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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO


CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CCH
CURSO DE LETRAS

ADRIANA SANTOS BRITO

AS PARCEIRAS: PEÇAS FEMININAS NO JOGO LUFTIANO

São Luís
2018
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ADRIANA SANTOS BRITO

AS PARCEIRAS: PEÇAS FEMININAS NO JOGO LUFTIANO

Monografia apresentada ao Curso de Letras da


Universidade Federal do Maranhão, para
obtenção do grau de Licenciatura Plena em
Letras.

Orientadora: Prof.ª Dr. ª Maura Cristina de Melo


Silva

São Luís
2018
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ADRIANA SANTOS BRITO

AS PARCEIRAS: PEÇAS FEMININAS NO JOGO LUFTIANO

Monografia apresentada ao Curso de Letras da


Universidade Federal do Maranhão, para
obtenção do grau de Licenciatura Plena em
Letras.

Aprovada em: / /

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________
Orientador (a): Prof.ª Dr. ª Maura Cristina de Melo Silva

___________________________________________________
Avaliador: Prof. Dr. Rafael Campos Quevedo

___________________________________________________
Avaliador: Prof. Ms. Carlos Gouveia de Omena
4

Dedico aos meus pais, pessoas justas e


que durante todos esses anos não
deixaram de acreditar que esse sonho se
tornaria realidade. E ao meu filho, Davi
por ser meu maior incentivo. É por ele que
busco a cada dia ser uma pessoa do bem,
consciente e justa.
5

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus, em primeiro lugar, por me conduzir a cada caminho e


sempre me abençoar.
Agradeço aos meus pais, Carlos Alberto Rabelo Brito e Francivalma
Santos Brito, por acreditarem em minhas escolhas e me apoiarem até mesmo nas
decisões mais teimosas. Ao meu filho, Davi Brito Lima, por me proporcionar ver o
milagre da vida e por me dedicar tanto amor que me fortalece a cada dia, saiba que
esse amor é recíproco.
Aos meus irmãos, Carla Ingryd, Clayton, Cíntia Clayne e Carlos Hudson e
aos cunhados Kleyton, Stefani, Ana Paula e Adonias pelo incentivo de tantos anos
para que conseguisse concluir a graduação. Ao meu sobrinho querido, Daniel Isaac
que chegou em nossas vidas para nos trazer ainda mais alegria.
Aos familiares e amigos, em especial a minha avó paterna, Raimunda
(Mundica), por toda a colaboração nessa etapa e na vida de um modo geral.
Ao meu amigo e pai do meu filho, Nilton Carlos, por todo companheirismo
dedicados a mim nessa etapa, me motivando nos momentos mais difíceis, sempre
com muita paciência e cuidado.
Aos meus amigos de trajetória: Fernanda Marques, Rafael Coelho, jamais
irei esquecer do quanto sorrimos juntos e apoiamos um ao outro durante a
graduação. A duas amigas em especial, a Idinéa Bezerra pela sua amizade e por
sempre me incentivar a buscar conhecimentos e aperfeiçoamento na área em que
decidir atuar.
Aos professores do Curso de Letras por cada aula, por cada desafio, por
cada conversa descontraída. Em especial, a professora e orientadora Maura Cristina
Melo, por sua disponibilidade.
Sou grata também, a todas as experiências profissionais vivenciadas por
mim na área da educação, por cada aluno que passou em minha vida, eles foram
fator determinante para que insistisse na conclusão do Curso, por entender que
ensinar vai muito além de uma profissão, é um dom divino e eu sou muito feliz por
poder ajudar e levar conhecimento a tantas pessoas. A toda ajuda atribuída a mim,
obrigada!
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RESUMO

O nosso estudo tem como objetivo apresentar uma abordagem do feminino


arquetípico na obra As Parceiras, de Lya Luft. Utilizamos na construção deste
trabalho uma fundamentação teórica junguiana, mais especificamente a teoria do
arquétipo, tendo C.G. Jung e seus discípulos Erich Neumann, Jolande Jacobi,
Wolfgang Roth e Clarissa P. Estés como colunas mestras. Nossa leitura, feminina e
intimista, enfoca a presença do arquétipo feminino em suas interfaces com as
personagens do romance de Luft; assim, pontuando o quanto essas extensões de
imagens arquetípicas influenciam o desenvolvimento da narrativa e de suas
personagens como peças no jogo luftiano.

Palavras-chave: As parceiras. Obra luftiana. Arquétipo feminino. Leitura junguiana.


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RESUMÉN

Nuestro estúdio tiene como objetivo presentar um abordaje del feminino arquetípico
em la obra Las parejas, de Lya Luft. Se utilizo em la construcción de este trabajo uma
fundamentación teórica junguiana, más especificamente la teoria del arquétipo
teniendo C.G. Jung y sus discípulos Erich Neumann, Jolande Jacobi, Wolfgang Roth
y Clarissa P. Estés como columnas maestras. Nuestra lectura, feminina e íntima,
enfoca la presencia del arquétipo feminino y sus interfaces com los personajes de la
novela de Luft, así, pontuando cuánto essas extensiones de imágenes arquetípicas
influencian el desarrolho de la narrativa y de sus personajes como piezas del juego
luftiano.

Palabras clave: Las parejas. Obra lufitiana. Arqétipo feminino. Lectura junguiana.
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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .................................................................................................. 9

2 PARTE I: ESSÊNCIA E ESTRUTURA DA PSIQUE ......................................... 11

2.1 Consciência e inconsciente ......................................................................... 13

2.2 A persona e a sombra ................................................................................. 16

2.3 Self (Si mesmo) ........................................................................................... 19

2