qualquer outra minoria étnica ou social, possui valor onto
lógico (ou seja, valor pela natureza de seu próprio ser) independentemente da cultura?
Hipoteticamente, se a sociedade fi sofresse lavagem cerebral coletiva, a crença ti
poderia ser, nos term os do pragmatismo, justificada (aceita pela comunidade), mas
isso não seria o m esm o que dizer que 7t seja necessariamente verdadeira. Algo pode
ser amplamente aceito, mas, ainda assim, falso.14 A verdade está relacionada à natu
reza de entidades e asserções, não à opinião que se possa ter sobre eles. A única coisa
relativa à verdade seria nossa capacidade de entendê-la.
Os egípcios achavam que tartarugas sustentavam o planeta. Na mitologia grega,
Atlas apoiava a Terra em suas costas. Na Bíblia, Deus afirma que ela paira no vazio (Jó
26:7). Com os dados observáveis hoje, o que a Bíblia afirma se confirmou. As três ver
sões primitivas (egípcia, grega e hebraica) não representam apenas a opinião de alguns
povos e nada mais. Duas delas são falsas e sempre foram. A diferença é que antes de
cálculos matemáticos, telescópios e satélites, não se podia ter comprovação de como a
Terra se sustém. Com o conhecimento atual, sabemos disso. Mas antes de sabermos, a
Terra já pairava no vácuo, independente de quantos acreditavam ou não nisso.15
Retornando ao cam po específico da ética, é corrente na imprensa e na academia o
discurso dos cham ados “verifobos”, ou seja, os que têm medo da verdade. Entretanto,
conforme analisam os no capítulo anterior, mesmo aqueles que fogem da verdade não
frequentemente, depois dos primeiros tempos de paixão, duas pessoas consideram (ou deveriam consi
derar) muitos outros fatores além de seus sentimentos para continuarem em uni relacionamento afetivo.
Semelhantemente, alguém pode se apaixonar por uma ideologia, mas se verá em situações que terá de
considerar os fundamentos de suas crenças. O contrário disso é uma paixão cega, ainda mais prejudicial
do que uma escolha afetiva ruim!
14. O exemplo foi adaptado de Pascal Hngel em Para que serve a verdade?, p. 36.
15. “ [...] a satisfação de critérios para a verdade [de natureza epistemológica] de urna afirmação é rela
tiva à posse ou à falta de evidência relevante. Mas isso não quer dizer que as condições de verdade [de
natureza ontológica] são relativas.” J. P. Moreland e William Lane Craig, Filosofia e Cosmovisão Cristá
(São Paulo, SP: Vida Nova, 2005), p. 171, grifos do original. Cf.: “Foucauh e seus sucessores confundem
a verdade com o conceito de verdade, ou com aquilo que se crê a seu respeito, e confundem também a
verdade com a maneira pela qual ela é valorizada.” Pascal Hngel, Opus cit., p. 43.
Q uem p r e c isa d e certo ou errado ? / 67
podem viver sem ela. Michel Foucault afirmava, em seus cursos no Collège de France,
na década de 1970, que a verdade é apenas “instrumento de poder” e, sendo o poder
mau, a própria verdade tornava-se maligna. Ainda assim, o filósofo se achava entre
manifestantes em passeatas, atrás de cartazes que diziam “verdade e justiça”.16 Um
biógrafo recapitulou a form a que Foucault se definiu:
Vinte e cinco dias antes da morte, Foucault resumiu seu pensamento em uma
única palavra. Um entrevistador penetrante lhe perguntava: “Na medida em que
não afirma nenhuma verdade universal, o senhor é um cético?’1“Certamente que
sim”, respondeu ele. Eis a última palavra: Foucault duvida de toda verdade dema
siado geral e de todas as grandes verdades intemporais, nada mais, nada menos.
À frente o autor comenta que Foucault militou contra a pena de m orte.17 Mesmo
não cristãos reconhecem a dificuldade de se aceitar uma ética não fundamentada em
uma verdade absoluta, como no seguinte exemplo:
O próprio Schaeffer apontou os defeitos das abordagens éticas que descartam re
ferenciais absolutos: “Sem absolutos, a moral deixa de existir como moral, e o ho
mem humanista, que parte de si mesmo, encontra-se impossibilitado de encontrar
os absolutos de que ele carece.” iy Precisamos de certezas morais para o dia a dia. Na
compreensão do filósofo francês Pascal Engel,
Por que, se não se crê mais na verdade, há, entretanto, tanta sede de verda
de? Seria esse um daqueles paradoxos familiares que fazem que, tendo perdido
a religião, procuremos algum substituto para ela, ou ainda que, apesar de já
não aceitarmos mais a autoridade, não queiramos renunciar totalmente a ela?211
Assim, as leis de Deus para Israel - leis de alimentação, leis sobre vestuário,
leis acerca do plantio, leis civis ou leis regulamentando casamento e relações
sexuais - não eram exaustivas, devendo ser vistas primeiramente como lem
bran ças visíveis p a r a se viver como san to povo de D eus em cad a área d a vida.2*
21. Luc Ferry, O homem Deus: ou o sentido da vida (Rio de janeiro, RJ: DIFEL, 2012), 5a ed, p. 34.
22. Dinesh de Souza, A verdade sobre o cristianismo: por que a religião criada por Jesus é moderna, fasci
nante e inquestionável (Rio de Janeiro, RJ: 'íhomas Nelson Brasil, 2008), p. 261.
23. Fábio Konder Comparato, Ética: direito, moral e religião no mundo moderno (São Paulo, SP: Cia. das
Letras, 2006), p. 67, 69.
24. Paul Copan, How do you know you're not wrong?: responding to objects the leave christiam speechlcss
(Grand Rapids, MI: Baker Books, 2005), p. 176, grifo no original. Cf.: “Resumindo, ser parceiro de Deus
na santa aliança não permitia nenhuma bifurcação entre a adoração no templo e a vida cotidiana. Ser
recebido pelo Senhor no sábado exigia uma atitude correta para com Deus, bem como uma conduta
apropriada durante a semana.” Stanley Grenz, A busca pela moral, p. 113.
25. Adolfo Sánchez Vázquez, Ética (Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 2008), p. 277.
Q uem pr ecisa de certo ou errad o ? / 69
dos cristãos com os pobres ao longo da história. “De fato, preciso dizer” ele conclui,
“que quase todas as grandes tentativas de aliviar a pobreza e o sofrimento humano
têm fundamento cristão em algum nível [... ] .” 26
Na época da reforma protestante, a ênfase na responsabilidade individual e de
um a fé racional favoreceram ideias de transformação social.27 A ideia de viver na pre
sença de Deus e para a glória divina é a marca dos primeiros protestantes, sobretudo,
os de tradição calvinista. Isso contrasta fortemente com a ética pós-m oderna. Nin
guém que opte por um a ética meramente particular ou comunitária pode ter certeza
de que está, definitivamente, agindo de forma ética ou correta. O que temos nesse
caso? Ou a nossa opinião, ou a de nossos pares. Mas, na ética bíblica, temos a garantia
de obedecer Àquele que afirmou fazer “diferença entre o justo e o ímpio” (Ml 3:18).
Embora tenhamos assinalado antes que a ética cristã tem muitos pontos em co
mum com noções éticas gerais (o que evidencia a universalidade e fonte comum da
ética), seu fundamento é diverso. É humanamente impossível viver à altura dos re
quisitos elevados da ética cristã. Simultaneamente, ela representa uma transformação
da ética geral.
Na perspectiva cristã, a ética não está limitada a proporcionar o que é certo, mas
em tornar um a pessoa boa, o que, em última análise, se torna possível apenas quan
do se entra em aliança com Jesus Cristo. Ele reproduz em nós, por meio da atuação
sobrenatural do Espírito Santo, o Seu caráter. Grenz resume: “A ética bíblica exorta
o povo de Deus através dos tempos a viver à luz da esperança futura e a ordenar a
vida de acordo com a visão divina do futuro, tanto quanto isso é possível dentro dos
parâm etros da existência aqui e agora”28
No seu sentido mais profundo, a ética cristã aepende de um relacionamento m ís
tico com Cristo.29 Entrementes, seus postulados já têm beneficiado o mundo e podem
fazer muito mais. Em seu aspecto mais abrangente, as noções cristãs representam
influência positiva sobre a sociedade em geral. Para ilustrar, pense no conceito de
líder-servo (Jo 13), que invadiu nas últimas décadas o mundo empresarial: mesmo
pessoas que não professam o cristianismo apoiam o conceito que mudou paradigm as
corporativos. A ética cristã não se restringe aos cristãos: o melhor argumento para
defendê-la é sua validade intrínseca, a qual favorece a todos os que a adotam. Além
disso, seus referenciais absolutos são um a boa notícia em meio à confusão e diluição
dos valores que avistamos no terreno do pós-m odernism o.
26. Craig L. Blomberg, Nem pobreza nem riqueza: ai posses Segundo a teologia bíblica (Curitiba, PR:
Editora Esperança, 2009), p. 21.
27. Consultar: (a) Comparato, Ética, p. 176 e (b) Richard Sennett, A corrosão do caráter (Rio de Janeiro,
RJ: Record, 2009), p. 124.
28. Stanley Grenz, A Busca pela moral, p. 143, 243, 19. 136, 317.
29. A expressão “relacionamento místico” refere-se a um relacionamento com um Ser sobrenatural, que
se revela cognitivamente ao homem no transcurso da História. Não se pode confundir com o misticis
mo, que se baseia em experiências de êxtase, contemplação e subjetividade cognitiva.
Tolerância intolerável
1. José Saramago, A viagem do elefante (São Paulo, SP: Companhia das letras, 2008).
To le r â n c ia in t o l e r á v e l / 71
2. Idem p. 69-73.
3. Em diversos de seus romances, Saramago satiriza o cristianismo ou o critica sarcasticamente. Para
alguns exemplos, consultar: (a) José Saramago, O Evangelho segundo Jesus Cristo (São Paulo, SP: C om
panhia das letras, 2005); (b) Idem, Memorial do Convento (Rio de Janeiro, RJ: Bertrand tfrasil, 2008), (c)
Idem, Caim (São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2009).
72 / E x p l o sã o Y
esta preocupação: definir o sentido de tolerância, não como aparece nos dicionários,
mas como o termo vem sendo compreendido dentro do Zeigeist pós-moderno. Por
outro lado, tam bém nos preocuparem os em entender o que a Bíblia tem a dizer sobre
tolerância e proselitismo para, finalmente, observar como Jesus praticava o proseli
tismo dentro de um a perspectiva que deve servir de modelo para nós adventistas,
m esm o em pleno século XXI (o que procuraremos justificar). Assim, verificaremos
a veracidade das três prováveis conclusões a partir do trecho citado de Saramago, a
saber: a) as crenças não são tão diferentes assim; b) no fundo, todas elas não passam
de histórias inventadas; c) não vale a pena defender um ponto de vista religioso.
A nova tolerância
Talvez poucas palavras sejam tão evocadas na pós-modernidade quanto tolerân
cia. É correto afirmar que “tolerância se tornou parte da estrutura de plausibilidade
ocidental’”.4 Poucos valores se acham tão assegurados quanto esse. Em tempos do p o
liticamente correto, qualquer afirmação dogmática pode ser taxada imediatamente
como intolerante. Talvez isso se deva à forma de encarar eventos passados. No trecho
de Saramago, a menção da Inquisição parece nos recordar de tempos nos quais a li
berdade de crer era estupidamente restringida. Quem trocaria a liberdade pelo dog
matismo? Nesse contexto, a tolerância surge para prometer uma sociedade mais justa.5
Em vista disso, é natural que a sociedade vigie com suspeitas ideologias intolerantes.
Skinheads são investigados por agredirem homossexuais, negros e nordestinos, dada
sua adesão ao neonazismo (na maioria dos grupos, embora boa parte seja anarquista
e não manifeste preconceito racial). Na ultima década, o mundo islâmico foi dura
mente criticado por manter costumes rígidos, especialmente em relação às proibições
impostas sobre as mulheres, relegadas nos países mais tradicionais a usarem a burca e
se sujeitarem ao marido. Regimes ditatoriais islâmicos sofreram revezes em 2011, e se
fala em um a futura abertura democrática em países como Tunísia, Egito, Iêmen e Síria.
A tolerância tam bém é evocada em situações menos perturbadoras. Religiões de
conversão, aquelas que procuram angariar adeptos de outras religiões ou de seitas da
m esm a religião, passam por desrespeitosas. A liberdade de crer convida ao dever de
não intervir na crença alheia. “De fato, proselitismo pode ser visto como intrinseca
mente intolerante (sob as novas definições de tolerância e intolerância).”6
4. D. A. Carson, The intolerance of tolerance (Grand Rapids, Michigan: Eerdmans Publishing, 2012), p. 1.
Carson explica que o conceito de “estrutura de plausibilidade” foi extraído da obra do sociólogo Peter L.
Berger. Estrutura de plausibilidade se refere a pressupostos assumidos que legitimam processos sociais.
Devo a indicação dessa obra de Carson ao meu amigo Luiz Gustavo Assis.
5. “Apresentam-nos a tolerância como ‘tabu’, novo interdito moral capaz de refundar a civilização, re
criar as instituições. Teria a tolerância tanto poder? Afinal em que consiste a tolerância para que dela se
possa esperar tanto?” Valério Guilherme Schaper, “Emblemas da intolerância: Jean Calas, Jean Charles
e a tolerância segundo Voltaire", in: Revista Eletrônica de Estudos do Protestantismo (NEPP) da Escola
Superior de Teologia, vol. 12, jan.-abr. de 2007, p. 12.
6. D. A. Carson, Becoming conversant with the emerging church, p. 101-102.
T o le r â n c ia in t o le r á v e l / 73
É difícil comprar essa tese. Ela bate de frente contra o que considero um
dos mais convincentes argumentos antirreligiosos, que é o do pluralismo. Para
onde quer que olhemos no mapa, encontraremos uma “verdade religiosa” di
ferente. Qual o critério para decidir qual é, de fato, a verdadeira? Por que o
catolicismo seria melhor que o calvinismo? No que eles superariam o judaísmo
e o islamismo? E o que haveria de errado com Zeus e o panteão olímpico ou
com os deuses nórdicos, que já foram providencialmente enterrados por todos?
Nós, ateus, estamos apenas um deus à frente dos demais.
Parece mais razoável compreender os diversos sistemas de crença religiosa
como manifestações diferentes da mesma predisposição humana, que pode ter base
biológica (como acredito) ou divina (como pensa a maioria). Mesmo que Deus
exista, é difícil conceber que ele tenha criado só uma fé certa e dezenas de erradas.7
A persuasão religiosa é encarada não apenas com ressalvas, mas como potencial
mente perigosa. Afinal, forçar o outro a crer não significaria uma imposição? E, se to
das as religiões fizessem isso, não voltaríamos a testemunhar conflitos religiosos em
proporções trágicas? Após o atentado assum ido por terroristas muçulmanos ocorri
do em 11 de setembro de 2011, mais do que nunca se teme que disputas religiosas
gerem um conflito armado.
Para evitar isso, a pós-m odernidade incute uma noção de tolerância que difere do
que tradicionalmente era aceito:
Era comum que tolerância fosse entendida como sendo a virtude que per
mitia - e até encorajava - àqueles com quem discordávamos falar e defender
seu ponto de vista, Em outras palavras, uma pessoa tinha de discordar de
algo ou alguém antes de poder tolerá-lo. Porém, em nosso mundo pós-mo-
derno, tolerância é cada vez mais entendida como a virtude que impede que
se pense que qualquer opinião é ruim, maligna ou estúpida. Alguém “tolera”
tudo porque nada é inaceitável - exceto o entendimento que rejeita esta visão
de tolerância: para ele, não há tolerância em absoluto.8
9. “Aceitar que uma posição diferente ou oposta existe e merece o direito de existir é algo; aceitar a pró
pria posição significa que alguém não se opõe a ela. A nova tolerância sugere que atualmente aceitar a
posição de outrem significa acreditar que ela seja verdadeira, ou, pelo menos, tão verdadeira quanto a
nossa própria.” D. A. Carson, The intolerance of tolerance, p. 3.
10. “Na ocasião em que algumas pessoas optarem por se tornar cristãs, sejamos suficientemente justos:
ninguém está dizendo a elas que seu próprio caminho é interior ou que eles estão perdidas; ao contrário,
elas simplesmente decidiram tentar este novo caminho cristão. A razão para fazerem isso então não é
que o caminho cristão seja objetivamente verdadeiro, m as que ele é visto como mais atrativo pelo menos
por algumas pessoas - i.e., isto é verdade para elas.” D. A. Carson, Becoming conversant with the emerging
church, p. 102.
11. Elmer John Thiessen, The Ethics of Evangelism: A Philosophical Defense of Proselytizing and Persua
sion (Downers Grove, III: Intervarsity Press, 2011). Ver capítulo 5.
12. "[ ] Assim, a postura intelectual que eles adotam faz parte da obtenção de abertura, e menos abso
lutismo se torna quase absolutista em sua condenação do modernismo.” D. A. Carson, Becoming con
versant with the emerging church, p. 68-69. Carson se refere em especial à literatura da chamada igreja
emergente, que, segundo ele, procura “encontrar boas coisas sobre cada outro ‘ismo’ - Budismo, ou
Islamismo ou a crença dos nativos astecas ou animismo tribal, por exemplo.”
To le r â n c ia in to lerá v el / 75
fiel. Sua crença pode ser resultado de uma crise de ciúmes, insegurança ou por longos
períodos de ausência da companheira por questões relacionadas ao trabalho. Nesse
caso, sua crença não será justificada. Entretanto, se esse homem encontrasse joias
caras no guarda-roupa de sua esposa que não foram dadas por ele; se ele descobrisse
mensagens de cunho romântico em seu aparelho celular, enviadas por um destinatário
desconhecido; se ouvisse comentários de parentes e amigos próxim os sobre uma con
duta suspeita por parte da esposa; nesse caso, ele teria fortes indícios para sustentar as
suspeitas. Se não o fizesse, por quaisquer razões, as alcunhas que seus vizinhos lhe
dariam seriam as m ais desfavoráveis.
Toda crença pode ser ou não justificada. Em caso positivo, ela se torna válida.
Em caso negativo, a crença precisa ser revista ou descartada. Um homem é livre para
acreditar na existência de tigres brancos ou de unicórnios. M as sua crença não muda
o fato de que apenas aqueles comprovadamente existem, enquanto estes, não.
Dizer que a crença em Ganesh é “história da carochinha” da mesma forma que a res
surreição de Cristo é desconhecer a natureza das duas crenças. A ressurreição de Jesus é
mencionada até por historiadores não cristãos, como Tácito e Flávio Josephus. Além dis
so, ela é a melhor explicação para alguns eventos históricos que foram narrados tão pró
ximos ao acontecimento que não poderiam ser inventados sob o risco de serem refutados
por testemunhares oculares não cristãs. O que na história de Ganesh se assemelha a isso?
Uma das características presentes no cristianismo é sua pretensão à veridicidade his
tórica, o que o torna alvo de investigação racional. Embora as evidências em favor do
cristianismo não sirvam per si para tornar alguém cristão, podem contribuir decisiva
mente para embasar a fé cristã e agregar uma base racional à experiência religiosa (capí
tulo 9). O cristianismo nunca se confinou à “história de um povo”. Sua vocação é maior:
o cristianismo almeja a posição de verdade absoluta. E evoca a arqueologia e a história
para respaldar o livro que segue, como nenhuma outra crença jamais foi capaz de fazer.
Se o cristianismo encara a si m esm o como verdadeiro, segue que, em sua ótica, as
demais religiões são falsas.13 Porém, tal dogm atism o não favoreceria a intolerância?
Há algum tipo de noção de tolerância na Bíblia? Se há, em que ela difere da tolerância
pós-m oderna?
13. Por exemplo, Antonio Ozaí da Silva argumenta que o monoteísmo leva historicamente à intolerância.
Especificamente, “o monoteísmo cristão não significou apenas a submissão a um e único Deus, mas também
a conversão à cultura e ao poder e político dominantes.” Por outro lado, o politeísmo seria “intrinsecamente
tolerante” Para exemplificar sua tese, o autor se vale do exemplo do Faraó Amenófis e a promoção do culto
a Aten, que seria uma tentativa de justificar o expansionismo territorial egípcio impondo um único deus,
que prevalece sobre os demais e também sobre seus adoradores. Veja Antonio Ozaí da Silva, “Monoteísmo e
intolerância religiosa epolítica", in: Protestantismo em revista, set.-dez. de 2010, p. 47-51. A argumentação é
deficiente; primeiro porque os gregos e romanos politeístas não foram nada tolerantes em relação a cristãos
e judeus monoteístas - esses foram perseguidos e não aqueles. Segundo, porque há indícios de que a pro
moção monoteísta de Amenófis tenha significado um retorno a um culto que os egípcios já conheciam, não
a algo novo. Que Freud, a fonte evocada pelo autor, desconhecesse isso é justificável; mas não se pode dizer
o mesmo de Antonio Ozaí, que parece não ter se dado ao trabalho de conferir as fontes. Ademais, seu artigo
se acha manchado por menções incorretas em detalhes básicos - como, por exemplo, afirmar que o nome
anterior de Paulo era Tarso, que, como todo estudante da Bíblia sabe, trata-se do nome de sua cidade natal.
76 / E xplo sã o Y
6:8,9, 14, 26;7:11; 11:25; Lc 6:36). O Senhor é Deus que am a o Seu povo. “Entretanto o
Senhor se afeiçoou a teus pais para os amar; e escolheu a sua descendência depois deles,
isto é, a vós, dentre todos os povos, como hoje se vê” (Dt 10:15, ARA). A obediência
deveria ser motivada pelo amor (Dt 11:1), sendo o próprio amor um artigo de obediên
cia (v. 13; 19:9; 30:16). Amar a Deus era algo a ser feito envolvendo a totalidade do ser:
“Amarás, pois, ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todas
as tuas forças” (Dt 6:5, ARA). Ao nos pedir para amar ao Senhor, a Bíblia não exige uma
tarefa desagradável, como se Deus fosse um ser difícil de ser amado; ao contrário, sendo
Ele bondoso, justo e cheio de excelentes qualidades, além de amável, seria mesmo difícil
não amá-Lo (Gn 19:16; Êx 34:6,7; Dt 4:31 ;S1111:1-3; 135:3; 136:1; Dn 9:9).
Em um livro recente, o teólogo Christopher J. H. Wright explica a importância do
relacionamento com Deus para a ética do antigo Israel. Ele afirma que no Antigo Tes
tamento, de form a específica, e na Bíblia, como um todo, a “ética é fundamentalmen
te teológica”; segundo ele, “pressupostos éticos estão em cada ponto relacionado com
D eus - com Seu caráter, Sua vontade, Suas ações e Seu propósito.” O autor prossegue:
[...] Quando Israel ia após outros deuses (para usar a frase mais comumen-
te empregada em Deuteronômio e nos livros históricos), os efeitos não eram
apenas religiosos, mas também éticos. Ou, especificamente, ‘não éticos’ - pois
a idolatria sempre tem desastrosos efeitos sociais e éticos, como os profetas
viram claramente.
Assim não se trata de obediência cega às regras; tudo começa com um Deus
que toma a frente e espera uma resposta de obediência e gratidão à Sua ini
ciativa graciosa. Isso fica claro no livro de Deuteronômio, quando o prólogo
histórico (Dt 1-4) precede a responsabilidade ética, com a recapitulação dos Dez
M andamentos (Dt 5). Mesmo no Novo Testamento, o am or divino antecipa a respos
ta obediente do ser humano (cf. Jo 15:12; 1 Jo 4:19).
Por isso, segundo Wrigth, seria uma distorção pensar que no Antigo Testamento a
salvação se dava por mera obediência à lei, enquanto no Novo Testamento a salvação
ocorre pela graça. Apoiando-se nos escritos de Paulo, ele diz que a “graça é o funda
mento de nossa salvação e de nossa ética em toda a Bíblia” Wrigth ainda sustenta que
tem os muito a aprender com o relacionamento entre Yahweh e o povo da aliança.
14. Christopher J. H. Wright, Old Testament Ethics for the People of God (Grove, 111: Intervarsitv Press,
2004), p. 23-28.
78 / E x p l o s ã o Y
Por outro lado, ao focarmos na liberdade individual, não precisamos imaginar que
naquele contexto da aliança ela se achava sufocada pelo senso de coletivismo, bastante
forte entre os semitas até os nossos dias, principalmente entre comunidades rurais e
beduínos, os quais conservam costumes e mentalidade similar à dos tempos bíblicos.
Mesmo nesse tipo de sociedade, havia espaço para a expressão individual, sem a qual,
mesm o que alguém fizesse parte do povo, não poderia se salvar (Dt 29:19; Ez 18:20).
Mas o que dizer da fé israelita em relação a outros povos? Apenas em alguns casos
específicos Deus ordenou a destruição de povos vizinhos (Dt 9:4, 5), em contexto
de juízo (o que veremos m ais tarde em detalhes). Não raramente, encontramos os
israelitas se relacionando pacificamente com outros povos, com diferentes costumes
e crenças (2Cr 2:3-18; 9:1-12). Além disso, os profetas proclamaram que a intenção
de Iavé (Yahweh) era a salvação universal (Is 49:6, 56:2-7), e não apenas a salvação de
Israel. Um exemplo disso pode ser visto no relato de Jonas (observe especialmente Jn
4:9-11). O livro de Jonas é ainda mais notável porque a forma empregada pelo profeta
para anunciar sua mensagem aos ninivitas consiste em persuasão, e não no uso de
força física.
No Novo Testamento, Jesus dirige duras críticas aos líderes religiosos contempo
râneos, especialmente por praticarem um tipo de exclusivismo religioso autocentra-
do e preconceituoso (Mt 15:7; 23:13,15; Lc 18:11). Em flagrante contraste, o Deus a
quem Jesus representa estende Seu amor para bons e maus (Mt 5:45). Seu ministério
alcançou justamente pessoas discrim inadas, que hoje se encaixariam em nossa de
finição de minorias. O Deus ngiuo ao judaísm o do Io século foi desm ascarado por
Jesus com o desprezível caricatura do Deus humilde e amorável, que aceita os inacei
táveis, perdoa os imperdoáveis e acolhe os cínicos e imorais.
É significativo que o texto que resume o coração do Novo Testamento não restrin
ja o am or divino aos judeus, o povo escolhido, ou m esm o a um a classe respeitável de
pessoas religiosas; ao contrário, é dito que “Deus amou o mundo” e com tal intensi
dade a ponto de enviar Seu “Filho único, para que todo aquele que nEle crê não m or
ra, m as tenha a vida eterna’ (Jo 3:16). Em Cristo, todos os homens são iguais e alvos
do m esm o amor divino (Rm 1:16; 10:12; 1 Co 1:24; 12:13; G1 3:28). As condições são
as m esm as para todos os que querem entrar em uma nova aliança com Deus, tornada
possível através de Cristo (At 11:18; 15:11; 17:30; 20:21; Rm 10:9, 13; lTm 2:4; 2Pe
3:9; ljo 4:15). Na soleira da porta de Seu lar, o Salvador escreveu com o próprio san
gue: “todos são igualmente bem -vindos”
Conflitos inevitáveis
A mensagem de am or presente desde o Antigo Testamento encontrou seu ápice
na pessoa e no ministério de Cristo. Uma nova comunidade veio à existência em vir
tude de Israel (com o nação) ter rejeitado o plano divino de uma nova aliança. Agora,
a igreja, com posta de judeus e não judeus, deveria se relacionar com o Deus à luz do
cumprimento da prom essa divina em Jesus (capítulo 17). A igreja se tornou povo
exclusivo de Deus. Ao mesmo tempo, a comunidade de crentes não poderia seguir
To le r â n c ia in t o l e r á v e l / 79
o modelo dos essênios, seita do judaísm o que se isolou no deserto para preservar a
pureza de suas crenças e identidade. Ao contrário, a igreja deveria incluir pessoas de
fora da comunidade, convidando-as para seu meio.
Ainda quando esteve entre os homens, o Senhor Jesus com issionou grupos e indi
víduos para m issões especiais, as quais tinham natureza proselitista. Entre os exem
plos mais notórios, encontramos o envio de seus 12 apóstolos (Mt 10), de um grupo
com 70 discípulos (Lc 10) e o desafio universal lançado a cada crente de fazer novos
discípulos (Mt 28:18-20; At 1:8). Tal m issão originou profundos choques culturais
e religiosos, primeiramente com os judeus (Mt 23:34; Lc 21:12; At 4:1-7; 7:59; At
14:19), depois com outros povos (2Co 11:26; IPe 2:12; Ap 1:9).
A vida de Paulo impressiona pelo fato de ilustrar vários prism as da perseguição
contra os cristãos. Paulo testemunha sobre a fúria que o impulsionou contra a igreja,
antes de sua conversão. Isso ilustra bem o tipo de perigo a que a comunidade nas
cente de cristãos estava sujeita (At 9:21; 22:4; 26:11; lC o 15:9; G1 1:13; Fl 3:6). C on
tudo, uma vez confrontado por Jesus e tendo aceito o Evangelho, Paulo logo passou
a estudá-lo e difundi-lo.
Diante dessa inesperada e espetacular reorientação de vida, seus antigos com pa
nheiros judeus se voltaram contra ele e, de fato, ele fugiu de diversas ciladas: em uma
ocasião, desceu os muros de Jerusalém em um cesto (At 9:20-25) e, em outra, escapou
de um grupo que conspirava contra sua vida avisado por seu sobrinho (At 23:12-24).
Sem essas e outras fugas cinematográficas, o apóstolo teria sua carreira certamente
encurtada. Paulo também enfrentou a rejeição de filósofos pagãos, que, a princípio,
sentiram-se curiosos quanto às suas crenças, mas acabaram caçoando do apóstolo ao
ouvir sobre a ressurreição (At 17:32). Em outro momento, enfrentou a religiosidade
nacionalista m isturada com ganância, numa revolta inflamada por um “sindicato” de
ourives, cujos ganhos eram prejudicados pelo bem -sucedido evangelismo realizado
por Paulo em Atenas (At 19:23-41). Além desses, houve outros conflitos, sobretudo
com as autoridades romanas. M esmo assim, o apóstolo estava decidido a não deixar
que nada o separasse de Jesus (Rm 8:35-39).
Em bora os apóstolos procurassem evangelizar por meio de discursos pacíficos e
trabalho pessoal (At 2:14-36; 5:25-32; 17:22-31) e tivessem inicialmente desperta
do a sim patia popular de form a bem -sucedida (At 2:46-47), costum avam ser firmes
naquilo que criam, debatendo de form a vigorosa com seus adversários, geralmente
judeus convertidos ao cristianism o, os quais persistiam em manter costum es ju
daicos e exigir de recém -conversos do paganism o o seu cum primento (G1 3:1-5;
2Pe 2:1-3, 9-19; ljo 2:18-26; 4:1-3; Jd 4, 10-13; Ap 2:20-23). N ada no cristianism o
prim itivo e nos escritos que hoje denom inam os Novo Testamento aprova o uso de
força e violência em favor da religião bíblica ou em represália aos seus opositores
ou “rivais”
O que isso nos leva a concluir? Os cristãos são, em síntese, favoráveis à liberdade
religiosa. M ais ainda: cada autêntico seguidor de Jesus, embora seja ardoroso propa
gador da m ensagem do Evangelho, não deve possuir ardor menos intenso ao defen
der o direito individual de crer no que quer que seja.
80 / E x p l o s ã o Y
15. John Graz, Discussões sobre fé & liberdade: defendendo o direito de professar, praticar e promover sua
crença (Brasília, DF: Divisão Sul-Americana da Igreja Adventista do Sétimo Dia, 2009), p. 19-21.
To le r â n c ia in to ler á v el / 81
16. Geoffrey W. Bromiley (ed.), The International Standard Bible Encyclopedia, Revised. (Wm. B: Eerd-
mans, 2002), vol. 4, p. 303.
17. Walter A. Elwell; Philip Wesley Comfort, Tyndale Bible Dictionary (Wheaton, 111.: Tyndale House
Publishers, 2001), p. 1153.
82 / E x p l o sã o Y
Até o momento, Jesus usa de uma abordagem que revela aproximação cautelosa e
respeito pessoal. Isso explica o sucesso do Mestre em conseguir despertar o interesse
de sua interlocutora (v. 15). Todavia, uma vez conseguida a atenção da mulher, Jesus
entra em outro tema. “Ele lhe disse: ‘Vá, chame o seu m arido e volte’.” (v. 12). Quando
a mulher retruca, Jesus mostra-se conhecedor de sua constrangedora situação fam i
liar, fazendo com que ela chegue à conclusão de que está diante de um profeta.
Penso que Jesus fez questão de mencionar a situação daquele lar a fim de que a
mulher samaritana chegasse a uma nova compreensão sobre Ele. O simples judeu
que ela avistara em seu habitual trajeto passara a ser, depois de poucas frases, uma
exceção no longo histórico de disputas entre judeus e samaritanos. Agora, surge uma
nova constatação: trata-se de um profeta que conhece detalhes íntimos, alguns dos
quais ela preferiria acobertar.
O ponto alto desse relato está no confronto que passa a se desenrolar. A sam ari
tana pergunta a Jesus sobre uma questão controversa: os judeus ou os samaritanos
estão corretos? Sendo que am bos disputavam sobre o local correto para a adoração,
não poderiam estar simultaneamente corretos. Isso estava pressuposto na pergunta
daquela mulher (v. 20). Em sua resposta a essa dúvida sincera, Jesus não procurou
ser apaziguador. Ele não queria simplesmente agradar a mulher dizendo algo que
pudesse soar bem.
Dentro da mentalidade pós-m oderna que analisam os anteriormente, todas as
propostas religiosas são igualmente válidas em seus respectivos contextos. Contu
do, ninguém pode reivindicar a veiuade universal. As crenças acabam reduzidas a
opiniões particulares, sendo impossível que alcancem legitimação fora do escopo da
comunidade. As crenças não representam verdades ontológicas, apenas verdades so
ciais, pragmáticas.
Note que o raciocínio de Cristo vai de encontro com essas premissas. “Jesus de
clarou: Creia em mim, mulher: está próxima a hora em que vocês não adorarão nem
neste monte, nem em Jerusalém.” (v. 21). Ele explica que, embora a “salvação vem
dos judeus” (v. 22), Deus, o Pai, busca adoradores que o adorem em “espírito e verda
de” (v. 23, 24). Nesse momento do diálogo, Jesus consegue manter um exclusivismo
religioso, preterindo um a concepção religiosa em favor de outra; ao m esm o tempo,
Ele declara que Deus não fechou as portas de Seu clube; ao contrário, todos são bem-
-vindos. O Salvador consegue unir um tom convidativo, cativante, sem abrir mão da
verdade, por m ais dura que ela pareça.
Jesus endossa que Deus procura um tipo de adoradores. Logo, a crença importa.
É possível diferenciar um a crença falsa de outra verdadeira. Deus faz isso: ele busca o
espírito (espiritualidade autêntica, para além das meras formas exteriores) e verdade
(coerência com o que foi revelado, especialmente pela pessoa do próprio Jesus; cf. Jo
1:17; 3:21; 8:45; 14:6; 17:3, 17).
Felizmente, ao contrário da história de Saramago, diferenças religiosas não se de
vem apenas à diversidade de culturas. Deus Se revelou em Cristo, e todos podem
conhecer a verdade cultivando um relacionamento vital com a divindade (Jo 14:23),
por meio do Espírito Santo (Jo 14:17).
To le r â n c ia in to ler á v el / 83
Em Seu contato com as pessoas, Jesus deixou entrever uma perfeita harmonia
entre dois pontos - amizade e foco doutrinário. Somente o primeiro nos levará a
omitir pontos importantes da revelação ou contemporizar com o pecado. Cultivando
somente o segundo, nos tornaremos arrogantes (ou seremos vistos desse m odo) ou
antipáticos. A boa notícia é que praticando um evangelismo que tenha sólido con
teúdo doutrinário com simpatia genuína poderem os colher resultados expressivos,
com o o fim da história da sam aritana nos revela (Jo 4:35-42).
A história nos transmite que os primeiros cristãos tiveram semelhante atitude ao
equilibrar exclusivismo com espírito de amor genuíno. Com o diz certo historiador
acerca dos conflitos entre cristãos e pagãos no Império Romano: “Se eu tivesse de
resumir o que na religião cristã escandalizava os pagãos, diria que era a pretensão de
ser única” Apesar disso, ele descreve de forma comovente como o cristianismo aos
poucos conquistou as pessoas com sua mensagem:
Havia entre aqueles cristãos como que uma presença que eles eram os úni
cos a sentir. Uma presença que lhes inspirava totalmente o comportamento,
nào apenas o religioso! Como se nunca estivessem sozinhos. Como se aquela
presença acompanhasse a todos e a cada um ao longo dos seus dias e, a dar-lhes
crédito, para além da morte e por toda a eternidade. Certamente, os cultos de
mistério já prometiam a imortalidade, mas naquele caso, sentia-se algo de mais
íntimo; uma proximidade incomum para um deus.18
18. Lucien Jerphagnon, “Por que o cristianismo? Do Ponto de vista dos Romanos", in: Luc Ferry e Lucien
lerphagno, A tentação do cristianismo: de seita à civilização (Rio de Janeiro, RJ: Objetiva: 2011), p. 26, 30.
Deus: o réu
1. Citado na segunda parte do editorial do Washington Post, Don’t unáerstimaiive what America has
achieved since 9/11, disponível em <http://www.washingtonpost.com/opinions/ten-years-after-sept-11-the-
gains-outweigh-the-mistakes/201 l/09/09/gIQAxWivFK__story_l.html>. Acesso: 12 de set. de 2012.
D eu s: o réu / 85
Do lado do Islã, parece que assum ir o fato implica reconhecimento de falha ideo
lógica: “Islamistas encampam este revisionismo sobre o terror, pois reescrever a his
tória é fundamental para desviar a acusação de que sua ideologia motiva o assassina
to em massa.”2A questão bastante discutida, parece voltar 10 anos depois: o atentado
de 11 de setembro é fruto legítimo da religião muçulmana, que promoveria o Jihad
ou “Guerra Santa” contra os infiéis?3
Para os cristãos, voltar a discutir sobre Guerra Santa em pleno século XXI adqui
re um significado m ais abrangente, por duas razões: em primeiro lugar, os cristãos
se envolveram em guerras desse tipo, sendo as Cruzadas o exemplo mais notório.
Durante a chamada Idade Média, a Igreja Católica enfrentou os “infiéis” islâmicos e
m esm o perseguiu grupos heréticos (valdenses, huguenotes, lombardos, etc.). Isso se
assemelha com o tipo de ideologia por detrás dos atentados muçulmanos. De fato,
certo autor faz um levantamento alarmante de como cristãos ainda têm aplicado tex
tos de livros com o Josué para contextos bélicos:
O quadro se agrava quando se leva em conta que o m esm o Josué também é con
siderado profeta pelos m uçulm anos!4 Além do envolvimento cristão em guerras
2. Caio Blinder, O terror do 11 de setembro e os atentados contra a verdade, disponível em < http://veja.
abril.com.br/blog/nova-york/oriente-medio/o-terror-do-ll-de-seteinbro-e-os-alentados-contra-a-ver-
dade/>. Acesso: 12 de set. de 2012.
3. Uma recapitulação histórica útil sobre a ascensão do islamismo e o surgimento de sua vertente mais
radical pode ser encontrada em “The rise o f islamic terromism”, em John Paulien, Armageddon at the
door: an insiders guide to the book of Revelation (Hagerstown, MD: Review and Herald Publishing,
2008), p. 9-ss. Comentando sobre o retorno à pureza da fé, promovido a partir de Muhammad ibn Abd
al-Wahhab (1703-1792), Paulien nos leva a ver que esta “é a convicção fortemente exibida pelos Wahabis
da Arábia Saudita e pelo Taliban do Afeganistão. E esta era o tipo de atmosfera intelectual na qual O sa
ma bin Laden e seus compatriotas cresceram.”p. 12-13.
4. Nick Solly Megoran, The war on terror: how should Christian respond? (Nottingham, UK: Intervarsity-
-Press, 2007), p. 72.
86 / E x p l o s ã o Y
O Antigo Testamento, que é canônico para judeus e cristãos, traz inj unções
tão ou mais violentas do que o Corão. Quem duvida pode consultar o Deutero-
nômio 13:7-11, onde somos instados a apedrejar nossos familiares que tenham
se afastado de Iahweh.
D essa form a, parece ganhar peso a opinião já bastante popular de que o funda-
m entalism o religioso pode conduzir a um a expressão tão radical de religiosidade
que toda liberdade perderia o sentido. Em lugar da tolerância, teríam os uma guer
ra infinita entre grupos religiosos distintos, com a possibilidade de as m inorias
serem exterm inadas.5
Há resposta para essas críticas? Ou seremos obrigados a capitular e admitir que
temos de abrir mão de insistir na superioridade de nossas crenças, sob o risco de pro
m overmos desconfiança e conflitos entre seguidores de diferentes confissões religio
sas? Ou, pior: teremos de modificar nossas crenças, descartando ou revisando textos
bíblicos que apoiam confrontos arm ados? Ainda que aparentemente lógicas, as ques
tões m encionadas, que constituem parte do arsenal de céticos pós-m odernos, podem
ser claramente respondidas. Nós as trataremos de m odo separado, dada a natureza
diversa que am bas possuem . W unam jJem binski escreveu: “A questão, portanto, não
é o que as pessoas fizeram em nome do cristianismo, mas o que o cristianismo é em
essência.”h Com isso em mente, analisemos os fatos.
5. Hélio Schwartsman, “Saudades do politeísmo”, in: Folha de São Paulo, terça-Feira, 18 de setembro de
2012, p. A2.
6. William Dembinski, The End o f Christianity: Finding a Good God in an Evil World (Nashville, Tenn.:
Broadman & Holman, 2009), p. 15.
7. Consultar Daniel Aurélio, O Senhor da Guerra: o nome de Deus como justificativa para a morte e a
destruição (São Paulo, SP: Universo dos livros, 2005), p. 52.
D eu s: o réu / 87
8. Dinesh D’Souza, por exemplo, diz que as “expressões usadas - ‘Idade Média, Era das Trevas1 - são
como um guia para os preconceitos de determinadas pessoas. Dinesh D’Souza, A verdade sobre o Cris
tianismo, p. 62
9. Ver Nancy R. Pearcev e Charles B. Taxton, A alma da ciência: fé cristã e filosofia natural (São Paulo,
SP: Editora Cultura Cristã, 2005), p. 67-89.
10. Kenneth Scott Latourette, ,4 history of Christianity: volume 1: beginnings to 1500 (Nova York, NY:
HarperCollins Publishers, 1975), revised edition, p. 269-270.
88 / E x p l o s ã o Y
com o veremos, não seja o caso de encontrarm os respaldo para que cristãos realizem
genocídio sob quaisquer circunstâncias, há exemplos bíblicos de contextos em que
Israel recebeu ordens - ordens divinas! - para exterminar seus inimigos. E esse será
o próxim o tópico de nossa discussão.
As guerras da Bíblia
Yahweh, o Deus Ünico, convocou M oisés para, por intermédio dele, libertar o Seu
povo escravizado pela nação egípcia. A certa altura, Deus declarou ao Seu libertador:
“ [...] Executarei juízo sobre todos os deuses do Egito. Eu sou o Senhor” (Êx 12:12). O
êxodo, além de livramento, foi também uma autorrevelação divina e um juízo contra
o Egito. De tão notórias, as pragas que deram a liberdade aos filhos de Jacó tornaram
o nome de Deus difundido até entre os cananeus. Séculos m ais tarde, um a prostituta
cham ada Raabe disse aos espias israelitas que acabara de esconder dos agentes de
segurança de Jericó:
Porque temos ouvido que o Senhor secou as águas do Mar Vermelho dian
te de vós, quando saíeis do Egito [...] Ouvindo isto, desmaiou-nos o coração,
e em ninguém mais há ânimo algum, por causa da vossa presença; porque o
Senhor, vosso Deus, é Deus em cima nos céus e embaixo na terra (Js 2:10,11).
Se Raabe pintaria com cores vivas o pânico coletivo que a presença dos isra
elitas causaria nos habitantes de C anaã, podem os dizer que eles teriam razões
de sobra para tem erem o povo! D eus ordenou a Seu povo que destruísse todos
aqueles povos de além do Jordão (Nm 33:51-52, 55-56). “O Senhor fez com que os
m oradores dessas cidades teim assem em lutar contra o povo de Israel, para que,
assim , fossem com pletam ente destruídos e m ortos sem dó nem piedade. O Senhor
havia ordenado isso a M oisés” (fs 11:20, N TLH ). E há outros textos que seguem
essa m esm a linha.11
Aparentemente, estam os diante de uma ação genocida, que envolveu a matança
indiscrim inada de centenas de milhares de inocentes. Israel estava mais para o Ar-
nold Schwarzenegger de O exterminador do futuro do que para }im Caviezel de A
paixão de Crísfo! Você pode até se perguntar: “M as como um Deus de amor pode in
cumbir um povo de matar outro? Deus tem algum prazer na guerra e no sofrimento
dos inocentes?”
Porém, ao atentarmos para a situação com que Israel teria de se deparar, verifica
m os que eles não estavam lutando contra povos pacíficos e não beligerantes. A tarefa
11. Veja, por exemplo, Dt. 7:2, 20:16; Js. 6:21, 10:1, 28, 30, 32, 35, 37, 39, 40; 11:9,11-12,14, 20-22. Essa
relação de textos bíblicos aparece em Paul Copan and Matthew Flannagan, “the ethics of ‘holy War for
Christian morality and theology", in: Heath Thomas, Jeremy Evans e Paul Copan (org), Holy War in
the Bible: Christian Morality and an Old Testament Problem (Downers Grove, III: InterVarsity Press,
2013), p. 201.
D e u s: o kéu / 89
12. Daniel L. Gard nos lembra que “ [*••] o texto bíblico retrata a prática da guerra e do genocídio
no antigo Oriente Médio. O herem [termo técnico para a Guerra divinamente ordenada] não era
uma prática exclusivamente israelita, visto que outros povos também o empregavam na destruição
e consagração de seus inimigos a outros deuses.”Daniel L. Gard, “O ponto de vista da continuidade
escatológica”, in: Stanley Gundri (ed.), Deus mandou m atar? Quatro pontos de vista sobre o genocídio
cananeu, p. 128.
13. Walther Eichrodt, Teologia do Antigo Testamento (São Paulo, Hagnos, 2005), p. 118.
14. Hans K. Larrondelle, Armagedom: o verdadeiro cenário da guerra final (Tatuí, SP: Casa Publicadora
Brasileira, 2004), p. 25.
15. “Muitos comentaristas se recusam a aceitar a possibilidade de que Deus - muito menos o Deus reve
lado por Jesus - teria alguma vez ordenado genocídio sob qualquer circunstância. Rntão eles deveriam
admitir a descontinuidade radical entre o Deus de Israel e o Deus do Novo Testamento e/ou interpretar
o Antigo Testamento como representando mal o verdadeiro caráter de Deus.”Roy E. Gane, "Israelite Ge
nocide and Islamic Jihad'\ in: Spectrum, vol. 34, n° 3, verão de 2006, p. 61. Devo a indicação desse texto
ao meu amigo Math eus Cardoso, na época editor da Casa Publicadora Brasileira.
16. Paul Copan, Is God a Moral Monster?: making sense of the Old Testament God (Grand Rapids, Ml;
Baker Publishing Group, 2011), p. 158.
90 / E xplo sã o Y
Existem fatos que nos ajudam a recordar o grau de depravação a que desceram as
nações de gigantes e seus conterrâneos. O falecido Gleason Archer, escreveu: “Re
17. Para uma discussão sucinta das diversas interpretações, ver A. James Reimer, Christian and \Var: a brief
history of the churchs teachings andpractices (Mineápolis, MN: Fortress Press, 2010), p. 26-34. Reimer apre
senta sua própria interpretação, chamada por ele de leitura trinitariana: os textos bíblicos revelam diversos
aspectos da personalidade triúna de Deus; assim, quando Deus ordena a destruição e quando Jesus ordena
que amemos nossos inimigos, não estaríamos diante de uma contradição, mas de revelações diferentes e
complementares sobre a complexa personalidade divina. A ideia, porém, caí por terra quando nos lem
bramos que Jesus veio revelar o Pai e qualquer coisa que fosse relacionada a Ele, poderia ser igualmente
atribuída a Deus Pai (Jo. 1:18, 14:7, 9). As ações de Deus são trinitarianas, não porque cada membro da
Trindade se envolva de forma isolada e de modo diverso ao de outro membro, mas porque Deus Pai, Jesus
e o Espírito Santo trabalham em conjunto, harmoniosamente.
18. Ellen White, Patriarcas e Profetas (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2006), p. 434-435, abor
da de forma mais abrangente esse assunto. “Prova suficiente fora dada; eles poderiam ter conhecido
a verdade, caso estivessem dispostos a volver de sua idolatria e licenciosidade. Mas rejeitaram a luz e
apegaram-se a seus ídolos”, p. 434.
19. Tremper Longman III, "O ponto de vista da continuidade espiritual”, in: Stanley Gundri (ed.). Deus
mandou matar? Quatro pontos de vista sobre o genocídio cananeu, p. 181.
D eus: o réu / 91
20. Gleason L. Archer Jr., Merece Confiança o Antigo Testamento? (São Paulo, SP: Sociedade Religiosa
Edições Vida Nova, 2000), 6a reimpressão da 3aed., p. 196.
21. “Todavia, é importante salientar que todos eles [os deuses cananeus] eram adorados em rituais que
envolviam um reflexo terreno de sua própria história celestial: adultério, fornicação, incesto, derrama
mento de sangue para aplacar a ira divina, etc.
“Afinal, se os deuses praticam essas coisas, por que seus adoradores não? Assim, os cultos cananitas
eram festividades, na maioria das vezes, cheias de orgias, que envolviam homossexualismo, pedofilia,
sacrifício de crianças e mulheres virgens, automutilaçâo, sadismo, tortura de animais, e t c ’Rodrigo P.
Silva, Escavando a Verdade: A arqueologia e as incríveis histórias da Bíblia (Tatuí, SP: Casa Publicadora
Brasileira, 2008), p. 115.
22. Paul Copan, is God a Moral monster? p. 159.
23. Clay Jones, “ We don’t hate sin so we don’t understand what happened to the canaanites: an addendum
to ‘divinegenocide arguments’”, in: Philosophia Christi, vol. 11, n" 1, p. 57-58, 62. Uma palavra de gratidão
ao Dr. Jones por haver me enviado esse artigo, sem dúvida um dos mais importantes de sua lavra.
92 / E x p l o s ã o Y
Canaã, como os seus deuses, eram controlados pelas mais vis paixões. São descritos
sacrificando seus filhos, adorando serpentes e praticando rituais imorais em seus
templos. Os santuários abrigavam prostitutos profissionais de ambos os sexos. Os
amorreus, os mais poderosos dentre várias tribos cananeias, representam aqui to
dos os habitantes de Canaã (ver Js 24:15; Jz 6:10; etc.).2i
24. Francis D. Nichol (ed.), Comentário Bíblico Adventista do Sétimo Dia (Tatuí, SP: Casa Publicadora
Brasileira, 2012), Vol. 1. p. 313-314.
25. Harry A. HofFner. Jr., Incest, Sodomy and Beastiality in the Ancient Near East Orient and Ocident:
Essays present to Cyrus H. Gordon on the occasion of his sixty-fifth birthday, ed. Harry A. HofFner. Jr.
(Germany: Neukirchen, 1973), p. 82, apud. em Clay Jones, We don’t hate sin, p. 64.
26. Gordon J. Wenhan, Números: Introdução e Comentários, p. 219. Cf.: Deus mandou matar? p. 121-122.
27. “Esse massacre é lamentável como uma cirurgia executada num corpo doente [ ] Para preservar a
vida dessa vítima, a parte comprometida deve ser cortada de vez.” Gleason Archer Jr., Enciclopédia de
dificuldades bíblicas (São Paulo, SP: Editora Vida, 1997), p. 153.
28. Um debate acalorado discute se realmente Jefté praticou sacrifício humano ou apenas votou que sua filha se
tomasse virgem perpetuamente. Para Gleason Archer (Merece Confiança o Antigo Testamento? p. 202-203), o juiz
não sacrificou a filha, apenas lamentou por não ter mais descendentes; de forma mais convincente, Cundall (Juizes
e Rute: introdução e comentários, p. 142-143), defende a ideia de que houve o sacrifído, devido à influência cana
nita. Por seu turno, Roy Gane argumenta que (1) o voto consistia em apresentar algo como holocausto, ou seja,
oferta queimada (Jz 11:31), procedimento sacrifical testemunhado no Pentateuco; (2) jamais se menciona qualquer
pessoa, homem ou mulher, que devesse servir no santuário, mantendo-se perpetuamente virgem (cf.: a dedicação
de Samuel - ISm 1:11,24-28; 2:11 - não o impediu de ter filhos - ISm 8:1-5); (3) defender o costume do celibato
D eus: o ré u / 93
Sansão fez sexo com uma mulher cananeia--' é mostrado como evidência da
corrupção dificilmente tolerável deles,,ü
Deus: o Juiz
O erudito adventista Roy Gane questiona se há diferença entre o que Israel fez e outros
casos de genocídio. Ele assume que Israel agiu baseado na “direta revelação de Deus e levan
do a justiça retributiva em Seu nome”. Embora, segundo Gane, muçulmanos extremistas
pudessem reivindicar o mesmo, que agiam sob a orientação de Alá em casos como o atenta
do de 11 de setembro, há um ponto a se considerar: “Qual divindade é verdadeira e acima de
tudo tem autoridade final sobre a vida humana?”31Ao contrário de quaisquer outras guerras
religiosas, aquelas que são retratadas na Bíblia explicitam a participação de Yahweh, princi
palmente por meio de fenômenos extraordinários dirigidos contra os inimigos (Êx 14:24,
2Cr 20:22-26; 32:21-22).32 É claro que a participação divina criava um contexto especial que
jamais poderia ser reproduzido em outras circunstâncias. Como alguém observou:
Sem dúvida, algumas medidas militares só faziam sentido no contexto de Israel com a
presença do Senhor assegurada entre eles. Na questão envolvendo os cananeus, Deus teve
de lidar com circunstâncias que exigiam medidas adequadas. Copan definiu bem esse as
pecto do problema quando escreveu: “Alguns espetáculos televisivos alertavam as crian
ças: ‘Meninos, não tentem fazer isso em casa’ Semelhantemente, nós poderíamos dizer
carece de fundamentação bíblica, além de nao poder explicar satisfatoriamente a angústia de Jefté. Ver Roy Gane,
Heroes imperfectos deDios (Buenos Aires, Argentina: Asociación Casa Hditora Sudamericana, 1996), p. 92.
29. Para uma reflexão sobre o caráter dúbio de Sansão, consulte Douglas Reis, Paixão Cega.
30. Clay Jones, Opus cit. p. 62.
31. Roy E. Gane, Opus cit. p. 62-63.
32. ‘‘Este elemento cósmico acrescentava às guerras de Israel o aspecto de uma teofania (aparecimento
divino) salvadora e destruidora. Isso levava os inimigos a reconhecer que Deus estava lutando do lado
de Israel Hans K. Larrondelle, Opus cit., p. 27.
33. Nick. Solly Megoran, Opus cit., p. 77.
94 / E x p l o s ã o Y
sobre a situação da ‘guerra santa de Israel: ‘não tente fazer isso sem revelação especial?’34
Outra razão para que não apliquemos literalmente as orientações dadas a Israel é que
Deus instrui Seu povo de forma crescente, à medida que ele se relaciona consigo. A própria
Bíblia afirma que o conhecimento acerca da verdade é progressivo (2Pe 1:19). No caso em
estudo, era primordial preservar o povo de um convívio venenoso, que impediria à nação
de Israel o desenvolvimento suficiente que permitiria ao Messias vir.
É claro que Deus tinha de ser justo, punindo não apenas os pagãos que ameaçavam
a espiritualidade e segurança de Israel, mas punindo até Seu próprio povo eleito, à
medida que eles também se separavam de Seus ideais.35 Deus nunca permitiu que Seu
povo fosse completamente aniquilado36 - sempre haveria um remanescente, uma pe
quena parte fiel do povo chamada a cumprir a obra daqueles que se afastaram do ideal;
quando finalmente Israel falhou como nação, Deus convocou a Sua igreja, formada, a
princípio, de um pequeno grupo de judeus,
Um dia finalmente chegará a vez de Deus julgar o mundo (Ec 12:17); uns entrarão
pelos portais eternos e avistarão seus lugares na mesa, nos quais tomarão parte na Ceia
do Cordeiro; outros, por desprezarem as mãos da graça estendida durante toda a exis
tência terrena deles, serão exterminados como os cananeus; não pelo povo de Deus,
porém pela própria glória divina, que retribuirá a cada um segundo as suas obras.
Pais de família imorais. Sacerdotes mentirosos. Cristãos arrogantes. Universitá
rios incrédulos. Religiosos hipócritas. Artistas depravados. É extensa a lista daqueles
que fugirão da “ ira do Cordeiro” (Ap 6:16), os m esm os que depois serão “lançados
no lago de fogo e enxofre” (Ap 20:15). O câncer será finalmente extirpado - e de uma
vez por todas! A destruição dos cananeus era o ensaio da banda; o concerto será em
breve. Enquanto isso, devemos aproveitar as oportunidades que Deus nos dá, como
Longman afirmou:
Na verdade, é por causa dessa graça [de Deus] que todos nós continuamos
a respirar. [...] Diante disso, não devemos ficar espantados pelo fato de Deus
ter ordenado a morte dos cananeus; ao contrários, devemos admirar-nos com
o fato de ele permitir que alguém viva. [...] Em certo sentido, a destruição dos
cananeus é uma prévia do juízo final.17
Infelizmente, m esm o os cristãos vêm perdendo o senso de que todos nos reporta
rem os diante do Juiz universal. Muitas vezes, sou questionado se Deus não está agin
do contra o livre-arbítrio dado aos seres humanos. Mas aqui é necessário diferenciar
duas coisas: a liberdade de escolher e as consequências das escolhas. Um homem ca
sado, por exemplo, é livre para ter um caso extraconjugal, no sentido de que, se quiser
fazer isso, se assim decidir, ninguém o impedirá. No entanto, não será livre das con
sequências de seus atos: poderá ter de enfrentar um divórcio, um filho inesperado,
passar por crises emocionais, etc. O pecado traz consequências, as piores possíveis.
E por que Deus deveria ser tão duro punindo o pecado? Deus detesta o pecado,
porque separa Suas criaturas dEle, privando-as de uma vida útil e plena de amor.
Aqueles que se identificam com o pecado e rejeitam a graça de D eus se afastam da
fonte de vida e só poderão sofrer e fazer outros sofrerem. Por isso, é necessário que o
juízo de Deus, ao erradicar o pecado, elimine aqueles que se apegaram indissoluvel
mente a ele. Assim será no juízo final.
Dado o grau de degradação em nossa geração, são válidas as seguintes considerações:
O Deus que odeia o pecado punirá o mundo de form a ainda mais terrível para
salvar aqueles que não se contaminarem com o pecado, m as escolherem lavar as suas
vestes (Ap 22:14), o que significa confiar na purificadora justiça de Jesus Cristo, per
mitindo que Ele lhes remova toda mancha de pecado. Ainda é tem po de sermos
puros em meio à corrupção que impera em um mundo que, como Canaã, caminha
para o juízo.
1. Você afirma que Cristo é verdade. M as porque Cristo e não Buda? Ou M aomé?
Se a Bíblia é encarada como um dedo que aponta o caminho, m as não como uma
Verdade Absoluta, o que a torna diferente de qualquer livro sagrado? Não seriam
estes outros livros tão bons quanto a própria Bíblia? O que eles ensinam também não
poderia ser entendido como outros dedos, apontando para Deus?
2. Você com parou as Escrituras a um mapa. Um m apa que não combine com o
terreno seria necessário para quem já conhece o terreno? Se a Bíblia não é a Verdade
Absoluta, alguém não poderia dizer que não precisa dela para crer em Deus, m as que
já o conhece de alguma outra forma? Ou, pensando em outra direção: se eu li a Bíblia
e já entendi que Jesus é o único caminho, será que já não conheço suficientemente o
caminho para desprezar o mapa?
3. Se, com o você afirma, a queda abalou completamente o senso humano de re
conhecer a Verdade, diante do argumento que você utiliza para afirmar que a Bíblia
não é a Verdade Absoluta (e nem poderia sê-lo), alguém não poderia retrucar que
mesm o com a própria presença do Senhor Jesus sobre a Terra ainda assim a mente
humana não O reconheceria> por sua incapacidade? Em outros termos: os fariseus
não estariam justificados por não aceitarem o Salvador, uma vez que o pecado im pe
de o reconhecimento da Verdade?
O RISCO DE UM C RISTIA N ISM O P ÓS-M O DE R NO / 97
Com o aquele jovem professor, muitos cristãos vêm abraçando aspectos da teo
ria sobre o conhecimento (epístemologia) própria da pós-m odernidade (capítulo 4).
Conforme vimos anteriormente» o ideal de normatização, segurança e conhecimento
por meio de técnicas que proporcionem o domínio da natureza marcou a M oderni
dade. Quando o desenvolvimento tecnológico se revelou dúbio (na ocasião das duas
grandes guerras mundiais) e a Ciência ineficaz para solucionar todos os dilemas, a
Modernidade entrou em colapso. A partir de então, se iniciou o período Pós-Moder-
no. O secularismo, propriamente dito, (perda do sentido religioso) cedeu lugar a uma
espiritualidade difusa.1 A busca pela Verdade se tornou a tolerância entre muitas ver
dades, regulamentadas por comunidades interdependentes (capítulo 6). O prazer pes
soal passou a ser um modelo de vida, substituindo a antiga moral social (capítulo 5).
Neste âmbito, o Cristianism o enfrenta o desafio de perder sua relevância (capí
tulo 3). Diversas abordagens evangelísticas são propostas para os novos tempos. Ao
m esm o tempo, corre-se o risco de sofrer a influência da mentalidade pós-m oderna,
a qual, inevitavelmente, prevalece sobre certas denominações e indivíduos cristãos.
Neste capítulo, abordarem os o risco de nos tornarmos cristãos pós-m odernos,
exemplificando a questão com o caso do teólogo brasileiro Leonardo Boff, ex-frei
franciscano e um dos proponentes da Teologia da Libertação (TL, doravante). A es
colha se justifica pelo fato de essa teologia produzir um impacto tanto na América
Latina, quanto no mundo inteiro. Embora muitos pensem que essa teologia perdeu
sua força, seus defensores continuam escrevendo e ensinando em universidades e
se pode dizer que “a TL se m ostra m ais complexa hoje do que quando era atacada
por seus vínculos com o m arxism o nas décadas de 1970 a 1990.”2Boff, sendo um dos
precursores da TL, continua escritor prolífico e de enorme prestígio, embora já se
tenham transcorrido trinta anos desde a criação desta proposta teológica, Tomamos
com base entrevistas dadas por Boff a setores da imprensa e alguns de seus m ais re
centes livros, Ética da Vida-* e Cristianismo: o mínimo do mínimo.4
1. O secularismo moderno queria banir a religião, considerada fruto de desinformação de uma era pri
mitiva. Atualmente, o sentido religioso voltou de forma plural, porque o pós-modernismo admite que
cada um tenha direito à sua expressão religiosa, seja qual for. Ao mesmo tempo, a religião fica banida
terminantemente da vida pública - um parlamentar cristão, por exemplo, não pode legislar uma lei que
parta da visão cristã, o que seria encarado como uma tentativa de impor sua própria perspectiva a ou
tros. Assim, se criou o mito da imparcialidade, baseado em uma noção distorcida de tolerância.
2. Miguel Ángel Nunez, "Relevancia y Pertinencia actual de la teologia de la libertaáón”, in: Davar Logos,
vol. 1, nü 4, p. 63.
3. Leonardo Boff, Ética da Vida: a nova centralidade (Rio de Janeiro, RJ: Editora Record Ltda, 2009).
4. Idem, Cristianismo: o mínimo do mínimo (Rio de Janeiro, RJ: Vozes, 2011).
98 / E xplo sã o Y
5. “Enquanto formulações teológicas, a TdL não pode estar desvinculada da II Conferência do Episco
pado Latino-Americano (Ceiam) em Medellín, 1968. Mas não se pode esquecer que essa conferência é
consequência direta do Concílio Vaticano II, que desencadeia uma dinâmica de abertura e renovação.”
Paulo Agostinho N. Baptista, Libertação e ecologia: a teologia teoantropósmica de Leonardo Boff (São
Paulo, SP: Paulinas, 2011), p. 139.
6. Miguel Ángel Nunez, Opus cit., p. 51.
7. Apolinário Ternes, “A igreja é autoritária, se recusa a ouvir o seu povo, entrevista com Leonardo Boff”,
in: A Notícia, 29 de Setembro de 1997, p. G3.
8. Leonardo Boff, Cristianismo: o mínimo do mínimo, p. 151-153.
9. Para Boff, os textos cristãos não diferem de textos sagrados de outras religiões. Todos seriam igual
mente inspirados - questionar os textos não cristãos abriria espaço para questionar textos cristãos.
“‘Escamoteá-los seria não querer ver Deus como senhor absoluto e universal da história humana, capaz
de se comunicar a quem quiser e de romper as situações-de-gueto criadas por uma compreensão que se
apresenta como a única e defensora da comunicação de Deus ao mundo. [ 1
‘"Há, portanto, uma revelação direta e indireta de Deus verificável não só na Escritura, mas também nas
religiões. Os modos variam, a revelação, contudo, é uma e única.”’ Leonardo Boff, “Tentativa de solução
ecumênica para o problema da inspiração e da merrância”, in: REB, Petrópolis, v. 30, n. 119, p. 656-657,
citado em Paulo Agostinho N. Baptista, Opus cit., p. 74.
O RISC O DE UM C RIS T IA N ISM O P Ó S -M O D E R N O / 9 9
10. "‘Porque os homens da Igreja estiveram e estão sempre ‘in gone’ [no local de combate], sob a tentação
de resolver a transcendência religiosa na imanência civilizadora, ao invés de manter ambos os termos
numa tensão dialética: sempre houve e continua havendo o perigo do colonialismo cristão querer mis
sionar impondo uma encarnação histórica do cristianismo às estruturas diversas, ricas de valores natu
rais e humanos.”’ Leonardo Boff, “Problemas Pastorais de Uma Igreja Católica’, in: REB, Petrópolis, v. 23,
n. 3, p. 736, citado em Paulo Agostinho N. Baptista, Idem, p. 73.
11. Para uma crítica à hermenêutica da TL, consultar Augustus Nicodemus Lopes, “A Hermenêutica da
Teologia da Libertação: Uma Análise de Jesus Cristo Libertador; de Leonardo Boff”, in: Fides Reformata-,
1998, v. Ill, n° 2.
12. “Aspectos ‘libertadores’ estão presentes no evangelho em si, e Boff certamente está correto em vê-los.
Porém, eles são inerentes ao indivíduo, ou envolvem uma dimensão social? A pregação cristã realmente
implica em "uma transformação da sociedade’ agora? Certamente não implica, conforme previsto na
mensagem, até o retorno de Jesus [...]’’ Frederick Sontag, "Who are the truly poor? Francis, Boff, Kazant-
zakis”, in: Jornal of evangelical society, vol. 39, n" 4, p. 610.
13. Guilherme Vilela Ribeiro de Carvalho, “O dualismo natureza graça e a influência do humanismo
secular no pensamento social cristão”, tn: Cláudio Cardoso Leite, Guilherme Vilela Ribeiro de Carvalho,
Maurício José Silva Cunha (org.), Cosmovisão cristã e transformação: espiritualidade, razão e ordem
social {Viçosa, MG: Ultimato, 2006), p. 144, 151. Para uma análise mais completa da TL, ver Amin, R.
Rodor, “ The impact of Liberation Theologies on the church", in: Kerigma, vol. 4, n" 2, p. 42-75, disponível
em <http://www.kerygma.unasp-ec.edu.br/artigo8.03. asp.>
14. Márcia Feijó, “Metáforas de Leonardo Boff'\ in: Diário Catarinense, 27 de Agosto de 1997, Varieda
des, p. 5, box Opiniões de um cidadão engajado.
100 / E x p l o sã o Y
“agnósticos e ateus que se deixam tocar profundamente por sua [de Jesus]
figura corajosa, por seu espírito libertário, por sua mensagem de um profun
do humanismo, por sua ética do amor incondicional [...] e pela forma como
assumiu o drama do destino humano, no meio de humilhações, torturas e da
execução na cruz.”
26. “'[...] a distinção fundamental, nesse terreno, não passa peta crença ou descrença, por quem crê em
Deus ou não crê, mas passa por critérios éticos, por quem defende e liberta o pobre ou por quem faz ou
oprime o pobre. Fiel a Deus é aquele que luta pela justiça, embora não tenha o nome de Deus em sua
boca; e infiel é aquele que é injusto e não escuta o grito do oprimido, apesar de ter sempre o nome de
Deus em seus lábios.”’ Leonardo Boff, “A santíssima Trindade é a melhor comunidade”, in: Grande Sinal,
Petrópolis, v. 41, n° 4, p. 412, jul./ago. 1987, citado em Agostinho N. Baptista, Opus. cit., p. 93. Na página
seguinte, Baptista considera a visão de Boff “aberta, pois relativiza a crença, a profissão de fé [...]”.
27. Miguel Ángel Nunez, Opus cit., p. 62.
28. Leonardo Boff, Ética da Vida, p. 95.
29. Leonardo Boff, “ Transcendência e transparência1", in: A Noticia, 15 de Dezembro de 2007, p. A2.
“Trans-parência significa a presença da trans-cendência dentro da in-manência. Esta presença transfor
ma o mundo de meramente in-manente em trans-parente para a trans cendência presente dele. [...] Deus
emerge, aparece através do homem e do mundo. Estes se tornam então trans-parentes para Deus.” Boff,
Atualidade da experiência de Deus. (Rio de Janeiro, RJ: C RB), p. 15, apud., Agostinho N. Batista, cit.,p. 108.
30. Apolinário Ternes, Opus cit.
31. Leonardo Boff, Ética da Vida, p. 83.
O RISCO DE UM C RIS TIAN IS M O P Ó S M O D E R N O / 1 0 3
cristã pós-moderna, admite, como o título diz, que o pós-modernismo serve à sua fé. Infe
lizmente, sua crença assoma ao leitor como algo confuso. Por exemplo, Dowing se mostra
incapaz de definir o que é cristianismo, dado haver diferentes interpretações e doutrinas
entre as denominações cristãs, que resultariam em respostas divergentes à pergunta sobre
o que seria o cristianismo. Ela ainda advoga um abandono das respostas-prontas, que se
riam uma espécie de autoritarismo. Ao invés disso, deveríamos ser mais humildes. “Para
mim, parece, entretanto, que um sinal verdadeiro da humildade infantil é o reconhecimen
to de que ninguém entende tudo e, logo, poderia continuar fazendo perguntas”. 32
Robert C. Greer concorda com ela. O autor critica cristãos que defendem a verda
de absoluta, como o pensador reformado Francis Schaeffer. Greer argumenta que tais
cristãos pagam tributo ao cogito cartesiano, e, além disso, não conseguem resolver o
problema da contraditória pluralidade de verdades absolutas (as teologias sistem á
ticas, que pretensamente intentavam chegar à compreensão universal da revelação
bíblica, são díspares entre si). D epois de explorar várias opções de interação entre fé
cristã e pensamento pós-m oderno, Greer passa à sua proposta.
Ele defende Deus como Verdade Pessoal, categoria distinta do que encontramos no
modernismo (onde se prega a verdade objetiva impessoal) e pós-modernismo (contrá
rio à verdade objetiva impessoal). “Quando nós fazemos esta fundamental mudança
em nosso entendimento de Deus e verdade absoluta, abrimos a porta para uma forma
peculiar de pluralismo: esta verdade é ao mesmo tempo singular e plural.” Ela passe
a demonstrar, de forma equivocada, algumas supostas contradições bíblicas, na ten
tativa de mostrar que seria impossível compreender as Escrituras de modo objetivo.
Entre os casos que ele menciona, aparecem:(a) a ordem “não matarás” e o genocídio
de Canaã (capítulo 7); (b) a instituição do casamento e a perm issão da poligamia; (c) a
ordem “não farás imagens” e as imagens de querubins no santuário; (d) a ordem “não
darás falso testemunho” e a bênção dada à mentirosa Raabe. Para Greer, quando “en
tendemos a verdade como pessoal e animada, ela se torna viva e dinâmica.” Com isso,
“a verdade cristã pode ser apresentada em uma variedade infinda de caminhos”.33 Tal
variedade de caminhos (pluralidade cristã) é definida nas seguintes pelo pastor evangé
lico Brian McLaren, uma das vozes mais importantes da igreja emergente (capítulo 17):
32. Crystal L. Dowing, How postmodernism serves (my) faith (Downers Grove, III: Intervarsity-Press,
2006), p. 18-21, 48-49.
33. Robert C. Greer, Mapping postmodernism: a survey o f Christian options (Downers Grove, III: ín-
tervarsity-Press, 2003), p. 77-78, 85, 160, 162-163, 165, 168. Grifos no original. Muitas das aparentes
contradições apontadas por Greer são solucionadas levando-se em conta que a compreensão da Verdade
(e não a própria Verdade) é progressiva, fazendo com que Deus parta da cultura original e a transforme
progressivamente. Qualquer boa introdução da ética do Antigo '1estamento aborda tais assuntos.
104 / E x p l o sã o Y
McLaren ainda sugere que a TL seria a palavra especial do Senhor para “os pobres
na América Latina” 34 Dentro dessa concepção, a Bíblia deixa de ser ela m esm a a von
tade revelada por Deus, para ser o ponto de partida para a revelação, entendida de
forma subjetiva e particular. O que Deus revela em cada situação é específico e único,
sem possibilidade de ter valor senão circunstancial.
Nota-se nesses autores alguns pontos de contato com o pensamento de Leonardo
Boíf: a perda da autoridade da Bíblia, que se recente pela amarra hermenêutica, uma vez
que a interpretação fica atrelada a modelos culturais, ao invés de depender da operação
do Espírito Santo, a qual torna efetiva a Verdade revelada na Palavra de Deus (Jo 14:17,
26; 16:12,13). Ao mesmo tempo, outro ponto de contato é autonomia para interpretar
o texto bíblico, garantida por dois fatores: (a) a impossibilidade de uma interpretação
geral e (b) a necessidade de contextualizar os textos bíblicos a uma determinada época,
a fim de lhes dar significado. Em alguns pensadores mais radicais, como o próprio Boff,
a incerteza sobre a interpretação se estende ao próprio texto bíblico: até os próprios
discípulos, por exemplo, estavam condicionados à cultura da Palestina do I século.
Boff igualmente admite a pluralidade cristã, afirmando que as igrejas “representam
formas diferentes de dar carne histórica à herança de Jesus.” Nenhuma delas seria “a
única verdadeira e portadora exclusiva do sonho de Jesus.” A solução para valorizar essa
variedade indispensável seria o ecumenismo. Uma vez que, conforme já vimos, Boff
admite que os evangelhos são condicionadas por suas culturas, ele afirma que eles sir
vam de “referência ao verdadeiro ecumenismo, pois, embora diferentes, reconhecem-se
mutuamente como autênticos e dão testemunho do único Evangelho vivo que é Jesus.”35
Essas aproximações entre pensadores cristãos contemporâneos e pós-modernismo são
problemáticas. Se voltarmos à introdução, quando mencionei meu diálogo com o profes
sor universitário, veremos que boa parte da objeção que propus poderia ser novamente
utilizada. Para começar, como seguiremos os ensinamentos bíblicos, se é impossível ter
tanta certeza do que a Bíblia ensina? Talvez os autores respondessem afirmando que o mais
importante é o relacionamento com Deus. Mas em que se baseia esse relacionamento? Se a
Bíblia não é a Verdade Absoluta, ela é, ao menos, algum tipo de verdade suficiente, a fim de
sabermos que estamos no caminho certo para entrarmos em comunhão com Deus? Nesse
caso, seria seguro relegar a Palavra de Deus a um patamar inferior na experiência cristã?
Seria possível um tipo de experiência espiritual genuína à parte daquilo que é sancionado,
previsto e orientado pela Bíblia? Quão cristã seria essa “experiência cristã”?
Se a Bíblia fosse fruto de uma experiência religiosa explicável pela Sociologia se
cular, sem ter, de fato, algo notavelmente sobrenatural, ou que, ao menos, a distin
guisse de experiências religiosas presentes em outras crenças não-cristãs, seria de se
duvidar que suas afirmações se classificassem como factíveis e críveis - o que, em
última análise, nos levaria a duvidar do próprio Deus, de Sua existência e interação
34. Brian McLaren, “O método, a mensagem e a história em andamento”, in: Leonard Sweet, A igreja na
cultura emergente: cinco pontos de vista (São Paulo, SP: F.ditora Vida, 2009), p. 192-193.
35. Boff, Cristianismo, p. 155.
O RISCO DE UM C RIS TIAN IS M O P Ó S -M O D E R N O / 1 0 5
com o homem (capitulo 11). Não à-toa, Boff se mostra coerente em suas incertezas
em relação a Deus, sobre quem, em seu conceito, “não se pode dizer nada”
Claro que os pensadores pós-m odernos, cristãos ou não, falham em fazer a divisa
entre conceitos epistêmicos (o que se pode conhecer sobre) e ontológicos da verdade
(a natureza da própria verdade), distinção que já fizemos (capítulo 5). Outros traba
lhos fazem semelhante observação à crítica pós-m oderna à verdade.36 Ao longo da
história, os seguidores de Jesus sustentaram sua mensagem como verdade objetiva. A
liberdade de interpretação não permitiu, necessariamente, que qualquer interpreta
ção fosse igualmente válida. Calvino assim define a questão: “Reconheço que a Bíblia
é fonte riquíssim a e inesgotável de toda sabedoria; mas nego que sua fertilidade con
sista nos vários significados que qualquer pessoa atribua, como lhe apraz.”37
A proposta de Boff nos leva a questionar o quão cristão seria um cristianismo que
abrisse m ão de seu exclusivismo, sendo que m esm o Jesus era um exclusivista - Ele
declarou ser a “Verdade”, o Único meio de acesso a Deus (Jo 14:6) e que a Vida Eterna
seria alcançada somente por quem se relacionasse com o Deus Verdadeiro e Ele, Seu
representante (Jo 17:3). Além disso, Jesus identificou a Bíblia como a própria Verdade
revelada (Jo 17:17). Por toda a Bíblia, profetas, apóstolos e m esm o Jesus lutaram para
estabelecer limites bem definidos para a Verdade, em oposição declarada às religiões
pagãs, ao sincretismo religioso e a heresias dentro da fé (capítulo 6). Seria impossível,
desta forma, conciliar Cristianism o e Pós-Modernismo, porque a fé cristã reivindica
possuir uma Verdade absoluta, revelada por Deus e aplicável ao qualquer ser humano
em qualquer época.38
De que outra maneira responderíam os ao dilema levantado por Boff - ou o di
álogo com a cultura ou o isolamento? Sem dúvida, os cristãos não podem se isolar.
Entretanto, o diálogo não deve significar perda de identidade e consequente aban
dono da m issão (Mt 28:19-20). Lem bremo-nos de que, ao enviar Seus discípulos ao
mundo, Jesus sabia de potenciais conflitos religiosos que eles enfrentariam; m as não
bastava a pregação a pessoas não realizadas com suas crenças culturais - todos de
veriam ouvir e ser persuadidos, e os que aceitassem se converteriam da autoridade
de Satanás para o senhorio do Deus Único (At 26:29). Jesus, afinal, não é Senhor dos
cristãos; Ele é o “Senhor de todos” (At 10:36).
Parece mais compatível com o cristianismo bíblico admitir que as estratégias evangelísti-
cas podem se adaptar ao momento, desde que não comprometam a essência da mensagem.
Os adventistas encaram, tendo em vista os dados bíblicos, que a revelação divina é objetiva
e que o Espírito Santo, agente revelador, supervisionou o processo de escrita da Bíblia, “a
fim de maximizar a clareza das ideias e prevenir, se necessário, a distorção da revelação ou a
mudança da verdade divina em uma mentira.”40 Muitas das propostas hermenêuticas revi
sionistas não reconhecem a atuação sobrenatural do Espírito Santo, limitando às Escrituras
ao contexto cultural do 1 século. À semelhança da TL, elas assumem pressuposições com
prometidas com determinados contextos culturais, ignorando o valor normativo da Bíblia.
“Contudo, a erudição idônea não abalará a autoridade moral da Bíblia, designando catego
rias nós e eles’ em que somos vindicados em virtude do nosso gênero, raça, ou prosperidade,
enquanto eles estão condenados pelos seus.”41 Partindo de pressupostos bíblicos, os adven
tistas devem interpretar a mensagem das Escrituras, permitindo a aplicação dela à vida e,
com sensibilidade e amor, transmitir a verdade a todas às culturas existentes no mundo.
“Relacionamentos, amizade, amor e cuidado pelo semelhante são muitíssimo im
portantes para todo discípulo de Cristo, m as não são tudo o que representa o cristia
nismo”, escreve Aleksandar Santrac. “ [...] Se utilizarmos linguagem pós-m oderna ou
vocabulário não ameaçador, nunca devemos fazer isso a expensas da verdade como
revelada na Palavra de Deus.” Santrac continua lembrando que evangelismo da am i
zade não substitui o evangelismo doutrinário, porque Jesus praticou ambos.42 Sem e
lhante a algum as m arcas que, ao renovar determinado produto, inovam apenas na
embalagem, o Cristianism o do século XXI precisa de nova embalagem para o mesmo
conteúdo - a Verdade de Deus, ainda necessária no mundo pós-moderno.
1. Para conferir esse e outros resultados interessantes da pesquisa, consultar ‘‘Jovens brasileiros", disponí
vel em <http://datafolha.folha.uol.com.br/po/ver_po.php?session-700>. Acesso: 20 de out. 2012.
2. Juliana Calderari, “Eu não acredito", Foíhateen, 14 de Setembro de 2009, p. 6-7.
3. Carmelo Marines, “Ateísmo pôs-moderno: Análisis y crítica de sus argumentos”, in: Davar Logos vol.
9, n° 2, p. 196.
108 / E x p l o s ã o Y
Ceticismo em série
Em 2009 foi refilmado o clássico detetive Sherlock Holmes, criado por Sir Arthur
Conan Doyle. A nova versão do detetive consistia em um a espécie de cientistas dante,
que passava noites insones em experim entos musicais com insetos e se metia em lutas
de ruapara testar suas técnicas de Kung Fu. Sobretudo, perpassa todo o roteiro a luta in
trínseca entre o em pirism o de Holmes e a falsa religião, representada no filme por uma
seita (de certa forma, tenta-se caricaturar a maçonaria). A alegação do líder da seita de
realizar m ilagres não passa de uso de uma má ciência, apoiada na ignorância dos
seus seguidores.7
Já na série The Mentalist? Patrick Jane é um ilusionista treinado na adolescência
pelo pai vigarista. Ele se aproveite de seu carisma e poder de observação para iludir
as pessoas. Em um program a de televisão, dá certa declaração que irrita o serial killer
conhecido com o Red John. Para se vingar, o assassino invade sua casa e mata a m u
lher e a filha de Jane. Depois de superar o trauma, ele se une à agência de investigação
ACI na esperança de acertar as contas com Red John.
Em Seeing red (sétimo episódio da primeira temporada), surge uma vidente (Kris-
tina Frye) que avisa sua cliente de que ela corria perigo de vida. Apesar de Frye ser
considerada suspeita, a investigadora Van Pelt (retratada como romântica e ingênua
4. Antônio Houaiss e Mauro de Salles Villar, Dicionário Houaiss (Rio de Janeiro, RJ: 2001), p. 683, ver
bete “ceticismo”.
5. Gustavo Bernardo, “Ficção e luto" in: Norval Baitello Junior, Luciano Guimarães, José Eugênio de O li
veira Menezes e Denise Paiero (org.), 05 símbolos vivem mais do que os homens: ensaios de comunicação,
cultura e mídia (São Paulo, SP: Annablume, 2007), Ia ed., p. 97. Bernardo agrupa as expressões céticas
em três grupos, o ceticismo antigo, o da época da reforma e o contemporâneo. “Em cada uma destas
épocas, porém, o ceticismo é violentamente rejeitado, ora porque contém em si uma contradição interna
insuperável, ora porque sua vitória implica a derrota dos sistemas filosóficos e das instituições fundadas
a partir desses sistemas.” Idem.
6. O filósofo ateu Luc Ferry sintetiza com precisão esse enclausuramento da fé: “Mas se tornou [a crença
na existência de um Deus], para a maior parte de nós, um negócio pessoal, remetendo-se à esfera do
privado - sendo a esfera pública levada a observar uma estrita neutralidade quanto a isso.” Luc Ferry, O
homem Deus: ou o sentido da vida (Rio de Janeiro, RJ: DIFEL, 2012), 5J ed, p. 32-33.
7. Sherlock Holmes, Diretor: Guy Ritchie, Warner Bros., Reino Unido / Alemanha / EUA, 2009. O filme
ganhou uma sequência em 2011, Sherlock Holmes: ojogo das sombras e um terceiro filme iá foi anunciado.
8. O seriado é produzido pelo canal CBS, tendo à frente o produtor Bruno Heller.
A lg u é m tem a lg u m a d ú v id a ? / 109
em boa parte do tempo) levanta a hipótese de que talvez ela seja o que alega ser: uma
autêntica vidente. Patrick fane a critica. “Van Pelt tem direito à sua opinião”, rebate
a chefe dos investigadores, a detetive Lisbon. “Não se estiver errada. É como crer no
coelhinho da Páscoa”, retruca Jane.
No seriado Lie to me, ao qual já fizemos menção, ocorrem referências ao darwi-
nismo com o um fato inquestionável em alguns episódios. No segundo episódio da
primeira temporada. Ria Torres, a nova assistente do Dr. Lightman pergunta se ele
acha que ela, por ser mulher, acredita na oficial do exército que alega ter sido estupra
da por um superior. Lightman afirma: “Eu, Darwin, e 200 anos de biologia evolutiva.”
No quarto episódio, novamente Lightman menciona a evolução como fato (por duas
vezes, com cerca de seis minutos de intervalo entre cada menção!).
Novamente em The Mentalist encontramos algo similar. No episódio Red rum (o
décimo segundo da primeira temporada), Patrick Jane declara fortuitamente: “A vida
é uma em um milhão. O universo é uma grande coincidência. Coincidências cosmi-
camente improváveis que acontecem o tempo todo. Apenas não as notamos.”
Dexter, outra série citada anteriormente, contém comentários com doses de sarcasmo
e ceticismo quase em mesma medida. Em “Crocodilo” (o segundo da primeira tempora
da), o psicopata Dexter prepare-se para assassinar outra vítima quando diz a si mesmo:
“Se Deus está nos detalhes, se acreditasse em Deus, ele estaria nessa sala comigo.” Em
bora mais sutil, The Mentalist também endossa que a religião sirva para dar “esperança
e significado” à vida, nas palavras de Tamzim Dove, uma bruxa charlatã {Red rum) ou
como admite o próprio Patrick Jane, comparando sua função de consultor da ACI com
a vida que teve: “Fazia mais bem quando vidente. Dava esperança às pessoas. Esperança
falsa, mas era esperança” (em redemption, primeiro episódio da segunda temporada).
,y
Até na popular CSI: investigação criminal fica patente a visão do desalento cós
mico a que a humanidade está submetida: o episódio Estrelas Cadentes (quarto da
sexta temporada) termina com G rissom conversando com a jovem Abigail, que as
sassinou os m em bros de sua seita, acreditando que suas alm as encontrariam liberda
de dos corpos. Quando ela lhe pergunta se G rissom acreditava em alguma entidade
cósmica, o investigador responde que se existem seres superiores nos observando,
eles seriam inteligentes o suficiente para não se envolverem com o homem!
A posição de alguns seriados é tão evidente que eles acabam conhecidos pelo seu
ateísmo engajado. É o caso de Dr. House, que se encerrou na oitava temporada e con
siderada um a das melhores na atualidade. Ela tratava de um médico rabugento que,
com sua equipe, diagnostica doenças raras. Não à toa, David Shore, o criador da série
é um advogado ateu de ascendência judaica.1"
Claro que, em alguns casos, o discurso de ateísmo acaba traindo a usual arrogân
cia e descamba para adm issão de que o ceticismo não é uma certeza concorrente à
religião - m as uma incerteza enraizada! Isso ocorre no diálogo curioso do episódio
9. A série foi criada pot' Anthony E. Zuiker e produzida por Jerry Bruckheimer, para o canal CBS.
10. Marcelo Marthe, A cura pela razão, revista Veja, edição 2208, ano 44, n" 11,16 de março de 2011, p. 131.
110 / E x p l o s ã o Y
piloto de The Mentalist. )á indignada com seu colega cético, a investigadora Van Pelt
desabafa: “O reino de Deus é um lugar real, Sr. Jane, e você tem uma alma imortal.”
“Espero muito que esteja errada”, é o máximo que ele consegue dizer.
No fundo, temos aqui um a resposta muito sugestiva: já que o ceticismo não tem
certeza de nada, cabe-lhe a expectativa de que a fé esteja equivocada, embora ele não
tenha base para arcar com o ônus da prova - de qualquer prova! De fato, assumir o
ceticismo absoluto é uma impossibilidade - não “podem os ser céticos o tempo todo,
não podem os ser céticos sequer na maior parte do tem po” 11
As séries que m encionam os são apenas alguns exemplos dentre muitos que p o
deriam ser elencados. A Geração Y é bastante atraída pelas séries (capítulo 2), que
hoje representam o filão mais disputado da televisão americana, além de estarem
presentes em grades de program ação em em issoras de praticamente o mundo todo.
O ideal para o cristão seria refletir bem antes de passar a companhar um seriado,
porque há poucos exemplos positivos nesse gênero. M esmo seriados que partam de
prem issas boas, sempre exibirão episódios questionáveis sob a ótima da moralidade
cristã. Devemos nos obrigar a não assistir muitos program as, especialmente quando
se trata de subgêneros como terror, fantasia e ficção científica. Até mesm o no caso de
recreação saudável, devemos tom ar cuidado para que todo nosso tempo não seja gas
to em acompanhar as tramas televisivas, desperdiçando assim tempo com afazeres e
atividades m ais im portantes.12
Creio que depois destas citações que revelam o ceticismo na mídia, estejamos
prontos para refletir sobre a natureza do ceticismo generalizado deste período em
que vivemos.
11. Gustavo Bernardo, Idem. O autor defende que o ceticismo seria “logicamente impecável, mas psi
cologicamente impossível”. Defendo, porém, que o ceticismo não possui lógica rigorosa o suficiente,
porque, em sua expressão mais frequente, constitui o tipo de busca que admite a impossibilidade de
encontrar o que procura, e, em alguns casos, até reconhece a inépcia para avaliar o que encontrou ou
quão longe ainda se acha de seu objetivo.
12. Recentemente, o ator Angus T. Jones, que interpreta Jake na sitcom Two and HalfMen, declarou sua
repulsa à série e sua intenção de abandoná-la. A decisão do ator se deve ao contato que teve com a Igreja
Adventista, a qual passou a frequentar.
13. Ellen White, A ciência do bom viver (Tatui, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2006), p. 439.
A lguém tem a lg u m a d ú v id a ? / Ill
Deus em Suas obras criadas.” 14 Todo o tipo de conspiradores tem surgido, e explicar a
realidade tendo por base um a rede de verdades fictícias é tema recorrente de filmes,
reportagens e livros - assim , a ficção desforra-se da realidade, lançando sobre ela suas
próprias atribuições. A melhor certeza, apontam os conspiradores, é desconhecer as
certezas e duvidar de todas elas. Vale, entretanto, a ressalva: os conspiradores geral
mente são interlocutores de um monólogo acrítico, resguardando suas teorias das
dúvidas que lançam contra tudo mais.
Passo a desenvolver melhor a ressalva apresentada: supondo que um conspira
dor apresente a teoria A, em geral, a validade de seus argumentos será proporcional
ao clima de dúvida que lançará contra ideias e parâmetros bem aceitos. Ocorre, na
m aioria das empreitadas do gênero, que todo tipo de evidências casuais e pálidas são
tecidas por duvidosa linha argumentativa, a qual se respalda na crítica pela crítica, na
dúvida pela dúvida - como se apenas a não aceitação de uma determinada convenção
já fosse algo inerentemente meritório - ou uma “virtude”, no dizer de Ellen G. White.
Os conspiradores e seus pares evocam uma suposta coragem ao duvidar. Mas se
ria toda dúvida um ato inequívoco de coragem? Se meu prédio pegasse fogo, e eu
saísse gritando pelos corredores, na tentativa de alertar meus vizinhos, imagine que
um deles (digamos, o que m ora no apartamento 105), me dissesse que duvida da rea
lidade de um incêndio (ainda que a fumaça negra se avolumasse e o odor de fuligem
se intensificasse) seria tal m orador um homem corajoso? Em verdade, diríam os ser
ele um louco, um acom odado ou um desatento, m as em nenhum destes adjetivos se
vislumbraria algo semelhante à verdadeira coragem.
Entretanto, a dúvida pode estar ligada a um a atitude efetivamente corajosa? É cla
ro. Vamos inverter a situação do exemplo anterior. Imagine se o vizinho que ocupa o
apartamento 105 saísse, desconfiado com a possibilidade de incêndio, e eu, por qual
quer razão superficial (talvez, nesse caso, eu agisse de forma íouca, acom odada e de
satenta), lhe dissesse não haver nada, e m esm o assim, ele se insurgisse contra a minha
opinião e averiguasse por si mesmo, confirmando a presença das chamas no prédio?
Ou ainda: se eu fosse o síndico, e quisesse manter as aparências, acobertando um
incêndio (talvez julgando que os bombeiros estivessem a caminho e pudessem con
tornar o problema sem pânico), o m orador do 105 não seria corajoso ao me enfrentar
e divulgar um a informação vital aos demais condôminos?
Qual a diferença, então, nos exemplos mencionados? A duvida válida acom pa
nha um a certeza, a qual pode ser confrontada dentro da m esm a lógica que o objeto
do qual se duvida. Infelizmente, a maioria dos conspiradores duvida de coisas, e se
justifica apenas por duvidar, isentando-se de confrontar suas certezas e suas dúvidas
dentro de um m esm o ambiente lógico.
Não creio que a dúvida per si tenha alguma serventia. Serve m ais como estratégia
de marketing (muitas vezes, pessoal) do que algo que se leve a sério. Com o adverte Os
Guiness, sobre um tipo específico de dúvida:
14. Ident, Testemunhos Seletos (Santo André, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1984), vol. 1, p. 583.
112 / E x p l o s ã o Y
Em essência, essa dúvida não tem nada contra a verdade, exceto que ela é
inconveniente. Ela pode se expressar extremamente através de sua voz e susci
tar toda uma gama de objeções à verdade, mas estas não são dúvidas legítimas.
Elas são parte do exercício de propaganda da própria dúvida. O verdadeiro
pomo de discórdia é que a verdade é desnecessária e não desejada, ao invés de
não confiável.'5
Avaliando a certeza
Em bora tenhamos argumentado no sentido de m ostrar como é ilógico viver da
dúvida, honestamente temos de reconhecer que isso não significa necessariamente
que a fé cristã seja o tipo de certeza de que precisamos. Ainda será necessário nos de
ter no significado desta fé, a fim de estabelecer se ela é compatível com a necessidade
intrínseca de certeza que há em nós e se ela satisfaz completamente tal necessidade
(capítulos 4 e 5).
Com tantos desafios lançados ao cristianism o, soa ousadia apresentá-lo com o
verdadeiro em todas as suas reivindicações. John Lennox, m atem ático de Oxford,
constata: “É m uito com um a im pressão popular de que cada novo avanço cientí
fico é outro prego no caixão de Deus. Esta é um a im pressão alim entada pela in
fluência de pensadores científicos.” Em bora haja fatores que colaboram para esta
com preensão generalizada (com o o neoateísm o e o ceticism o da m ídia, sobre os
quais tratam os), o ponto decisivo é a com preensão errônea acerca da natureza da
fé cristã.
Conquanto a fé seja encarada superficialmente com o crença infundada, um senti
mento, um a opinião não embasada, um a crença pré-científica, o cristianismo bíblico
nunca se definiu dessa maneira. Lennox prossegue:
15. Os Guinness, Encontrando Deus em meio à dúvida: a segurança da fé para além das questões mais
difíceis da vida (Brasília, DF: Palavra, 2011), p. 50.
A lg u ém tem a lg u m a d ú v id a ? / 113
sendo entendidos pelo que foi feito, então tais homens não têm desculpa”
Não é parte da visão bíblica das coisas ter crido quando não há evidência.
Assim como na ciência, fé, razão e evidência caminham juntas.16
16. John C. Lennox, The God’s undertaker: has science buried God7. (Oxford, Inglaterra: Lion Hudson,
2007), p. 14-16. [em português: Por que a ciência não consegue enterrar Deus? (São Paulo, SP: Mundo
Cristão, 2011)].
17. Os Guinness, Opus cit., p. 65.
114 / E x p l o s ã o Y
Paulo afirma que “desde a criação do mundo os atributos invisíveis de Deus, seu
eterno poder e sua natureza divina, têm sido vistos claramente, sendo compreendi
dos por meio das coisas criadas [sic]” Seu texto vem servindo de base para o entendi
mento da revelação geral. Ele afirma que m esm o essa revelação parcial sobre Deus é
suficiente para evidenciar pelo m enos dois dos atributos divinos. Segue-se que aque
les que continuam rejeitando a existência de Deus são “ indesculpáveis” (Rm 1:20).
Nas páginas seguintes estudaremos o que Paulo escreveu no primeiro capítulo de
Romanos a respeito de um tipo de ceticismo que prefere rejeitar a trilha de evidências
disponíveis. Antes, cabe a ressalva: a Bíblia não endossa aquilo que tradicionalmente
se apresenta com o teologia natural. Em síntese, a teologia natural parte do princípio
de que a razão humana pode abstrair da natureza o conteúdo da revelação de forma
objetiva. Logo, todo homem, ainda que sem acesso às Escrituras, poderia conhecer
Deus, Seus atributos, o plano da salvação, entre outros pilares da fé cristã.
Ao contrário disso, a Bíblia apresenta a natureza com o fonte de conhecimento
subjetivo: “Os céus proclamam a giuiia de Deus; o firmamento proclam a a obra de
suas mãos. Um dia fala disso a outro dia; uma noite o revela a outra noite. Sem d is
curso nem palavras, não se ouve a sua voz” (SI 19:1-3). Conforme as palavras de
Fernando Canale,
Também foge de nosso escopo argumentar como estudos recentes fornecem ar
gumentos para o argumento cosmológico conhecido como teórico-informativo (no
qual se baseia o movimento do Desenho Inteligente, mas que não se restringe a ele).2U
18. Peter M. van Bemmelen, “Revelação e Inspiração”, in: Raou] Dederen (ed.), Tratado de Teologia Ad-
ventista do Sétimo Dia (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2011), p. 32.
19. Fernando Canale, O princípio cognitivo da Teologia cristã: um estudo hermenêutico sobre Revelação e
Inspiração (Engenheiro Coelho, SP: Unaspress, 2011), p. 41.
20. Para aqueles que quiserem saber mais sobre o assunto, podem consultar William A. Dembski, O argu
mento do desígnio teórico-informativo, em Frands J. Beckwitb, William Lane Craig e J. P. Moreland (ed.),
Hnsaios apologéticos: um estudo para uma cosmovisão cristã (São Paulo, SP: Hagnos, 2006), p. 91-111
A lg u ém tem a lg u m a d ú v id a ? / 115
O foco do que se segue é a responsabilidade dos céticos diante de um Deus que lhes
deu o suficiente para crer.
Em bora racional, a fé não implica que teremos todas as respostas, afinal, nos
sa mente é finita,21 insuficiente para compreender todos os mistérios da divindade.
Com o já foi dito: “A racionalidade da fé cristã anda de m ãos dadas com o mistério
da fé.”22 Em bora a Bíblia possua mistérios, “Deus deseja que o homem exercite suas
faculdades de raciocínio; e o estudo da Bíblia robustecerá e elevará o espírito como
nenhum outro.”23 Na verdade, a “ignorância não aumenta a humildade ou espirituali
dade de algum professo seguidor de Cristo. As verdades da Palavra divina podem ser
mais apreciadas pelo cristão intelectual.”24
Se por um lado Deus entende os questionamentos que Lhe dirigimos, por outro a
atitude que segue questionando como um mecanismo de imunidade contra a influência
divina só pode significar rebeldia contra Deus e um ultraje contra a própria razão, que é
privada de informações que a podem capacitar a operar no mundo de forma coerente. E
a rés dessa escolha rebelde segue-se não um esclarecimento, mas justamente o contrário:
“ [...] os seus pensamentos tornaram-se fúteis e o coração insensato deles obscureceu-
-se” (Rm 1:23). Vejamos como Paulo aborda os resultados do ceticismo inveterado.
Rejeição e ira
“Portanto, a ira de Deus é revelada dos céus contra toda impiedade e injustiça dos
homens que suprimem a verdade pela injustiça.” (Rm 1:18). Paulo inicia seu argu
mento afirmando que muitos suprimem a verdade não por falta de evidências, mas
porque não lhes convém crer. Tais pessoas se encontram, de acordo com o apóstolo,
sob a ira manifesta de Deus. O que significa exatamente isso?
A ira é um a das em oções m ais próprias ao ser humano. Trata-se de uma reação
natural a algo que nos desagrade, ameace, indigne, revolte ou ofenda. Suas conse
quências ultrapassam a lógica, atingindo a categoria do imprevisível. M anifestações
de ira produzem frutos amargos de remorso, rancor ou ódio nutrido. De antemão,
alguém poderia sentir-se confuso: como assimilar o conceito de “ira divina”? Afinal,
em que sentido um D eus de am or Se ira? Acaso o Todo-Poderoso não pode controlar
Suas próprias em oções? Seria Deus capaz de, em um momento de exaltação e raiva,
fazer algo impensado, pelo qual Se sinta arrependido posteriormente?
21. “A religião da Bíblia é simplesmente o mistério da piedade; nenhuma mente humana o pode plena
mente entender, [...] e é de todo incompreensível ao coração não regenerado.” Ellen White, Mensagens
Escolhidas, vol. 1, p. 584.
22. A citação completa é: “O que elas [as pessoas que interpretam mal a racionalidade da fé] esquecem é
que a racionalidade é oposta à falta de lógica, não ao mistério. A racionalidade da fé cristã anda de mãos
dadas com o mistério da fé.” Os Guinness, Opus cit., p. 82.
23. Ellen G. White, Caminho a Cristo, p. 110.
24. Idem, E recebereis poder (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1999), p. 146, apud. Renato Gross
e Janine Schoemberg Gross, Filosofia da educação cristã: uma abordagem adventista (Tatuí, SP: Casa
Publicadora Brasileira, 2013), p. 11.
116 / E x p lo sã o Y
Consensualmente, os cristãos creem que a chamada Ira divina não deve ser enten
dida literalmente, sob o risco de ser confundida com uma em oção humana. A expres
são pertenceria, portanto, à categoria de termos antropomórficos usados pelas Escri
turas para representar o Ser divino de form a acomodatícia à compreensão humana
(capítulo 11). Assim, parece m ais provável que o falecido teólogo F.F. Bruce estivesse
correto ao definir a ira divina como “reação da santidade divina face à impiedade e
rebelião” 25 O filósofo cristão Paul Copan discute sobre como a ira divina dem onstra
da por Jesus, ao expulsar os mercadores do templo, é um exemplo positivo para nós:
1. A ira divina contra quem rejeitou a revelação (v. 18-20): A ira divina se revela
continuamente 27 contra quem rejeita a auto-revelação divina. Afirmamos antes que
a revelação geral de Deus está disponível também na criação. Paulo nos assegura
que “desde a criação do mundo os atributos invisíveis de Deus, [...] têm sido vistos
claramente” (v.20). Ele segue dizendo que tanto o eterno poder quanto a divindade
são atributos do Senhor discerníveis na criação. Portanto, não há razão plausível para
rejeitar essa revelação.
Winfried Corduan argumenta que por meio da revelação presente na natureza
tem os consciência de Deus (do Deus do teísmo, Criador e Legislador), a consciência
25. F.F. Bruce, Romanos, Introdução e comentários, série cultura bíblica (São Paulo, SP: Edições Vida
Nova, 2002), 10J reimpressão da 1J ed., p. 68.
26. Paul Copan, Is God a moral monster? Making sense o f the Old Testament God (Grand Rapids, MI:
Baker Books, 2011), p. 38. Na língua grega, há duas palavras para expressar ira: thumos, a ira impulsiva,
explosiva e a outra palavra, que é usada no texto, orge, uma ira controlada, calma, nâo passional. Ver R.
Kent Hughes, Romans: Righteousness from Heaven (Wheaton, 111.: Crosswav Books, 1991), série Prea
ching the Word, p. 32.
27. No original, a expressão “é revelada” (Rm 1:18, NV1), indica ação continuada. John F. Walvoord, Roy
B. Zuck, Dallas Theological Seminary: lhe Bible Knowledge Commentary: An Exposition o f the Scriptures
(Wheaton, IL: Victor Books, 1983-1985), vol. 2, p. 442.
A lguém tem a lg um a d ú v id a ? / 117
28. Winfried Corduan, “General Révélation in: Journal of Christian Apologetics, vol. 1, n° 2.
29. Sobre Romanos 2:14,15 Peter M. van Bemmelen comenta: “Essas afirmações indicam que o Espirito
Santo pode operar transformação mesmo onde a palavra do evangelho não foi pregada pela voz hu
mana, mas em nenhum momento sugerem que haja salvação à parte de Jesus Cristo. Isso também não
significa que as religiões não cristãs sejam caminhos alternativos para um conhecimento de Deus que
leve à salvação.” Opus cit., p. 34.
30. Fernando Canale, Opus cit., p. 268, 275. “A revelação geral não tem que ver com os ensinamentos
divinos, mas com as ações de Deus.” p. 42.
118 / E xplo são Y
esconde o animal na caixa de brinquedo, enquanto conversa com os pais - sendo que
eles ignoram as pancadas vindas da tampa da caixa!31 Estam os diante de uma ação
intencional e não de um acontecimento fortuito.
2. A ira divina contra quem rejeitou a adoração verdadeira (v.21-23, 25): Iro
nicamente, o texto constata que o conhecimento sobre Deus não levou o homem a
reconhecê-lo com o Deus (v. 21). Por outro lado, o conhecimento egoísta do homem o
levou à insensatez (v.21-22). Finalmente, o conhecimento corrupto levou à idolatria,
(v. 23,25). O teólogo adventista Peter M. van Bemmelen assinala: “A sabedoria obtida
a partir das obras de Deus pelos não-iluminados com a luz do Espírito Santo leva-os
invariavelmente à idolatria, ao invés de à adoração do Deus verdadeiro”32
Com o exemplo, cito uma noticia correu o mundo em 2008: sacerdotes hindus e
budistas do Nepal escolheram a encarnação da deusa Taleju. Fizeram, então, uma
celebração popular à deusa. Ali, sob cânticos do cortejo, se contemplava a deusa forte
e poderosa que os protegeria, uma deusa de apenas três anos de idade! A menina Ma-
tani Shakya foi escolhida com o a personificação da divindade porque fora aprovada
nos testes - um deles consistia em passar a noite em um quarto escuro cercado de
cabeças de anim ais sacrificados, sem demonstrar medo.
O relato apenas comprova que o ser humano sente um impulso inato pela adoração.
Por isso, quando o Deus verdadeiro, objeto legítimo da adoração, não recebe nosso culto,
algo receberá! Olhando para um espectro mais amplo, há uma fomentação da espiritua
lidade na pós-modernidade, cuja busca tem sido incentivada; infelizmente, o clima atual
de relativismo esvazia as crenças (capítulo 6), oferecendo várias “opções de espiritualida
de”, mas dentro de um pacote de incerteza (capítulo 4). Como notou um livro recente:
A situação do Ocidente hoje é similar àquela da antiga Roma com seu con
texto pluralista. Vemos a diversidade da manifestação espiritual, mas uma ca
rência de direcionamento espiritual na cultura como um todo. Somos também
confrontados pelo secularismo crescente, apesar dele não ser desprovido de
conteúdo religioso [...] De fato, o secularismo anda de mãos dadas com um
novo paganismo. O problema não é que Deus esteja morto, mas que os deuses
são entidades renascidas.-3
35. S. Lewis Johnson, Jr., Paul and the Knowledge ofGod: Bibliotheca Sacra, (Dallas, TX: Dallas Theological
Seminary, 1972), Vol. 129, p. 62.
36. E pensar que somente em 1973 a Associação Psiquiátrica Americana excluiu a homossexualidade
da lista de desordens mentais! Dois anos depois, a Comissão de Serviços Civis dos USA revogou a
interdição que dera à contratação de homossexuais. Já em 1986, no caso Bowers versus Hardwick, a Su
prema Corte dos USA considerou legítima a criminalização de sexualidade pelo estado, decisão da qual
rescindiu em 2003. Se em 1996 o Congresso americano (em sua Defesa do Ato do casamento) definiu
casamento como união heterossexual, em 2000 a Suprema Corte de Vermont aprovou o Ato de União
Civil, oportunizando parcerias registradas para pessoas de mesmo sexo. No outono de 2003, a Suprema
Corte de Massachusetts possibilitou casamentos para pessoas de mesmo sexo.
Antes dessa evolução na legislação americana, a Dinamarca já havia, em nível nacional, legislado acerca
de parcerias registradas (1989). Contudo, foi na Holanda que surgiu a primeira jurisdição nacional con
cedendo o direito de homossexuais contraírem núpcias. Apesar de ser um país de tradição protestante
(como o próprio USA), a Holanda já experimentava um forte processo de secularização, que ocasionou
que os partidos confessionais (calvinistas e católicos) saíssem do governo. O projeto de lei holandês
apareceu em 1999, vigorando apenas em 2001. Therborn resume todas estas iniciativas internacionais
quando afirma: “O casamento não está desaparecendo. Está mudando.” Goran Therborn, Sexo e poder:
a fam ília no mundo, 1900 2000 (São Paulo, SP-. Contexto, 2006), p. 329-331.
120 / E x p l o s ã o Y
37. Veja especialmente “Ministro da França rejeita escândalo sobre sexo com 'jovens garotos”’, disponível em
<http://wwwl.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u635486.shtml>. Acesso: 5 de out. de 2012.
38. Para uma análise bíblica da questão da homossexualidade, consultar Ronald M Springett, O limite do
prazer: o que a Bíblia diz sobre identidade sexual (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2007).
39. Veja o artigo que a própria mãe da criança escreveu: Kathy Witerick, Baby Storms mother speaks on
gender, parenting and media> disponível em <http://www.vancouversun.com/(ife/Baby+Storm+mother
+speaks+gender+parenting+media/4857577/story.html>. Acesso: 10 de dez. 2012.
40. R. Laird Harris, Gleason L. Archer, Jr e Bruce K. Waltike, Dicionário Internacional de Teologia do
Antigo Testamento (São Paulo, SP: Vida Nova, 2005), 4* reimpressão, p. 1652-1653.
A lguém tem a lg u m a d ú v id a ? / 12 1
1. Deus aceita minhas dúvidas quando são fruto de minhas limitações hum a
nas e não manifestação de um a rebeldia cega. Não é pecado não entender algo ou
questionar em busca de respostas. A revelação divina deve ser escrutinada e subm e
tida ao m ais cuidadoso exame. Cabe a ressalva, porém, de que há coisas que Deus
revelou e outras que> por boas razões, Ele não revelou; é sábio nos conformar com
essas e nos preocupar com aquelas (Dt. 29:29);
2. Sou responsável por buscar as resposta disponíveis, por meio de toda re
velação feita por Deus. O Senhor nos deu meios para examinar Sua Palavra, tanto
m eios técnicos (ferramentas que nos ajudam a compreender o contexto histórico e
literário das Escrituras), como espirituais (os escritos de Ellen White a guia do Espíri
to Santo). A cada dia, tem os a oportunidade de empreender uma busca pela verdade
transform adora de Deus;
3. Deus me considera responsável igualmente pelo que tenho feito com a luz
recebida. Não basta tornar a Bíblia um cabedal de conhecimento. Sua função é maior
do que simplesmente nos instruir. A verdade que os céticos rejeitam é com prom e
tedora (talvez, por isso m esmo a rejeitem)! Quem fizer uma aliança com o Deus de
Israel, não será mais o m esm o - será gradativamente transform ado em todas as áreas
da vida (capítulo 18).
Minha oração é para que a dúvida seja um a bússola para achar o norte em Deus e
não se torne o próprio norte!
Vida e morte daqueles que
conhecem o Deus Verdadeiro
I - A morte do Justo: um comentarista diz que temos aqui “um a denúncia que
acaba em prom essa para o inocente”2 (cf.: Is 57:1-2). Num a sociedade influenciada
por paganism o, os homens de bem não são devidamente valorizados. Quando ícones
da mídia, com o Michael Jackson e Amy Winehouse morreram, durante semanas, re
portagens foram feitas para homenageá-los ou fazer sensacionalismo com os detalhes
da causa mortis. No começo de 2011, morreu Hans K. Larondelle (m ais precisamente
no dia 7 de Março). Entretanto, m esm o entre os adventistas, muitos sequer ouviram
falar desse erudito bíblico, que fez história dentro e fora do movimento.
Aqueles que vivem com uma perspectiva secular é que recebem ovações e baju
lações - ainda que depois de mortos. Assim, não chega a estranhar que a morte do
justo passe despercebida pelos homens (v. la) De fato, o profeta menciona em seu
livro o desprezo de Israel ao ser humano (Is 33:8).
Em contrapartida, o Senhor dá o diagnóstico: a morte do justo está relacionada
com a injustiça (v. lb). As traduções m odernas e os comentaristas se dividem com
respeito a essa relação; “ [...] sem que ninguém veja que sob os golpes da maldade o
justo é ceifado” (Is 57:1, Tradução Ecumênica Brasileira). Por esse prisma, o resultado
da ação maléfica de um povo rebelde seria a morte dos justos.3 Porém, outras versões
dizem que os justos são levados prematuramente à morte para não sofrerem o mal
(Almeida Revista e Atualizada; Nova Versão Internacional).4 Seja como for, a m alda
de, em algum sentido, era a causa da morte dos fiéis.
Todavia, isso não é razão para o desespero, porque a morte do justo antecipa sua
recompensa dada por Deus (v. 2). As escolhas que dignificam a Deus não se fazem
em vão. Aqueles que se colocam ao lado de Deus nesta vida podem até descansar no
sono do pó, entretanto, acordarão na luz da volta do Senhor Jesus.
1. Albert Camus, A queda (tradução de Valerie Rumjarek; Rio de Janeiro, RJ: Editora Record, s/d), p. 28.
2. L. Alonso Schökel e J.L. Sicre Diaz, Profetas P. Isaías-/er?mias (São Paulo, SP: Paulus, 1988), p. 362.
3. J. Ridderbos, Isaías: Introdução e comentário (São Paulo, SP: Sociedade Religiosa Edições Vida Nova,
2006), 2a impressão da 2“* edição, p. 464.
4. S. J. Schwantes, O profeta do Evangelho: comentário sobre o livro de Isaías (Engenheiro Coelho, SP:
Gráfica da União Central Brasileira, 1999), p. 148.
124 / E x p lo s ã o Y
N ossa incompletude fica mais evidente por meio do consumo.6 Vemos e temos
que ter. E tal com pulsão faz de algum as pessoas pouco mais do que crianças que
possuem seus próprios cartões de crédito, sem precisar chorar perante pais e mães
{o choro fica para depois, quando o limite da conta é ultrapassado ou se é necessário
recorrer a firm as áefactory para honrar os compromissos).
Benjamin Barber, retomando Weber, afirma que o capitalismo, como sistema,
demanda “atitudes culturais” e “comportamentos sociais de reforço” específicos, os
quais são incutidos na sociedade por intermédio da “moral da sociedade”, ou seja,
um sistema de valores.
Para ele, o impulso protestante inicial, necessário para o capitalismo nascente,
cedeu lugar a outro espírito, ao qual chama de etos infantilista.
O egoísmo faz parte desse novo etos, sendo super valorizado; afinal, o “egoísmo
já não se esconde na religião: tornou-se uma religião.”7 A alegria deu a vez a uma
com pulsão consum ista na atual fase do capitalismo.
Barber aponta a existência de um novo etos capitalista em um a época na qual
este sistema dem onstra sua fase m ais crítica. Para o sociólogo Zygmunt Bauman, o
capitalismo é um parasita que sempre destruirá o seu hospedeiro e a si próprio.8 O
consum ism o exacerbado, ainda que consista em um dos fatores que levou às últimas
crises financeiras, principalmente nos EUA e Europa, é incentivado pela mídia e se
acha incorporado na grade de valores da sociedade atual.
Entrementes, enquanto as pessoas vivem à base da “terapia das com pras”, valores
pessoais perdem sua importância. Qual é o antídoto contra a vida fragmentada, que
busca saciar-se com prazeres virtuais e artigos de grife? M esmo um ateu foi capaz de
perceber a idolatria representada pelo consum ism o e sua insuficiência:
E ainda seria preciso perceber com clareza que em que as diversas variantes
do consumismo não puderam fornecer sentido senão graças a uma autêntica
estrutura religiosa, hoje em dia revogada: implicava, mesmo em suas versões
materialistas mais bem secularizadas, a ideia dum “além” da vida presente.9
7. Benjamin R. Barber, Consumido: como o Mercado corrompe crianças, infantiliza adultos e engole ci
dadãos (Rio de Janeiro, RJ: Record, 2009), p. 51, 54, 60, 65.
8. Zygmunt Bauman, Vida a crédito: conversas com Citlali Roviroza-Madrazo (Rio de Janeiro, RJ: Zahar,
2010), p. 27. Cf.: Zygmunt Bauman, Capitalismo Parasitário (Rio de Janeiro, RJ: Zahar, 2010).
9. Luc Ferry, O homem Deust p. 19.
10. J. Ridderbos, Opus cit., p. 465.
126 / E x p l o s ã o Y
III - A proposta de Deus para a nossa vida: Faz diferença adorar corretamente
o Deus das Escrituras! No verso 14 “exorta-se com entusiasmo [Israel] ao regresso”.13
Um Ser de amor, Criador e Regente do Universo, apela às suas criaturas para se vol
tarem para Ele.
Devemos reconhecer a singularidade divina (v. 14-15). O pensador reformado
Francis SchaeíTer afirma que sempre houve deuses de dois tipos: infinitos (como no
Oriente) ou pessoais (como no Ocidente). O Deus da Bíblia é Singular, sendo o Único
que é Infinito-Pessoal,14 (o que corroboraria com o conceito de o maior Ser possível).15
O verso 15 é a demonstração precisado que Schaeffer conceituou.16Alguém observou:
do que mera ausência de conflito: o Senhor quer devolver a nós a vida abençoada e har
moniosa que havia antes de o pecado trazer a ruptura entre os homens e Deus (Is 59:2).
Verdade ou consequência
Para tom arm os sabiamente a nossa decisão, devemos ter diante de nós as conse
quências da rejeição a D eus (v. 20, 21). Os perversos não possuem paz, vivem agita
dos como o mar. Por mais que vivam e adquiram bens e possuam renome, não vivem
satisfeitos, porque sua natureza incompleta reclama por aquilo que pode trazer vida
a vida: a presença do Deus verdadeiro.
A afirmação, baseada naquilo que Isaías disse, pode soar grosseira ou muito gene
ralizada. Será que todos os que não creem são pessoas insatisfeitas consigo mesmas?
Para quem não se submete ao D eus bíblico, a vida não pode ser preenchida por ideais
humanitários ou realizações pessoais gratificantes? Não seria arrogante defender que
apenas os cristãos são pessoas completas, enquanto a maioria dos habitantes do pla
neta fica confinada à categoria de pessoas “pela metade” ?
Em prim eiro lugar, temos de estabelecer algum as definições. É óbvio que d es
frutar da com panhia da pessoa am ada é extremamente satisfatório. Por outro lado,
quando nos envolvemos em um a atividade desafiadora e estimulante, isso sem dú
vida gera um grau de satisfação. M as aqui, tratam os de satisfação transcendental,
algo de que se pode desfrutar somente pelo acesso à Verdade última (capítulo 4).
Nesse aspecto, alguém se satisfaz somente quando com eça a compreender o Deus
Verdadeiro, o Seu Criador. Não há substitutos - conforme vim os anteriormente, o
consum ism o, o atual candidato a substituto, está aquém de responder a essa neces
sidade maiúscula.
Notam os em outros momentos que a pretensão do cristianismo à verdade pode
ser avaliada logicamente, por meio de evidências disponíveis. Cada leitor é convida
do a fazer esse exame da fé cristã. O que fugiria à lógica elementar seria a aceitação
de várias verdades equivalentes, porque, um a vez que elas são contraditórias, não
poderiam estar corretas simultaneamente (capítulo 6).
A despeito de qual seja a verdade, precisam os de satisfação transcendente. Mesmo
o defensor do naturalism o filosófico, que admite não haver nada que transcenda a
realidade física, tem um posicionamento sobre o que está acima de nós. Todos têm
que responder ao anseio pela transcendência. E> entre as opções filosóficas existentes,
apenas um a delas é a verdadeira. Independente de tradições ou opiniões precisamos
recorrer às evidências. Ao longo deste livro, cremos ter exposto o suficiente para de
monstrar com o o cristianismo constitui a resposta adequada para as questões envol
vendo moralidade, verdade e conhecimento (capítulo 5).
Em segundo lugar, o acesso à satisfação transcendental não é direito exclusivo de
alguns. O conhecimento de Deus é acessível a todos - seja o conhecimento limitado,
vinculado à natureza (capítulo 9), ou aquele conhecimento m ais específico, do tipo
que está revelado na Bíblia (capítulo 11) ou que chega à consciência por intermédio
3o Espírito Santo. Deus não é o deus de alguns poucos escolhidos.
V id a e m orte daqueles que conhecem o D eus V e r d a d e ir o / 129
Com isso, a acusação de que cristãos seriam arrogantes não se justifica. Alguém
arrogante declara que é o único a estar certo. Os cristãos acreditam que a verdade
independe deles e que, em muitos aspectos, eles próprios têm de abandonar suas
opiniões próprias para se conformarem à Verdade externa e acima deles. Além disso,
a Verdade é um legado, um depósito confiado a eles, o qual deve ser repartido entre
todos os homens. Longe de serem os “donos da Verdade” os cristãos são os canais
tortuosos por onde a água límpida corre até desaguar nos corações sedentos. Tal con
cepção só poderia favorecer a humildade no sentido m ais alto!
Ao invés de fabricarmos respostas, deveríamos nos submeter ao Deus Único, por
que Ele é a resposta da qual precisamos. Por Ele, importa viver e morrer, na certeza
de que, em todo caso, nossa vida está guardada em Cristo (Cl 3:3).
O Deus amordaçado
da pós-modernidade
1. Ver Jude Lake, EUen White under fire: identifying the mistakes of her critics (Nampa, Idaho: Pacific
Press Association, 2010).
2. Muitas das respostas às críticas aos escritos da autora podem ser encontradas nos sites: (a) chttp://
www.ellenwhiteanswers.org/answers/plagiarism/>; (b) < http://centrowhite.org.br/perguntas/pergun-
tas-sobre-ellen-g-white/>. Acesso: 20 de maio de 2013.
O D eus am ord açado d a p ó s -m o d e r n id a d e / 131
Comunicação Impossível
Civilizações antigas produziram relatos mitológicos, descrevendo seus deuses e
narrando episódios de manifestações deles entre seres humanos. M esmo diante da
influência do ceticismo na Grécia antiga e em Roma, a filosofia continuou conviven
do com a religião pagã. Os mitos muitas vezes tinham um a função moral e pedagó
gica, não sendo produzidos para serem cridos literalmente.
Entretanto, os cristãos continuam expressando sua crença na Bíblia como livro
inspirado por Deus. Veja como o teólogo evangélico D. A. Carson expõe a questão da
natureza histórica das Escrituras:
6. “Para o homem moderno, a revelação será algo distinto de seu invólucro mitológico - ainda que aqui
há de se fazer importantes precisões - ou não será n ad a[...]” Andrés Torres-Queiruga, La revelación de
Dios em la realización dei hombre (Madrid; Ediciones Cristandad, 1987), p. 21. Já foi dito que o teólogo
“ Torres-Queiruga quer mostrar que aquela ingenuidade de pensar que os homens e as mulheres da
Bíblia viviam sua ética, culto e religiosidade como algo expressamente revelado não é mais concebível.’'
Alonço Gonçalves, “‘A letra mata! A contribuição de André Torres Queiruga para uma leitura não fun-
damentalisia da Bíblia, in: Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - ano VIII, n° 39, p. 21. Sem
dúvida, Torres-Queiruga não é exceção em nosso contexto pós-inoderno.
7. “A ortodoxia protestante segue muito de perto a interpretação tomista da razão. O protestantismo
liberal tem seguido em diferentes caminhos os resultados básicos do criticismo kantiano da razão.”
Fernando Canale, A Criticism of lheological Reason: Time and Timelessness as Primordial Presupposi-
tions (Berrien Springs, MI: Andrews Universitv Press, 1983), Andrews University Seminary Doctoral
Dissertation Series, vol. 10, p. 7.
8. Luc Ferry, O homem Deus, p. 12.
9. Idem, O anticonformista: uma autobiografia intelectual: entrevistas com Alexandra Laignel-Lavastine
(Rio de Janeiro, RJ: DIFEL, 2012), p. 310. Sendo assim, no que diz respeito à filosofia, “sua finalidade
última é mesmo a de enfrentar a questão da vida boa, que claramente é o polo do sentido, não da vida
(pois não creio que nossas vidas tenham um sentido), mas na vida (que não é a mesma coisa, quero dei
xar claro, pois alguns críticos não percebem), sem nada eludir do trágico da condição humana, ou seja,
integrando com lucidez nossa finitude como ausência de por que’ definitivo”, p. 313.
10. Jean-Luc Nancy, Dis-Enclosure: the deconstruction o f Christianity (USA: Fordham University Press,
2008), p. 3.
O D eus am ordaçado d a p ó s - m o d e r n i d a d e / 133
Dessa maneira, a Bíblia não é encarada como a verdade transmitida por Deus, por
intermédio de profetas, conforme a visão cristã tradicional. Na melhor das hipóteses,
temos um retorno à tradição cristã. “Para superar o pós-m odernism o, a tradição se
converteu em método. Cada teólogo trabalha dentro de sua tradição. A teologia se
converteu na explicação e reformulação das tradições recebidas.” 12 Isso implica na
orquestração de um contexto de isolamento, que possibilita a cada grupo a reivindi
cação de verdades comunitárias. Nada mais.
Assim, quando nós adventistas nos deparamos com as críticas aos escritos de Ellen
G. White, deixamos de compreender o cenário mais amplo. N ão é somente uma dou
trina da igreja que vem sendo atacada - até porque, críticas dessa natureza são antigas.
Todavia, na pós-m odernidade som os obrigados a rever nossa compreensão de r-i, não
apenas no caso dos escritos da autora, mas também pensando na barreira cultural que
se levantou contra a ideia de que seja possível que Deus Se revele. O cerne da própria
revelação está sendo atacado, enquanto nos concentramos em parte da questão.
Nesse sentido, os adventistas podem concordar com a seguinte declaração de uma
influente pensadora evangélica: “Com o nós interpretamos a Bíblia e defendemos a pa
lavra da verdade em nossa geração é um desafio para todo estudante sério da Palavra
de Deus.” 13Ao revermos essa questão diante dos desafios pós-modernos, estaremos ha
bilitados a construir um fundamento que nos permita compreender de forma ampla o
fenômeno r-i, incluindo a manifestação moderna desses fenômenos nos testemunhos.
11. José Carlos de Assis, A razão de Deus: ciência e fé, criacionismo e evolução, determinismo e liberdade
(Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 2012), p. 22.
12. Fernando canale, “Deconstrucción y teologia: uma propuesta metodológica", in: DavarLogos, vol. 1,
n° 1, p. 4.
13. Amy Orr-Ewing, “Postmodern challenges to the Bible”, in: Ravi Zacharias (ed.), Beyond opinion: living
the Faith we defend (Nashville, Tennessee: Thomas Kelson, 2007), p. 8. A autora ainda mensura os de
safios: “Então, a perspectiva pós-moderna rejeita a ideia do texto bíblico como verdade revelada, como
um livro para ser lido e entendido, o qual comunica a verdade diretamente para nós e prové-nos uma
cosmovisão a partir da qual interpretar a realidade.” p. 5.
134 / E x p l o s ã o Y
14. “Fernando Luís Canale é licenciado em Teologia, Filosofia e em Pedagogia pela Universidad Adventista
del Plata (Entre Rios, Argentina); e em Filosofia pela Universidad Católica de Santa Fe (Santa Fe, Argentina);
Mdiv e PhD na Andrews University (Michigan, Estados Unidos), onde atua como professor em discipli
nas como Metodologia Teológica, Teologia Fundamental, Teologia Bíblica e Sistemática, Pós-modernidade,
Hermenêutica Teológica e Filosófica. Algumas de suas publicações são: A criticism of theological reason;
Back to revelalion-inspiration; Understanding révélation-inspiration in a postmodern world; Creation, evolu
tion and theology; e The cognitive principle of Christian theology” Roberto Pereyra, "Teologia Cristã e conhe
cimento”, in: Kerygma, Engenheiro Coelho, SP, vol. 7, n° 2, p. 87.
15. Fernando Canale, O princípio cognitivo da teologia cristã, p. 31.
16. Idem, '‘Completando la teologia Adventista - parte V\ p. 56.
17. idem, “Deconstrucción y teologia”, p. 10.
18. Idem, “Completando la teologia Adventista - parte I ", p. 59.
19. Idem, “Deconstrucción y teologia”, p. 12.
20. Idem, O princípio cognitivo da teologia cristã, p. 43.
O Deus am ordaçado d a p ó s -m o d e r n id a d e / 135
nas páginas da Bíblia.26 Para tanto, Canale emprega a desconstrução derridiana como fer
ramenta.27 “Como metodologia crítica, a desconstrução nos ajuda a voltar ao fundamento
sobre o qual a tradição pretende construir suas posições teológicas. No caso da filosofia,
Heidegger usa a desconstrução para chegar às coisas mesmas, e construir a partir delas.”28
Entretanto, a desconstrução se limita à parte da tarefa, uma vez que “o empreendimento
de desconstrução é muito mais simples do que construir novos fundamentos intelectuais
depois de os antigos terem se mostrado defeituosos.”29 Canale então se apoia na revolução
da hermenêutica,30 empregando alguns conceitos do filósofo Hans Gadamer.31
Isso poderia implicar em limitação para a interpretação, uma vez que não haveria
neutralidade no intérprete, condicionado por sua própria historicidade. Entretanto,
o “nascimento da consciência histórica assinala, em grande parte, o nascimento fi
losófico da hermenêutica contem porânea”33 Afinal, diante da limitação imposta por
Um resumo adequado de tudo o que vimos até aqui se acha na seguinte declaração:
39. Idem, “Sola Scriptura y la hermenêutica: jSon la teologia evangélica y la adventista compatibles?”, in:
DavarLogos>vol. 10, n" 1, p. 108.
40. Idem„ '‘Deconstrucción y teologia", p. 21.
41. “Dado que os profetas bíblicos ensinaram e viveram pelo princípio sola Scriptura, não deveríamos
considerá-lo uma categoria moderna imposta sobre a escritura, mas um princípio cognitivo dado por
Deus aos escritores bíblicos. Os princípios tota e prima Scriptura também são reconhecidos pela erudi
ção adventista.” Idem, “Sola Scriptura y la hermenêutica”, p. 111.
42. Idem, O principio cognitivo da teologia cristã, p. 28, 29.
43. Idem, “Sola Scriptura y la hermenêutica”, p. 115-118.
44. Idem, “Deconstrucción y teologia”, p. 17.
O Deus am ordaçado d a p ó s -m o d e r n i d a d e /1 3 9
das Escrituras, não somente devemos dar ouvidos ao que os autores bíblicos
dizem sobre r-i, mas também tomar nota das pressuposições hermenêuticas
que eles usaram, em vez de adotá-las da filosofia e ciências humanas. Funda
mentalmente, pressupomos um Deus que age pessoalmente dentro do fluxo
da história humana.45
Precisamos nos deter no modelo proposto por Canale, a fim de avaliá-lo. Com esse
objetivo, acompanharemos a análise do autor de outros modelos de r-i, o que evidenciará
o contraste entre o novo modelo, intitulado histórico-cognitivo e os seus predecessores.
Revelação, em seu sentido técnico e restrito, descreve o modo pelo qual Deus
colocou os conteúdos das Escrituras na mente dos escritores bíblicos. Inspira
ção, em seu sentido técnico e restrito, se refere ao modo como Deus transportou
esses conteúdos da mente dos autores para a forma escrita. A revelação envolve
um processo cognitivo, enquanto a inspiração, um processo linguistico.46
O modelo clássico: sendo D eus um Ser eterno-atemporal, ele não pode se com u
nicar com a mente de seres humanos finitos. A única parte do homem que permitiria
essa comunicação é a alma imortal (conceito grego). Deus tem de elevar o intelecto
humano para se comunicar com ele. Depois de fazê-lo, Deus fixa essas verdades na
mente do escritor. No processo de inspiração (comunicação escrita), os escritores
bíblicos foram apenas instrumentos passivos usados por Deus, quem de fato escolheu
as palavras e o gênero literário de suas mensagens. A Bíblia passa a ser um livro iner-
rante, cuja inspiração é verbal e plenária (similar a um ditado divino). Entretanto,
deve ter seus aspectos culturais minimizados;
O modelo moderno: Na era moderna, a revolução kantiana influenciou o fazer te
ológico. Kant “argumenta que a razão é capaz de alcançar apenas o invólucro temporal
45. Idem, “Revelação einspiração”, p. 62. “Para Gadamer [...] nahermêutica teológica, todapré-compreensão
não pode deixar de ser apenas teológica.” Graziano Ripanti, “Harn Georg Gadamer”, p. 380.
46. Fernando Canale, “Revelação e inspiração” p. 48.
140 / E x p l o sã o Y
Após pesar os m odelos existentes, Canale passa a construir uma nova propos
ta. Já analisam os na seção anterior os pressupostos hermenêuticos prom ovidos pelo
autor. Sua proposta parte das “coisas m esm as”48 (no caso da hermenêutica cristã, do
texto bíblico). Em sua reflexão teológica sobre o problema de como ocorreu a autoria
divino-humana das Escrituras» o autor resolve analisar os fatos: a doutrina e o fenô
meno das Escrituras. Por doutrina, entende-se o que a Bíblia diz sobre si mesma e
por fenômeno das Escrituras, entende-se às características literárias e ao conteúdo
apresentado na Bíblia. Para estudar esses fatos, Fernando Canale não faz uso das
ciências exatas; ao contrário, emprega a metodologia fenomenológica,49 apropriada
para descrever os fatos por si mesmos, respeitando sua natureza.50
O modelo histórico-cognitivo é construído sobre três pressupostos: (1) Deus age
diretamente na história humana, (2) a natureza humana é histórica, não possuindo
componentes atemporais e (3) o fenômeno r-i ocorrem no contexto histórico, con
texto no qual Deus age.
Aliás dentro desse modelo, o envolvimento divino é o fundamento da confia
bilidade da Bíblia. O fato de D eus agir na história “perm itiu que Ele encarnasse
47. Idem, O princípio cognitivo da teologia cristã, p. 90, 116, 117, 120, 124, 136, 144, 145, 151, 158, 172-
176, 192.
48. “A Sagrada Escritura é a palavra de Deus, e isso significa que a escritura mantém uma absoluta pre
eminência em relação à doutrina daqueles que a interpretam.” Hans Gadamer, apud. Graziano Ripanti,
*'Hans Georg Gadamer (1900-)”, p. 380.
49. Fernando Canale, O princípio cognitivo da teologia cristã, p. 51, 50, 53.
50. “Melhor dito, a oposição de Husserl ao naturalismo equivale à afirmação de que existem verdades
e princípios que as ciências naturais pressupõem, mas que elas próprias nào podem explicar; nem toda
verdade é uma verdade científica.” David R. Cerbone, Fenomenologia (Petrópolis, RJ: Vozes, 2012), p. 29.
O D eus a m o r d a ça d o da p ó s -m o d e r n id a d e / 141
Um a análise do que a Bíblia diz aponta que na revelação ocorre tanto um encontro
entre Deus e o profeta, quanto a comunicação de conhecimento proposicional.52 O
profeta, porém, deixa de ser mero copista do ditado divino, como no modelo clás
sico/evangélico, para ter um papel ativo. Se isso deixa a descoberto as “limitações e
imperfeições” próprias da humanidade, isso acaba contribuindo “para aumentar o
peso de evidências quanto a sua historicidade”. Em contrapartida, essa abordagem
racional da Escritura não pode ser contraposta pelas ciências - em outras palavras, o
intérprete tem de escolher partir do pressuposto se é possível haver um Deus que Se
comunica, conforme apresentado nas Escrituras, ou se o relato delas é falso e Deus
51. Fernando Canale, O princípio cognitivo da teologia cristã, p. 338-340,348-350, 310-319, 352-353, 388.
52. Raoul Dederen, “The Revelational-Inspiration phenomenon according to the Bible writers", p. 17.
142 / E x p l o s ã o Y
não existe. M as qualquer um a das prem issas não é comprovada empiricamente, tra
tando-se de pressuposições que alguém adote ao ler o texto.54
>3, Fernando Canale, O princípio cognitivo da teologia crista, p. 398, 376. Claro que é racional crer
;m Deus por uma série de evidências na história, arqueologia e até mesmo o subsídio fornecido pelo
ronjunto de argumentos conhecidos como argumentos cosmológicos. Entretanto, nenhuma dessas evi-
iências é conclusiva a ponto de constituir uma prova irrefutável de que Deus exista ou Se comunique.
>ara essa convicção, temos de abrir a mente ao Espírito Santo e deixar que Ele a ilumine para aceitar o
jue diz a Palavra. As demais evidências são úteis no sentido de desobstruir a mente para a aceitação do
rabalho do Espírito.
■4. George R. Knight, Ellen White: how to understand and apply her wntings {Hagerstown, MD: Review
nd Herald Publishing Association, 1997), p. 15, 18.
5. Fernando Canale, “Revelação e Inspiração” p. 55. Ele acrescenta na sequência: “Isto, porém, não
esencorajou alguns adventistas, no passado e no presente, de adotar tais opiniões.’’
6. “O que sabemos sobre a maneira como os escritores bíblicos foram inspirados nos é útil no estudo
os escritos de Ellen White, e o que sabemos sobre a maneira como Deus falou por meio de Ellen White
ode ajudar-nos a entender como Deus falou por meio dos profetas em tempos antigos.” Herbert E.
Jouglass, Mensageira do Senhor: o ministério profético de Ellen G. White (Tatui, SP: Casa publicadora
rasileira, 2003), 3a ed., p. 373.
7. George R. Knight, EUen White, p. 20.
O D eus am ord açado d a p ó s -m o d e r n i d a d e / 143
pensam entos dos escritores sejam inspirados, não as suas palavras,58 o que leva
à conclusão de que as escrituras e os testem unhos contenham discrepâncias em
questões m enores (como, por exemplo, dados históricos) e, desse m odo, “ infa
libilidade é coisa que não está em julgam ento’ nas palavras do profeta, seja na
Bíblia, seja nos escritos de Ellen White.”5y Claro que desse m odo alguém poderia
questionar: com o poderíam os ter certeza de que determ inado conteúdo bíblico é
fruto da inspiração ou mera tentativa hum ana de representar a revelação, a qual
resultou em algo im perfeito?
No m odelo histórico-cognitivo o escopo da inspiração não está no texto (modelos
clássico/evangélico) ou na comunidade a que pertence o profeta (modelo moderno),
mas, sim, no profeta, com quem Deus trabalha. Os escritos são inspirados porque o
profeta foi inspirado, independente de ter recorrido ou não a outros autores, no es
forço de expressar o que Deus comunicou. “As fontes escritas da revelação fornecem
os conteúdos e padrões interpretativos. As fontes literárias não expressam os pensa
mentos de Deus, mas um escritor pode recorrer a escritos seculares de sua época em
seu esforço de expressar os pensamentos de D eu s”60
58. Canale afirma que “trabalhando a partir da declaração clássica de Ellen G. White sobre inspiração
do pensamento, alguns eruditos adventistas têm concluído que a inspiração do pensamento opera sobre
o processo de pensamento dos escritores bíblicos, mas não consegue alcançar suas palavras”. Fernando
Canale, "Revelação e Inspiração’]p. 56.
59. Herbert E. Douglass, Mensageira do Senhor, p. 376. “Os profetas não se tornam necessariamente
autoridades’ em dados históricos. O valor inspirativo deles reside nas mensagens que comunicam, não
em alguns pormenores incidentais ao conceito geral. [... ]
“Os defensores da inspiração do pensamento concentram-se no conceito geral: a mensagem. Consi-
dera-se que as possíveis discrepâncias em pormenores históricos sejam acidentais à mensagem e de
importância secundária.” Idem, p. 387, 388.
60. Fernando Canale, O princípio cognitivo da teologia cristã, p. 345. Como exemplo de apropriação,
Canale cita (p. 345, 346) o uso joanino do termo iogos, usado na filosofia grega e, posteriormente,
pelos gnósticos.
144 / E x p l o s ã o Y
Possivelmente, existiriam tantas motivações quanto há críticas. Para facilitar nossa refle-
xão, condensamos e categorizamos os fatores que levam à descrença e apresentamos algumas
ponderações. Cremos que mesmo os não adventistas, quer simpatizantes com o movimento
ou seus ardorosos opositores, poderão se beneficiar dessas reflexões, uma vez que se encon
tram em posição distante o suficiente para avaliar os argumentos e tirar suas conclusões.
Benefício maior terão os adventistas que, caso concordem com a posição oficial da
denominação, poderão (1) reconhecer as dificuldades de seus companheiros de jornada,
(2) analisar os riscos que sua fé corre e (3) encontrar argumentos para continuar crendo;
caso se sintam inclinados a descrer da autoridade profética de Ellen White, terão oportu
nidade de (1) reconhecer suas dúvidas, (2) refletir sobre suas motivações para descrer e,
(3) honestamente, tomar um posicionamento claro, em face da natureza do adventismo.
Feitas as considerações preliminares, passo à apresentação dos motivos mais fre
quentes para a rejeição dos escritos de EGW entre os adventistas:
61. Lamentavelmente, alguns consideram o texto de modo relapso, interpretando que o cristão deveria
experimentar de tudo - e em todos os aspectos e áreas - e “reter o que é bom”. Entretanto, o contexto
limita o exame a manifestações proféticas, que devem ser avaliadas em sua conformidade total às demais
escrituras. Cf.: Is 8:19, 20, ljo 4:1.
O D eus am ord açado d a p ó s -m o d e r n i d a d e / 145
63. Semelhante à senhora antitrinitariana que encontrei, a qual acusava os tradutores da Bíblia de tor
cerem o texto de Mt 28:18-20 (ainda que não haja variantes textuais do texto c todos os manuscritos
suportem a tradução encontrada em nossas versões bíblicas atuais).
O D eus am ordaçado d a p ó s -m o d e r n id a d e / 147
cristã. Sei que se trata de um a decisão particular. Porém há um efeito dominó: quem
rejeita os testemunhos, logo passará a descrer de outros aspectos da fé adventista (o
juizo pré-advento se iniciando em 1844, o sábado, a reforma de saúde, etc.). Até que
ponto seria possível ser adventista sem crer nessas coisas?
Depender da pessoa de Ellen G. White é essencialmente diferente de confiar em
seus escritos. Sendo o modus operandi da Inspiração o mesmo, seria ilógico acusar
qualquer cristão de depender de Mateus, Marcos, Lucas, Pedro, João ou Paulo, apenas
porque reconhecem como inspirados os escritos desses autores bíblicos. Não que eles
com o pessoas fossem infalíveis. Nem seus escritos, nem o de seus pares (como o livro
de Atos) escondem os erros dos apóstolos. O fato de eles serem humanos e meros p e
cadores, terem escrito livros canônicos não depõem contra o que escreveram. Deus
falou por meio deles (Hb 1:1).
O m esm o diz respeito aos testemunhos de Ellen White: ao reconhecer sua inspi
ração, não sancionam os todo comportamento da pessoa de sua autora, como se ela
fosse perfeita - coisa que jam ais pretendeu ser. Se Deus falou por intermédio dela,
com o fez com Isaías, Elias, João Batista, as filhas de Felipe ou Tiago, temos de estudar
Sua mensagem e aplicá-la em nossa vida. Trata-se de questão de obediência a Deus,
autor do fenômeno r-i.
Obviamente, separam os a vida do profeta de sua mensagem por questões didá
ticas. É verdade que Deus pode usar até pessoas que não são completamente fiéis
para transmitir algo específico (Nm 21-24). Entrementes, Ele procura pessoas que
tenham um relacionamento com Ele. Assim, os profetas do passado foram reconhe
cidos com o homens santos, servos de Deus. Não eram perfeitos, m as íntegros em sua
devoção e serviço.
É bem verdade que existe outro extremo, o qual se vale de uma leitura fanática e
unilateral de Ellen White, torcendo o sentido de seus escritos (capítulo 1). Nada de
novo: afinal, leituras distorcidas da própria Bíblia são encontradas até no período
apostólico (2Pe 3:15, 16)! M as até isso parece cada vez m ais raro: tornou-se m ais fre
quente quem rejeite ou limite os escritos da autora. O equilíbrio na compreensão do
material revelado (tanto das Escrituras, quanto dos testemunhos) ainda é um desafio
para o adventismo no século XXI.
A
CULTURA:
um desafio movediço
De certo modo, o que avaliamos até esse ponto se insere no debate da relação en
tre cultura e evangelho. O próprio escopo do presente livro nos leva a refletir sobre as
manifestações da fé em face do surgimento das novas gerações, m arcadas peio adven
to da cultura digital. Assim, consideram os inicialmente como escopo maior aspectos
da pós-m odernidade (capítulos 3-6) e como eles afetam a essência do cristianismo.
O pensamento pós-m oderno desafia o conceito monolítico e totalizante de reve-
lação-inspiração (capítulos 9 e l l ) , 1 polem iza a respeito de seu conteúdo (capítulos
7) e gera versões bastante m odificadas da fé bíblica (capítulo 8). Apontamos ainda a
necessidade de o adventismo contrapor a cultura estabelecida por meio do retorno à
Bíblia: é preciso resgatar o que ela postula sobre Deus (capítulo 10), Aquele que d es
pertou um povo com uma mensagem especial para esse tempo (capítulo 2).
Depois de todos esses enfoques, é imprescindível considerarmos de forma mais
detida os desafios culturais a partir da revolução digital. Ao contrário das perspecti
vas sociológicas seculares,2 admitimos que a luta com a qual os cristãos se deparam
(e, particularmente, os adventistas) tem, em última instância, raízes espirituais (Ef
6:12). Esse confronto espiritual se evidencia nas mais diversas expressões culturais.
Tal pano de fundo serve como importante alerta: a maneira com o interagimos
com a cultura definirá nossa atuação como cristãos - a começar pela interpretação
que faremos do que significa ser cristão e também pela leitura da época na qual esta
m os inseridos. Na prática, am bos os aspectos se fundem indissoluvelmente.
Esse capítulo discutirá brevemente o conceito de cultura, tratando a seguir da cul
tura digital, que permeia a mentalidade e hábitos das gerações emergentes. Veremos
como essa cultura digital oferece desafios ao cristianismo tradicional e, especialm en
te ao adventismo. Ainda são feitas considerações sobre a relação entre fé e cultura,
1. “Na era moderna, a grande questão religiosa era: ‘há um Deus?’ Porém, na condição pós-moderna, a
questão do momento é: qual Deus?'” Kleber O. Gonçalves, “1he Challenge o f the postmodern condition to
adventist mission in South America", in: Journal of Adventist mission studies, vol. 5, n° 1, p. 10.
2. Para uma perspectiva adventista da sociologia, ver Lionel Matthews, Sociology: A Seventh-day Adventist
Approach for Students and Teachers (Berrien Springs, Michigan: Andrews University Press, 2006).
C ultura : um d e sa fio m o v ed iç o / 149
Em busca de definições
Falar em cultura é desafiador, tendo em vista a amplitude do termo.3 De um m odo
geral, a cultura inclui os costumes, a língua, as tradições, a história e o m odo de viver
de um povo.4 A cultura pode ser comparada a um tapete, com posto de fios diversi
ficados, que se unem, formando uma peça única com sua estampa característica.5
Outra com paração útil: se pensarm os na cultura como um rio, sua profundidade
representaria o que chamamos de cosm ovisão (capítulo 3), seu “conjunto cultural
mente estruturado de pressuposições”, que orienta o que está refletido na superfície
do rio - o comportamento tanto a nível individual, quanto coletivo.6
Outra forma complementar de entender a cultura é compará-la a um corpo vivo,
em constante mutação. C ada período de pensamento histórico é marcado por um
zeigeist ou epistémé, para usar o termo anacrônico de Foucault. Revoluções sociais,
guerras entre países e catástrofes naturais, por exemplo, modificam padrões culturais
e influenciam até m esmo no nível profundo, ou seja, na cosmovisão de um povo (ca
pítulo 2). A revolução secular, a partir do humanismo, exemplifica bem esse tipo de
m odificação.7 Além de outros exemplos, mencionamos ainda o advento da pós-m o
dernidade, que alterou a constituição da identidade, agora em constante construção/
3. “A raiz latina da palavra cultura’ é colere, o que pode significar qualquer coisa, desde cultivar e habitar a
adorar e proteger. Seu significado de ‘habitar’ evoluiu do latim colonus para o contemporâneo colonialismo’,
de modo que títulos como Cultura e colonialismo são, de novo, um tanto tautológicos. Mas cole’e também
desemboca, via o latim cultus, no termo religioso culto’, assim como a própria ideia de cultura vem na Idade
Moderna a colocar-se no lugar de um sentido desvanecente de divindade e transcendência. Verdades cultu
rais - trate-se da arte elevada ou das tradições de um povo - são algumas vezes verdades sagradas, a serem
protegidas e reverenciadas.” Terry Eagleton, A ideia de cultura (São Paulo, SP: Editora Unesp, 2011), p. 10.
4. Essa definição mais ampla de cultura é desafiada pelo escritor Mário Vargas Llosa, que credita a
concepção aos sociólogos, os quais, ignorando a divisão anteriormente aceita entre alta e baixa cultura,
acabaram relativizando o termo cultura, como se toda manifestação tivesse o mesmo valor. Ver Mário
Vargas Llosa, “Breve discurso sobre a cultura”, in: Cassiano Elek Machado (org.), Pensar a cultura (Porto
Alegre, RS: Arquipélago editorial, 2013), p. 11-ss.
5. David). Hesselgrave, A comunicação transcultural do Evangelho (São Paulo, SP: Vida Nova, 1995), p. 217.
6. Charles H. Kraft, "Cultura, cosmovisão e contextualização” in: Ralph D. Winter, Steven C. Hawthorne e Kevin D.
Bradford (ed.), Perspectivas no movimento cristão mundial (São Paulo, SP: Vida Nova, 2009), p. 393.
7. “Esta ‘revolução secular’ afetou todas as partes da cultura americana; não apenas o ensino superior, mas
também as escolas públicas, a política, a psicologia e a mídia. Em cada uma destas áreas, o cristianismo foi
privatizado como sectário’ enquanto as filosofias seculares, como o materialismo e o naturalismo, foram
promovidas como objetivos’ e neutros’, colocando-os como as únicas perspectivas satisfatórias para a
esfera pública.” Nancy Pearcey, Verdade Absoluta: libertando o cristianismo de seu cativeiro cultural (Rio
de Janeiro, RJ: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 2006), p. 111.
8. “A identidade pós-m oderna, então, é constituída teatralmente pela representação de papéis e pela
construção de imagens. Enquanto o lugar da identidade moderna girava em torno da profissão e
da função na esfera pública (ou familiar), a identidade pós-m oderna gira em torno do lazer e está
centrada na aparência, na imagem e no consumo. A identidade moderna era um negócio sério que
150 / E x plo sã o Y
implicava escolhas fundamentais capazes de decidir quem som os (profissão, família, identificações
políticas, etc.), enquanto a identidade pós-m oderna é uma função do lazer e baseia-se no jogo, no
ludíbrio, para a produção de uma im agem ” Douglas Kellner, A cultura da mídia - estudos culturais:
identidade e política entre o moderno e o pós-moderno (Bauru, SP: EDUSC, 2001), p. 3 U .
9. Carlos Mendoza-Álvarez, O Deus escondido da pós-modernidade, p. 147,148.
10. Francis Pasani e Dominique Piotet, Como a web transforma o mundo (São Paulo, SP: Editora Senac
São Paulo, 2010), p. 34.
11. Rovilson Robbi Britto, 'A sociabilidade contemporânea e o ciberespaço”, in: Ciberteologia - Revista de
Teologia & Cultura - Ano VI, n° 28, p. 73.
12. Antonio Spadano, Ciberteologia: pensar o cristianismo nos tempos da rede (São Paulo, SP: Paulus,
2012), p. 16-17.
13. Zygmunt Bauman, Ensaios sobre o conceito de cultura, p. 39.
14. Rovilson Robbi Britto, Opus cit., p. 74.
15. Nizia Villaça, Mixologias: comunicação e o consumo da cultura (São Paulo, SP: Estação das Letras e
Cores, 2010), p. 23.
16. “Por convergência, refiro-me ao fluxo de conteúdos através de múltiplas plataformas de mídias à cooperação
entre múltiplos mercados midiáticos e ao comportamento migratório de públicos dos meios de comunicação,
que vão a quase qualquer parte em busca de experiências de entretenimento que desejarem. Convergência é uma
palavra que consegue definir transformações tecnológicas, mercadológicas, culturais e sociais, dependendo de
quem está falando e de que lugar está falando.” Henry [enkins, Cultura da convergência (São Pado, SP: Aleph,
2009), 2a ed., p. 29.
Sobre a cultura participativa na web, o mesmo autor conclui que em “vez de falar sobre produtores e consumido
res de mídia como ocupantes de papéis separados, podemos agora considerá-los como participantes interagindo
le acordo com um novo conjunto de regras, que nenhum de nós entende por completo!’ Idem, p. 30.
C ultura : um d e sa fio m o v ed iç o / 151
17. Os quadrinhos foram originalmente produzidos entre 1981 e 1989, lançados primeiro na Inglaterra
e depois pela companhia norte-americana DC comics.
18. V de Vingança, diretor: lames McTeigue, Warner Bros, EUA, 2006.
19. Algumas informações foram extraídas de Julian Assange, Jacob Appelbaum, Andy Müller-Maguhn
e Jérémie Zinnmermann, Cypherpunks: liberdade e o futuro da internet (São Paulo, SP: Boitempo, 2013).
20. Francis Pasani e Dominique Piotet, Opus cit., p. 33.
21. Rovilson Robbi Britto, Opus cit., p. 74.
22. Andrew Keen, Vertigem digital: por que as redes sociais estão nos dividindo, diminuindo e desorientan
do (Rio de Janeiro, RJ: Zahar, 2012), p. 10.
23. Antonio Spadano, Opus cit., p. 14.
24. Nicholas Carr, A geração superficial: o que a internet está fazendo com os nossos cérebros (Rio de
Janeiro, RJ: AGIR, 2011), p. 23.
25. Renato Groger, “Tempo e espaço na civilização dromoimagética”, in: Kerigma, vol. 20, n" 3, p. 87.
152 / E xplo são Y
tos, cosm ologias” e “conjunto de artefatos” que unificam um a cultura, os quais cor
rem o risco de serem dissolvidos no processo de evangelização.31 O ponto de equilí
brio é estabelecer a transform ação com base nos princípios bíblicos, não em relação
à cultura do m issionário32 - o que vemos ocorrer em Atos 15.
De certo m odo, o Ocidente cristão vem se tornando um imenso campo m issio
nário, por conta de complexas mudanças culturais que diluem suas bases cristãs.33
Dessa forma, cabe a pergunta: como os cristãos têm interagido com a cultura digital
do século XXI?
31. Ronaldo de Almeida, “Tradução e mediação: missões transculturais entre grupos indígenas", in: Paula
Montero (org.), Deus na aldeia: missionários, índios e mediação cultural (São Paulo, SP: Editora Globo,
2006), p. 279.
32. Robinson Cavalcanti, “Missão e cultura”, in: Ralph D. Winter, Steven C. Hawthorne e Kevin D. Bra-
dford (ed.), Perspectivas no movimento cristão mundial (São Paulo, SP: Vida Nova, 2009), p. 496.
33. Ressalto aqui que, embora o cristianismo tenha influenciado o Ocidente, seria injusto dizer que em
algum momento da História a influência cristã tenha sido a única a incidir sobre a cultura, sem qualquer
tipo de distorção. O cristianismo em sua pureza jamais foi vivido pelo ocidente como uin todo e nem
deveríamos esperar que assim fosse.
34. Kelton Crobb, The Blackwell guide to theology and popular culture (Gasington Road, Oxford: Bla-
ckwel Publishy, 2005), p. 72.
35. Charles H. Kraft, Opus Cit., p. 395.
36. Guilherme Vilela de Carvalho, "O senhorio de Cristo e a missão da igreja na cultura”, in: Leonardo
Ramos, Mareei Camargo e Rodolfo Amorim (org.), Fé cristã e cultura contemporânea: cosmovisão cristã,
igreja local e transformação integral (Viçosa, MG: Ultimato, 2009), p. 71.
154 / E x p l o s ã o Y
rem é o tipo de interação com a cultura que se caracterize como sincretismo. O sin-
cretismo ocorre quando uma cosm ovisão se funde com outra(s), ou tom a elementos
emprestados dela(s). Trata-se do tipo de perigo bastante recorrente em tempos pós-
-modernos (capítulo 8):
37. Cácio Silva, “Evangelização de grupos sincretistas”, in: Ralph D. Winter, Steven C. Hawthorne e Kevin D.
Bradford (ed.), Perspectivas no movimento cristão mundial (São Paulo, SP: Vida Nova, 2009), p. 601.
38. D. A. Carson, Christ & Culture revisited (Grand Rapids, MI: William B. Eerdmans Publishing C om
pany, 2012) - paperback edition, p. 49.
C ultura : um d e sa fio m o v ed iç o / 155
“Agora que vocês purificaram as suas vidas pela obediência à verdade, visando ao
amor fraternal e sincero, amem sinceramente uns aos outros e de todo o coração. Pois
vocês foram regenerados, não de uma semente perecível, m as imperecível, por meio
da palavra de Deus, viva e permanente” (IPe 1:22, 23). Os cristãos são conclamados a
viverem com o “geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo exclusivo de Deus,
para anunciar as grandezas daquele que os chamou das trevas para a Sua maravilhosa
luz” (IPe 2:9).
Os cristãos passam por um processo similar ao da encarnação de Jesus, uma vez
que “encarnam” o evangelho em suas vidas. Para que isso seja significativo para outras
pessoas, é necessário que a transm issão do evangelho seja contextualizada. Contex-
tualização se trata da “tradução” do evangelho em term os apropriados à cultura dos
ouvintes. O Novo Testamento relata como os primeiros discípulos de Jesus lidaram
com os desafios da contextualização3y - veja em especial Atos 17:16-34, ocasião em
que Paulo profere um serm ão tratando de conceitos como Deus verdadeiro, Messias,
ressurreição e julgam ento universal sem recorrer a um texto bíblico sequer!
De que m odo esses preceitos se aplicam àqueles que se encontram inseridos na
cultura digital do século XXI? Nessa nova conjuntura,
[...] o desafio não deve ser de que forma “usar” bem a rede, como geral
mente se acredita, mas como “viver” bem nos tempos da rede. Nesse sentido, a
rede não é um novo “meio1’ de evangelização, mas, antes de tudo, um contexto
no qual a fé é chamada a se exprimir não por uma mera vontade de presença,
mas por uma conaturalidade do cristianismo com a vida dos homens.4IJ
43. Roberto Pereyra, Exegese da Homilia aos Hebreus: o cordeiro sacrificado, assentado no trono (Enge
nheiro Coelho, SP: edição do autor, 2012) - apostila para a convalidação de teologia, UNASP, Janeiro
de 2012, p. 4.
44. Bernard Alpert e Fran Alpert, Archeology and the biblical record (Lanham, Maryland: Hamilton
Books, 2012), p. 14.
45. David Down, The archeology book, (Green Forest, AR: Master Books, 2010), p. 36, 38-40.
C ultura : u m d e sa fio m o v ed iç o / 157
Deus retirou Abraão de sua influência. Era o chamado a uma experiência libertadora,
na qual a fé se desenvolveria livre de contaminação. Em que isso implica? Obviamente, o
que foi exigido do patriarca não é exatamente igual ao que se exige de nós - nem todos
devemos necessariamente abrir mão de nossa moradia. Porém, a fé bíblica reavalia e jul
ga a cultura, descartando aspectos que lhe sejam contrários. A fé se põe acima da cultura.
“A relação entre fé e cultura é também complexa para que a fé se mantenha em
oposição a alguns elementos da cultura e esteja separada de outros. Em alguns aspec
tos, fé é idêntica aos elementos da cultura”, ou simplesmente existe compatibilidade
entre eles. Em outros casos, o antagonismo é acirrado. O que define a aceitação ou
rejeição de aspectos culturais é “o centro da própria fé, por sua relação com Cristo, a
divina Palavra”, o qual merece nossa obediência integral.46
Som os cham ados a abrir mão de nossa cultura naqueles aspectos em que ela se
contrapõe aos claros ensinos bíblicos. Agindo assim, submetemos a um processo de
profunda transform ação cultural, que nos leva a nos identificarmos com o Reino
que Deus prepara aos fiéis. “Os que assim falam m ostram que estão buscando uma
pátria. [...] Por essa razão, Deus não se envergonha de ser chamado o Deus deles, e
lhes preparou uma cidade.” (Hb 11:14, 16).
O segundo momento da vida de Abraão relatado aparece em Hebreus 11:11 e 12. O
Senhor lhe prometera ser pai de uma grande nação, isso a despeito da esterilidade de sua
esposa Sara (Sarai). A promessa feita a Abraão sobre os descendentes parece frágil dian
te das “circunstâncias que militam contra o cumprimento dessas promessas.”47 Embora
Abraão e Sara tentassem cuidar da esterilidade do modo deles (Gn 16:1-4), somente a
atuação divina o pode. Note que a tentação de atuar independente da realidade sobre
natural ainda prevalece entre os seguidores de Jesus no mundo contemporâneo. Espe
cialmente quando a revolução digital trouxe avanços impensáveis há algumas gerações.
Porém, essa desconfiança do sobrenatural não nasceu com o advento do século
XXI. Em geral, a cultura ocidental se caracteriza como sensorial, totalmente voltada
para os 5 sentidos.18 Em contrapartida, a fé cristã acrescenta a dimensão sobrenatural.
Ela se apega à compreensão de que há um Deus que atua no mundo físico (capítulo
10). Essa convicção acerca do sobrenatural é a própria essência da fé, “a certeza d a
quilo que esperam os e a prova das coisas que não vem os” (Hb 11:1). A fé surge como
resultado da atuação da revelação (capítulo 11) e do Espírito Santo.49
A última menção a Abraão aparece nos versos 17 a 19. A maior exigência feita ao
idoso patriarca exigia o sacrifício de seu herdeiro Isaque, o filho que nascera como
cumprimento da prom essa divina, e sob circunstâncias sobrenaturais. Justamente
quanto a esse ponto, Hebreus 11 destaca o aspecto sacrifical da fé. Q uando Abraão
disse aos servos que ele e Isaque voltariam (Gn 22:5), o contexto sugere sua crença
na ressurreição.50
Semelhantemente, nossa fé precisa centralizar-se em Deus e Suas prom essas, e nos
levar a abrir m ão de tudo o mais. Em meio a desafios e tentações, Deus nos convida
a experimentar um a fé autêntica e baseada em Sua Palavra. Esse tem sido o desafio
de cada cristão ao longo da história. E Deus nos fortalecerá para estar à altura dele.
50. Paul Copan, Is God a moral monster? Making sense of the Old Testament God (Grand Rapids, MI:
Baker Books, 2011), p. 48.
Educação superior
5. Salman Khan, Um mundo, uma escola: a educaçao reinventada (Rio de Janeiro, RJ: Intrínseca, 2013),
p. 13.
6. Roger Mchaney, The new digital shoreline: how web 2.0 and millenials are revolutionizing higher educa
tion (Sterling, VA: Stylus Publishing, 2011), p. 10.
7. Andrew J. Flanagin e Miriam J. Metzger, Kids and Credibility: an empirical examination of youth,
digital media use, and information credibility (Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 2010), p. 3.
8. Yuan K, Qin W, Wang G, Zeng F, Zhao L, et al., “Microstructure Abnormalities in Adolescents with
Internet Addiction Disorder”, m: PLoS ONE, vol. 6, n" 6.
Educação su pe r io r / 161
Currículo oculto
A educação é palco de desenvolvimento de qualquer visão de mundo - grade de va
lores que forma, princípios e critérios de avaliação para toda experiência.17 Conforme
René Rogeiio Smith: “Os processos pedagógicos nunca estão alheios ao conjunto da cos
movisão” (cap. 3).'KChamamos o conjunto de pressupostos que norteiam a prática admi
nistrativa e pedagógica de uma determinada instituição educacional de currículo ocul
to. O currículo oculto determina a cultura escolar, que também é parte fundamental do
processo educativo. Sem dúvida, a cosmovisão escolar se forma justamente nos anos da
juventude, sendo o ambiente escolar uma poderosa influência nesse desenvolvimento.19
Como já se disse: “Aqueles a quem nossos filhos admiram darão forma ao seu destino.”20
O que dizer, por exemplo, da educação neoliberal? Essa política educacional, ado
tada pelas escolas públicas em diversos países, inclusive no Brasil, atingindo seu auge
nos anos 1990s.21 Sobre a educação neoliberal é correto afirmar que ela “deixa de prio
rizar a transformação social, passando a ser um mecanismo tanto ideológico, como
uma ‘fábrica de m ão de obra: o ensino profissionalizante é valorizado, e a ênfase recai
na formação de consumidores, sem espaço para o cultivo da mentalidade crítica”.22
Com o advento da pós-m odernidade, currículos se viram alterados. É possível ver
as mudanças em diversos aspectos: a linguagem politicamente correta se impôs na
16. Antonio Inácio Andrioli, "45 políticas educacionais no contexto do neoliberalismo”, in: Revista Espaço
Acadêmico, ano II, n" 13. Disponível em < http://www.espacoacademico.com.br/013/13andrioli.htm>
Acesso: 6 de jul. de 2013.
17. Ruben Aguilar, "Cosmovisão e Educação Adventista”, in: Renato Gross (org.), Cristo na sala de aula: uma
abordagem adventista sobre integração fé e ensino (Engenheiro Coelho, SP: Unaspress, 1997), vol. 1, p. 32.
18. René Rogeiio Smith, El Processo Pedagógico: ±Agonia o resurgimento? Uma busqueda desde la cosmo-
visión bíblica (Nuevo León, México: Publicaciones Universidad de Montemorelos, 2004), p. 52.
19. Humberto M. Rasi, ‘'Cosmovisão, valores cristãos e liderança educacional”, in: Mareia Oliveira de
Paula e Luciano Serti da Costa (org.), Anais do Congresso Sul-Americano da educação Adventista: escola,
sociedade e valores no século XX, 19 a 23 de janeiro de 2000, p. 3. Rasi complementa: “De modo que se
pode afirmar que uma boa parte da educação consiste em ajudar os estudantes a formar sua cosmovisão
pessoal. Em um contexto educacional cristão, esta tarefa é fundamental e iniludível.”
20. Shane Anderson, Cómo matar la educación adventista y como darle una oportunidad (Col. Narvante,
Del. Bento Juala, México: Gema Editores, 2010), p. 44-45.
21. Antonio Inácio Andrioli, Opus cit.
22. Csaba Deálc, “Globalização ou crise global”, apresentado no Seminário Internacional Globalização e estru
tura urbana, FAUUSP, 9 e 10 de setembro de 1997, São Pauío, FAUUSP e em forma revisada com o acréscimo
da seção 7, no Encontro Nacional da ANPUR, 2001, Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www.usp.br/fau/
docentes/depprojeto/c_deak/CD/3pubI/01glob-cr/index.html>. Acesso: 6 de jul. de 2013.
Educação su pe r io r / 163
23. Como pode se notar no Brasil, com o debate sobre a adequação dos livros de Monteiro Lobato para
fins paradidáticos, em vista de suposto racismo deflagrado na obra do escritor.
24. Humberto M. Rasi, "Educação adventista: diante do desafio do pós-modernismo”, in: Educação ad
ventista, n" 32: 2011, p. 6, 7.
25. Valdeci da Silva Santos, '‘Educação cristã: conceituação teórica e implicações práticas”, in Fides Refor
mata, vol. XIII, ano 2, 2008, p. 159, 160.
26. René Rogelio Smith, Opus cit., p. 62.
27. “Uma multissecular corrente de educadores que procuraram unir educação e as “boas-novas” anun
ciadas por Cristo e Seus discípulos. O cristianismo passou a dar, aos homens, uma nova significação
para as suas orientações e um novo centro para os valores morais, individuais e sociais.” Renato Gross
e Janine Schoemberg Gross, Filosofia da educação cristã, p. 31. Os autores fazem algumas comparações
entre os escritos wbiteanos e de autores contemporâneos a ela.
28. “O senso de urgência se impõem com a convicção dos adventistas de que cada um dos filhos da igreja
está inserido (bem como a própria igreja) no meio de uma grande luta entre o bem e o mal. Portanto,
a igreja atuou de forma proativa a fim de estabelecer um sistema educacional alicerçado não apenas na
compreensão cristã geral da realidade, verdade e valor, mas em uma compreensão que também reflita
distintivamente as compreensões adventistas." George R. Knight, “Educação Redentora, parte 1: fun da
mentação filosófica”, in: Educação Adventista, n" 33, p. 6.
29. “ [.-•] a educação cristã não é apenas a educação empreendida em contextos religiosos ou cristãos’,
mas considera uma cosmovisão biblico-cristã e que leva em consideração as questões da origem e do
destino do ser humano.” Renato Gross e Janine Schoemberg Gross, Opus cit., p. 25.
30. George R. Knight, Mitos na educação adventista: um estudo interpretativo da educação nos escntos- de Ellen
G. White (Engenheiro Coelho, SP: Unaspress, 2010)> p. 46.
164 / E x p l o s ã o Y
31. Fábio Augusto Darius e Rebeca Pizza Pancotte, “Princípios educacionais em Ellen G. White”, in:
Kerygma, vol. 8, n° 1, 1° sem. de 2012, p. 116.
32. Adolfo S. Suárez, Redenção, liberdade e serviço: os fundamentos da pedagogia de Ellen G. White (En
genheiro Coelho, SP: Unaspress, 2010), p. 112, 114.
33. “O ponto em que ela vai além desses autores reside no fato dela direcionar todas essas práticas mais
para cima, para uma outra esfera, só possível a partir de uma vida de obediência aos ditames escriturís-
ticos.” Fábio Augusto Darius e Rebeca Pizza Pancotte, Opus cit., p. 118
34. Ellen G. White, Educação (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2003), p. 221, 222, apud. Edward
M. Cadwallader, Princípios de la educación adventista en el pensamiento de Elena de White: filosofia,
objetivos y misión (México: Adventus, 2010), p. 20, 21.
35. Idem, p. 221, 222, apud. Edward M. Cadwallader, idem.
36. Idem, Conselhos aos Professores, Pais e Estudantes (Taíui SP: Casa Publicadora Brasileira, 2007), p. 264,499.
37. Shane Anderson, Opus cit., p. 24.
38. Ellen G. White, Fundamentos da Educação Cristã, p. 69, apud. Edward M. Cadwallader, idem, p. 25.
39. Idem, Educação, p. 18, 19, apud. Renato Gross e Janine Schoemberg Gross, Opus cil., p. 45.
40. George R. Knight, Mitos na educação adventista, p. 48.
41. Valdeci da Silva Santos, Opus cit. p. 158.
Educação su p e r io r / 165
a busca pela excelência acadêm ica também é uma marca da educação adventista,
dentro da necessidade de preparo para cumprir a obra de Deus.42 “Necessitamos de
jovens que tenham um a elevada cultura intelectual a fim de que possam prestar o
melhor trabalho ao Senhor”, escreveu a mensageira do Senhor, destacando que, sem
jovens preparados, a obra poderia sofrer atrasos.43
Seguindo esse ideal, é notório que o educador adventista encontre sua m issão não
na mera transm issão de conhecimento, m as em “buscar o reino de Deus e Sua justiça”
sabendo que “todas essas coisas (conhecimento) vos serão acrescentadas”. Claro que
a compreensão do grande conflito faz parte da cosm ovisão desse perfil de educador.44
O diferencial da educação adventista, portanto, é sua identidade cristã e seu com pro
m isso com a m issão, sendo seu objetivo principal a salvação de seres humanos. Desse
aspecto, vale destacar o que escreveu um teólogo adventista:
Prevendo inevitáveis pressões sociais sobre quem optasse por uma educação tão
distinta, Ellen G. White advertiu: “A muitos que põem seus filhos em nossas escolas
sobrevirão fortes tentações porque desejam que eles consigam o que o mundo con
sidera com o a educação essencial”46 Ceder a essa tentação é expor a si mesm o ou
seus filhos a pedagogias imbuídas de marxismo, evolucionismo e demais filosofias
anticristãs presentes nas instituições seculares.
A verdadeira educação
Muitos estudantes não têm acesso à educação cristã por uma série de fatores. Cabe
a esses a oração e o estudo especial da Bíblia e de livros cristãos para se manterem
42. “A cura da alienação do homem em relação a Deus abre o caminho para a restauração de outras alie
nações básicas e, desse modo, implica os propósitos secundários da educação." George R. Knight, Mitos na
educação adventista, p. 48. Grifos no original. Por propósitos secundários, Knight compreende o “desen
volvimento do caráter, a aquisição de conhecimento e competência profissional.” p. 48.
43. Ellen G. White, Conselhos aos pais, professores e estudantes, p. 42, 43. Devo essa citação e a seguinte à
minha esposa, Noribel K. de Oliveira Reis.
44. Ruben Aguilar, Opus cit., p. 35.
45. Alberto R. Timm, “A espiritualidade das escolas adventistas", in: Alberto R. Timm (org.), A educação
adventista no Brasil: uma história de aventuras e milagres: II Simpósio da Memória Adventista no Brasil
(Engenheiro Coelho, SP: Unaspress, 2004), p. 170.
46. Ellen G. White, Conselhos aos pais, professores e estudantes, p. 15.
166 / E x p l o sã o Y
fiéis aos princípios bíblicos.47 Todavia, pais e jovens adultos deveriam preferir sempre
e impreterivelmente a educação cristã. Afinal, nosso maior objetivo é um a carreira de
sucesso ou nos unir aos obreiros que, em suas respectivas frentes de atuação, conclui
rão o anúncio da m ensagem do advento?
Nesse sentido, vale lembrar que os testemunhos whiteanos sobre educação não
se restringem ao contexto escolar. Ao contrário, eles se conectam prim ariamente
com o ministério eclesiástico e pastoral: “O paradigm a ministerial baseado na Pala
vra, então, perm anece na revelação das Escrituras e no processo de educação neces
sário para gerar fé e obediência na vida dos seres humanos.”48 E isso se torna mais
compreensível quando aceitamos que a obra educacional é um a continuidade da
mensagem adventista, não algo à parte. Além disso, é preciso reconhecer que a edu
cação que Deus oferece se traduz por um processo de aperfeiçoamento contínuo,
mediante a interação com a graça que Deus nos disponibiliza, a qual, efetivada por
nossa aceitação, atua em nós para nos levar ao crescimento na experiência cristã -
“Seu divino poder nos deu todas as coisas de que necessitam os para a vida e para
a piedade, por meio do pleno conhecimento daquele que nos chamou para a Sua
própria glória e virtude” (2Pe 1:3).
47. Um excelente material de apoio pode ser encontrado na série de estudos bíblicos universitários da
Divisão Sul-Americana: Michelson Borges (org.), O Resgate da Verdade.
48. Fernando Canale, “The eclipse o f scripture and the protestantization ofíhe adventist mind: pari 2", p.
121. A afirmação é um comentário ao conhecido texto: “No mais alto sentido, a obra da educação e da
redenção são uma [sic]”. Ellen G. White, Educação, p. 30. Canale chega a alegar, na continuação de suas
considerações, que aplicar esses conceitos primariamente à educação constitui “negligência momento
sa", a qual “talvez seja o mais significativo erro metodológico no adventismo moderno”.
H á realmente critérios
para a música sacra?
Os adventistas creem possuir “luz especial”, dada pelo Senhor, a fim de anunciar ao
mundo a segunda vinda de Jesus (cap. 2).1 Sua visão de mundo os identifica como o
povo de Deus - existem para cumprir a missão, a qual consiste em convidar o mundo
a adorar corretamente o Deus verdadeiro (Ap 14:7). Entretanto, o contexto cultural
no qual surgiu o adventismo difere da nossa época (cap. 12). Vivemos o período co
nhecido como pós-modernidade, caracterizado por um relativismo avesso à verdade
absoluta.2 O choque entre a visão adventista e o espírito desta época afeta a questão da
adoração. Afinal, com o admite o teólogo Sproul, quando chegamos na beleza,
nós seguim os o ritmo imposto pelos pós-modernistas. Quando a beleza é relegada
a uma simples questão de gosto, quando o pós-m odernism o insiste que não há um
padrão transcendental para a beleza, a Igreja responde com um ressoante amém’”.3
Justamente por isso, recentemente, muitos adventistas passaram a negar que a
adoração seja pautada por princípios imutáveis ou mesmo que seria impossível deter
minar se um a forma de adorar é mais adequada do que outra. Some-se a isto que boa
parte da produção fonográfica denominacional sofre a influência de músicos cristãos
de outros segmentos, que, obviamente, não são orientados por supostos princípios
adventistas. Por quais razões isso se dá? Muitos adventistas jam ais consideraram que
sua visão de mundo deve selecionar e produzir música que reflita identidade singular
da denominação. Assim, tais pessoas formam critérios pessoais sobre o que envolve a
música (com o música para a adoração, para entretenimento, para a devoção pessoal,
etc.), com base na própria experiência (anterior ou posterior à conversão) e em valo
res propalados por algum tipo de mídia (secular ou cristã).
1. Sobre desenvolvimento doutrinário adventista, consultar Alberto R. Timm, O Santuário e as três men
sagens angélicas: Fatores integrativos no desenvolvimento histórico das doutrinas adventistas (Engenheiro
Coelho, SP: Imprensa Universitária Adventista, 2002).
2. Para uma crítica ao pós-modernismo, ver Douglas Reis, Marcados pelo Futuro: vivendo na expectativa
do retorno do Senhor (Niterói, RJ: ADOS, 2011), especialmente o cap. 5, “A Verdade ou a vida”.
3. R. C. Sproul, Atlas encolheu os ombros: adorando na beleza da santidade, in Douglas Wilson (org.), Eu
não sei mais em quem tenho crido (São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã, 2006), p. 49.
168 / E x p l o sã o Y
4. Para considerações sobre a arte a partir da estética cristã, consultar Wolfgang H. M. Stefani, “Mú
sica:: Força Ecumênica?”, disponível em < http://www.musicaeadoracao.com.br/artigos/adoracao/musi-
ca_ecumenica.htm> Acesso: 9 de jul. de 2013.
5. Beatriz Uari, “A música e o desenvolvimento da mente no início da vida: investigação, fatos e mitos", dis
ponível em <http://www.rem.ufpr.br/RFMv9-l/ilari.html> Acesso: 9 de jul. de 2013; cf.: Gino Stefani,
“ Uma Teoria de Competência Musical”, disponível em <http://www.musicaecultura.ufba.br/artigo_ste-
fani_01.htm> Acesso: 9 de jul. de 2013.
6. Uma análise mais detalhada pode ser achada em Wolfgang Stefani, Música sacra, cultura e adoração
{Engenheiro Coelho, SP: UNASPRESS, 2002).
7. Sobre a influência do misticismo neoplatônico sobre a religião islâmica, veja: (a) Nancy Pearcey, Ver
dade Absoluta: Libertando o Cristianismo de seu cativeiro cultural (Rio de Janeiro, RJ: Casa Publicadora
das Assembleias de Deus, 2006), Ia ed, apêndice 2, p. 431-435; (b) Mansour Challita, As mais belas pági
nas da literatura árabe, (Rio de Janeiro, RJ: Ingraf, s/d), p. 23.
8. Olívia Maria Gomes da Cunha, “Fazendo a coisa certa’: Reggae, rastas e pentecostais em Salvador”, em
<http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_23/rbcs23_09.htm> Acesso: 9 de iul. de 2013.
HÁ RE A LM E N T E C RIT É RIO S PARA A M Ú SICA SA CRA / 169
Tais exemplos reforçam o conceito de que não há um divórcio entre forma e con
teúdo, o que garante a eficácia de determinada escolha musical para um fim específi
co. A adoração deixa transparecer que conceitos foram internalizados pelo adorador.
Ou, em outras palavras: “Aquilo com que você se deleita transparece quando dirige
o louvor.”9
Em decorrência das mudanças na música cristã, é recorrente o debate Forma x
Conteúdo. Para alguns, toda manifestação musical se restringe a um a (ou a algumas)
determ inada(s) form a(s); outros argumentam que a forma não é im portante.10 G e
ralmente, a m úsica cristã contemporânea segue a segunda tendência, se valendo da
prem issa de que “todo louvor seja aceitável a Deus”.
Realmente toda forma de adoração seria válida? Se encararmos a adoração como
um reconhecimento do caráter am oroso de D eus e um a homenagem sincera a Seus
atributos, seríam os levados a reconhecer que a adoração tem de agradar-Lhe. É dever
do adorador apresentar algo agradável ao ser adorado.11 O próprio Jesus disse à m u
lher samaritana que Deus, o Pai, busca aqueles que O adoram em “espírito e verdade”
(Jo 4:23). Para Jesus, a adoração é tanto um fenômeno espiritual - portanto, não di
retamente dependente do local, do ambiente, dos objetos cúlticos, etc. - quanto algo
coerente com a Revelação, ou, nas palavras dEle, com a “Verdade”
Também nos escritos de Ellen G. White encontramos a constatação de que o lou
vor agradável a Deus, em qualquer esfera (quer pessoal, quer pública), é o que está
coerente com Sua Revelação (portanto, para além da competência de sentimentos e
intenções norteados pelo coração não regenerado pela graça divina).12 Talvez se faça
necessário esclarecer algo: deve haver interação entre nós e Deus, em todos os níveis
de nossa pessoa - emocional, intelectual, social, etc. - que implique em transform a
ção integral. Isso não passa de uma forma mais sofisticada de fazer a tradicional dico
tom ia entre o que é carnal X o que é espiritual. Limitar isso ao nível dos sentimentos
é apequenar o plano de Deus para o homem.
Novamente, tal perspectiva não se restringe à música e, ao mesmo tempo, é tem
perada com a constatação de que nem tudo em nossa cultura é mal e pecam inoso e
deve ser rejeitado apenas por ser amplamente aceito. Por exemplo: o violão é um ins
trumento extremamente popular no Brasil. É óbvio que ele tem espaço em nossa mú
9. Darlene Zschech, Adoração Extravagante (Belo Horizonte, MG: Editora Atos, 2006), 2a reimpressão
da 2* ed, p. 83. Embora o conceito seja válido, temos de deixar claro que não concordamos com todas as
opiniões expressas no livro pela criadora da banda gospel Hill Song.
10. Em nossa opinião, a primeira perspectiva é incompleta, portanto, limitada, correndo o perigo de dar
a determinado gênero musical o caráter de uma Revelação normativa, o que se aplica apenas aos cân
ticos bíblicos, escritos por homens inspirados por Deus, e jamais a nenhum hino de hinários cristãos;
quanto a segunda posição, além de ignorar a coerência entre íorma e conteúdo, ignora os efeitos da
música em si mesma, efeitos esses que independem da letra que a acompanhe.
11. Veja o artigo de Daniel Plenc, “O culto como adoração: uma perspectiva de EUen White”, Diálogo Universi
tário, vol. 20, n° 2, p.15-16, disponível em < http://dialogue.adventist.org/articles/20_2_plenc_p.htm> Acesso:
9 de jul. de 2013.
12. Ellen G. White, Testemunhos Seletos (Santo André, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1984), vol. 1, p. 45.
170 / E x p l o s ã o Y
sica devido à influência cultural; contudo, isso não pode ser tido como inerentemente
mau em si. Pode se tom ar negativo quando um instrumentista se vale de adaptações
da música secular para produzir música cristã (ou seja, usa modelos seculares com
letras de conteúdo cristão).
Voltando ao ponto, encontramos nos textos de Ellen G. White ecos com os conceitos
fundamentais da resposta de Jesus à samaritana (o binômio “espírito/Verdade”):
13. Idem, Mensagem aos Jovens (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2004), p. 294, grifos supridos. É
possível avaliar se determinada expressão musical é coerente com aquilo que temos na revelação dentro de
um determinado contexto cultural. Na verdade, proponho que se entenda o termo Verdade como a matriz
e a cultura como a variável: uma música adventista produzida na África terá diferença de outra produzida
por adventistas brasileiros - e não há problema nenhum com isso! Mas os principios gerais devem se achar
representados e ajudar a selecionar na cultura o que é ou não apropriado na produção musical.
14. Ibidem, O desejado de todas as nações {Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2007), p. 347.
HÁ R E A LM E N TE C RIT ÉRIO S PARA A M Ú SICA SA CR A / 171
piarmos as ações sem a experiência, ofereceríamos a Deus algo dramatizado e sem sentido.
Em contrapartida, a posição dos evangélicos em geral difere completamente do
que foi dito acima. Um dos mais influentes líderes evangélicos, Rick Warren, reco
nhece que o poder da m úsica leva a mensagem “diretamente para o coração”. Por isso,
segundo ele, temos a oportunidade de utilizar a m úsica contemporânea, com seu
poder de alcance, para espalhar ‘Valores de Deus”; do contrário, utilizando o mesmo
tipo de música, “satanás vai ter acesso a uma geração inteira”.
Embora Warren reconheça que o tipo de música determine a identidade da igreja e seu
posicionamento na comunidade em que estiver inserida, ele alerta os cristãos de que deve-
se “admitir que não existe um estilo de música em particular que é sagrado”’. Segundo o
seu parecer: “O que faz uma música sagrada é a sua mensagem [letra]. A música não é nada
mais do que um arranjo de notas e ritmo. [...] Não existe música cristã, mas sim, letras
cristãs. Se fosse tocada uma música sem palavras, você não saberia se é cristã ou não.”15Essa
opinião é bem aceita nos círculos evangélicos,1fl embora não seja unânime.17Entre os adven
tistas, têm despontado críticas às concepções de Warren.115
Acredito que a “chave da questão” seja: qual a linha divisória se Deus ama todos os
tipos de música? Do Rock ao Axé, qualquer gênero seria aceitável! M as se a variação
musical é um a das consequências da mutabilidade da Filosofia Ocidental, estaria a
adoração sujeita a tantas mudanças, sendo que ela se fundamenta na Revelação de
um D eus que não m uda? Ou estamos tentando acompanhar as tendências seculares
para agradar os não cristãos?
Até que ponto um culto contemporâneo realmente atrai pessoas preocupadas em
servir a Deus e lhes provê instruções suficientes para promover um crescimento es
piritual coerente com a Revelação, em todos os seus variados matizes? Será que fazer
“concessões” quanto à adoração não nos leva a “amenizar” os demais mandamentos
e orientações das Escrituras?
Notem os o que o Espírito de Profecia afirma sobre o impacto da adoração em
“espírito e Verdade” sobre os não cristãos:
15. Rick Warren, Uma igreja com Propósito (São Paulo, SP: Editora Vida, 2002), 2a Ed„ 7* reimpressão,
p. 272, 273.
16. Jairo de Souza Santos Júnior, A música evangélica de adoração: uma análise de sua identidade (Revista
Teologia Hoje, 2003), vol. 1, n° 2, art. 4, Também disponível em: <http://www.ftsa.edu.br/revista/Teolo-
giaHoje.htm> Acesso: 3 de ago. de 2007. Para um exemplo da influência de Warren entre os adventistas,
ver Regina Mota, “Música cristã no século 21: um cântico novo ou repetição do p a s s a d o disponível em
<http://eoqha.net/reflexoes/musica-crista-no-seculo-21-um-%e2%80%9ccantico-novo%e2%80%9d-ou-
-repeticao-do-passado/#more-1369> Acesso: 3 de ago. de 2007.
17. Berit Kjos, “Igreja Dirigida pelo Espírito ou Orientada por Propósitos? - Parte 1: Análise do livro Uma
Vida com Propósitos, de Rick Warren”, disponível em < http://www.jesussite.com.br/PurposeDriven l.asp,
originalmente: http://www.crossroad.to/articles2/006/pd-deception.htm> Acesso: 3 de ago. de 2007.
18. Ver (a) Daniel Oscar Plenc, “Leia com atenção”, in: Ministério Adventista, ano 81, n" 6. “Essa postura
é absolutamente discutível, considerando-se que a música é uma linguagem que diz muito, indepen
dentemente de sua letra. Por outro lado, a Bíblia fala dos instrumentos que eram usados na adoração
do templo, e temos uma ideia de suas características.” p. 26; (b) Herbert E. Douglass, Truth Matters: An
Analysis of the Purpose Driven Life Movement (Nampa, Idaho: Pacific Press, 2006).
172 / E x p l o sã o Y
B) Não existe relação causal entre a escolha da música e seu efeito sobre os
adoradores ou sobre a adoração
Uma vez que a música parte de uma cosmovisão, ela reflete determinados princípios.
Muitos cristãos pós-m odernos argumentam que a letra é a única parte responsável por
transmitir uma mensagem cristã, independentemente do gênero musical a que esteja
veiculada. Um argumento contra essa abordagem, conforme já vimos, é a questão da
coerência no que tange aos princípios da Revelação. Se nos pautarmos pelos princípios
da Bíblia e do Espírito de Profecia, deveríamos buscar música mais elevada, que possua
uma clara distinção da música secular (principalmente, da música popular).
19. Usando a mesma citação, segui raciocínio semelhante em meu artigo “Shows cristãos: culto, entre
tenimento ou mundanismo?” disponível em <http://questaodeconfianca.blogspot.com/2007/07/shows-
-crístos-culto-entretenimento-ou.html> Dito de outro modo: o “correto" seria equivalente a “coerente’
no caso, à revelação. Obviamente, devemos cantar de nossa melhor forma, mas não se trata de ter m é
ritos técnicos para louvar. Outro exemplo: Ellen White fala de usar corretamente a língua vernácula
quando trata de oratória (Evangelismo, p. 666). Não acredito que a autora queira dizer que somente
pessoas com estudos formais devam falar do púlpito (afinal, ela mesma não concluiu sua educação
formal!). Entretanto, considerando o próprio exemplo dela, percebemos sua crença no desenvolvimento
pessoal - suas ideias sobre o assunto podem ser verificadas quando ela trata da parábola dos talentos, no
capítulo "Talentos que dão êxito”, no livro Parábolas de Jesus, p. 366ss.
20. Ellen G. White, Evangelismo (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira. 1997), p. 508.
21. Idem, 512. Ver também Ellen G. White, Testemonies for the Church (Nampa, Idaho; Oshawa, Onta-
rio, Canada: Pacif Press Association, 1948J, vol. 9, p. 143.
HÁ RE A LM E N T E C RIT É RIO S PARA A M Ú SICA SACRA / 173
22. Carlos Eduardo Sell e Franz Josef Brüseke, Mística e Sociedade (Itajaí, SC: Universidade do Vale do Ita-
jaí; São Paulo, SP: Paulinas, 2006), p. 190, 189. Os autores sintetizam as ideias de Daniéle Hervieu-Leger.
23. Ver: (a) Ellen G. White, Caminho a Cristo (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2007), p. 89; (b)
Idem, Conselhos aos Professores, Pais e Estudantes (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2007), p. 463,
(c) Ibidem, Conselho sobre Mordomia (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), p. 38.
24. “A competência musical se desenvolve através de dois eixos ou dimensões: a ‘dimensão artística’ e
a ‘densidade semântica. Tomando estes termos no seu sentido óbvio, sublinhamos o fato de que o tipo
de competência é definido pela interseção desses dois eixos.” Gino Stefani, “ Uma teoria da competência
musical”, disponível em <http://www.musicaecultura.ufba.br/artigo_stefani_08.htm.> Acesso: 5 de ago.
de 2007. Stefani fala de competência musical em termos de “um conjunto de níveis de códigos [dentro
dos quais são analisados os eventos sonoros com o que se relaciona a eles]’’.
25. Beatriz Ilari, “A música e o desenvolvimento da mente no início da vida: investigação, fatos e mitos”,
disponível em < http://www.rem.ufpr.br/REMv9-l/ilari.html>, acesso: 21 de ago. de 2007. A mesma au
tora observa que a música e a linguagem compartilham algumas propriedades acústicas como
altura, ritmo e timbre, que podem ser traçadas no decorrer de toda a vida”.
26. Falando sobre a influência do reggae na sociedade soteropolitana, a partir da década de 70, Cunha
afirma: “Mas foi principalmente com o advento do reggae na cidade [Salvador, BAJ - tocado em bailes
da periferia, feiras, reuniões e ensaios de blocos afro desde o final da década de 70 - que tudo começou.
A música reggae tem se caracterizado, conforme Nettleford (apud Owens, 1989: xi), por ser uma espécie
de ‘púlpito secular. Todavia, o reggae não se resume a tematizar as pregações acerca da fé no Messias
Negro e na África/Etiópia como lugar da redenção: ele fala dos ‘sentimentos’ do rasta. Ao mesmo tem
po, a música funciona como elemento ‘sugestivo’, ao suscitar a adoção de práticas a ela relacionadas no
imaginário da juventude.”, Olívia Marinha Gomes da Cunha, “Fazendo a coisa certa”.
174 / E x p l o sã o Y
27. Wolfgang H. M. Stefani, Opus cit. Ele está citando Deanna Campbell Robinson et. al., Music at the
Margins: Popular Music and Global Cultural Diversity (London: Sage Publications, 1991), X - XI.
28. Vanderlei Dorneles, Cristãos etn busca do êxtase (Engenheiro Coelho, SP: UNASPRESS, 2006), 3a
Ed, p. 9. O trabalho de Dorneles é, muito provavelmente, a mais rica contribuição na área da adoração
de um autor nacional.
29. Para maiores detalhes, consultar Wolfgang Stefani, Música sacra, cultura e adoração.
HÁ REA LM E N TE C RIT É RIO S PARA A M Ú SICA SACRA / 175
quem se pode solicitar ou mesmo exigir bênçãos materiais. Ele tam bém Se manifesta
por meio de “dons” (glossolalia), milagres (curas) e revelações.311
O cristianismo pentecostal deriva sua ênfase emociona)ista da bênção de Deus da
visão wesleyana em uma “concepção imediata da salvação”, dentro da qual os senti
mentos servem de “termômetro da experiência espiritual”.31 Nesse contexto, a música
emocional e de características populares é fundamental para levar cada adorador a um
estado de experiência que lhe permita “sentir” Deus e receber Suas bênçãos e dons.
Na história do adventismo, certos “ventos” pentecostais sopraram em determ ina
dos momentos. O episódio m ais conhecido é o que envolveu o “Movimento da Carne
Santa”. Através de um relato in loco,n é observável como o uso de música popular foi
fundamental para fomentar o “clima” necessário a fim de levar os envolvidos à expe
riência de transe, similar a que se dá entre os pentecostais modernos. A introdução
de um tipo de adoração próxima a dos movimentos pentecostais levou um grupo
oriundo do adventismo a ter “experiências” pentecostais.33
Com base nesta fatídica experiência, nos perguntamos se, ao copiarmos as músi
cas cristãs contemporâneas e as empregarmos em nossa adoração, não correríamos o
risco de ser influenciados por tais músicas de tal maneira que nosso culto se modifi
que, o que inevitavelmente interferiria, a longo prazo, em nossa conceituação do Ser
adorado. Isso só aconteceria, de fato, quando os adventistas abandonassem os princí
pios da revelação, como constatou certo teólogo adventista: “Por exemplo, o eclipse
da Escritura e seu impacto no pensamento dos líderes adventistas torna-se aparente
nas recentes m udanças liturgicas centradas no uso de música popular e no rock na
adoração.” A incoerência disso se agrava com a constatação de que, oficialmente, a
denominação adventista continua a rejeitar o uso de “jazz, rock” e demais formas de
música “híbridas” (entre as formas sagrada e secular).34
Alguns dos cristãos que utilizam a música gospel contemporânea para garantir o
“clima” de seus cultos são altamente influentes nos círculos evangélicos. A conhecida
30. Não apenas os cristãos pentecostais partilham desta concepção. Os católicos carismáticos também
fundamentam sua experiência na busca do êxtase. Para um relato curioso de um sociólogo, ver Ray-
mundo Heraldo Maués, ‘“Bailando com o Senhor’: técnicas corporais de culto e louvor (o êxtase e o transe
como técnicas corporais)”, in: revista de Antropologia, vol. 46, n° 1, grifos suprimidos. Disponível em:
<http://www.scielo.br/sciclo.pbp?pid=S0034-77012003000100001 &script=sci_arttext&tlng=en>. Aces
so: 21 de jul. de 2007. Em seu trabalho, Maués afirma que a glossolalia (ou o falar em línguas), praticada
pelos carismáticos (e, acrescentaríamos, pelos pentecostais) é “um fenômeno muito mais amplo", usado
inclusive na música “profana"; ele faz aproximações entre os carismáticos e pentecostais e o xamanismo.
31. Dorneles, Opus cit., p. 87.
32. Relatório de S. N. Haskell a Sara McEntenfer, 12 de setembro de 1900, citado em Ellen G. White, Mú
sica: Sua influência na vida do cristão, p. 37. No mesmo contexto, há esse outro relato de Burton Wade a
A. L. White, 12 de janeiro de 1962, idem, p. 38.
33. Obviamente, o processo pode ter seguido uma mão dupla: crenças equivocadas produziram um com
portamento cúltico alterado, que, por sua vez, influíram na mudança de conceitos da experiência religiosa.
34. Fernando Canale, "'lhe eclipse of Scripture and the protestantization of the adventist mind”, part 1, p,
136, 137. Canale cita em seu apoio o manual da igreja: General Conference of Seventh-dav Adventist,
Church Manual (Hagerstown, MD: Review and Herald. 2005), 17h edMp. 180.
176 / E x plo sã o Y
com o a obra é organizada, a intenção que dispõe dos elementos “neutros” para lhes
dar um sentido, um a mensagem. M esmo elementos da música de um país ou cultura
podem ganhar um sentido novo, um tratamento diferenciado e integrar o trabalho
de um artista sacro.
Pensemos na seguinte ilustração: que há entre a escola dos profetas e a escola
adventista? Obviamente, as duas instituições têm muitas diferenças, até por estarem
inseridas em contextos culturais abissais, Mas sua proposta metodológica é mutua
mente excludente? Não. Em ambas se valoriza a natureza, se estuda história inspira
da, há a ênfase em cantar com os alunos e se busca preparar os alunos para servirem
a Deus e à sociedade. A cultura muda, as orientações permanecem.
Para resgatar o contexto em que Ellen G. White escreveu sobre música, é mister
entender que o século XIX constituiu-se de uma era de despertamentos religiosos em
solo americano. Ainda em 1800, Francis-Asbury, considerado o primeiro pregador
itinerante, iniciou as reuniões campais de reavivamentos, cham adas de Camp mee-
tings.37 Visando a alcançar o povo individualista e isolado que vivia na fronteira, os
evangélicos daquela época mudaram sua abordagem, focalizando-se na “experiência
de conversão profunda”; a religião passou a ser redefinida “em termos de emoção, ao
m esm o tempo em que contribuía para negligenciar a teologia, a doutrina e o elemen
to cognitivo da crença”. Notoriamente, essa mudança no paradigm a religioso levou a
uma reestruturação do sistema de culto, que passou a incorporar “linguagem simples
do povo e músicas populares”.38
Q uando Ellen G. White comenta os efeitos danosos que a “música popular” de
seus dias causava sobre os jovens, desviando-lhes “a mente da verdade”,39 temos
de entender sua orientação dentro de uma “época em que o ‘jazz começava a se
generalizar”.4” Daí se pode constatar que Ellen G. White era um a crítica social, não
alguém que recomendasse o uso indiscriminado de influências culturais com objeti
vos evangelísticos.
No aspecto positivo, vale ressaltar que há trabalho para aqueles que aceitam a
Revelação. Os conceitos devem ser considerados e aplicados de forma coerente. As
descrições dos escritos de Ellen G. White, as quais não usam expressões técnicas, pre
cisam ser pensadas e compreendidas à luz de seu contexto literário-cultural a fim de
serem colocadas em prática por músicos competentes em seus respectivos contextos
culturais. “Um a compreensão adequada da adoração deve reconhecer a influência do
contexto cultural na forma e nos estilos de culto, porém, propriamente submetidos
aos princípios gerais permanentes da revelação bíblica”, afirma Plenc.41
42. Veja a entrevista do maestro adventista Jetro Meira de Oliveira à revista Kerigma, disponível sob o
título Identidade ameaçada, em < http://www.unasp.edu.br/kerygma/entrevista04.asp> Acesso: 9 de jul.
de 2013.
43. Bert B. Beach, “Estilos adventistas de culto", in: Diálogo Universitário, vol. 14, n" 1. Beach fa la de
cinco aspectos do culto; para ele, o culto adventista é transcultural, contextual, contracultural, intercultural
e multicultural. “O evangelho, por sua própria natureza, transforma e chama à transformação de cada
cultura (incluindo a nossa - a minha e a sua!)." Barry D. Oliver, Can or Should Seventh-day Adventist
belief be adapted to culture? In John L. Dybdahl (ed.), Adventist Mission in the 21st Century: the joys and
challenges of presenting Jesus to diverse world (Hagerstown, MD: Review and Herald Publishing Associa
tion, 1998), p. 74.
44. Carlos H. Cerdá, Relación entre Laodiceia y la sociedadposm oderna, p. 383. “A adoração legíti
ma é, de certo modo, ‘contracultural’”. Daniel Plenc, “Cultos evangelizadores y contextualización”,
p. 345.
H Á RE A LM E N T E C RIT É RIO S PARA A MÚSI CA SA CR A / 1 7 9
Aliás, eis um dos pontos de tensão mais sensíveis entre os adventistas contemporâ
neos:45 acatar aspectos da Revelação que tratam do entretenimento ou que ferem gostos
pessoais. No fundo, é como se disséssemos: “Tudo bem crer na inspiração de Ellen White,
desde que eu continue indo ao McDonalds. Posso aceitar que ela não respirava quando
estava em visão, desde que não deixe de frequentar o cinema. Até gosto do Caminho a
Cristo, mas quero continuar ouvindo Jeremy Camp, Jars of Clay ou Chris Tomlin.”
Evidentemente pode-se defender ardorosamente tudo o que a Bíblia ou o Espírito
de Profecia fala sobre um tema e ignorar aquilo que afeta a preferência pessoal. C on
tudo, será que essa recusa de membros adventistas em aceitar os aspectos norm ati
vos da mensagem do profeta não é uma sutil forma de descredenciá-lo? Quando se
escolhe apenas a parte agradável da mensagem profética, não se deixa de atender à
vontade de um Deus tão amoroso, que foi capaz de providenciar orientações seguras
para cada indivíduo?
45. O estudo Valuegenesis, patrocinado pela Divisão Norte-Americana, “ [...] tratou do inodo como
a juventude adventista vê questões de estilo de vida. Pela análise de fatores, os pesquisadores desco
briram que estas questões compreendiam três grupos. O primeiro grupo, chamado 'Drogas’, tratou
de normas da igreia sobre drogas ilegais, tabaco, cerveja, álcool e vinho. O segundo grupo, ‘Cultura
Adventista, incluía normas próprias dos adventistas -- tais como a observância do sábado, carnes
imundas, exercício diário, sexo somente dentro do casamento, e vestuário modesto. O terceiro, ‘Cul
tura popular’, incluía joias, bebidas cafeinadas, música rock, dança e frequência ao teatro.
“A pesquisa revelou que a maioria da juventude adventista cria firmemente nos dois primeiros grupos,
mas só uma minoria cria no terceiro. Os pais obtiveram notas melhores, mas questionaram as m es
mas normas que os jovens. Professores adventistas revelaram a mesma tendência. Diretores de escolas
tiraram notas um pouco mais altas que os professores, mas mostraram atitude semelhante. Os pasto
res obtiveram a nota mais alta de todos os grupos, mas revelaram a mesma tendência, mostrando que
eles questionam as mesmas normas que os diretores, professores, pais e jovens.” Steve Case, Podemos
dançar?, Diálogo, vol. 6, n" 2, p. 16-17, 29.
180 / E x p l o s ã o Y
de ser apresentada à igreja e votada pela comissão. Um a vez que determinada igreja
ou distrito pastoral adquira a sua compreensão da adoração, esta visão precisa ser
compartilhada sistematicamente, para que haja uma reeducação do adorador que
frequentar a congregação ou o distrito.46 E, sobretudo, precisamos ser reavivados, nos
deixando submergir em uma atmosfera de adoração genuína, subm issa a Deus, não
durante as poucas horas dos cultos sabáticos; quando o culto acabar a adoração deve
prosseguir, renovada a cada dia de nossa existência. Temos de praticar sinceramente
o que é certo, com o expressou certo autor adventista:
Fazer a coisa certa sem genuína sinceridade de coração é uma abom inação a Deus
(Am 5:21-24), m as o corolário da afirmação é também falso - sinceridade em si pró
pria não é suficiente (Caso de Davi e Uzá: lC r 13:7-10, 2Sm 6:5, lC r 15:12-22).47
46. A Igreja Adventista possui documentos oficiais que servem de parâmetro para decisões locais: (a)
Filosofia Adventista de Música (Diretrizes Relativas a uma Filosofia de Música da Igreja Adventista do
Sétimo Dia), Associação Geral - LASD, Concílio Outonal - 1972, disponível em < http://www.musica-
eadoracao.com.br/documentos/filosofia.htm> Acesso: 3 de ago. de 2007; (b) “Filosofia Adventista do
Sétimo Dia com Relação à Música” (Documento Oficial da Associação Geral, votado no Concílio Anual
em 13 de outubro de 2004, com o acréscimo de um adendo elaborado pela Divisão Sul Americana da
IASD, com diretrizes específicas para as Igrejas da América do Sul)”, disponível em <http://downloads.
adventistas.org/pt/institucional/documentos-oficiais/filosofia-adventista-do-setimo-dia-com-relacao-
-a-musica/ > Acesso: 9 de jul. de 2013.
47. Wolfgang H. M. Stefani, “ The language of Praise: what the Bible says about music” in: Samuel Ko-
ranteng-Pipim (ed.), Here we stand: evaluating new trends in the church (Berrien Springs, Michigan:
Adventism Affirm, 2005), p. 446.
Escatologia, aqui me
tens de regresso
1. “Durante a última geração tem havido vários desafios à compreensão adventista de Daniel e Apoca
lipse. Alguns que desejam ampliar nossa compreensão ou focalizar de modo especial essas profecias,
ofereciam aplicações especulativas da profecia na história.” Jon K. Paulien, “A hermenêutica da apoca
líptica bíblica \ in: George W. Reid, Compreender as Escrituras: uma abordagem adventista (Engenheiro
Coelho, SP: Unaspress, 2007), p. 245.
2. Para maiores detalhes, consultar Fernando Aranda Fraga, "La escatologia secular contemporânea: iRe-
torno a la inmanencia?”, in: DavarLogos, vol. 3, n" 1, p. 37-55.
182 / E x p l o sã o Y
3. “Liberais, conservadores, velhos e jovens igualmente estão fazendo experiências com abordagens al
ternativas e questionando as tradicionais. Mas esta negligência de atenção às profecias apocalípticas
não é assunto neutro, uma vez que está criando uma radical, se não intencional, mudança no âmago da
mensagem da Igreja Adventista.” )on K. Paulien, Opus cit., p. 247.
E sc a t o l o g ia , aqui m e t en s de r eg resso / 183
adventistas leem pouco a Bíblia e, na maioria das vezes, apenas de forma devocio-
nal. Falta um aprofundamento do estudo da Bíblia, porque quando se entende o que
Deus realmente disse, recebe-se orientação e poder. A superficialidade com que a
Bíblia é tomada, mormente com o fito de decorar uns poucos versos para defender
(às vezes, até de maneira equivocada) a doutrina verdadeira, impede um a comunhão
mais estruturada, um a visão mais ampla da mensagem revelada (cap. I I ) 4 - a teolo
gia adventista precisa ser integrada à vida da igreja!3 Na situação atual, onde se vê o
raquitismo teológico crescer, quando se apresenta alguém que decorou mais versos
bíblicos (ainda que os apresente fora de contexto), isso basta para impressionar a
m assa! E quando essa pessoa nova utiliza chavões adventistas, mesmo que sem cone
xão com a autêntica m ensagem adventista, todos se convencem de que um novo pro
feta se levantou. Quase não há diferença entre adventistas e pentecostais na questão
do em ocionalismo que permeia o tom da espiritualidade de cada grupo. E, enquanto
a ênfase emocionalista persistir, a Bíblia não poderá ocupar seu lugar como fonte de
verdadeira espiritualidade (cap. 1);
2) Falta de preparo para o tempo do fim: envolvidos como nos vemos em em
preendimentos seculares, parece que se vai deixando o foco do preparo para a se
gunda vinda do Salvador Jesus. O povo adventista carece de reavivamento, de uma
mudança de sua perspectiva, a fim de que se encontre com o Salvador. Na falta disso,
palestras com temas pretensamente escatológicos chamam a atenção e parecem acor
dar os membros. Entretanto, a apresentação de determinados temas atua mais como
um falso estimulante, que agita as pessoas quando entra em suas veias; um a vez no
sangue, a substância se revela como é: um autêntico narcótico! A atenção é focalizada
para assuntos que se mostram irrelevantes para a consagração, porque não possuem
o selo da aprovação de Deus. Tais assuntos trazem medo, incompreensão, desenvol
vem práticas fanáticas e não propõem medidas práticas para a mudança de vida. O
sono espiritual passa a ficar mais agitado, sem deixar de ser um sono;
3) Falta de compreensão do que é o Adventismo: muitos entram hoje na igreja
com o preparo mais rápido e menos específico o possível (daí o eunuco etíope servir de
paradigma para muitos evangelistas!). Quem sofre com isso é a igreja, que perde sua me
mória histórica (cap. 1). Muitos de seus membros são adventistas-católicos, adventistas-
-assembleianos, adventistas-pós-modernos (cap. 2)... Tarefa improvável será encontrar
um adventista legítimo em meio à confusão que se instalou com respeito à identidade do
4. “Para se refletir teologicamente hoje, deve-se antes refletir criticamente o modo (‘caminho’) como a
teologia evolui, observando atentamente seus encontros e desencontros com a verdade para não se re
petir em nós a apostasia que muitas vezes se seguiu. Após isso, nossa convicção máxima deve ser, como
um povo, 'restaurar as verdades’ que a história dos homens deturpou, f...]
“ [...] a teologia, para ser eficaz, tem de ser construída por todos {leigos e pastores) alicerçados, evi
dentemente, na Palavra de Deus.” Rodrigo P. Silva, “Teologia Adventista - seu lugar e fmição na igreja
remanescente”, in: Revista teológica do SALTIAENE , Jun./Jul. de 2000, vol. 4, n" 1, p. 4-5.
5. “Se desejamos completar o projeto teológico adventista [proposto e iniciado pelos pioneiros do movi
mento], devemos superar as desconexões que hoje existem entre a teologia e a vida da igreja.” Fernando
Canale, “Completando a teologia adventista - parte II", p. 140.
184 / E x p l o s ã o Y
povo do advento.6 Se alguém não se vê no espelho antes de sair de casa, ficará lisonjeado
ao primeiro elogio, embora tenha creme dental no canto da boca! Temos que nos conhe
cer para depois aceitar aquilo que dizem sobre nós - quer positiva, quer negativamente.
Creio que um a análise das razões citadas e a busca pela correção evitariam ou, ao
menos, conteriam os discursos fora de lugar. Pelo bem de nossa missão, algo tem de
ser feito - e o m ais rápido possível. Por outro lado, há o extremo de nos esquecermos
da herança escatológica do movimento e nos concentrarmos em pontos em comum
com os demais evangélicos (cap. 1). Evidentemente, esta ênfase marcaria o suicídio
de nossa m ensagem !7 Com o tratar, então, a escatologia adventista com propriedade?
(1) Daniel e Apocalipse proveem muito do conteúdo que faz a teologia ad
ventista única no mundo cristão; (2) Esses livros apocalípticos forneceram
6. “Teologia criativa com solidez é rara entre os adventistas. Seguindo uma tradição que se pode rastrear
ao menos até 1888, os adventistas tendiam a se sentir acomodados adotando sua teologia dos teólogos
protestantes clássicos e modernos. Em consequência, a maioria de nós também está inconsciente do pa
pel que a epistemologia e a ontologia desempenham em nosso próprio pensar teológico adventista. Isso
explica a existência de adventistas modernos, e a total ‘protestantização’ do adventismo que tem ocorrido
nos últimos cinquenta anos.” Idem, Epistemologia bíblica para la investigación adventista?”, p. 129, 130.
7. “Então, os mandamentos de Deus e a verdade ensinada por Jesus serão centrais no teste do fim no contexto da
adoração.” Norman Gulley, “Terror global: O Apocalipse 13 à luz do 11 de setembro” in: Timm, Alberto R.; Rodor
Amin A.; Domeles Vanderlei (ed). Ofuturo: a visão adventista dos últimos acontecimentos, p. 194.
8. “Para os adventistas, Daniel e Apocalipse não são obras marginais; elas são fundamentais para a cosmovisão
adventista e seu conceito de Deus. Para os adventistas, a rejeição desta posição como desesperadamente obso
leta seria o inicio de uma mudança fundamental no pensamento adventista.” Jon K. Paulien, Opus cit., p. 248.
9. “Cada vez mais cristãos da atualidade questionam a autenticidade bíblica de algumas de suas crenças
dcnominacionais. Isso acontece em parte devido ao novo clima de liberdade intelectual, que estimula as
pessoas a lançar um novo olhar sobre questões sociais, políticas e religiosas. Nos países ocidentais, muitas
pessoas já não se sentem obrigadas a aceitar cegamente as crenças da igreja que frequentam. Elas anseiam
descobrir se aquilo em que foram doutrinadas se baseia mesmo nos ensinos da Bíblia ou se não passa de
meras tradições religiosas.” Samuele Bacchiocchi, Crenças Populares: o que as pessoas acreditam e o que
a Bíblia realmente diz (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2012), p. 6. Embora Bacchiocchi trate da
questão de forma mais generalizada, é certo que o fenômeno afeta os adventistas. É claro que isso pode
nos levar a desconstruir as influências híbridas e reconstruir sobre o fundamento bíblico (capítulo 11).
E sc a t o l o g ia , aqui me tens de regresso / 185
10. Jon Paulien, “The End of Historiásm? Reflections on the Adventist Approach to Biblical Apocalyptic -
Part One", in: Journal of Adventist theologicaí society, voL 14, n" 2, p. 15.
11. Gerhard Pfandl, “In Defense o f the Year-day Principie”, in: Journal of Adventist theologicaí society, ano
23, vol. 1, p. 3.
12. Ver a tese doutoral de Kai Arasola, The End of Historiásm: MiUerite Hermeneutic ofTime Prophecies in the
OldTestament, University of Uppsala FacuJty of Theology (Sigtuna: Datem, 1990).
13. “A percepção dessas tendências especulativas tem feito muitos adventistas ponderados questionarem
a completa validade da interpretação historicista da apocalíptica. C ada adventista encontra duas outras
opções interpretativas cada vez mais atraentes.” Jon Paulien, ‘"lhe End of Historiásm? - Part One", p. IS.
14. “A tendência ao literalismo exagerado do historicismo de alguns estudiosos adventistas do sétimo
dia os levou ocasionalmente a marcar novas datas para o segundo Advento, ameaçando assim a credi
bilidade do Adventismo.
“Outro aspecto do literalismo historicista exacerbado diz respeito à compreensão literalista do Arma-
gedom. A interpretação adventista tradicional do Armagedom demonstra uma clara influência do con
texto histórico sobre a hermenêutica apocalíptica.” Luiz Nunes, Crises na igreja apostólica e na igreja ad
ventista do sétimo dia: análise comparativa e implicações missiológicas (Engenheiro Coelho, SP: Imprensa
universitária adventista [Unaspress], 1998), tese doutoral, p. 104-105.
15. “Enquanto pós-modernos têm maior probabilidade de crer em Deus que os seus parentes antigos baby
boomers, eles têm grande dificuldade em imaginar que alguém possua uma impressão detahada sobre o
que Deus é na verdade.” Jon Paulien, “The End of Historicism? - Part One”, p. 20. A dicotomia entre pós-
-modernos e baby boomers é provavelmente equivocada, uma vez que, conforme já tratamos, o período
pós-moderno abarca algumas gerações, inclusive a dos baby boomers. Mas isso não impede que, embora per
tençam ao período pós-moderno, indivíduos baby boomer e da Geração Y possuam características distintas.
16. Durante certo tempo, foi consenso dos estudiosos que livros bíblicos como Daniel e Apocalipse se enqua
dravam no mesmo gênero literário que alguns apocalipses judeus apócrifos. Segundo I-aRondelle, “Os termos
apocalíptico e ‘apocalipcismó foram usados, mais tarde, pelos eruditos para indicar as escatologías especulativas
e contraditórias contidas nesses escritos do judaísmo tardio.” Hans K. LaRondelle, Im s profecias delfin (Buenos
Aires, Ar: Asociación Casa Editora Sudamericana, 1999), p. 21. Paulien, por outro lado, define que “uma obra
apocalíptica, como Daniel ou Apocalipse, é literatura revelatória” cujas informações foram comunicadas direta
mente por Deus. Por contraste, os apocalipses míticos intertestamentário “descrevem a ascensão do vidente atra
vés dos céus, os quais são frequentemente numerados.” Jon Paulien, “lhe End of Historicism? - Part One”, p. 23,25.
186 / E x p l o s ã o Y
E vi subir do mar uma besta que tinha sete cabeças e dez chifres, e sobre os
seus chifres dez diademas, e sobre as suas cabeças um nome de blasfêmia. E a
besta que vi era semelhante ao leopardo, e os seus pés como os de urso, e a sua
boca como a de leão; e o dragão deu-lhe o seu poder, e o seu trono, e grande
poderio. E vi uma das suas cabeças como ferida de morte, e a sua chaga mortal
foi curada; e toda a terra se maravilhou após a besta. E adoraram o dragão que
deu à besta o seu poder; e adoraram a besta, dizendo: Quem é semelhante à
besta? Quem poderá batalhar contra ela? E foi-lhe dada uma boca, para profe
rir grandes coisas e blasfêmias; e deu-se-lhe poder para agir por quarenta e dois
meses (Ap 13:1-5, NVI).
De fato, existe, e essa afirmação merece um exame mais acurado, baseado em da
dos seguros, não em especulação (como na afirmação descabida a respeito do suposto
17. “Durante a era apostólica, o anticristo não se desenvolveu plenamente como declarou o apóstolo
Paulo em 2 Tessalonicenses 2. Mesmo o idoso apóstolo loão declarou que o anticristo profetizado ainda
estava no futuro (1 Jo 2:18). Por outro lado, advertiram a igreja acerca da proximidade durante a era da
igreja (At 20:29-30; 2Ts 2:3-8; Ap 13). É notável que o pai da igreja, Tertuliano (cc. 200 d.C.), tenha en
sinado que o anticristo predito {por Daniel) não era o Império Romano, senão que se levantaria depois
da desaparição de Roma pagã e depois se levantaria na igreja. Tertuliano interpretou 2 Tessalonicenses
afirmando que a existência do Império Romano retardava o surgimento do anticristo.” Hans K. LaRon-
delle, Las profecias delfin, p. 250. Grifos no original.
18. Gerhard Pfandl, “In Defense o f the Year-day Principie”, p. 4-5.
19. “Cristo viu sua missão como Messias em forma completamente diferente de todas as expectativas
messiânicas do judaísmo. Colocou sua missão de um Messias sofredor e moribundo dentro da estrutura
apocalíptica de Daniel." K. LaRondelle, Las profecias delfin, p. 23. LaRondelle argumenta que a mais
impressionante declaração feita por Jesus nesse sentido aparece em Marcos 10:45, que seria uma junção
dos conceitos extraídos de Daniel e da profecia do Servo Sofredor em Isaías 53. Na p. 25, o autor vincula
a urgência a respeito do reino com “o cumprimento do tempo messiânico das 70 semanas.” (cf. G1 4:4,
onde se vê que Jesus veio em um tempo profeticamente estabelecido por Deus).
E sc a t o l o g ia , aqui me tens de regresso / 187
título Vicarius Filli Dei, ainda usada por evangelistas desavisados).211 Para entender
esse capítulo, precisamos estudar seu contexto (Ap 12-14). É importante lembrar
igualmente da relação desse contexto com o livro de Daniel. Há semelhança entre as
características das bestas e do pequeno chifre (Ap 12:3-4; Dn 7:7, 24; 8:10); a guerra
no céu (Ap 12:7-9; Dn 2:35; 10:13,20-21; 12:1).21 Além disso, a primeira besta descrita
em Apocalipse incorpora as características dos quatro animais de Daniel 7, além de
ter a mesma atitude blasfema e possuir um limite de tempo para exercer seu domínio
- 42 meses no Apocalipse, paralelos aos 3 anos e meio de Daniel (Ap 13:5; Dn 7:25),
período em que os santos seriam duramente oprim idos (Cf.: Dn 7:25; 12:7; Ap 13:5).22
Fica claro que se trata da m esm a entidade.
Maxwel vê, em Daniel 7, oito características distintas do anticristo (“ponta pe
quena” ), as quais nos ajudam a localizá-lo no tem po e no espaço: (1) surge da quar
ta besta (sím bolo do império romano, v. 8, 24); (2) ascende após o aparecimento
dos dez chifres (ou seja, após a queda de Roma e posterior divisão entre as dez
tribos bárbaras, v. 24); (3) em bora apareça pequeno, desenvolve-se (v. 8, 20); (4)
Diante dele, caíram outros três chifres (referindo-se à queda dos reinos que haviam
adotado o cristianism o ariano, v. 8, 24); (5) possui olhos hum anos e boca que fala
com insolência contra D eus (v. 8, 25); (6) m agoaria os santos (v. 25); (7) m udaria
os tem pos e a lei (v.25; (8) teria poder durante “um tempo, dois tem pos e metade
de um tem po” (v. 25).23 Essas características coincidem nitidamente com as ações
do papado na Idade Média.
Temos de considerar agora o princípio dia/ano. Enquanto preteristas e futuristas
interpretam “os elementos de tempo” nas profecias de Daniel como períodos literais,
20. Vicarius Filli Dei (do latim: O substituto do Filho de Deus) é um título que seria atribuído ao papa
e que se cria achar-se na mitra papal. Dando valor numérico aos algarismos romanos, se chegaria ao
número 666. Segundo o teólogo adventista Milton Torres, há quatro razões que desqualificam essa inter
pretação: (1) falta registro histórico do número 666; (2) há uma violência ao grego Koiné, usado no NT
(já que a expressão é latina); (3) uso indevido da gematria, que lida com atribuições numéricas a letras e
que era mais usada por judeus e gregos, não pelos romanos; (4) equívocos com respeito ao título papal,
que seria Vicarius Dei ou Vicarius Christi. Veja Milton L. Torres, “Contenções quanto à interpretação tra
dicional de 666 em Apocalipse 13:8”, in: Revista teológica do SALT - [AENE, Janeiro-Junho de 1998, vol.2,
n0 1, p. 63-64. Para uma revisão histórica e motivos adicionais para refutar o uso de Vicarius filli Dei,
ver Luiz Gustavo S. Assis, “Vicarius Filli Dei: sua origem e uso na ÍASD como interpretação de Apocalipse
13:8", in: Kerigma, Ano 3, n“ 2, vol. 2. “Em novembro de 1948, Leroy E. Froom publicou sua resposta
para uma pergunta referente à inscrição na tiara do papa. Após negar qualquer tipo de grafia na mitra
papal, Froom afirmou que como arautos da verdade, devemos proclamá-la verdadeiramente’ e que em
nome da verdade e honestidade este periódico protesta contra algum membro da associação ministerial
da denominação adventista do sétimo dial Segundo ele, a verdade não necessita de uma fabricação para
ajudá-la?’ Froom, Leroy E. “Dubious Pictures of the Tiara”, in: The Ministry, novembro de 1948, p. 35,
apud. Luiz Gustavo Assis, Opus. cit., p. 94. Não precisamos desse expediente para convalidar a interpre
tação historicista de Apocalipse 13.
21. lon Paulien, “The End of Historicism? Reflections on the Adventist Approach to Biblical Apocalyptic -
Part Two”, in: Journal of Adventist theological society, vol. 17, n" 1, p. 198.
22. LaRondelle, Las profecias delfin, p. 251, 258.
23. C. Mervyn Maxwel, Uma nova era segundo as profecias de Daniel (Tatuí, SP: Casa Publicadora Bra
sileira, 1996), p. 126, 127.
188 / E x p l o s ã o Y
24. William H. Shea, Estúdios Selectos sobre interpretaáón profética, (Buenos Aires, Ar: Asociación Casa
Editora Sudamericana, 1990), tomo I, p. 57.
25. Jon Paulien, “The End of Historicism? - Part One”, p. 42.
26. William H. Shea, Estúdios Selectos sobre interpretación profética, p. 58-61.
27. Gerhard Pfandl, “In Defense ofthe Year-day Principie”, p. 6.
28. William H. Shea, Opus c/f., p. 62. “Quando os períodos de tempo da apocalíptica acompanham a per
sonagens que realizam ações simbólicas é natural esperar que esses periodos de tempo também sejam
de natureza simbólica.” ldem, p. 63.
29. Gerhard Pfandl, Opus cit., p. 7. “As profecias de Daniel 7-8 e 10-12 conduzem ao ‘tempo do firn
(8:17; 11:35,40; 12:4,9), o qual é seguido pela ressurreição (12:2) e o estabelecimento do reino eterno de Deus
(7:27).” Idem, p. 9.
30. Todos encontrados em William H. Shea, Opus cit., p. 64.
E sc a t o l o g ia , aqui me ten s de regresso / 189
se referisse a três anos e meio literais, seria de se esperar que a expressão fosse grafada
dessa forma, como em outras partes da Bíblia (2Sm 2:11; Lc 4:25; At 18:11; Tg 5:17).31
Finalmente, há antecedentes no AT do princípio dia/ano. Os casos dizem respeito ao
ano sabático (Lv 25:1-7), ano jubileu (Lv 25:8) e a uma profecia que indicava as consequên
cias da rebeldia (Nm 14:34). Dos três casos, o que mais se assemelha ao uso de dia/ano em
Daniel - especialmente no cap. 9, no qual se vê fortes paralelos linguísticos - é o ano jubi
leu. O fato de o princípio ser usado de formas diferentes em diversos textos bíblicos abre
precedente para seu uso nas profecias apocalípticas, que pressupõem um período maior e,
mesmo assim, apresentam tempo visivelmente curto para a magnitude do evento.32
Os adventistas entendem os 1260 dias como se referindo ao poder papal, o qual
corresponde às características tanto do pequeno chifre (Dn 7), quanto da besta (Ap
13), sím bolos diferentes para a m esm a entidade. Aplicando o princípio dia/ano, o
movimento interpreta que a supremacia papal se estendeu de 538 a 1798, quando o
papa da época foi deposto a mando de Napoleão. A ascensão histórica do papado,
estabelecida em eventos como a conversão de Constantino, o transfunde filosófico
provido pelo livro A cidade de Deus, de Agostinho, a conversão de Clóvis e sua vitó
ria final sobre os arianos (em 508 d.C.), além do fortalecimento sucessivo do bispo
de Roma confirmam a compreensão adventista.33 Consistente mente, o adventismo,
apoiado no m étodo de interpretação historicista, sustenta que após o declínio do p a
pado se iniciaria um processo de restabelecimento: a cura do “ferimento mortal” (Ap
13:3) levaria o poder romano a um novo status de predomínio mundial.
Analisaremos evidências que sustentam aquilo que os adventistas vêm afirmando ao
longo de sua história: a identificação da igreja de Roma como uma entidade de ambições
políticas, que visa a exercer ampla influência mundial, a exemplo do que testemunhou
a Idade Média. Para tal, teceremos considerações referentes ao movimento ecumênico,
maior demonstração das pretensões católicas à soberania que já teve um dia.
em nosso caso, quer dizer que os adventistas devem estar bem certos de sua própria
identidade ao dialogar com qualquer outro segmento religioso. Temos uma m en
sagem a compartilhar, o “Evangelho Eterno” (Ap 14:6), e devemos levá-la a todos,
m esm o àqueles que estejam satisfeitos com sua própria experiência religiosa, seja
qual for. Ao fim, todos os sinceros receberão o com itê de Deus (Jo 10:16; Ap 18:4) e
se unirão a Cristo, essência do Evangelho Eterno.
Em contrapartida, Satanás, num a paródia espúria da tríplice mensagem angélica
(Ap 16:14), tam bém objetiva reunir as pessoas religiosas em torno de seu último en
gano (17:18; 18:3). Os adventistas compreendem que o movimento ecumênico, lide
rado pela Igreja Católica Romana, corresponde à descrição apocalíptica. Percebe-se
que as iniciativas que o movimento promove avançam a passos largos, buscando con
vencer os religiosos a se unirem à comunhão católica - ainda quando a igreja romana
não abre mão de suas alegações de autoridade, ultrapassando até m esm o a autori
dade da Bíblia. Recentemente, o então papa Bento XVI reafirmou que a chave para
a verdadeira interpretação das Escrituras é a Igreja de Roma, em seus 'organism os
institucionais”.35 Com isso, a Bíblia só é válida quando interpretada pela Igreja C ató
lica. Entretanto, em seu discurso de renúncia, o papa se traiu quando pediu perdão
por seus erros, o que é incompatível com a doutrina católica da infalibilidade papal.36
Partindo dessa compreensão apocalíptica, torna-se inevitável que haja um afu
nilamento de perspectivas espirituais, as quais convergirão para dois movimentos:
um, no sentido de regressar à Bíblia e outro, convergindo para as tradições humanas.
Com o adventistas, nosso desafio é pregar a última mensagem, chamando as pessoas
sinceras à comunhão com a Verdade, o que exige urgência quando pensam os nas úl
timas incursões católicas no diálogo inter-religioso. O propósito desta seção é ju sta
mente analisar o quanto a Igreja Católica Romana avança em seus esforços ecum êni
cos. Há pelo menos duas razões para nos preocuparm os com o assunto: (A) Verificar
o cumprimento das profecias apocalípticas, as quais apontam para a união religiosa
encabeçada por Roma (Ap 13:3, 8), o que, em última instância, deve nos (B) levar a
um m aior comprometimento em relação ao Verdadeiro Evangelho, para que ele seja
pregado a todo o mundo o quanto antes.
Com o o assunto do ecumenism o é distorcido por pregadores sensacionalistas e,
mormente, exageros são proferidos trazendo mais perplexidade do que conscienti
zação, preocupam o-nos com a qualidade da informação. Por isso, recorremos, na
maior parte dos casos, a fontes oficiais da Igreja Católica ou à mídia secular. Pela
abrangência do assunto, nos concentramos em três grupos que são alvo dos esforços
ecumênicos da igreja do papa emérito Bento XVI: anglicanos, judeus e luteranos.
35. "Bento XVI e Bíblia: método histórico-crítico sim, mas a partir do Magistério”, disponível em: chftp://
zenit.org/article-23113?l=portuguese>. Acesso: 4 de jun. de 2013.
36. As palavras exatas do ex-pontífice foram: “Caríssimos irmãos, verdadeiramente de coração vos agra
deço por todo o amor e a fadiga com que carregastes comigo o peso do meu ministério, e peço perdão por
todos os meus erros” Para o discurso de renúncia do Papa Bento XVI na íntegra, ver Andreas English, O
homem que não queria ser papa (São Paulo, SP: Universo dos livros, 2013), p. 553.
E sC A T O l.O G lA , AQUI ME T E N S DE R EGR ESSO / 1 9 1
Anglicanos
Dissidente do catolicismo, a Igreja Anglicana surgiu como uma denominação es
tatal, quando o im perador Henrique VIII (1491-1547) separou-se de Roma. O m o
tivo? O im perador queria se casar com Ana Bolena, porque sua esposa, Catarina de
Aragão, não lhe dava filhos homens. Sendo o divórcio condenado pelo catolicismo, o
rei rompeu com o papa.
Em verdade, a Igreja Anglicana nunca se revelou como autenticamente protes
tante. Seus humores oscilaram entre um catolicismo estatal e uma fé reformada com
maior moderação. O biólogo ateu Richard Dawkins, anglicano na infância, disse que
o Anglicanismo se trata de um Cristianism o m ais civilizado. Recentemente, com a
decisão do Vaticano de aceitar em condições especiais anglicanos conversos, boa par
te desses cristãos poderão se tornar católicos.
O site Zenit fez as honras,37 divulgando as resoluções do papado. O prefeito da
Congregação para a Doutrina da Fé, o cardeal William Joseph Levada, explicou que
até m esm o padres anglicanos, que são casados, poderão m udar de denominação,
permanecendo padres e mantendo o matrimônio. Tornar-se um católico parece algo
irresistível para a maioria dos membros da igreja fundada por Henrique VIII, levan
do em conta decepções recentes: com a aprovação do clérigo homossexual, muitos
anglicanos abandonaram a denominação.
O episódio recebeu atenção maciça da mídia. Com o avaliá-lo? Trata-se de mais
uma iniciativa do ecumenismo de Roma, que vem crescendo em número de ações
efetivas e surpreendentes. No caso da nova empreitada, os ex-anglicanos poderão
manter até resquícios de sua própria tradição. O que vale é que se ponham sob a
tutela da acolhedora Sé. Quantos mais não aceitarão este convite no fim dos tempos?
Judeus
Cham ada pelo Pe. David Mark Neuhaus, secretário-geral de vicariato católico de
língua hebraica em Israel, de “sutil evolução”, a compreensão do papa emérito Bento
XVI sobre o shabbat (sábado) é surpreendente. “Acaso não diz o Talmud Yoma (85b):
‘O sábado foi dado para vós, não vós para o sábado’?”, teria afirmado o pontífice em
viagem à Paris, ocorrida em 2007.38
O site do vicariato católico de língua hebraica39traz mais detalhes sobre o discurso
de Bento XVI à comunidade judaico-católica em Paris. Separam os o seguinte trecho:
37. “Anglicanos: Santa Se antecipa-se aos jornalistas”, disponível em: < http://zenit.org/article-
-23049?l=portuguese>. Acesso: 4 de jun. de 2013.
38. ‘“Sutil revolução de Bento XVI na relação com judeus”, disponível em < http://zenit.org/article-
-19636?l=portuguese>. Acesso: 4 de jun. de 2013.
39. “Benedict XVI to the Jewish community in Paris”, disponível em: <http://www.catholic.co.il/index.
php?option-com_content&task=view&id-146&Itemid-9>. Acesso: 4 de jun. de 2013. Grifos suprimidos.
192 / E x p l o s ã o Y
Eu estou satisfeito por receber vocês nesta tarde. É uma circunstância feliz
que nosso encontro tenha lugar na véspera da celebração do ‘Shabbat’, o dia que
desde um tempo imemorial ocupa simultaneamente um lugar destacado na re
ligião e na vida cultural de Israel. Cada judeu piedoso santifica o ‘Shabbat’ pela
leitura das Escrituras e recitação de salmos. Queridos amigos, como vocês sa
bem, a devoção de Jesus foi também nutrida pelos salmos. Ele ia regularmente
ao Templo e à sinagoga. Ele falou ali no dia de Sábado. Ele queria enfatizar com
que generosidade Deus olhou para o homem, também incluindo a organização do
tempo. Acaso não diz o Talmud Yoma (85b): ‘O sábado foi dado para vós, não
vós para o sábado?’, Cristo fez a pergunta ao povo da Aliança para reconhecer
constantemente a inaudita grandeza e amor do Criador de todo homem. Queri
dos amigos, a despeito das razões que nos unem, a despeito das razões que nos
separam, nós podemos viver e fortalecer nossa fraternidade. E nós sabemos
que os laços da fraternidade são um contínuo convite para conhecer melhor
um ao outro e respeitar-nos mutuamente.
Sem dúvida, o líder maior da igreja Católica omitiu que o sábado, esse dia que
Cristo tinha em tão alta conta (conforme o então papa mesmo admitiu), foi substituí
do pela espúria observância do domingo, durante a Idade Média. Ainda assim, Bento
deixou nas entrelinhas sua intenção ecumênica.
Posteriormente, o então papa asseverou a intenção de visitar a com unidade ju
daica em Roma até o fim do ano. O jornal O Estado de São Paulo informou que Ben
to XVI buscava sua “proxim idade pessoaí e a de toda a Igreja Católica” em relação
aos judeus.4"
Apesar da falta de carisma, se comparado a João Paulo II, o pontífice anterior,
Bento XVI prosseguiu com ações ecumênicas significativas, que, por vezes, esbarra
ram em suas declarações estritamente dogmáticas. No caso dos israelitas, o esforço
para reconquistá-los se deve, em parte, a um afastamento provocado por dois fatores:
o caso W illiamson e a intenção desastrosa de beatificar Pio XII.
Em janeiro de 2009, Richard W illiamson, bispo sueco ultraconservador, foi rea
bilitado pelo papa. Sua ordenação fora “anulada”, um a vez que ocorrera sem a auto
rização do Vaticano. Após a reintegração, divulgou-se um a entrevista dada anterior
mente por W illiamson, na qual ele relativizava o holocausto. O fato de Roma não
banir o bispo causou mal-estar na relação entre católicos e judeus (isto apesar do
mea-culpa de W illiam son).41
Sobre o outro motivo da crise: para Bento XVI, o papa Pio XII (1876 — 1958)
deveria ser beatificado. O processo de beatificação consiste no primeiro passo que se
40. “Papa saúda festas judaicas e planeja visita à sinagoga de Roma”, disponível em: < http://www.estadao.
com.br/noticias/vidae,papa-sauda-festas-judaicas-planeja-visita-a-sinagoga-de-roma,436458,0.htm>.
Acesso: 4 de jun. de 2013.
41. Para maiores detalhes, consultar “ Bispo que questionou Holocausto pede perdão às vítimas e à igreja”,
disponível em: <http://wwwl.foiha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u50972 l.sh tm lx Acesso: 4 de jun. de
E sc a to lo g ia , aqui me ten s de r e g r e s s o / 193
Luteranos
Desde a década de 70, Luteranos e Católicos promovem um diálogo mútuo, com
intenções ecumênicas, o que tem rendido alguns docum entos expressando pontos
doutrinários comuns entre as duas tradições. Em parte, este entendimento parece
divergir do princípio Sola Scriptura adotado por Lutero, que consiste em tratar a Bí
blia com o regra de fé e única autoridade para determinar a crença cristã. Sutilmente,
as denom inações envolvidas procuram se unir em pontos que as suas respectivas
42. “Presidente de Israel defende visita de Bento XVI ao país”> disponível era: <http://www.estadao.com.
br/vidae/not_vid262734,0.htm>. Acesso: 4 de jun. de 2013.
43. “Beatificação de Pio XII não foi aprovada por conflito com judeus", disponível em: <http://www.estadao.
com.br/noticias/vidae.beatificacao-de-pio-xii-nao-foi-aprovada-por-conílito-com-judeus,390061,0.
htm>. Acesso: 4 de jun. de 2013.
1 9 4 / E xplo são Y
tradições com partilham, sem considerar, mediante estudo da Bíblia, em que aspec
tos seus credos precisam ser corrigidos e alinhados com a doutrina bíblica.
Isso nos faz im aginar o que o próprio Lutero diria se estivesse vivo e presenciasse
as condições do diálogo entre seus confrades e os católicos. Basta nos lembrar de
que, na época de Lutero, um de seus mais próximos colaboradores, Felipe de Melânc-
ton, foi duramente combatido por irm ãos luteranos e até repreendido pelo próprio
Lutero, por ter se mostrado, em m ais de um a ocasião, “flexível” demais em diálogos
(não espontâneos, mas convocados pelo imperador Carlos V, do Sacro Império G er
mânico) interdenominacionais. Talvez os luteranos contemporâneos devessem ser
denom inados de “filipinos”, por um a questão de justiça...
Seja como for, o papa emérito Bento XVI parecia satisfeito com o rum o do diálo
go com os luteranos. O tópico que o diálogo abordava era o da justificação pela fé, o
m esm o que im pulsionou o jovem doutor Lutero a pregar contra os abusos romanos
em pleno século XVI, quando acender uma fogueira para um herege era uma ativida
de que não demandava muita burocracia. Em 31 de outubro de 1999 (m esma data em
que Lutero colocou suas 95 teses no castelo de Wittenberg, ato-símbolo da Reforma
na Alemanha, em 1517), um documento fora assinado por católicos e luteranos, ex
pressando sua crença comum na justificação.
Obviamente, a Igreja Católica jam ais reconheceu sua culpa por condenar Lutero!
No dia 19 de janeiro de 2009, diante de uma delegação finlandesa representando
interesses ecumênicos, Bento XVI expressou seu desejo da união do corpo de C ris
to: “A Igreja é este C orpo místico de Cristo e é guiada continuamente pelo Espírito
Santo; o Espírito do Pai e do Filho. Só baseando-se nesta realidade da encarnação se
poderá compreender o caráter sacramental da Igreja como comunhão em Cristo.”44
Essa declaração do então pontífice, que aparece no site Zenit, revela o próximo passo:
um a união baseada na compreensão da universalidade do corpo de Cristo, uma rea-
proxim ação que apela para a unidade da igreja.
44. “Papa propõe a luteranos reflexão comum sobre Igreja”, disponível em < http://zenit.org/article-
-20577?l-portuguese>. Acesso: 4 de iun. de 2013.
45. "Mas se quisermos causar um impacto em nossa cultura, o primeiro passo deve ser o de nos unirmos
a Cristo, fazendo um esforço consciente entre todos os verdadeiros crentes para nos unirmos a despeito
das linhas raciais, éticas e confessionais. Em sua grande oração sacerdotal, Jesus orou fervorosamente
para que fôssemos um, assim como Ele é um com Seu Pai. Por quê? Para que o mundo creia que Ele é
o Cristo (ver Jo 17:20-23). A implicação inevitável das palavras de Cristo é a chave para a evangelização
e para a renovação cultural. Muito da fraqueza da igreja pode ser atribuída a nossa incapacidade ou
indisposição para obedecer à ordem de procurar a unidade em Cristo.” Charles Colson e Nancy Pearcey,
O cristão na cultura de hoje: desenvolvendo uma visão de mundo autenticamente cristã (Rio de Janeiro,
RJ: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 2006), 2* ed., p. 49, 50.
E sc a to i.o g ia , aqui me te n s de r e g r fs s o /1 9 5
46. O trabalho foi posteriormente publicado em forma de livro. Ver Reinder Bruinsma, Seventh-day Adven-
tist Attitudes TowardRoman Catholicism 1844 -1965 (Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 1994).
47. Veja a resenha ao livro de Bruinsma feita por Enrique Becerra, in: Revista Diálogo Universitário, vol.
8, n° 2, p. 28,29
48. Sobre o papa, um livro recente afirma que ele se acha “convencido de que todas as crenças têm um
ponto em que se conectar. A habilidade é encontrar este ponto e deixar de lado as diferenças, para avan
çar no diálogo e na unidade.” Evangelina Himitian, ,4 vida de Francisco: o papa do povo (Rio de Janeiro,
RJ: Objetiva, 2013), p. 159. De fato, o próprio pontífice declarou: ‘Deus se faz sentir no coração dc cada
pessoa. Também respeita a cultura dos povos. Cada povo vai captando essa visão de Deus e a traduz de
acordo com a cultura que tem, e vai elaborando-a, purificando, dando-lbe um sistema. Algumas cultu
ras são mais primitivas em suas explicações. Mas Deus se abre a todos os povos, chama a todos, provoca
a todos para que O busquem e O descubram por meio da Criação.” Jorge Bergoglio e Abraham Skorka,
Sobre o céu e a terra: o que pensa o novo papa Francisco sobre família, a fé e o papel da Igreja no século
XXI (São Paulo, SP: Paralela, 2013), p. 28.
196 / E x p l o s ã o Y
49. Jorge Mario Bergoglio, Abraham Skorka e Marcelo Figueroa, Razão e fé (São Paulo, SP: Saraiva,
2013), p. 45.
50. “Francisco pede diálogo com o Islã e quer chegar aos ateus’’, disponível em: < http://www.estadao.
com.br/notidas/internacional,francisco-pede-dialogo-com-o-isla-quer-chegar-aos-ateus,10i2019,0.
htm> Acesso: 5 de jun. de 2013. Houve uma declaração polêmica do papa a respeito dos ateus, dizendo
que se eles fizessem o bem, eles se encontrariam no céu. Ver “Pope Francis Says Atheists Who Do Good
Are Redeemed, Not Just Catholics”, disponível em: <http://www.huffingtonpost.eom/2013/05/22/pope-
-francis-good-atheists_n_3320757.html>. Acesso: 5 de jun. de 2013. O texto bíblico usado conta sobre
quando os discípulos repreenderam um homem que curava em nome de Jesus, embora não pertencesse
ao grupo de discípulos (Mc 9:38-40). Logo, os discípulos, segundo o papa, estariam imbuídos da ideia
segundo a qual “aqueles que não têm a verdade, não podem fazer o bem”. Obviamente, o contexto da
repreensão feita por Jesus é outro - até porque o homem censurado pelos discípulos curava em nome
de Cristo e não invocando uma divindade pagã! Entrementes, nem todos os que usam o nome de Jesus
estão ao lado dEle (At 19:13-17).
51. Declaração feita durante entrevista à Nathalia Watkins, “O amigo judeu do papa Francisco! in: Veja,
ed. 2323, ano 46, n" 22, 29 de maio de 2013, p. 21. Note as demais declarações de Sorka, que, se demons
tram indisfarçado relativismo, não deixam de promover o ecumenismo sobre as bases da equivalência
de cada proposta religiosa: “Toda religião deve ser dinâmica e ter uma atitude de busca por Deus. Nin
guém pode dizer que sabe exatamente qual é a verdade e que todos devem aceitá-la ou serão destruídos.
[...] O diálogo, então, deve ser priorizado. O fundamentalismo, como diz Francisco, é um discurso
único, em que a voz do outro não existe. [... J Não podemos dizer que somos donos da verdade e ponto.
A verdade de uma pessoa não pode ser posta por cima da verdade de outra.
Se um indivíduo defende fortemente a paz, talvez muitos fanáticos possam acordar e mudar de
ideia. Não digo mudar o credo, porque não é o caso, e sim deixar de lado o fanatismo. Esse será o norte
do papado de Francisco. Ele trabalhará com muita humildade e simplicidade pela paz, para levar ares de
espiritualidade profundos ao seio da Igreja e cuidar para que isso chegue a todos os homens, de todas as
re lig iõ e sp. 20-21, grifos supridos.
Enquanto isso, lá em Roma
Palavras de esperança
No dia 30 de novembro de 2007, o então Papa Bento XVI promulgou a segunda
encíclica de seu pontificado. Intitulada Spe Salvi,1 a carta apostólica versou sobre a
esperança cristã e seus efeitos na vida da comunidade da fé, em face de um mundo
m aterialista e, consequentemente, alienado de Deus. Os adventistas têm acom panha
do as declarações papais na expectativa de que o quadro profético em que creem (Ap
13) continue a se cumprir. Nesse sentido, a mais comentada encíclica foi, sem dúvida,
a Dies Dominis, na qual o papa anterior, João Paulo II, argumentava com os cristãos
no sentido de fortalecer a observância do domingo,
Entre a Dies Dominis, datada de 31 de maio de 1998, e a Spe Salvi o cenário católico mu
dou. À frente da Santa Sé não tínhamos mais o carisma de Carol Wojtyla, nome de nasci
mento do pontífice que faleceu em 2 de abril de 2005, notabilizou-se por suas peregrinações
internacionais e seus diálogos com chefes de estado. Rapidamente, João Paulo tomou-se
respeitado no mundo, inclusive por líderes de outras religiões, fato que impulsionou o ecu
menismo. Após sua morte, muitos se perguntavam quem estaria à altura para substituí-lo.
Quando a fumaça branca foi vista na praça de São Pedro, em 19 de abril de 2005, o cardeal
joseph Ratzinger havia sido eleito Papa, escolhendo ser chamado de Bento XVI.
Em bora sem o talento natural de seu antecessor para as relações públicas, Rat
zinger, ao assum ir o trono de Pedro, tratou de impor sua versão tradicionalista do
Catolicismo, tanto por seus pronunciamentos, como por seus escritos. Enquanto na
Dies Dominis, João Paulo II escrevia de forma doce, imitando propositadamente o
tom afetuoso do apóstolo João, Bento XVI dissertou na qualidade de um teólogo.
O então pontífice sustentou algumas bandeiras (sem se importar de que estives
sem na contramão da M odernidade ou dos preceitos bíblicos), entre as quais pode
ríam os mencionar o apoio à volta do Latim na celebração da missa, as restrições ao
movimento carismático, as polêmicas declarações sobre o Islã e a respeito da Igreja
Católica com o única igreja verdadeira - foram estas algumas das marcas do breve
apostolado de Bento XVI.
Apesar de ganhar notoriedade em boa parte da mídia como um ataque ao secularis-
mo e ao ateísmo, Spe Salvi focou suas considerações no viver cristão; poderíamos definir
o assunto da encíclica como um dos temas essenciais ao cristianismo. Bento XVI analisou
diversos textos bíblicos, principalmente escritos pelo apóstolo Paulo, a respeito da natu
reza, significado e propósito característicos da esperança que Cristo nos trouxe. “É na
esperança que fomos salvos” (Rm 8:24), eis o texto introdutório usado pelo Papa emérito.
Um a visão geral sobre a nova carta-encíclica pode sugerir o exercício de uma
teologia m ais bíblica por parte do dito sucessor de Pedro. De fato, Víctor Figueroa,
por ocasião do diálogo entre católicos e luteranos, já observava: “Parece que os
católicos desejam aparecer diante dos protestantes como m ais fundam entados e
Afetando o presente
Por mais surpreendente que a seguinte constatação pareça, muitas das afirmações
feitas por Ratzinger não destoaram completamente do pensamento evangélico, em
geral, ou m esm o da visão adventista, em particular. Em sua dissertação sobre a espe
rança, “graças a qual podem os enfrentar o nosso tempo presente”, Ratzinger apontou
para o seu propósito; os cristãos sabem que “sua vida não acaba no vazio”. Mesmo
entre os prim eiros cristãos, que viviam no contexto da escravidão durante o primeiro
século, a esperança era tal que, ao invés de fomentar uma revolução social, transfor
mava a partir de dentro a vida e o mundo. Enquanto o “racionalismo filosófico tinha
relegado os deuses para o cam po do irreal”, o cristão tem a convicção de que não “são
os elementos do cosmo, as leis da matéria que, no fim das contas, governam o mundo
e o homem, mas é um Deus pessoal que governa as estrelas, ou seja, o universo”. Um
Deus, que Se autorrevelou como sendo Amor, conduz a humanidade.
A ciência, um elemento poderoso e influente da M odernidade, “pode contri
buir muito para a humanização do m undo e dos povos”, tendo, porém, potencial
destrutivo, “se não for orientada por forças que se encontram fora dela.” A ciência
não oferecer soluções ao anseio da humanidade por redenção, coisa que só o amor
é capaz de realizar.
Para o então pontífice, a fé, definida em Hebreus 11:1 nos concede “agora algo da
realidade esperada, e esta realidade presente constitui para nós um a ‘prova das coisas
que ainda não se veem”. A substância das coisas futuras íica ainda mais confirmada
por intermédio de Cristo. Por isso, o “Evangelho não é apenas uma comunicação de
realidades que se podem saber, m as uma comunicação que gera fatos e m uda a vida”.4
Respondendo a Umberto Eco, o cardeal italiano Cario Maria Martini definiu três as
pectos da visão cristã-católica da História - para ele (1) a História não é simples “acúmulo
de fatos absurdos e vãos”, mas tem um sentido; (2) o sentido da História se “projeta além
dela”, sendo, assim, alvo de nossa espera; (3) tal visão ‘ solidifica o sentido dos eventos
contingentes”.5 Essa concepção se harmoniza com o sentido da esperança cristã conforme
expresso por Bento XVI. E o fato de a esperança cristã ser singular, conduzirá a um estilo de
vida igualmente singular, coerente com a nossa “soberana vocação” (Fp 3:14). Com efeito,
Paulo nos conclama a andar como “filhos da luz”, imitando “a Deus como filhos amados”
(Ef 5:1,2; cf.: lTs 4:1, Fp 1:27). Uma vez que não vivemos apenas para nós, de forma egoísta,
exercemos influência no mundo, vivendo para o Senhor, a quem pertencemos (Rm 14:7,8).
O apóstolo Pedro nos conclama a nos em penharm os para serm os achados em
paz, sem culpa ou mancha, uma vez que estam os vivendo no contexto em que o
juízo começou “pela casa de Deus” e tendo em vista que esperam os “novos céus e
nova terra” (2Pe 3:13, 14; IPe 4:17). Assim, tornou-se coerente a afirmação de Bento
XVI: “A imagem do Juízo final não é primariamente um a imagem aterradora, m as de
esperança [—] é uma imagem que apela à responsabilidade”6 É inevitável aceitar que
nossa esperança afeta o presente, a forma como vivemos, nossas atitudes, opiniões,
critérios de julgamento e relacionamentos (capítulo 3).
Apesar de muito do que o Papa emérito afirmou ser compatível, até certo ponto,
com a mensagem bíblico-cristã, há outras considerações feitas por Bento XVI alta
mente questionáveis, principalmente quando ele abordou a esperança da vida eterna.
Vamos analisar essas declarações controversas.
Desconhecimento da esperança
Ao tratar da vida eterna, Bento XVI mencionou que a morte não é desejável, mas
nos acom odam os a ela. O aspecto positivo da morte, para ele, é pôr um termo na vida
que, caso se prolongasse indefinidamente seria algo “fastidioso e, em última análise,
insuportável”. Nem mesmo a terra teria sido “criada com esta perspectiva” de uma
vida imortal. A antítese entre a rejeição da eternidade e a luta para prolongar a vida
levaram Bento XVI a concluir que “não sabem os realmente o que queremos; não co
nhecemos esta Vida verdadeira; e, no entanto, sabemos que deve existir algo que não
conhecemos e para isso nos sentimos impelidos” Sem considerar o material bíblico
sobre o tema, Bento XVI ensaiou uma solução filosófica:
Aqui o teólogo cedeu espaço ao poeta. Entretanto, por mais que o estilo seja tocan
te, é forçoso admitir que há sérios problemas na definição de vida eterna estritamente
como “o instante repleto de satisfação”. A qualificação “eterna” diz respeito não só à
condição da vida, como também à sua extensão. Se a vida eterna fosse menos do que
literalmente eterna, teríamos de concordar que não haveria solução para o problema da
morte, que, por sua vez, existe como consequência do pecado. Ora, se algum resquício
do pecado sobrevivesse à concretização do plano redentor, Deus não seria Vitorioso no
Grande Conflito. Porém, a promessa é de que “não haverá mais morte” (Ap 21:4).
A noção da vida eterna que católicos e muitos protestantes endossam revela-se
contaminada pelo pensamento grego. Eternidade acaba sendo entendida como um
tempo estático, do qual não se nota a passagem, ou m esm o como um dia contínuo
(capítulo 10). Essa concepção, se verdadeira, seria de fato “fastidiosa” e “insuportá
vel”. No entanto, a Revelação aponta para outra direção.
Talvez mais do que outros livros do cânon bíblico, é em Isaías que encontramos
evidências de quão concreta, ativa e estimulante será a vida eterna (ls 65:21-23). O
m esm o autor expressa que a adoração sabática se estenderá na Nova Terra (is 66:23),
o que sugere a continuidade do ciclo semanal durante toda vida imortal. A eternidade,
assim, não é um tempo que não passa, m as um tempo que não se acaba. Sentiremos
o tempo passar, m as continuaremos a aprender, a estudar, a produzir, a criar, a nos
relacionar e a adorar, crescendo à semelhança do Senhor, sem sermos limitados pelos
aspectos negativos do tempo - como a velhice e a morte. Poderia haver uma esperança
de vida futura mais bela e significativa do que aquela que está presente na Bíblia?
Outro equívoco da esperança oferecida pela encíclica fica a cargo do dogm a do
purgatório; segundo Ratzinger, podem os encontrar referências à “condição interme
diária”, na qual “almas não se encontram simplesmente numa espécie de custódia
provisória, m as já padecem um castigo”. É o caso de nos perguntarmos quão antigas
são as referências judaicas a essa “condição intermediária”.
Por ocasião do período intertestamentário, a influência do pensamento grego já
se responsabilizara por dissem inar entre os judeus a ideia de uma alma imortal que
sofre castigos no outro mundo. Na Spe Salvi, se faz menção a esse “judaísm o antigo”,
citando o livro apócrifo de 2 M acabeus 12:38 a 45, do I o século a.C.
7. Idem.
202 / E xplo sã o Y
Apelando às emoções para sustentar seu castelo de areia teológico, o Papa emérito
descreveu um amor que chega “até ao além”, que nos liga uns aos outros “para além
das fronteiras da morte”, o que, segundo a sua opinião, constitui “um a convicção fun
damental do cristianismo através de todos os séculos e ainda hoje permanece uma
experiência reconfortante”,
A certa altura, o então Papa admitiu que a doutrina do purgatório “se desenvolveu
aos poucos na Igreja ocidental’? o que, se analisado à luz da História, mostrar-se-á
antes como resultado da influência do paganism o do que como fruto de reflexão da
matéria bíblica. A Escritura ensina que a morte é um fim temporário (Ec 3:19-20;
9:5,6, 10; SI 115:17), diante da qual fecham-se as oportunidades e o juízo passa a ser
decidido (Hb 9:27), culminando na execução da sentença através da ressurreição em
dois momentos: primeiro a dos justos e, mil anos depois, dos injustos (Dn 12:2, Ap
20:4-6). Curiosamente, faltam dados bíblicos que afirmem ou aludam à existência de
um purgatório.
Embora não tenhamos todos os detalhes relativos à vida na eternidade (IC o 2:9),
não estamos sem luz quanto à volta de Jesus e os assuntos futuros (iT s 5:1-4). N ossa
esperança será sólida na medida em que estiver alicerçada sobre as bases bíblicas e
livre de am algam açôes com a filosofia meramente humana. Para os adventistas, o
estudo das profecias, especialmente as que encontramos nos livros de Daniel e Apo
calipse (capítulo 15), tem mantido o foco de nossa esperança na pessoa de Jesus e
naquilo que a revelação sobre os últimos acontecimentos descreve.
Mediação da esperança
O acesso à esperança se dá indiretamente, entendendo que o cristão teria ne
cessidade, de acordo com Ratzinger, de ser orientado por “pessoas que souberam
viver com retidão” ; conquanto qualifique a Cristo com o “luz” e “sol”, ele referiu-se
à M aria com o “estrela da esperança”, “Arca da Aliança viva”, “mãe de todos aqueles
que querem acreditar” em Jesus, a “Mãe da esperança”. A conclusão toda foi uma
oração à Maria.
Nem precisa dizer que esta esperança mediada não possui respaldo escriturístico;
Paulo retrata a Jesus como “Autor e Consum ador da fé”, em quem devemos colocar os
nossos olhos enquanto participarm os da corrida espiritual (Hb 12:1, 2). Não há, de
fato, outro Salvador no Céu (At 4:12) ou Intercessor ao lado do Pai, que esteja à altu
ra da função; Jesus é o único, porque morreu por nós, ressuscitou e assiste agora ao
lado do trono de Deus (Ef 1:20, 21; 2:6; Hb 4:14-16; 8:1, 2; 9:15). Nesta via de acesso,
aberta por Cristo, o catolicismo tem, durante os séculos de sua existência, colocado
obstáculos, que impedem os sinceros de estar na presença direta de Deus. A interces
são dos santos é um obscurecimento da esperança cristã, jam ais um complemento.
8. Idem.
E n q u a n t o isso , lá em R o m a / 203
Verdade em caridade
Em oito anos de Pontificado, Bento XVI se mostrou um prolífico escritor. No dia
29 de junho de 2009, o líder católico-romano entregou sua terceira encíclica, veicu
lada apenas no dia 7 de julho. Caritas in veritate,9 a carta-apostólica, homenageou a
Populorum progressio, encíclica de autoria de Paulo VI (1967). Em ambas, apesar da
distância histórica, o tema predominante foi a responsabilidade social da igreja, a
qual se apoia em um a doutrina peculiar. Com o procedem os quanto à encíclica ante
rior, analisarem os brevemente as partes desse documento, oferecendo alguns contra
pontos, seguidos de um a avaliação geral. Em relação à Spe Salvi, a encíclica Caritas
in Veritate revelou m aior confirmação (e de forma inequívoca) daquilo que, como
adventistas, sustentamos ao longo de nossa existência: a intenção de Roma de voltar
a reger as nações (capítulo 15).
“M as, seguindo a verdade em amor, cresceremos em tudo em direção àquele que é
a Cabeça, Cristo” (Ef 4:15, BJ) - eis o versículo-chave para a encíclica; desde as linhas
iniciais, já se promove o desenvolvimento integral da humanidade, tendo como base
o amor, a tal “força extraordinária”, a qual o Papa diz impelir “as pessoas a compro-
meterem-se, com coragem e generosidade, no cam po da justiça e da paz” O am or e a
Verdade (que o origina) são impulsos, nunca desaparecendo do coração dos homens,
porque Deus os mantém ali; am bos constituem, portanto, um a vocação ligada à “ ini
ciativa de amor e o projeto de vida verdadeira que Deus preparou para nós”. A carida
de é de tal maneira identificada com a própria vida cristã que aparece como “o Rosto
da Sua Pessoa [de C ristol”. Bento deu maior relevo ao tema: “A caridade, na verdade,
que Jesus Cristo testemunhou com a sua vida terrena e, sobretudo, com a sua morte
e ressurreição, é a força propulsora principal para o verdadeiro desenvolvi mento de
cada pessoa e da humanidade inteira” 10
Diante dos efeitos gerados pela pós-m odernidade, para qual a verdade é utilitária
e definida por parâm etros socioculturais (capítulos 4 e 5),’ 1Bento dirigiu suas críticas
ao pensamento vigente: ele clamou por adesão aos valores do Cristianismo, os quais
devem revelar-se tanto na esfera privada quanto na pública, a fim de que haja “verda
deira e propriamente lugar para D eus no mundo” Convocam-se todos os homens a
que sejam “sujeitos de caridade”.12
Há um veemente apelo na Caritas in Veritate por reforma econômica, em vista do
agravamento da crise econômica mundial. Dois critérios orientadores de ação moral,
lembrados por Bento XVI, fundamentaram sua ética socioeconômica: a justiça e o bem
comum. Por essas duas vias, ele traçou a rota para uma globalização que assuma “as
dimensões da família humana inteira”, numa união de todos sem barreira; assim, a ci
dade do homem estará mais próxima da cidade de Deus, onde a união será completa.11
10. CIY.
11. Para uma abordagem mais ampla, consultar (a) Stanley }. Grenz, Pós-modernismo: um guia para enten
der a filosofia de nosso tempo (São Paulo, SP: Vida, 2008), 2a Ed; (b) Jean-François Lyotard, A condição pós-
-moderna (Rio de Janeiro, RJ: José Olympio, 1998); (c) Perry Anderson, Ai origens da Pós-modernidade (Rio
de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Editor, 1999); (d) Zygmunt Bauman, O mal-estar da pós-modernidade, (Rio de
Janeiro, RJ: Jorge Zahar Editor, 1997). A obra de Grenz, escrita de uma perspectiva cristã, tem o mérito de
ser bem pesquisada e didática, mas capitula diante de alguns aspectos da pós-modernidade, o que levou seu
autor a, mais tarde, propor um cristianismo adaptado ao zeigeist atual.
12. C1V.
13. Não se pode deixar de perceber aqui o uso de termos caros à teologia agostiniana. Ver Santo Agos
tinho, A cidade de Deus (tradução: ]. Dias Pereira, Lisboa, Portugal: Edição da Fundação Calouste Gul-
benkian, 1991), vol. 1.
Enquanto isso , lá em R o m a / 205
“ [...] O homem não é um átomo perdido num universo casual, mas é um a criatura
de Deus, à qual quis dar uma alma imortal e que desde sempre am ou”.14
Com o evolucionista teísta que é, Ratzinger admitiu ter Deus dirigido a evolução e
que, em algum momento, dotou aquela criatura surgida de form as inferiores de uma
alma im ortal.'5 Claro que tal conceito distorce a narrativa bíblica do Gênesis, além de
rebaixar a humanidade. Remetendo ao dom da verdade sobre nós, o terceiro capítulo
apresenta a im possibilidade de se “identificar a felicidade e a salvação com formas
imanentes de bem-estar material e de ação social”, sendo a identidade humana (“a
verdade acerca de nós m esm os”) “primariamente ‘dada’”, “recebida” “Na sua sabe
doria, a Igreja sempre propôs que se tivesse em conta o pecado original m esm o na
interpretação dos fenômenos sociais e na construção da sociedade.” 16
Em outro lugar, o então pontífice declarou que a origem do mal é um fato que “perma
nece obscuro”; quanto ao episódio de Gênesis: “Podemos adivinhar [a origem do mal],
não explicar; nem sequer podemos narrá-lo como um fato junto a outro” (capítulo l l ) .17
Nesse ponto, reapareceu a compreensão equivocada sobre as origens, a qual afeta
o entendimento sobre o surgimento do pecado: primeiro, o dogm a do pecado origi
nal (pelo qual som os culpados pelo pecado de Adão), o que contraria a culpa indivi
dual (Ez 18:20). Pecado original existe - mas não no sentido de culpa por procuração
ou m esm o culpa hereditária; a Bíblia nos fala de um ato histórico cometido por um
Adão histórico, a partir do qual a humanidade herdou a condição corrompida (Rm
5:12), a infecção do curvato em se, no dizer de Lutero. Segundo, nota-se o descrédito
com a narrativa bíblica, sendo que ela sequer merece ser considerada histórica. Claro
que se torna impossível entender a doutrina bíblica do pecado com o obstáculo for
m ado pelos dois fatores mencionados.
O capítulo termina louvando o dom do trabalho e retomando considerações sobre
a necessidade de desenvolver o princípio de caridade em verdade no campo econô
mico: “Não devemos ser vítimas dela [da globalização], m as protagonistas, atuando
com razoabilidade, guiados pela caridade e a verdade” 18
14. Civ.
15. O mesmo conceito se acha expresso por Dinesh D’Souza, A verdade sobre o Cristianismo, p. 167.
16. CIV.
17. Para ler a declaração completa, bem como seu contraponto: Douglas Reis, Pecados nada originais,
disponível em <http://questaodeconfianca.blogspot.com /200S/12/pecados-nada-originais.htm l>.
18. CIV.
E n q u a n t o isso , lá em R o m a / 207
19. Idem.
20. Ibidem. Para entender como a visão cristã da natureza contribuiu para o desenvolvimento das ciên
cias, confira: Nancy R. Pearcey e Charles B. Thaxton, A alma da ciência: fé cristã e filosofia natural (São
Paulo, SP: Cultura Cristã, 2005).
21. Ver: (a) Douglas Reis, “A hora da Terra: a hora da p r o f e c i a disponível em <http://questaodecon-
fianca.blogspot.com/2009/03/hora.html>; (b) Idem, "O Vaticano na escuridão”, disponível em < http://
questaodeconfianca.blogspot.com/2009/03/o-vaticano-na-escuridao-html>.
22. CIV.
208 / E x plo sã o Y
No ponto alto deste documento, o então Papa Bento XVI fez a afirmação mais
ousada. Quando constatou que os efeitos da crise econômica mundial requerem “a
presença de um a verdadeira Autoridade política mundial”, a qual “deverá regular-se
pelo direito, ater-se coerentemente aos princípios de subsidiariedade e solidariedade,
estar orientada para a consecução do bem comum, comprometer-se na realização de
um autêntico desenvolvimento humano integral inspirado nos valores da caridade na
verdade” Bento assinalou igualmente que essa autoridade precisaria contar com um
reconhecimento universal.23
Que outra autoridade seria essa, senão a própria Igreja Católica, que, inclusive
ofereceu aos Estados Unidos seus serviços de “autoridade moral”?24 As pretensões
do Catolicism o não mudaram. Sabemos que em breve a “ferida mortal”, desferida
por Napoleão (em 1798), será totalmente sanada; a besta (símbolo do poder da igreja
romana) reviverá e com admiração “a terra inteira [seguirá] a besta” (Ap 13:3-4, BJ).
No último capítulo são feitas novas ponderações sobre a globalização e se com en
ta sobre questões de bioética. A visão naturalista do homem é criticada, à luz do pres
suposto de uma alma imortal - o qual contraria claramente o ensinamento bíblico
(Gn 2:7; Si 115:17; Ec 9:5,6,10; Hb 9:27). Outro contrassenso aparece na evocação de
M aria e nas expressões de louvor associadas a ela.
Sem dúvida, os adventistas concordam que “verdade em am or” faz falta no m un
do. Os cristãos têm um amplo cam po de atuação social que precisa ser retomado.
Entretanto, questionam os a falta de base bíblica e distorções do livro cristão que fo
ram com etidas para dar suporte a algumas alegações do papa emérito Bento XVI.
Sobretudo, percebemos um sentimento reinante na encíclica de autopromoção de
uma espiritualidade politizada, que se eleva como autoridade mundial, nos moldes
daquilo que se viu no Ocidente durante a Idade Média.
Talvez pareça cedo para traçar esse tipo de comparação. Afinal, o catolicismo não
detém hoje nada do poder que um dia fez tremer reinos e seus respectivos monarcas.
As dem ocracias ocidentais constantemente promovem leis que contrariam os postu
lados cristãos - em favor da união homossexual ou da descriminalização do aborto,
para ficar com dois exemplos. Entretanto, a atenção que recebe da mídia e a reverên
cia dos chefes-de-estado servem com o indicativos da crescente influência católica no
mundo. E, com o veremos a seguir, a Cúria romana possui claras intenções políticas.
23. Idem.
24. Ver Douglas Reis, “Auxílio lista: serviço de autoridade moral”, disponível em <http://questaodecon-
fianca.blogspot.com/2008/04/aLixlio-lista-servios-de-autoridade.htm)>.
E n q u a n t o isso , lá em R o m a / 209
A visita de Bento XVI aos Estados Unidos pode ser outro excelente exemplo
de apelo à consciência. Depois de um ano de sua visita, de acordo com nossa
pesquisa, cerca de 1 a cada 2 americanos queriam escutar o que ele tinha a dizer
sobre aborto.
25. Confira, por exemplo, Cláudio Antônio Cardoso Leite e Fernando Antônio Cardoso Leite, “Evan
gélico ou Evangélico? A igreja Brasileira entre os exemplos do passado e o dilema do presente", in: Cláudio
Antônio Cardoso Leite, etc. (org), Cosmovisão cristã e transformação: espiritualidade, razão e ordem
social (Viçosa, MG: Ultimato, 2006), p. 31-32.
26. Temos que entender a redenção no sentido de um milagre (algo que apenas o poder de Deus seria
capaz de realizar), não uma mera consecução humana. “ [...] O pecado não é somente a verdade bíblica
e verificável, mas o precursor urgente para a necessidade e milagre da redenção.” Os Guinness, Sete
pecados capitais: navegando através do caos em uma época de confusão moral (São Paulo, SP: Shedd
Publicações, 2006), p. 19-20.
27. Cari Anderson, “Levar a moral ao público”, disponível em < http://zenit.org/article-23489?l=portuguese>.
Acesso: 7 de dez. 2009.
210 / E xplo sã o Y
Junte isso às suas declarações do ano passado (2008) nos Estados Unidos e
à herança norte-americana dos direitos concedidos pelo Criador, e adicione o
forte desejo de possuir uma guia moral adequada e, de repente, vemos que os
americanos querem uma sólida liderança moral.1*
ser m ais próximo das pessoas comuns, ao mesm o tempo que se assemelha ao dos
evangélicos em geral.31
Em 14 de M arço de 2013, durante a homilia proferida em sua entronização (início
oficial do pontificado),32 Francisco escolheu a personagem josé, pai humano de Jesus
e o santo da ocasião. Seu papel é destacado como o de alguém que seria o guardião
tanto de Jesus, quanto de Maria. Um desempenho, portanto, mais passivo de José
parece perpassar a compreensão do pontífice, acompanhando a tradição católica que
destaca a figura de Maria. Aliás, ainda seguindo a tradição, José é mencionado como
guardião da igreja, prefigurada em Maria - porém, tal relação entre Maria e a Igreja
não é igualmente bíblica.33
Francisco discorre sobre o sentido mais amplo desse cuidado do qual José seria o
exemplo: “Entretanto a vocação de guardião não diz respeito apenas a nós, cristãos,
m as tem um a dim ensão antecedente, que é simplesmente humana e diz respeito a
todos: é a de guardar a criação inteira, a beleza da criação, como se diz no livro de
Gênesis e nos m ostrou São Francisco de Assis: é ter respeito por toda a criatura de
Deus e pelo ambiente onde vivemos.” A menção ao cuidado da criação se alinha com
preocupações ecológicas e com a tendência romana de tomar parte em iniciativas
como o dia da Terra. Ao mesmo tempo, a referência a Francisco de Assis justifica a
escolha do nome do novo papa (que não pertence à ordem que leva o nome do santo,
mas que é, em verdade, um jesuíta).
Continuando na linha de seu antecessor, Francisco apela por mudanças político-eco
nômicas. Ouça seu apelo: “Queria pedir, por favor, a quantos ocupam cargos de respon
sabilidade em âmbito econômico, político ou social, a todos os homens e mulheres de
boa vontade: sejamos ‘guardiões’ da criação, do desígnio de Deus inscrito na natureza,
guardiões do outro, do ambiente; não deixemos que sinais de destruição e morte acom
panhem o caminho deste nosso mundo!” Outro ponto de contato com Bento XVI está
na ênfase na esperança, que deve ser oferecida “perante tantos pedaços de céu cinzento”,
onde “há necessidade de ver a luz da esperança e de darmos nós mesmos esperança.”
Finalmente, o líder da Igreja Católica reflete sobre o significado do pontificado,
que seria um poder dado por Jesus, “um poder para servir”. E conclam a a todos
para se unirem à sua jornada: “Guardar Jesus com M aria, guardar a criação inteira,
31. Em seu primeiro discurso, em 14 de março de 2013, Francisco afirmou: "Quando caminhamos sem a
cruz, quando edificamos sem a cruz e quando confessamos um Cristo sem cruz, não somos discípulos do
Senhor: somos mundanos, somos bispos, padres, cardeais, papas, mas não discípulos do Senhor.” Andrea
Tornielli, Francisco: a vida e as ideias do papa latino-americano (São Paulo, SP: Planeta, 2013), p. 113.
32. A homilia na íntegra se acha disponível em: <http://www.comshalom.org/noticias/exibir_especial_
papa.php?not_id-7583>. Acesso: 19 de mar. de 2013.
33. O único texto que, se mal compreendido, favoreceria essa concepção está em Ap 12:5. A mulher que
dá à luz ao menino, nesse contexto, representa o povo de Deus, que permanece ao longo do capitulo, e
em diversas eras, continuamente perseguido por Satanás (o dragão) e seus agentes. Se a mulher fosse
literalmente Maria, como os católicos, que acreditam em sua perpétua virgindade, explicariam Ap 12:17
que menciona “o restante da descendência da mulher” ? Vale ressaltar que a Bíblia apenas afirma que
Maria e José não se relacionaram sexualmente antes que Jesus nascesse. Ainda assim, o contexto de Ap
12 não dá espaço para interpretarmos que a mulher se refira à Maria.
212 / E xplo são Y
guardar toda a pessoa, especialmente a m ais pobre, guardarm o-nos a nós mesmos:
eis um serviço que o Bispo de Roma está chamado a cumprir, m as para o qual todos
nós estam os cham ados, fazendo resplandecer a estrela da esperança: Guardem os
com am or aquilo que Deus nos deu!”
A influência católica só tende a crescer e a atingir outras áreas. As encíclicas que
analisam os m ostram tanto um resgate do pensamento católico, com suas doutrinas
típicas, com o um engajamento político. Em vista disso, o risco de que o catolicismo
se torne um a cosm ovisão impositiva é muito grande, sem falar na possibilidade real
de Roma, que conta com o apoio de setores do evangelicalismo, dar as costas aos
valores propriamente cristãos (bíblicos) e sustentar apenas suas peculiaridades (as
doutrinas que têm sua origem no paganism o). Contando com a figura carismática
de Francisco, o catolicismo pode finalmente promover o ecumenismo com maior
desenvoltura.34 Com parado por muitos analistas a João Paulo II, o novo papa é tanto
o primeiro sul-americano, quanto o primeiro jesuíta a ocupar o pontificado. Resta
acom panhar os acontecimentos à luz da profecia.
34. Veja a entrevista do Pe. Jesus Hortal ao jornal O estado de São Paulo, disponível em: <http://www.esta-
dao.com.br/noticias/suplementos,um-papa-que-anda-a'pe,1009575,0.htm>. Acesso: 27 de mar. de 2013.
Igreja: modo de usar
Nesse capítulo, nosso foco está na reação cristã em face das mudanças. Apesar da
multiplicidade de reações à nova mentalidade, nos deteremos no mais controverso movi
mento evangélico que tenciona alcançar pessoas pós-modernas: o movimento conhecido
como igreja emergente.3 Apesar de já o termos abordado de forma mais generalizada (cap.
2), trataremos de ir mais a fundo sobre a resposta dos cristãos emergentes às demandas
pós-modernas. Nossa análise de suas propostas é seguida por uma avaliação. Finalmente,
nos deteremos na função da igreja em um tempo de mudanças, destrinchando o texto
paulino que, talvez, melhor descreva o desenvolvimento saudável da igreja.
É notável com o tendências do movimento emergente têm se disseminado, afe
tando diversas denominações cristãs. Assim, tenha-se em mente que o adventismo
não se acha incólume às influências da igreja emergente4 e que, em bora já tenhamos
advertido sobre seus riscos, é oportuno que a questão seja considerada por outros
ângulos; somente desse m odo estaremos aptos para aquilatar os riscos reais trazidos
pelo movimento. Porém, nossa abordagem não é apenas polêm ica (no sentido de
discordar da prática de outros cristãos),’ como visa igualmente mostrar as questões
2. Thomas E. Bergler, The juvenilization of american christianity (Grand Rapids, Michigan: Eerdmans
Publishing, 2012), p. 1-2.
3. “A pós-modernidade causou profundas mudanças de época na cultura e filosofia do ocidente. Essas
mudanças atingiram círculos evangélicos durante os últimos vinte anos, gerando um número de res
postas. Uma delas, o movimento da igreja emergente, está ganhando momento, atenção e influência.”
Fernando Canale, “The Emergi ng Church Part 1: Historical Background”, in: Journal of the Adventist
Theological Society, vol. 22, n" 1, p. 84.
4. "Durante o último quarto do século XX, a adaptação que fez Bill Hybels (Willow Creek) das formas li-
túrgicas à cultura contemporânea, no contexto das megaigTejas, estendeu o tapete aos evangélicos prag
máticos. O pragmatismo litúrgico, que a liderança evangélica jovem extraiu, nâo das Escrituras, porém
da tradição e das religiões do mundo, criou um vazio teológico e espiritual. Coincidentemente, durante
este período sucederam-se profundas mudanças nos padrões teológicos e ministeriais na geração evan
gélica jovem. Estas mudanças estão transformando a lideres e ao movimento evangélico de maneira que
•apenas podemos esboçar. Inclusive, por ra7.ões práticas, um bom número de destacados lideres adventistas têm
se sentido impelido a adaptar a liturgia adventistaà cultura contemporânea, intensificando assim a secularização
da mente e estilo de vida adventista.” Idem, “Sola Scríptura y la Hermenêutica’’, p. 133.
5. Polêmica é um termo técnico para abordagens que defendam visões cristãs no contexto de oposição
a outras visões cristãs antagônicas, por ex.: apoiar a defesa da guarda do sábado em contraste com
aqueles que acreditam que o dia reservado a adoração passou a ser o domingo. A polêmica se distingue
da apologética, termo técnico para abordagens que defendam visões cristãs no contexto de oposição
a outras visões religiosas não cristãs, por ex.: justificar que Jesus é o Messias Prometido, ao contrário
do que afirma o judaísmo tradicional, que tanto rejeita a Jesus, como ainda aguarda alguma forma de
manifestação messiânica.
Ig r e ja : m o do de usar / 215
legítimas levantadas pela igreja emergente, as quais merecem respostas bíblicas. Sen
do assim, passem os a estudar o movimento emergente.
6. Daniel Plenc, “Las iglesias emergentes: manifestaciones y desafios”, in: DavarLogos, vol. 10, n° 2, p.
274-275.
7. Fernando Canale, “7Tie Emerging Church Part 1 ”, p. 99.
8. Idem, “The Emerging Church Part 2: Epistemology, Theology, and Ministry”, in: Journal of the Adventist
Theological Society; vol. 22, n° 2, p. 67.
9. D. A. Carson, Becoming conversant with emerging church, p. 13.
10. Fernando Canale, "The Emerging Church Part 1 ", p. 101. Para Canale, a “inconclusa, pragmática,
fragmentada e incompleta natureza do evangelicalismo” é um fator mais preponderante para o tipo de
resposta à pós-modernidade que encontramos na igreja emergente do que a própria pós-modernidade
em si mesma. Idem, “The Emerging Church Part 2'\ p. 69.
11. John S. Bohannon, Preaching and the emerging church: An examination of fourfounding leaders: Mark
Driscoll, Dan Kimball, Brian McLaren, and DougPagitt (USA, 2010), p. 17.
12. Fernando Canale, “The Emerging Church Part 2 ”, p. 68.
216 / E xplo sã o Y
O serm ão deixa de ser o ponto alto do serviço religioso. “A m ensagem das Escritu
ras é com unicada por meio de um conjunto de palavras, artes visuais, silêncio, teste
munho e histórias e o pregador é um motivador, que encoraja pessoas a aprender das
Escrituras ao longo da sem ana” 16 As reuniões podem acontecer em igrejas ou lugares
inusitados, com o sótãos, garagens e bares - Theology Pubs.]? Para os emergentes, “o
que se constituía uso apropriado das escrituras no período m oderno não é mais uso
apropriado no período pós-m oderno” 18 Em partes, isso implica que temas controver
sos, com o hom ossexualidade, ou que com põem a pregação tradicional cristã, como
arrependimento, ira divina, julgamento, não são tratados pelos líderes emergentes.
Sua liturgia é bem eclética, incluindo “do rock and roll pesado aos hinos tradi
cionais, rituais antigos, disciplinas espirituais, estações cristãs e tradições ju d ai
cas”. Sobra espaço para contem plações m ísticas e expressões artísticas. A crença da
igreja emergente é que Deus está presente em todas as m anifestações da cultura.
D esse m odo, ocorre uma sacralização da cultura. A conexão com D eus ocorre por
m eio de “form as materiais, na cultura e na natureza”. Esse novo paradigm a faz da
adoração - em suas múltiplas form as - algo com o a visão católica do sacramento.
13. Daniel Plenc, Opus cit., p. 276. Fernando Canale afirma que esseenfoque na juventude surgiu na tra
dição das megaigrejas de Bill Hybels e Rick Warren, dando origem a uma espécie de “igreja dentro de
outra”. “Desde 1986, eles foram adaptando 'o evangelho’ para as necessidades culturais das gerações mais
jovens [...]”. Fernando Canale, “The Emerging Church Part2, p. 73, 74.
14. D. A. Carson, Opus cit., p. 25.
15. Daniel Plenc, Opus cit., p. 277.
16. D. A. Carson, Opus cit., p. 37, 38.
17. Daniel Plenc, Opus cit., idem.
18. D. A. Carson, Opus cit., p. 43, 44.
Ig r e j a : modo de usar / 217
A pregação bíblica deixa de ser o elemento que leva à conexão com Deus, com o na
Reform a Protestante .19
Aliás, D. A. Carson compara oportunamente o movimento emergente com a reforma
protestante: os reformadores clamavam por mudanças, “não por perceberem que novos
desenvolvimentos ganhavam terreno na cultura, sendo que a igreja estivesse chamada a
se adaptar ao novo perfil cultural”; eles “perceberam que nova teologia e práticas se desen
volveram na igreja contrapondo a Escritura e, por conseguinte, tais coisas necessitavam
ser reformadas pela Palavra de Deus”. Os líderes do movimento emergente “desafiam [... ]
algumas das crenças e práticas do evangelicalismo” em nome de mudanças culturais, le
vando a um novo tipo de reforma, condicionado pela mentalidade dominante.20
Em vista dessa observação, o que dizer de nós, adventistas? Seria seguro ade
rirm os às práticas da igreja emergente, sem prejudicarm os nossa identidade? Será
que se o fizermos, não correríam os o risco de promover um cristianism o imaturo, e
19. Fernando Canale, “Vie Emerging Church Part 2 ”, p. 71, 72, 75.
20. D. A. Carson, Opus cit., p. 42.
21. Fernando Canale, "The Emerging Church Part 2 ”, p. 70.
22. “Neste sentido, alguns veem nas igrejas emergentes expressões de aculturação no contexto pós-moder-
no, tal como o haviam sugerido já há décadas teólogos europeus como Dietrich Bonhoeffer, John Robin
son, Harvey Cox e os teólogos da libertação latino-americanos.” Danie! Plenc, Opus cit., p. 275.
23. Fernando Canale, “lhe Emerging Church Part 3: Evangelical Evaluations’, in: Journal of the Adventist
Theological Society, vol. 23, n" 1, p. 59.
24. Augustus Nicodemus, O ateísmo cristão e outras ameaças à igreja (São Paulo, SP: Mundo Cristão, 2011), p. 14.
218 / E xplo sã o Y
25. Ellen Ci. White, Testemonies fo r the Church (Nampa, Idaho; Oshawa, Ontario, Canada: Pacif Press
Association, 1948), vol. 9, p. 110.
26. Gerard F. Hasel, “ The ‘third Wave roots of cetehrationism”, in: Samuel Koranteng-Pipim (ed.), Here we
stand: evaluating new trends in the church (Berrien Springs, Michigan: Adventism Affirm, 2005), p. 395-397.
Ig re ja : modo de u s a r / 219
27. Segundo Stanley Grenz, a comunidade é um fundamento não fundacionista da teologia: produz um
encontro de cada membro com Cristo, capaz de gerar identidade, veiculada a uma narrativa constituidora
de identidade (tradição). Esse encontro é diferente do proposto pelos liberais (Schleiermacher) em dois
pontos: (1) de acordo com os liberais, o encontro é universal, comum a todas as religiões, mas para Grenz,
tal encontro é propriamente cristão, mediado por Cristo; (2) se, conforme liberais, o encontro leva à inter
pretação, Grenz propõe que interpretação leva ao encontro, porque ele não se dá no vácuo, mas na tradição
cristã (pano de fundo necessário para filtrar ou facilitar a experiência). Fernando Canale, '"lhe Emerging
Church Part 2 ”, p. 83, 84. Veja mais críticas ao pensamento de Grenz em D. A. Carson, Opus cit., p. 130-ss.
Como bem definiu Carmelo L. Martines: "A proposta é que uma articulação pós-moderna do evangelho
é pós-racional. O foco não deve estar em proposições como o centro da fé cristã, porém que um encontro
pessoal com Deus, articulado com a comunidade da fé, deve ser o importante, e não as verdades propo-
sicionais. Agora veja, se as verdades doutrinais desejam se manter, teriam somente aplicação dentro da
comunidade, mas não prosperariam, nem seriam normativas fora dela.” Carmelo L. Martines, "Teologia y
contextualizacióri', in: Gerald A. Klingbeil (ed.), Misiôn y contextualización (Libertador San Martin, Entre
Rios: Universidad Adventista dei Plata editorial, 2005), p. 239.
28. Fernando Canale, “The Emerging Church Part 2 ”, p. 103.
29. Não à toa, Canale aborda que Glenz advoga que as doutrinas da igreja não podem ser verdade de
forma objetiva. Fernando Canale, “The Emerging Church Part 3".
30. Veja a excelente análise de Richard M. Davidson sobre a apresentação do tema integrado Grande
Conflito/Santuário celestial, de uma perspectiva bíblica e dinâmica. Davidson sugere esse tema inte
grado como capaz de agrupar a mensagem das escrituras e tornar sua apresentação dramática atrativa
à mente pós-moderna. Ver Richard M. Davidson, “Cosmic Metanarrative for the coming millenium”, in:
Journal of adventist theological society”, vol. 11, n" 2, p. 102-ss.
220 / E x p l o s ã o Y
31. E. Bruce Price, "Are the churches really growing? Church Growth experiments in secular Australia”,
in: Samuel Koranteng-Pipim (ed), Here we stand: evaluating new trends in the church, p. 24-26, 29.
32. Fernando Carnale, “ The Eclipse o f Scriptura and the Protestization of the Adventist Mind: Part 1”, p.
136-138.
Ig r e j a : m odo de usar / 221
I - Os dons espirituais são o resultado da vitória de Jesus (v, 7-10): Paulo nos
fala da Graça (gr.: charis) mensurável pelos dons repartidos entre todos os cristãos (v.
7); apesar de o apóstolo discorrer em diversas ocasiões sobre a “graça salvadora”, aqui
ele fala sobre a “graça para o serviço”. Logo, a igreja é uma “comunidade carismática”,33
no sentido de que recebe plena capacitação através dos dons espirituais. Afinal, “ [...]
cada cristão recebe um a função ministerial, para a qual os líderes da igreja precisam
equipá-lo”,34 como ficará claro a seguir.
O escritor inspirado também identifica a distribuição de dons como resultado da
vitória do Senhor Jesus Cristo alcançada na cruz. Para isso, cita as palavras do salmo
68:18, que se apresentam levemente modificadas. Para alguns estudiosos, as tentati
vas de conciliar as palavras do Salmo exatamente com o uso que Paulo fez delas gerou
apenas resultados m al-sucedidos.35 Para tais eruditos, Paulo teria apenas feito uma
aplicação e não citado literalmente as palavras de Davi.36
33. John Stott, A mensagem de Efésios (São Paulo, SP: Aliança Bíblica Universitária, 1986), série A Bíblia
fala Hoje, p. 111.
34. Robert Gundry, Panorama do Novo Testamento (São Paulo, SP: Edições Vida Nova, 2007), 8a reimpressão da
2a ed., p. 348.
35. Francis Foulkes, Efésios: Introdução e comentários (São Paulo, SP: Sociedade Religiosa Edições Vida
Nova, 2006), 7a reimpressão da 2a ed., p. 96
36. William Hendriksen, Comentário do Novo Testamento: Efésios (São Paulo, SP: Casa Editora Presbi
teriana, 1992), p. 237, 236.
222 / E x plo sà o Y
Entrementes, Calvino não vê disparidade, um a vez que “dizer que Deus mani
festado na carne recebeu dons dos cativos é a m esm a coisa que dizer que Ele os d is
tribuiu com sua igreja.”37 Ademais, o próprio Salmo estabelece (nos v. 19, 20) que o
povo de Deus “compartilha os benefícios da conquista”.3* John Stott afirma que os
conquistadores recebiam presentes dos conquistados, os quais se tom avam dádivas
a serem repartidas com o povo vitorioso; como evidência adicional, Stott menciona
que as próprias versões bíblicas Siríaca e aramaica atestam que o Salmo pode assim
ser interpretado, um a vez que emprega a forma verbal “deu”.3y
A seguir, Paulo pesa as consequências da poderosa afirmação do versículo 8: “Re
pare na implicação aqui: dizer que Cristo subiu’ significa que antes Ele deve ter ‘des
cido', isto é, até a profundeza deste mundo. Aquele que desceu é o m esm o que agora
subiu para bem alto, acima do céu - a fim de que pudesse preencher todo o universo”
(Ef 4:9, IO).40 Jesus, em Sua humilhação, alcançou a vitória que, agora, em Sua exalta
ção, reparte com Seu povo. Após essa reflexão teológica, Paulo trata da diversidade e
funcionalidade dos dons espirituais.
37. joão Calvino, O livro dos Salmos (São Paulo, SP: Edições Paracletos, 1999), p. 661.
38. Derek Kidner, Salmos 1-72: Introdução e comentários (São Paulo, SP: Sociedade Religiosa Edições
Vida Nova, 2006), 6a reimpressão da P ed., p. 264.
39. John Stott, Opus cit., p. 112.
40. J. B. Phillips, Cartas para hoje, trad. Márcio Loureiro Redondo (São Paulo, SP: Sociedade Religiosa
Edições Vida Nova, 1994), p. L14.
41. Gerhard Dautzenberg, “Teologia e pastoral na tradição Paulina”, in: Josef Schreiner e Gerhard Daut-
zenberg, Forma e exigência do Novo Testamento (São Paulo, SP: editora Teológica, 2004), p. 149.
42. Francis Foulkes, Opus cit., p. 97.
43. D. G. Dunn, A teologia do apóstolo Paulo (São Paulo, SP: Paulus, 2008), 2a ed., p. 464-465.
Ig re ja : modo de u s a r / 223
(A) O pape] de cada cristão: som os chamados a exercer nossos dons e a colabo
rar com a comunidade cristã local (v. 11-13);
(B) A função da igreja: a igreja deixa de ser entendida como um organismo ou
instituição, passando a ser considerada um corpo vivo, o corpo do Senhor Jesus, no
qual cada parte deve agir de forma articulada (v. 16);
(C) O tipo de experiência que se pode usufruir na comunidade de fé: apenas na
igreja se usufrui da verdadeira comunhão e de uma espiritualidade sadia, que se inspira
em Cristo e se exercita no convívio com outras pessoas resgatadas por Ele (v. 14,15);
(D) A postura para que a igreja continue crescendo: acima de estratégias, pro
gram as e investimentos (todos eles muito importantes!), deve estar o treinamento e o
desenvolvimento dos dons espirituais (v. 12). Uma igreja que cresce espiritualmente
crescerá numericamente. Se, do contrário, visarm os ao crescimento numérico, não
teremos o crescimento espiritual assegurado.
Após a leitura desse capítulo, talvez haja algumas questões adjacentes. Pensar b i
blicamente nos leva, comumente, não a resolver todos os dilemas; porém, a Escritura
possui força para nos orientar, fornecendo as diretrizes básicas. A Revelação existe
para que tenhamos princípios-guias, os quais devem ser aplicados sob orientação
do Espírito Santo. Não raro, as soluções pragmáticas se restringem à sabedoria e aos
esforços humanos. Contudo, é imperativo nos lembrar que a igreja não é uma com u
nidade idealizada pela mente carnal. Se a igreja representa o ideal divino (Mt 16:16-
18), seu funcionamento precisa obedecer a princípios estabelecidos por D eus - não à
última palavra em gestão empresarial.
A maior lição é que deveríamos estar ocupados em assegurar que a igreja se torne
aquilo que Deus pretende que seja em essência. Isso não significa manter “a tradição
pela tradição” O mundo protestante, em geral, luta para assegurar a sobrevivência
de suas diversas tradições. O adventismo surgiu no calendário divino para resgatar
a reforma protestante, que se achava fragmentada em tradições antagônicas, e unir o
povo de Deus em torno da verdade bíblica. O adventismo, certamente, tem algo em
comum com os primeiros reformadores: a certeza do chamado para lutar pela verda
de, protestar contra o esquecimento de pontos bíblicos relevantes e denunciar o erro.49
Simultaneamente, existe a tendência crescente de reinventar a igreja de acordo
com a urgência. A chamada igreja emergente não representa somente uma séria que
bra de paradigm as em relação ao protestantismo tradicional; sua proposta implica
em descom prom isso com a verdade bíblica e uma adoção ao menos parcial da con
cepção pós-m oderna.
Com o adventistas, temos uma mensagem que se contrapõem a isso. Seguindo a
Bíblia, afirm am os que a igreja só precisa ser a igreja. E dentro dessa visão, com toda
a complexidade que ela encerra, se encaixa o com promisso com a Bíblia. Com o afir
mou o historiador adventista George Knight: “O verdadeiro estudo da Bíblia deve nos
levar à ação na causa de Deus. O verdadeiro estudo da Bíblia nos motivará a sair de
onde quer que estejamos para pregar a respeito de Jesus e daquilo que encontramos”.50
Quando a igreja voltar a ser um a comunidade de fé no moldes do NT, evangelis-
m o (m esmo dentro da cultura digital) será a nossa menor preocupação!
49. Miroslav Kis, Biblical authority and moral responsibility: the Word cannot be silenced, but must not be
made avoid, in: Journal of adventist theological society, vol. 10, n" 1, p. 70.
50. George R. Knight, A visão apocalíptica e a neutralização do adventismo, p. 34.
E hora de trocar de roupa
Um dos pronunciamentos mais duros feitos por Jesus se dirigiu aos líderes religiosos
de sua época. A mensagem poderia ser resumida em uma censura à hipocrisia deles (veja
Mt 23). Pelos séculos subsequentes, a religião professada, muitas vezes, continuou sem
encontrar eco em palavras, ações e exemplos coerentes. A partir do lluminismo, um dos
aspectos que os críticos da religião enfatizavam foi justamente a hipocrisia dos sacerdotes.
Infelizmente, no século XXI o cristianismo ainda está longe de se ver livre desse problema.
Aliás, detecta-se um agravamento da tendência a uma profissão religiosa não au
têntica: antes, as pessoas ostentavam a religião, conquanto dissimulassem sua ver
dadeira intenção. Atualmente, as pessoas isolam a religião como se fosse apenas um
compartimento de sua experiência e assumem que não seria incoerente viver contra
riamente aos princípios dela na maior parte do tempo. Crer e não observar era tido
como hipocrisia, uma forma de fugir da realidade. Hoje, é a realidade que está em
fuga - sempre em fuga - e se pode crer de diferentes m odos em momentos diferentes.
Assistimos à incorporação da essência da hipocrisia na penona pós-m oderna (cap. 3).
A cultura pós-modema se infiltrou de tal maneira no cristianismo que, em geral, não se
vê dificuldade em separar as crenças no fim de semana do comportamento diário.1Dinesh
D’Souza fala de alguns cristãos que escolheram a “solução mais fácil”, a de viver “de acordo
com o evangelho das duas verdades”: durante a semana, curvam-se à “verdade secular”,
enquanto reservam a “verdade religiosa” para os dias de culto. Para muitas pessoas no Oci
dente capitalista e secularizado, é mais cômodo levar sua vida como se acreditar ou não em
Deus não fizesse a menor importância - o que o mesmo autor chama de “ateísmo prático”2
Pesquisas com evangélicos norte-americanos identificaram que eles podem ser
tão racistas, propensos ao divórcio e materialistas como os não cristãos.3 No Brasil,
1. “Oficialmente, acreditamos que sem confiar em Jesus como Salvador as pessoas estão perdidas; ex-
traoficialmente, agimos como se o que as pessoas creem e o modo como realmente se comportam não
tivessem importância. Não é de admirar que nossa luz tenha ficado tremeiuzente e nosso sal tenha per
dido o sabor.” Erwin Lutzer, Quem é você para julgar?, p. 16.
2. Dinesh D’Souza, A verdade sobre o Cristianismo, p. 13-14, 22.
3. Ver Ronald J. Sider, O escândalo do comportamento evangélico: Por que cristãos estão vivendo exata
mente como o resto do mundo? (São Paulo, SP: Editora Vida, 2006), p. 19-30.
226 / E x plo sã o Y
não tem sido muito diferente. Augustus Nicodem os lamenta a falta de disciplina ecle
siástica entre igrejas brasileiras. Até m esmo pecados de natureza sexual se mostram
“cada vez m ais aceitáveis aos olhos evangélicos”.4 Outro autor observou qual seria
a causa da imaturidade espiritual entre os evangélicos: “Muitos dos cristãos, atual
mente, de maneira semelhante aos leigos medievais, são simplesmente deixados na
ignorância, enquanto sermões sobre autoestima, estresse e sucesso aprofundam o
narcisismo da ‘geração eu’” 5
Há um falso dilema que insiste em assolar a vida prática dos seguidores de Cristo.
Trata-se da ideia segundo a qual devemos ler as Escrituras somente de forma devo-
cional. Argumenta-se sobre o familiarizar-se com a pessoa de Jesus, indo à Bíblia não
em busca de confirmações doutrinárias ou mesmo de estudo cuidadoso. Bastaria co
nhecer o que a Bíblia diz acerca de Jesus. É comum ouvir que ler o texto sagrado dessa
perspectiva seja o equivalente ou até o sinônimo de devoção pessoal. Apesar da ampla
aceitação do conceito, algumas perguntas requerem atenção. A abordagem não estaria
pressupondo uma dicotomia entre Jesus e Sua doutrina? Se for o caso, a dicotomia
pode ser suportada por evidências bíblica? Fazer as pessoas escolherem entre Jesus ou
Sua doutrina não constituiria contradição insuperável, tendo em vista que o próprio
Jesus afirmou que o reconhecimento de Sua condição messiânica dependia de análise
de Sua doutrina (Jo 7:17; cf.: Mt 7:28, 22:33; At 2:42; Rm 6:17; lTm 4:6; 2Tm 3:10)?
Entrementes, basta olhar para situações emblemáticas para perceber a influência da
compartimentalização pós-m oderna (que admite separar crenças de comportamento)
entre os adventistas. Em 2010, um popular cantor adventista se apresentou em um show
com um artista secular, cantando uma música secular e recebeu elogios em fóruns da
internet por sua ação evangelística! Em 2011, um a jornalista adventista apareceu em
um reality show dirigido por uma apresentadora de TV e se recusou a participar de
atividades no sábado. Em seguida, começaram a ser divulgados vídeos de um programa
musical que a m oça apresentadara em uma emissora local e que iam ao ar aos sábados!
Isso sem mencionar um grupo musical que ganhou um prêmio em um show de calou
ros televisivo cantando e dançando (!) músicas gospel - sendo o diretor do grupo um
adventista. Enquanto persistir nessa abordagem popular e pouco cuidadosa de ler a Bí
blia sem se importar com a doutrina, menos se poderá conhecer objetivamente o plano
de Deus, conforme Ele o revelou. E quem poderá calcular o impacto disso em longo
prazo sobre a identidade adventista em tantos indivíduos da nova geração da igreja?
Provavelmente, em alguns dos casos mencionados, algo da mensagem adventista
pode ter sido transmitido. Entretanto, acreditamos que não de forma ideal, ou seja,
coerentemente com aquilo que Deus espera de Seu povo. Seria semelhante à situação
de Ester, que testemunhou na Pérsia e salvou os judeus (veja o livro de Ester). Cabe
lembrar, porém, que o fato de o próprio rei desconhecer sua nacionalidade indica que
4. Augustus Nicodemos Lopes, O que estao fazendo com a igreja: ascensão e queda do movimento evan
gélico brasileiro (São Paulo, SP: Mundo Cristão, 2008), p. 30.
5. Michael Horton, “ Trapos sujos (da imundícia) ou perfeita j u s t i ç a in: Don Kistler (org.), Crer e Ob
servar (São Paulo, SP: Editora Cultura Crista, 2009), p. 28.
É HORA DE TR O C A R DE ROUPA / 227
nem sempre ela se preocupou em viver como judia. Com pare isso com o com por
tamento de Daniel, fiel em todas as questões. Ele, por exemplo, se recusou a partici
par de banquetes reais, por respeitar as leis dietéticas, o que o identificava como um
judeu. Se Ester tivesse observado as m esm as leis o tempo todo, seria praticamente
impossível que não percebessem sua nacionalidade/
O fato de alguém ser usado por D eus em determinados mom entos não serve de
abono a faltas passadas da pessoa. Sansão cumpriu sua missão, embora sua conduta
fosse moralmente falha (veja Jz 13-16).7 O ideal de Deus é cumprirmos nossa missão
e ainda incorporarm os os valores da missão na alma. Portanto, a integridade precisa
ser um alvo imprescindível para todo cristão autêntico. Ainda que sejamos, por na
tureza, imperfeitos, devemos escolher nos tornar diariamente a habitação do Espírito
de Deus. Isso implica na rejeição da ideia da vida dividida em compartimentos, para
a concepção de integridade - ser o m esm o em todos os momentos, servindo a Deus
com toda a alma, força, inteligência e sentimentos.
Conquanto muitos textos bíblicos tratem dessa perspectiva, estudaremos um em
especial. Por meio dele, veremos algumas áreas da vida que necessitam ser mudadas e
com o operar a mudança. Afinal, se crença e prática estiveram dissociadas na vida de
muitos cristãos ao longo dos séculos, não tem que ser assim em nossa vida.
isso, na Bíblia, as roupas sejam usadas como símbolo do caráter da pessoa (Is 61:10;
Mt 22:11, 12; Ap 3:4, 5, 18; 7:9, 13, 14; 16:15; 22:14).
Sendo assim , quando Deus ou um de Seus servos diz, metaforicamente, a respeito
da troca de roupas, isso se refere à mudança de caráter. Claro que ninguém tem um
cabide com todo o tipo de caráter à disposição, para vestir-se com um deles conforme
a ocasião. Não é simples mudar quem som os. E, muitas vezes, nos perguntam os por
que tem os de mudar. Entretanto, a verdade é que Deus sabe qual a melhor vestimenta
que devemos usar e Ele oferece a roupa (o caráter) de Jesus para com ela nos cobrir
mos. O apóstolo Paulo escreveu sobre isso na carta aos habitantes da antiga cidade de
Colossos, localizada na Ásia Menor (Cl 3:3-17).
Convém notarm os que em sua carta, Paulo reforça o que é a vida cristã, um a vez
que falsos mestres rondavam Colossos, ensinando práticas místicas e ascéticas. A
certa altura, o apóstolo começa a com parar a vida dos cristãos antes e depois de sua
conversão. Para tornar didática a apresentação do conteúdo que o maior escritor do
Novo Testamento proferiu, vam os dividir seus ensinos em duas seções.
I - Tire a roupa suja: Paulo começa seu assunto no versículo 5 de form a dram á
tica: “Assim, façam morrer tudo o que pertence à natureza terrena de vocês [...]”
(NVI). Há um a ligação entre o “façam morrer” desse versículo com o “morreram”
do versículo 3, indicando que a “morte do eu” na vida espiritual é um evento que já
aconteceu, m as que tem de ser continuamente renovado.8 Parafraseando, teríamos
algo assim: ‘“Que vosso próprio-eu antigo, vossa vida pagã, que morreu no batismo,
permaneça morto.’”9 Por que nosso eu precisa morrer? “É por causa dessas coisas que
vem a ira de D eus sobre os que vivem na desobediência.” (v. 6, NVI).
Paulo fala de “fazer morrer a natureza terrena” ou, em outra tradução, “os vossos
membros [gr.: mele] terrenos” (Bf). O uso do termo “membros” serve de metonímia
para os pecados praticados por eles.111 A expressão também ressalta o quão intima
mente entretecido se acha o pecado “com todas as fibras de nosso ser”. O pecado,
nosso inimigo, é “um a parte integral de nós m esm os”; logo, combatê-lo é “uma luta
contra nós próprios”.11 Contudo, penitências, clausura, peregrinações, longos jejuns
ou a prática de “pagar prom essas” vistas na religião popular, são insuficientes para
lutar contra a nossa “segunda pele”, chamada pecado. O processo de mortificação dos
mem bros que aparece na carta aos Colossenses é algo ético, não físico.12
8. William Hendriksen, Colossenses e Filemon (São Paulo, SP: Casa Editora Presbiteriana, 1993), p. 181.
9. Ralph P. Martin, Colossenses e Filemon: introdução e comentários: série Cultura Bíblica (São Paulo, SP:
Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, 2006), 4a reimpressão da Ia ed., p. 113.
10. Hendriksen, Opus cit.yp. 182.
11. Guy Appéré, O mistério de Cr rifo: meditações sobre Colossenses (Durham, Inglaterra: Edições Peregrino,
1990), p. 102-103.
12. W. E. Vine, Merril F. Unger, William White Jr„ Dicionário Vine: o significado exegética e expositivo das
palavras do Antigo e do Novo Testamento (Rio de Janeiro, RJ: Casa Publicadora das Assembleias de Deus,
2005), 5J ed., p. 781, verbete “membros”.
É HORA DE TR O CA R DE ROUPA / 2 2 9
(2) Roupas comuns suja: A segunda lista (v. 8) possui pecados aparentemente
menos graves, mas igualmente ofensivos a Deus; são eles:
(a) Ira: a raiva humana, ao contrário da chamada ira divina, jam ais é justa ou
m esm o equilibrada, produzindo sempre amargor;
(b) Indignação: o sentimento de revolta ou descontentamento geralmente con
duz à insubordinação;
(c) Maldade: o substantivo usado por Paulo (gr.: kakian) indica “maldade, depre
ciação, malignidade” ;1^
(d) Maledicência: apesar de que “a palavra ‘blasfémia está praticamente limitada
à linguagem difam atória acerca da majestade divina’, 15 ela é empregada aqui com o
sentido de falar mal de outrem, de forma generalizada;
(e) Linguagem indecente ao falar: o apóstolo reforça o cuidado com a lingua
gem quando, a seguir, ordena que os cristãos “não mintam uns aos outros” (v. 9).
Em Faces da Verdade (originalmente Nothing but the Truth),'6 o clima é bastante
tenso e esgota as esperanças do espectador. O filme, dirigido por Rod Lurie, retrata a
situação revoltante a que Rachel Armstrong (Kate Beckinsale), é submetida. A jorna
lista escreveu a matéria-bomba sobre a agente do FBI Erica Van Doren (Vera Farmi-
ga)> envolvida em um escândalo que afetou o governo dos EUA. Rachel sofre a pressão
do governo para revelar sua fonte. Num dos diálogos mais marcantes, o Dr. Burnside
afirma, em seu discurso no tribunal: “Eu disse a ela que estava defendendo sua pessoa
e não um princípio; m as a verdade é que para uma grande pessoa não há diferença
entre o princípio e a pessoa.” A frase define corretamente o verdadeiro cristão.
II - Vista a roupa limpa: Paulo fala que o novo homem, do qual devemos no
revestir, está “sendo renovado em total conhecimento, segundo a imagem do que o
criou, onde judeu e grego, circuncisão e incircuncisão, bárbaro, cita, escravo, livre
não têm lugar; antes o M essias é todas as coisas em todos’’ 18 Reunidos em Cristo,
usando Seu caráter para cobrir a nossa vergonhosa nudez, podem os viver sem distin
ções e preconceitos! Uma nova vida está à nossa disposição, basta que troquemos as
roupas imundas do pecado e aceitemos os finos trajes da Justiça.
(1) Como são as novas roupas: O que o escritor da carta aos Colossenses tem a nos di
zer sobre esses trajes? Paulo nos apresenta uma lista de virtudes cristãs (v. 12), como se segue:
(2) O que vai sobre as novas roupas: Paulo recomenda o perdão (v. 13) como um
adorno necessário para o convívio com outras pessoas cristãs. Em seguida, o apóstolo
menciona o amor, chamado por ele de “o elo perfeito” (v. 14, NVI). Conforme Grenz,
“ [...] das várias dim ensões da vida moral, o am or é que é central para o todo, uma
vez que só ele permite vislumbres da nova realidade. De fato, o amor é a real quali
dade da era futura” 20 Aliás, quando Paulo escreve “acim a de tudo [...] revistam-se
do am or”, a expressão “ acima de tudo’ pode transmitir o pensamento de por cima
de todas as demais roupas’”,2i como se o amor fosse um a espécie de sobretudo. Para
muitos estudiosos, a expressão “vínculo da perfeição” significa que o amor é o que
une as dem ais características citadas e nos conduz à perfeição, ou seja, “à obtenção
de [nosso] ideal” 22
(3) Desfrutando das novas roupas: A nova vida passa a ser vida de paz (v. 15),
que, assim como o termo hebraico Shalom, apresenta um a vida integral, completa,
harmônica; logo, “ [...] a inteireza do M essias ou sua unicidade’, seu interesse, é a de
ser juiz, tom ar as decisões, exercer o controle e governar no coração dos crentes.”23
Paulo, empregando seu estilo literário característico,24 deseja que a palavra de
Deus “habite ricamente” nos crentes, o que lhes m oldará a vida, a qual passará a focar
a instrução mútua, o louvor e a obediência a Cristo em todos os quesitos (v. 17). So
bre o louvor, é interessante que Hendriksen afirme que, enquanto as pessoas em geral
Um guarda-roupa à disposição
Uma das piores ocasiões pela qual passei foi quando estava prestes a ser apre
sentado com o capelão de uma instituição em Joinville (SC). Durante a reunião de
começo de ano, uma professora de Informática veio avisar sobre o rasgo lateral na
minha calça. Eu teria de falar em poucos instantes, m as como faria isso, sem cair no
ridículo? Quase ninguém naquela manhã entendeu porque o pastor novo do colégio
apresentou seu planejamento sem sequer se levantar! Com o é constrangedor usar
roupas inadequadas, manchadas, sujas ou rasgadas em público.
Mas isso não precisa ocorrer na vida espiritual. Por que tremer de frio, quando
uma boa ducha o espera? Por que ficar com uma roupa grudenta, quando há roupas
limpas no armário? Troque de roupa. Deus lhe oferece uma vida digna e nova. Vestes
não rasgadas. Roupas sem manchas. Bainhas feitas. Colarinhos limpos. Deus dispo*
nibiliza uma vida semelhante à de Jesus. Com o recusar algo tão confortável e feito
sob medida para atender nossas necessidades?
Obviamente, não existe alguém que consiga ser coerente com suas crenças d u
rante todo o tempo. M esm o o cristão mais experiente e convertido se verá traído por
velhos hábitos ou pensamentos a qualquer momento. Porém, isso não é motivo para
o desespero. O Senhor não exige de nós perfeição absoluta, o que seria algo im pos
sível de se atingir. Mas podem os caminhar com Deus e desejar que Sua companhia
nos transforme, exercendo sobre nós uma influência restauradora e que nos capacite
à obediência em Cristo. Somente então, as vestes de justiça, aceitas a cada dia, se
m ostrarão eficientes em cobrir a imundícia do coração pecador.
O coração da floresta. Convivendo com indígenas por dez anos. Entre traficantes
de escravos e furiosas epidemias. No território da nascente do rio Amazonas, o casai
William e Olga Schaeffler cumpria uma missão de risco.
Tudo teve início a partir de 1927, quando as m issões indígenas da União In
caica foram organizadas (envolvendo Peru, Bolívia e Equador). Era um território
difícil para a Igreja A dventista do Sétim o Dia. Poucos obreiros se anim avam a
serem cham ados para a região. O cam po não era prom issor. As dificuldades fi
nanceiras? Im ensas.
Os Schaeffler corajosamente aceitaram trabalhar na floresta do norte do Peru.
Com o resultado, fundaram duas escolas, um a igreja, além de instalações para atender
a população e abrigar obreiros. Muito mais do que isso: cerca de 250 índios campas se
batizaram, m udaram -se para perto do casal, formando um a pequena vila adventista
em plena floresta!1
Relatos com o esse, provenientes do campo missionário, emocionam, em parte por
que o maior número daqueles que nasceram em um lar adventista (popularmente co
nhecidos com o “adventistas de berço”) já sonharam em ser missionários. Os relatos
mundiais das m issões (cartas m issionárias) na Lição da Escola Sabatina fomentam o
ideal de pregar no campo estrangeiro. E Deus serve-Se de relatos assim e de muitas
outras maneiras para chamar jovens e famílias para deixar seu país e trabalhar em
lugares remotos do mundo.
Ao m esm o tempo, a m aioria de nós não precisará fazer seu passaporte! Se qui
serm os ser m issionários, não teremos necessariamente de nos m udar e aprender um
novo idioma, embora alguns recebam esse chamado específico. M as, para a grande
maioria, basta representar nosso Deus e Seu evangelho onde estiver (cap. 2). E isso é
mais verdadeiro no século XXI. Por incrível que pareça, nossa sociedade vem abrin
do mão de sua herança cristã e assum indo uma postura dita pós-cristã - como se a
religião de Cristo já estivesse superada.
1. Floyd Greenleaf, Terra de esperança: o crescimento da Igreja Adventista na América do Sul (trad.: Ce
cília Eller Nascimento; Tatuí, SP; Casa Publicadora Brasileira, 2011), p. 338-340.
234 / E x p l o s ã o Y
Paulo lhe diz que não deveria menosprezar - até pelo contrário, deveria levar em
conta - o ato da imposição de mãos, sobre ele realizado (lT m 4:14). A expressão “por
mensagem profética” nos sugere que houve uma revelação sobrenatural que apontas
se claramente para a consagração de Timóteo através da im posição de m ãos (cf.: At
13:2, 3). A própria ordenação por meio desse processo era antiga: vemos, por exem
plo, que os levitas foram separados para o sacerdócio ao ser-lhes im postas as m ãos de
M oisés (Nm 8:10, 11) e o m esm o ocorreu com Josué (Nm 27:18-20, 23), quando foi
separado para ocupar o lugar do mesmo Moisés, prestes a morrer. No caso de T im ó
teo, Paulo em pessoa im pusera suas m ãos sobre o iniciante condiscípulo (2Tm 1:6,7).
Timóteo, com o ministro ordenado, não deveria se preocupar com a salvação m e
ramente do prism a evangelístico, como algo a ser levado ao povo - ele deveria se
envolver com o processo por experiência. Combater o bom combate incluía tomar
posse da vida eterna (1 Tm 6:12). “Salvar-se a si mesmo” era imperativo, tanto quanto
salvar a outros (lT m 4:16).
É claro que essa experiência de estar salvo traz inúmeros benefícios; inegavel
mente, contudo, a salvação atrai sobre os crentes a vergonha e o desprezo por parte
dos que rejeitam sua mensagem. Tim óteo deveria suportar os sofrim entos que a
pregação do Evangelho lhe acarretasse, tendo a certeza da salvação passada e da
vocação presente (2Tm 1:8,9), além da garantia da recompensa a ser dada “naquele
D ia ’ (2Tm 1:12; 4:7,8).
Hora do combate
0 m esm o combate reclama em nossos dias por pessoas que aceitem o desafio e
o alcance da m issão dados por Deus. Paulo, Timóteo, John Huss, Zwínglio e milha
res de campeões do passado descansam no Senhor, tendo cumprido o seu combate.
Agora é a nossa vez de nos erguermos e lutarmos pela nossa salvação e de nossos
semelhantes.
Para atendermos nosso chamado, nada como considerar as orientações de Paulo
a Timóteo. Nós as dividiremos em tópicos para facilitar seu estudo:
1 - Fortifique-se na graça de Jesus para cum prir a m issão (v. 1): Ao escrever
“seja forte”, Paulo literalmente está dizendo: “vá para o cam po de batalha com o um
soldado”.2 A forma enfática como o apóstolo incentiva Tim óteo pode também ser
vertida do seguinte modo: “Você, entretanto, meu filho, seja continuamente fortale
cido pela graça que há em Cristo Jesus.”3
Ao longo dos capítulos deste livro, procurou-se dissecar aspectos da pós-moder-
nidade que constituem especial desafio para nós, cristãos adventistas, cumprirmos a
2. Warren W.: Wiersbe, Wiersbes Expository Outlines on the New Testament (Wheaton, 111.: Victor Books,
1997), p. 645.
3. William D. Mounce, Word Biblical Commentary: Pastoral Epistles (Dallas: Word, Incorporated, 2002),
vol. 46, p. 503.
236 / E x p l o s ã o Y
4. O documento foi votado no concílio anual da associação geral dos adventistas do sétimo dia, em 11
de outubro de 2010.
5. “A despeito da palavra traduzida por em presença de’ (ôiá, dia) normalmente significar através', é
improvável que Paulo intente representar sua mensagem a Timóteo como mediada através de outros,
porque Timóteo tinha ouvido Paulo diretamente” C. Michael Moss, l, 2 Timothy & Titu$; The College
Press NIV Commentary {Joplin, Mo.: College Press, 1994), edição eletrônica, comentário sobre 2Tm
2:2. Moss esclarece que a sugestão para traduzir a palavra como “em presença de” remonta a Crisóstomo
(407 d.C.).
V izin h o d o c a m p o m issio n á r io / 237
III - Disponha-se às condições da missão (v. 3-7): Paulo convida seu jovem con
discípulo a partilhar sua vida de sofrimentos em favor do evangelho. Para tornar a
questão mais vívida na mente de Timóteo, ele colore seus argumentos com exemplos
tangíveis. Devemos nos ajustar à m issão como:
1 - 0 soldado: Aqui Paulo enfatiza dois aspectos. O Soldado (1) serve apenas a quem o
alistou (v. 4) e (2) se sujeita ao sofrimento (v. 3). É sabido que a disciplina de um soldado na
época do império romano era árdua. Cada soldado carregava pesados armamentos, além de
utensílios tais como a serra, o cesto, a picareta, o machado, o anzol e comida para três dias.7
O primeiro aspecto envolve o compromisso. Durante o período de serviço militar,
um soldado não se preocupa com seu sustento ou suas atividades sociais. Ele não tem
tempo sequer para se dedicar à família. Seu foco está no serviço prestado ao seu país.
Em nome desse compromisso, o soldado se sujeita a privações. Filmes e documentários
comentam a situação de famílias americanas que sofrem ao ver maridos e filhos ser
vindo no Afeganistão ou Iraque. A vida militar pode ser árdua mesmo em nossos dias.
De certa maneira, a vida cristã envolve um com promisso que passa longe de qua
dro romântico e bem sucedido que muitos pregadores compõem diante de congre
gações desavisadas. Há luta renhida e desafios constantes. O cristão deve ter em vista
que seu m aior com promisso é com o Senhor Jesus Cristo quem o alistou. Em nome
dEle, toda privação e sofrimento compensam!
2 - Como o atleta: Em 1988, durante as olimpíadas de Seul, o canadense Ben Jo
hnson venceu a prova dos cem metros rasos estabelecendo a marca de 9s79. O m un
do ficou fascinado com aquele voo em solo. Infelizmente, algumas horas mais tarde
descobriu-se que o homem de fato usava um combustível proibido: Bem Johnson
caiu no exame anti-doping. O atleta usara estanozolol, um esteroide anabolizante.
Sua medalha foi recolhida e seu record, apagado.
Em 2001» Bem Johnson, que já se encontrara banido do esporte por reincidência
no uso de substâncias ilícitas, voltou a ser notícia. Johnson se achava na Via Vene-
to, em Roma, quando um a mendiga lhe bateu a carteira. M ais do que depressa, o
corredor saiu em perseguição da ladra. Por ironia, ele não conseguiu alcançá-la!8 A
6. Warren W. Wiersbe, The Bible Exposition Commentary (Wheaton, 111.: Victor Books, 1996), edição
eletrônica, comentário sobre 2 Tm 2:1.
7. [ames M. Freeman; Chadwick, Harold J., Manners & Customs of the Bible. Rev. ed. ( North Brunswick,
N J : Bridge-Logos Publishers, 1998), p. 543
8. A notícia pode ser encontrada em vários meios de comunicação, mas consultei especialmente O fim
de uma farsa, disponível em < http://epoca.globo.com/especiais/olimpiadas/0807_ouroperdido.htm>.
Acesso: 6 de nov. de 2011.
238 / E x p l o s ã o Y
história de Bem Johnson ajuda a reforçar o aspecto que Paulo pretende enfatizar: o
atleta valida sua participação seguindo as regras da competição. Na vida cristã, nossa
m issão deve ser levada adiante, m as não de qualquer forma. Não somente os resulta
dos apenas, como os próprios m étodos para atingi-los, importam. Devemos seguir as
regras do jogo, aquelas que o próprio Deus estabeleceu em Sua palavra.
3 - como o agricultor: Aqueles que, à semelhança deste autor, cresceram em um
ambiente urbano, teriam dificuldades para se adaptar à dura rotina de um a fazenda.
Pessoas que vivem no cam po dormem e acordam muito cedo e trabalham duro du
rante muitas horas do dia. Sobretudo, Paulo enfatiza que o agricultor participa da
própria colheita (v. 6), o que constitui sua recompensa em meio a tantos desafios.
As três metáforas têm algo em comum, embora apresentem nuanças diferentes:
Um soldado sofre por ser forçado a ignorar afetos civis. Um atleta devido
ao treinamento propriamente. Um agricultor sofre por causa do trabalho duro.
O que perpassa todas essas metáforas em comum é o tema da perseverança em
face do sofrimento descrito.1*
11. E. Glenn Wagner, Scape from church, in: The return the pastor-shepherd (Zondervan, 1999), p. 32, 111.
240 / Explo são Y
No dia seguinte, um novo desafio: reunir pessoas para o culto. Para nossa surpre
sa, quando chegam os à aldeia Boto Velho, os moradores rapidamente se reuniram no
pátio de um a casa, junto às árvores, assentando-se em bancos de madeira, O primeiro
culto adventista naquela aldeia javaés. Com diversas músicas (algumas no idioma
deles), encenações e cativante exposição da palavra de Deus, vimos pessoas se em o
cionarem. Deus estava presente. Aliás, sempre esteve. Bondosamente, Ele m anifesta
va de form a m ais nítida Sua presença. Enquanto eram lidas passagens do primeiro
capítulo de Gênesis, o Criador dos javaés falava ao coração sincero do povo.
Naquele dia nos despedimos da tribo. Não sem antes ouvir do cacique Vagner, visi
velmente quebrantado, que as portas de sua aldeia estavam abertas para os adventistas.
O Senhor tem m uitas formas de despertar o coração humano e chamá-lo à obe
diência de Sua palavra. Na sexta-feira, Ele usou um pau-de-sebo como quebra-gelo.
E, em Suas m ãos, infinitos recursos existem para socorrer aqueles que se dispuserem
a servi-Lo. Seja entre os javaés ou entre pessoas das classes mais altas; entre incultos
e academicamente instruídos; em nossa vizinhança ou como missionários; em toda
circunstância, temos o privilégio de servir a Deus.
Em Apocalipse 14:6 está escrito: “Então vi outro anjo, que voava pelo céu e tinha
na m ão o evangelho eterno para proclamar aos que habitam na terra, a toda nação,
tribo, língua e povo” (NVI). A partir do momento que o “evangelho eterno” nos al
cança, temos a opção de atendê-lo e nos unir àqueles que “obedecem aos m andam en
tos de D eus e permanecem fiéis a Jesus” (Ap 14:12, NVI), Nenhum cristão precisa
viver alienado, sem lançar m ão de qualquer tipo de referencial palpável. Temos o
exemplo extraordinário dos homens do passado. Muitos desses santos têm suas his
tórias conservadas na Bíblia, justamente para nosso proveito (Rm 15:4). Ao contrário
do que muitos poderiam supor, cada santo homem do passado era “hum ano como
nós” (Tg 5:17). A Bíblia não suprime seus defeitos e falta de fé. Eles tiveram lutas e
sofreram o suficiente para que sua fé fosse atestada (Hb 11).
Pessoas como Ana, Ester, Maria, João, Priscila e Áquila, Paulo, Pedro, Timóteo e o
casal Schaeffler vivenciaram experiências espirituais capazes de servir de inspiração
para nós. Com o elas, temos de nos dedicar a testemunhar, servir, pregar, instruir, ad
vertir e amar. Mesmo que a geografia seja outra; mesmo que tenhamos hoje smartpho-
nes, iPads e e-books-, m esmo que a hostilidade dos neoateus e dos céticos seja vista em
documentários, livros e até pela internet, foi para esse tempo que Deus nos chamou
para viver a mensagem do terceiro anjo (Ap 14). Se as testemunhas do passado ousa
ram amar a Deus a ponto de encarar o desafio de viver por Ele, não deveríamos nos in
timidar diante de nossa realidade desafiadora. Temos nosso próprio combate à espera.
Quando Cristo transformar nossa vida, transformará aqueles que estão ao nosso redor.
A mensagem específica do remanescente o identifica como povo de Deus, ao m es
mo tempo em que convida outros a se unirem a ele. Deus nos chamou para essa
missão. E por m ais difícil que seja alcançar o topo, Deus tem uma recompensa muito
maior para nós quando chegarmos lá - afinal, o que são algumas guloseimas em com
paração com a vida eterna para nós e para aqueles que crerem por nosso intermédio?
O coração do discipulado
Época após época, uma tendência cultural, uma grade de valores universalmente acei
tos, desafia a filosofia cristã. Deus exige que nos tornemos o tipo apropriado de pessoa
para testemunhar em nosso contexto de vida. Que sacrifícios temos de fazer para estar à
altura do que o Reino exige de nós? A questão não é nova. Conforme observamos (capí
tulo 16), cada período suscita respostas específicas e práticas que todo cristão tem de se
dispor a revelar. O fundamental é testemunhar, de forma culturalmente apropriada, a es
sência do evangelho que não muda (capítulo 8). Os desafios pedem respostas específicas,
e variam conforme o período da história humana; mas o mesmo evangelho permanece
a fonte de respostas para cada época (capítulo 2). Todo cuidado é pouco: não podemos
pregar respostas a perguntas da geração anterior, quando toda uma nova geração levanta
novas perguntas para serem respondidas.
Voltemos no tempo a fim de encontrar outro homem que ilustrou com sangue o
que significa ser um a testemunha. Aquele jovem luterano, ao ambicionar se tornar um
professor de teologia, provou ser mais do que um pensador consistente: os nazistas o
silenciariam no campo de extermínio em Abril de 1945 por sua heróica resistência,
apenas três semanas antes de Hitler cometer suicídio! É preciso lembrar que aquele ho
mem corajoso havia declarado: “Se quiser a eternidade, você deve servir ao seu tempo.” 1
É preciso lembrar que muitas denominações cristãs apoiaram Hitler - se unindo
ao grupo conhecido como “cristãos alemães”, síntese entre cristianismo e ideologia
ariana. M as o jovem professor, ao contrário, lutava para que a igreja cristã fosse uma
comunidade de fé autêntica. Ele estudara no Union Theological Seminary em Nova
York; apesar de proceder de um a família alemã da dasse-m édia, ministrara preleções
a pessoas negras em guetos do Harlem durante seus anos nos EUA. A convivência
lhe ensinara que o evangelho vence as barreiras sociais. Ninguém deveria ser discri
minado, inclusive os judeus.
Quando Hitler elegeu-se chanceler da Alemanha, em 30 de janeiro de 1933, logo
vieram as primeiras leis anti-judaicas. Em suas aulas, por meio de artigos e pregações, o
jovem teólogo luterano se opunha ao nazismo. Ele ainda auxiliou judeus a escaparem da
1. Eric Metaxas, Bonhoeffer: pastor, mártir, profeta, espião (São Paulo, SP: Mundo Cristão, 2011), p. 94.
242 / E xplo sã o Y
(capítulo 4). Entretanto, a Bíblia apresenta Jesus como Logos, fundamento de todo co
nhecimento, não apenas do conhecimento religioso (capítulo 11). “Na epistemologia
de Jesus, fazer a vontade de Deus está integralmente ligado ao conhecimento5(chegar
a compreender convictamente) se o ensinamento de Jesus vem de Deus.” Com o já foi
afirmado, o “custo de descobrir a verdade é a obediência; a consequência é conhecer a
verdade e ser liberto de tudo que nos separa de Deus e da realização humana final”.10
Essa obediência transform adora se fundamenta na relação pessoal que os discípu
los experimentaram com a pessoa de Jesus. Ellen White acrescenta:
No preparo dos discípulos, o exemplo do Salvador fora muito mais eficaz que só
por si qualquer doutrina. Ao serem separados dEle, todo olhar e palavra e entonação
lhes acudia à memória. Muitas vezes, quando em conflito com os inimigos do evan
gelho, repetiam-Lhe as palavras e, ao verem o efeito produzido sobre o povo, muitos
se regozijavam.11
“O discípulo não está acima do seu mestre, nem o servo acima de seu senhor. Basta
ao discípulo ser como o seu mestre, e ao servo, como o seu senhor. Se o dono da casa foi
chamado de Belzebu, quanto mais os membros de sua família.” (Mt 10:24, 25, NVI). Para
o Salvador, a expectativa do discipulado consistia em viver sob a perspectiva do Mestre.
Assim, no evangelho de Lucas, a frase “o discípulo não está acima de seu mestre” serve
para explicar como um cego é incapaz de guiar a outro (Lc 6:39,40)!12
No caso dos discípulos, eles não poderiam esperar melhor tratamento do que o
próprio Jesus recebera. Ele os advertiu de que muitas pessoas dignas os receberiam (v.
11-13), e fazendo isso, receberiam o próprio Deus (v. 40), recebendo a recompensa pelo
menor favor feito a um discípulo (v. 41,42). Entretanto, outras pessoas não acolheriam
sua mensagem, tornando-se mais passíveis de juízo do que Sodoma e Gomorra (v. 15;
cf.: Mt 11:20-24). O que os doze poderiam esperar, se o próprio Cristo havia sido acusa
do de ser endemoninhado pelos líderes religiosos de sua época (cf.: Mt 12:24; Jo 8:48)?
Jesus utiliza um curioso jogo de palavras no verso 25. Embora os evangelhos te
nham sido escritos em grego Koiné, o aramaico era a língua falada no dia a dia pelos
10. James W. Sire, Hábitos da mente: a vida intelectual como um chamado cristão (São Paulo, SP: Editora
Hagnos, 2005), p. 157, 212, 227, 131.
11. Ellen G. White, O desejado de todas as nações (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2007), p. 242.
12. Willoughby C. Allen, A Critical and Exegetical Commentary on the Gospel According to S. Matthew -
The International Critical Commentary on the Holy Scriptures o f the Old and New Testaments (New York
: C. Scribner’s sons, 1907), vol. 26, p. 107.
O CORAÇ ÃO DO D ISC IP U L A D O / 2 4 5
judeus nos tempos de Cristo (e, provavelmente, usassem o grego como segunda lín
gua). É um consenso que os discursos do Redentor foram proferidos originalmente em
aramaico. Nessa língua, a expressão “dono (lit. “mestre”, beel) da casa (zebul)” l} soava
como a forma para designar Satanás. Belzebu aludia a Baal, o deus cananita, cultuado
em Ecrom (2Rs 1:2, 3, 6, 16). O termo zebui pode ser traduzido por “casa exaltada”;14
mas outra interpretação assume que, na linguagem rabínica, zebul se refere a “tem
plo”. Assim, Belzebu, ou “mestre do templo”, seria uma forma de ofender diretamente
a Jesus, um a vez que, ao purificar o templo, Ele se autoprodamara “mestre do templo”.
Agora, os fariseus o acusavam de fazer essas coisas sobre a autoridade dos demônios,
numa referência a Beelzibbul, senhor do sacrifício idolátrico.15
Enquanto muitos seguem Jesus por interesse em bênçãos materiais ou por ser algo
popular, temos de avaliar a questão do discipulado sob a ótica de que a mesma rejeição
que Jesus sofreu pesará sobre os Seus seguidores (cf.; Lc 9:58; Jo 15:18-25).
13. Craig S. Keener, InterVarsity Press: The IVP Bible Background Commentary: New Testament (Dow
ners Grove, 111.: InterVarsity Press, 1993) edição eletrônica, comentário sobre Mt 10:24.
14. Bruce B. Barton, Matthew - Life Application Bible Commentary (Wheaton, 111.: Tyndale House Pu
blishers, 1996), p. 210.
15. Marvin Richardson Vincent, Word Studies in the New Testament (Bellingham, WA: Logos Research
Systems, Inc., 2002), vol. 1, p. 60, 61.
16. Timothy Friberg, Barbara Friberg, Neva 1; Miller, Analytical Lexicon of the Greek New Testament -
Baker’s Greek New Testament Library (Grand Rapids, MI: Baker Books, 2000), vol. 4, p. 69, 96.
246 / E xplo são Y
venha a se tornar conhecido.” (Mt 10:26, NVI). N osso temor a Deus deve nos levar a
assum ir o risco de pregar em um mundo hostil. Se rejeitarmos a missão, perm ane
ceremos fora de risco de vida - dessa vida! Contudo, perderemos a vida eterna. Por
outro lado, se nos arriscarm os, o m áxim o que farão contra nós será nos matar - mas
teremos a vida eterna assegurada! Desta forma, os seguidores de Jesus desfrutarão de
paz, m esm o se tiverem de encarar ameaças de poderes constituídos: “Quando a au
toridade disser; ‘Eu chamarei você de perturbador da paz’, eles [os discípulos] podem
responder: ‘A ssim chamaram a Jesus, que era verdade, e graça e paz.’” 17
Jesus conclama os discípulos a pregarem publicamente, sem esconder sua fé nEle
(v. 27). “O que Eu contei a vocês no escuro, falem na luz. O que Eu contei a vocês em
tempos calmos, em devocionais matutinos, em vigílias noturnas, espalhem”, como
alguém parafraseou.18 Pode parecer exagero do Mestre a proclamação nos telhados
(v. 27), mas os telhados eram lugares de anúncios públicos na Palestina.19 Em tempos
em que a religião fica relegada à fé íntima, os cristãos têm de recuperar a dim ensão
pública de sua confissão. Devemos anunciar o senhorio de Jesus em todas as esferas:
no lar, no entretimento, nos negócios, nos estudos, na política e onde quer que for.
Fatores com o secularização, imoralidade e hedonism o são barreiras para a pre
gação do evangelho no século XXI? Pense no período apostólico: as prostitutas eram
num erosas “com o estrelas no céu” ; a hom ossexualidade era aceita socialmente e ha
via o culto da poesia erótica; as “mulheres se ocupavam com escravas manicures” e
um a variedade de cosm éticos e penteados; os banquetes continham pratos à base de
porco; a despeito de a internet - e muito menos a televisão! - ter sido inventada, os
espetáculos em teatros preenchiam a rotina com entretenimentos.
Do m esm o m odo que naquele período ou em qualquer outro da história, o “de
safio é ajudar o povo a sentir sua necessidade de salvação , e assim perguntar a questão
que nós som os com issionados a responder.”2"
Temos um Deus que promete cuidar de Seus filhos. Jesus menciona os pardais (v.
29, 31) como alvo do cuidado divino, mesmo sendo aves de valor tão ínfimo. Civilla
Martin, autora de letras de muitos hinos evangélicos, menciona uma visita feita a um
amigo acamado. Corria o ano de 1904. Ao ser perguntado se sua condição física não
o desanimava, o amigo respondeu: “Senhora Martin, como posso eu estar desenco
rajado quando meu Pai celestial vela sobre cada pequeno pardal e eu sei que Ele me
am a e cuida de m im ?” Aquela inspiradora resposta serviu para que Civilla Martin
escrevesse as palavras do hino His Eye is on the sparow (“Seus olhos estão sobre o par
17. Ellen G. White, Selected Messages (Review and Herald Publishing Association, 2002), vol. 3, p. 421.
18. Jon Courson, Jon Coursons Application Commentary (Nashville, TN: Thomas Nelson, 2003), p. 75.
19. The Open Bible: New King James Version (Nashville : Thomas Nelson Publishers, 1998, cl 997), edição
eletrônica, comentário sobre Mt 10:27.
20. J. Robert Spangler, “Secularization in the New Testament times", in: Meeting the secular mind: some
adventist perspective: selected work papers of the committee on secularism of the General Conference of
Sevent-Day Adventists, 1981-1985 (Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 1985), p. 117-118,
122. Grifos presentes no original.
O CORAÇÃO DO D IS C IP U L A D O / 2 4 7
dal” em tradução livre), que, em nosso hinário, foi traduzido como “Cuidará de mim
também” (HA 371).;1 Se, como Jesus disse, até nossos fios de cabelo estão contados (v.
30), significa que Deus conhece todas as circunstâncias e Seu cuidado e providência
nos acompanharão. No temor de Deus, nada temos a temer!
“Quem, pois, Me confessar diante dos homens, Eu tam bém o confessarei diante
do Meu Pai que está nos céus. Mas aquele que Me negar diante dos homens, Eu
tam bém o negarei diante do Meu Pai que está nos céus.” (Mt 10:32, 33). A arte
do fotógrafo, que im prime a im agem na película fotográfica, não é tão grandiosa
quanto a im pressão dos caracteres fielmente registrados pelos anjos em livros!22
Vivemos m om entos solenes, que antecedem a volta de Jesus. Um julgam ento está
acontecendo no Céu. Será impossível term os o nome aprovado sem um intercessor.
Jesus é Aquele que nos representa diante de D eus ( ljo 1:9). Q uando os livros são
abertos, é Ele quem comparece à cena do julgam ento (Dn 7:9-14), porque “o Pai a
ninguém julga, m as confiou todo julgam ento ao Filho [ ...] ” (Jo 5:22, NVI).
M as nossa aprovação no julgamento não depende de pertencermos à igreja, mas
de vivermos com o a igreja. Verdadeiras testemunhas de Cristo não temem seu ju lga
mento, o qual é realizado em favor delas. Quando o caráter de Jesus se reproduzir em
nós, por meio de nossa consagração pessoal, o céu apenas confirmará o que foi visto
na Terra: fé vitoriosa que alcançou a recompensa eterna.
O mecanismo
Sempre que volto à igreja na qual me batizei, coisas interessantes acontecem. Re
vejo am igos que, com o eu, começam a ficar grisalhos. Há adolescentes que antes
eram crianças (e muitas, de colo!). Sinto falta de alguns rostos, pessoas que se mu
daram para outra congregação, apostataram (tristemente) ou faleceram. As paredes
começam a mostrar as primeiras rachaduras e a pintura parece cansada. Aos sábados,
o templo lota e é possível rever também alguns colegas de ministério. Um deles bati
zou meu irmão m ais novo.
Entre os diáconos, encontro dois para os quais dei estudos bíblicos. Um deles,
ainda namorava quando eu ia visitá-lo aos sábados na casa da namorada, que hoje
é sua esposa e mãe de um lindo bebê. Também reencontro homens, com os quais,
quando juvenis, pude estudar a Bíblia - hoje, tenho que olhar para cima se quiser
falar com eles!
Muitas das pessoas que frequentam a igreja me viram adentrar as portas do templo
21. Kenneth W. Osbeck, Amazing Grace: 366 Inspiring Hymn Stories for Daily Devotions (Grand Rapids,
Ml: Kregel Publications, 1990), p. 143.
22. Ellen G. White, Maranatha (Review and Herald Publishing Association, 2002), p. 340.
248 / E xplo são Y
A cada sinal vermelho, era com o se fosse um parto. Primeiro, porque signifi
cava um m inuto de espera. E quando se está atrasado, todos os minutos contam.
Segundo, porque eu e minha esposa com práram os o carro havia poucas sem anas.
D esde as aulas na autoescola, eu não sabia m ais o que significava estar atrás de um
volante. Por isso, a cada sinal vermelho, eu era obrigado a parar e ter de esperar
o sinal verde; m as, justam ente aí, ao dar a partida, o carro “m orria”. Em todos os
sem áforos. Sem exceção.
Seria cômico. Se a senhora no banco de trás não estivesse prestes a entrar em
pane. Eu e minha esposa tentávamos acalmá-la. Seus dentes não conseguiam deixar
de lado as unhas. Olhava para o pulso esquerdo, acompanhando o movimento do
ponteiro. E a rodoviária parecia estar além dos Andes.
Eu sentia um misto de desespero e diversão. Seria cômico, se não fosse pela se
nhora no banco de trás. A aventura chegou ao fim. Naquela noite, minha mãe perdeu
o ônibus. Porém, conseguiu um outro que a levaria a São Paulo. E eu voltei para casa.
Sem a pressão do tempo. Ainda “morrendo” a cada sinal verde.
Estranho como rimos nas horas m ais inapropriadas. Rimos de alguém que escor
rega e cai. De um ciclista que perde o equilíbrio durante uma curva. De quem tromba
com um poste a sua frente. Ou quando tudo dá errado e nos atrasamos em levar a
mãe à rodoviária. Rimos do trágico, do infame, do grotesco, do injusto.
Pergunte a um humorista o que faz o seu program a “dar ibope”. Os quadros têm
que falar sobre m aridos enganados. Satirizar homossexuais. Conter expressões com
duplo sentido. Expor transeuntes a humilhações. Ridicularizar pessoas públicas. Os
televisores são ligados porque as pessoas querem rir dessas situações. Rir nas horas
inapropriadas. Rir de coisas inapropriadas.
Talvez mais do que rir, as pessoas procuram diversão. As boates trabalham a todo
vapor. As danceterias e bares noturnos lucram oferecendo descontração a granel. As re
públicas seguem a receita de amenizar os períodos árduos de estudo com festas que atra
vessam a madrugada. Candidatos atraem o eleitorado organizando showmtcios. Qual
quer festinha de aniversário de uma criança de cinco anos precisa de um D} presente.
Você vê a fila de carros em frente a clubes noturnos? Pode apostar que aquela gen
te vai passar horas muito movimentadas. Os hits da noite impedem que alguém fique
2 5 0 / E x p l .o s ã o Y
escorado em alguma parede. Não, ninguém fique parado! É hora de dançar e curtir.
Pular e gritar. A noite não é uma criança?
Se a inibição bater à porta, não se apavore. Nada como um copo de chope para
descontrair. Se estiver ansioso, não se preocupe. Uma tragada relaxa qualquer um. Se
faltar energia, não tem problema. Um pouco de êxtase resolve. O que não falta são
ingredientes para incrementar sua diversão.
Agora ouça-me, por favor. Será que toda essa fixação pelo entretenimento, dos
DVDs aos program as televisivos, dos sites de humor aos cartoons dos jornais, não
indica uma falta de alegria puro-sangue? Para que milhões sejam gastos para fazer as
pessoas rirem, não estaria faltando um riso natural, não provocado, sincero?
Fale francamente: você se define como uma pessoa feliz? Você é do tipo que con
segue suportar a fofoca sem perder o branco do sorriso? Você consegue sair da cama
satisfeito com a vida, m esmo quando é inverno e um ônibus lotado lhe espera para
conduzi-lo a um trabalho estressante? Ficar em casa, cuidando de dois filhos bri-
guentos, sem contato com outro adulto, ainda é pouco para deslustrar sua felicidade?
Mas será que existe um a felicidade blindada contra todo embaraço e pressão ex
terna? Uma felicidade que suporta insulto e indisposição, mesmo daqueles que pare
ciam ser am igos?
Felizmente sim!
A boa-nova do Evangelho para você é que Deus criou o mundo e Ele conhece o
que criou. Esse D eus veio viver em nosso mundo e compartilhou Seu conhecimen
to. Ele ofereceu Seu exemplo. Portanto, o Deus que nos criou e que viveu entre nós
conhece os ingredientes para se alcançar uma vida plenamente feliz. Se adotarmos
Deus com o um referencial confiável, veremos que a felicidade não é a marquise da
vida, mas seu alicerce.
Por favor, não pense que a espiritualidade proporciona equações que resultem em
tristeza. Se o Espírito de Deus nos influencia, em nossa vida se verificará o desenvol
vimento de um caráter cristão com características bem delineadas. Nada de santida
de nebulosa. Sem espaço para teorias religiosas. O Espírito atua num mundo real, em
pessoas reais, desenvolvendo traços reais de caráter.
Pois escute isso: Deus não se esqueceu de incluir a alegria como um dos aspec
tos desenvolvidos pelo Espírito Santo na vida daqueles que aceitam Sua atuação (Gl.
5:22). N ão deixe este detalhe escapar: Deus pensou no melhor para você. Ele conhece
o mundo, porque o criou e viveu nele também. Se para Deus a alegria foi m enciona
da, é porque se trata de algo importante.
Esta é a notícia mais incrível! Você não precisa fabricar alegria. Não precisa dan
çar até amanhecer para sufocar um a vida sem sentido. Não precisa acreditar que
a atividade sexual com maior número de parceiros lhe dará satisfação plena. Você
não tem necessidade de pavimentar a estrada para um reino distante aonde a alegria
deixe de ser utopia. Deus quer lhe indicar a alegria maiúscula. Esqueça-se do que
tem sido chamado de alegria. Deus é o único que pode fazê-lo experienciar uma vida
fundamentada na alegria autêntica. Se você estiver disposto a ouvir o plano divino,
me acompanhe.
A le g r ia , resu lta d o da co m u nh ã o / 251
ciona felicidade e com pensa os tempos de sofrimento (SI 90:15). O resultado da obe
diência sem eada em sofrimento trará messe de alegria (Sl 33:18-22; 126:5, 6). Ou, no
belíssimo verso de Davi, “o choro pode persistir uma noite, mas de manhã irrompe a
alegria” (Sl 30:5, Cf. v. 11). A alegria será plena quando a justiça for plena.
No plano pessoal, você e eu podem os acertar nossa vida com Deus e ter um gos-
tinho daquela alegria completa, m esm o tendo como vizinhos tristeza, depressão e
vazio. Tudo começa quando aceitamos o oferecimento de um a nova vida, através do
perdão. “Com o é feliz aquele que tem suas transgressões perdoadas e seus pecados
apagados! Com o é feliz aquele a quem o Senhor não atribui culpa e em quem não há
hipocrisia!” (Sl. 32:1,2; cf.: 51:8,12).
A salvação é um tema bem explorado no m ais amado livro poético da Bíblia. Es
pecialmente, o termo “novo canto”, usado em muitos dos salmos, refere-se não a uma
nova m oda musical, mas a experiência de viver a salvação com alegria (Sl 144:9,11).
Ouça outra verdade contundente: a alegria acompanha a obediência. Entre os d i
versos salmos, o 119, o m ais longo do livro, ensina enfaticamente essa verdade. Feli
zes são aqueles que obedecem aos mandamentos divinos (v. 1, 2, 4, 74,111, 162)! Sa
tisfação existe na obediência aos mandamentos (v. 16,24, 35,47, 70,77,92, 143,174).
Salvação e vida de fé, embora atinjam os fiéis no aspecto pessoal, são experiências
comunitárias. Por isso, Deus chama você para participar da comunidade de fé; ali,
os adoradores reconhecem alegremente o amor do Pai que os alcançou (Sl 106:4, 5).
N ão é à toa que existe alegria genuína entre os que vivem dessa forma, assistindo a
“casa de Deus” (Sl 65:4). Não é à toa que o crente se sinta feliz apenas por ser convi
dado a participar da adoração (Sl 122:1).
Resumidamente: com os Salmos, aprendemos que há felicidade em cantar o que
Deus faz, em estar na presença de Deus, em confiar na justiça divina, em aceitar o
perdão e a salvação para viver um a vida de obediência ao que Deus nos pede, pessoal
e comunitariamente. Se Deus é seu motivo, a alegria será de tal espécie duradoura
como nenhuma outra coisa seria capaz de proporcionar.
É claro que há razões de sobra para conceber um Jesus feliz fora o fato de que Ele
era agradável aos pequeninos. Jesus versava sobre a felicidade em Seus discursos.
Quando teve a primeira grande oportunidade para declarar os princípios de seu
Reino para uma multidão de interessados, o Salvador começou o discurso apontando
oito passos para a felicidade (Mt 5:3-12). Em sua receita para a realização pessoal,
Jesus incluiu ingredientes como humildade, tristeza pelo pecado, mansidão, desejo
de que haja justiça, exercício da misericórdia, pureza, promoção da paz, perseverança
em meio à perseguição. Com o alguém que introduziu o assunto do Reino apontando
os cam inhos para uma vida feliz poderia ser rabugento?
Em três das mais conhecidas histórias que Jesus contou (Lc 15), salvação se traduz
em alegria.
Quando um pastor persistente recupera sua ovelha, ele não se importa com o
esforço de ter de levá-la nos braços após a longa busca pela desgarrada; ao contrário,
ele se alegra em poder reconduzir o animal ao aprisco e convida a comunidade a
participar de sua alegria.
Quando uma mulher desesperada recupera sua moeda, ela não se importa com
a faxina exaustiva; ao contrário, ela chama as amigas e as convida para se alegrarem
com ela pela m oeda achada.
Quando um pai saudoso recupera o filho, ele ignora o ranço de porcos, a barba
suja, o cabelo ensebado e o prejuízo bancário (e moral) causado pelo filho que pediu
a herança a um pai vivo; ao contrário, o pai age de forma pouco convencional, cor
rendo pelas ruas, para saudar seu menino. O emocionante reencontro se prolonga
através de um a festa. “Com am os e bebamos, e alegremo-nos” (v. 23), é a voz do velho
pai, que entesourou no coração essa frase para a ocasião do regresso do caçula.
Três histórias, um m esm o ensino básico: há alegria quando pecadores são re
cuperados. Com o alguém que ensinou sobre alegria de form a tão sublime poderia
ser carrancudo?
Por favor, considere isto: Jesus motivava as pessoas por meio de histórias simples
e profundas a se alegrarem com o que Deus lhes oferecia. Os que escolhem o Reino
de Deus devem alegremente se desprender de outras coisas sem valor (Mt 13:44);
precisam os servir a Deus, pois a recompensa será partilharmos de Sua alegria (Mt
25:21); Jesus intenciona que nossa alegria nEle seja completa (Jo 15:11; 16:24; 17:13).
Aliás, Jesus foi capaz de Se submeter ao risco de morrer eternamente para alcançar
a “alegria que Lhe estava proposta” (Hb 12:2). A cruz não parecia tão cruel, porque
a recom pensa animava Jesus. Os cravos podiam ferir-Lhe os punhos. A coroa de es
pinhos torturar Sua mente. Insetos pousar em Seus ferimentos. Contemplando-o na
cruz, outros “insetos” (com a Torah debaixo do braço) podiam zombar da condição
na qual Jesus estava. Nada disso influía em Sua perseguição para alcançar a “alegria
que Lhe estava proposta”
Mas que alegria foi essa capaz de motivar o Salvador a enfrentar as crueldades da
morte por crucificação?
Enxergo no texto de Hebreus 12:2 um paralelo com Isaías 53. “Ele verá o fruto
do penoso trabalho de Sua alma e ficará satisfeito; o Meu Servo, o Justo, com o Seu
254 / E x plo sã o Y
conhecimento, justificará a muitos, porque as iniquidades deles levará sobre Si” (v.
11). A satisfação que Jesus vislumbra durante os piores momentos de Seu martírio se
relaciona com os resultados que Ele alcançará.
Através dEle, milhões seriam salvos. Os lugares do banquete celestial seriam ocu
pados. Pecadores seriam recebidos no Reino. Esse pensamento animava Jesus. A sal
vação de pecadores era a razão daquela alegria que o fazia suportar a cruz. Ele m or
reu pela alegria de possibilitar que você estivesse com Ele. Deus Se alegra com você e
em fazê-lo feliz. Eternamente feliz.
“O meu Deus suprirá todas as necessidades de vocês, de acordo com as Suas glo
riosas riquezas em Cristo Jesus” (F14:19).
Aqui está o segredo. Uma única frase, um a única certeza. Deus suprirá todas as
nossas necessidades. Ele cuidará de você durante o Vestibular. Ele o acompanhará
durante os preparativos para o casamento. A m ão dEle estará sobre os seus ombros
durante a entrevista de emprego. Nenhum dia, mesmo o pior de toda a sua vida, será
passado na completa ausência do Pai. Deus dará o que você precisa, caso você se ren
da ao cuidado protetor que Ele oferece.
Claro que a prom essa não diz respeito aos nossos desejos. Jamais houve a garantia
de que teríamos tudo o que quiséssemos. Isso não é bíblico. Os desejos humanos são
irresponsáveis e perigosos. D eus promete suprir as necessidades, não os desejos. E,
melhor do que ninguém, o Senhor sabe de que necessitamos.
O texto disse que existe um canal pelo qual som os agraciados com as bênçãos do
Céu: Jesus. Através dEle, você e eu recebemos tudo quanto precisamos, porque Deus
compartilha com os seres humanos pecadores as “Suas gloriosas riquezas”.
Dá para compreender o motivo de Paulo estar sempre animado e exultante. Pela
qualidade de sua certeza, estamos certos de que nenhuma prisão repugnante poderia
forçá-lo a chorar; ao contrário, em um a das vezes em que o vemos preso, ele e seu
acompanhante Silas passam a noite cantando, e isso m esmo depois de terem sido
cruelmente chicoteados (At 16:25).
Acredite, porque o mesmo Deus que dava a Paulo tanta alegria irá presenteá-lo
com a Sua presença poderosa nos momentos difíceis, e você será feliz apesar dos
fatores externos.
daquele dia em diante, eu poderia ajudá-la na cozinha. Ok, minha mãe não teve m ui
to êxito em m udar a expressão decepcionada em meu rosto.
Você não vai agradecer o seu tio?” minha mãe ainda disse. Oh, sim eu queria
agradecê-lo muito - e, para começar, iria arremessar a panela na cabeça dele! Muito
a contragosto, abri a caixa, sorriso amarelo, o rostinho tão triste quanto alguém com
seis anos pode ter.
Naquele Natal, eu aprendi duas coisas. A primeira: meu tio era um tremendo
enganador! Quando eu abri a caixa, não encontrei nenhuma panela, ao contrário do
que a embalagem dava a entender. Lá estava o meu boneco. Todos estavam rindo de
mim. M as você acha que eu me importava? O que valia para mim naquele m om en
to era ter um Thunder Cat e poder brincar bastante com ele (meus brinquedos não
duravam muito e tenho a impressão de que aquele não constituiu uma exceção...).
A segunda coisa que aprendi: a alegria supera todas as decepções. Vivemos cer
cados por dificuldades. Trânsito congestionado. Conflito entre temperamentos dife
rentes. Problemas orçamentários. Expectativas frustradas. Perda de entes queridos.
Falta de proteção contra criminosos. Conflitos relacionados à nossa fé. E a lista dá a
volta pelo quarteirão.
O m esm o apóstolo Paulo, que anteriormente vim os falar de sua confiança em
Deus como fator que o motivava a ser feliz sempre, afirma que se a nossa esperança
em Deus está restrita ao mundo como o conhecemos, som os “os mais dignos de com
paixão” entre os homens - até mais do que os próprios incrédulos (I Co 15:19). N ossa
alegria depende de um a esperança que se apega à prom essa de um horizonte melhor,
como somente Deus seria capaz de criar para Seus filhos.
O próprio Jesus fez um contraste entre o que os discípulos e o que seus contemporâ
neos sentiriam. Quando o Mestre os deixasse, a tristeza e decepção tomaria conta de cada
seguidor da Verdade. Em contrapartida, as demais pessoas teriam motivos sobejos para
festejar. Acontece que a tristeza dos cristãos, de acordo com Jesus, logo “se transformará
em alegria” (Jo 16:20), e de uma tal forma que “ninguém lhes tirará essa alegria” (v. 22).
Nenhuma alegria será tão emocionante quanto testemunhar a vinda gloriosa do
Senhor Jesus. Nenhuma decepção que você teve ou terá deixará de ser superada pela
alegria daquele encontro pessoal com Jesus. Nenhuma tristeza sobreviverá. As trevas
do desânim o e depressão serão consum idas pela luz do Rei glorioso que nossos olhos
verão assentado sobre as nuvens.
Se você abrir mão da falsa alegria que contamina os corações que vivem sem rumo
em um m undo vazio, Deus o preencherá com a alegria de servi-Lo. Você dependerá
dEle e aprenderá a ter prazer em adorá-Lo e servi-Lo. O Espírito Santo lhe dará for
ças para obedecer a Lei do amor. Uma vida assim será um preparo para que, quando
Jesus chegar, feliz e maravilhado você esteja ao lado de Seu povo, exclamando: “ [...]
Este é o nosso Deus; nós confiamos nele, e ele nos salvou. Este é o Senhor, nós confia
mos nele; exultaremos e alegraremo-nos, pois ele nos salvou.” (Is 25:9).
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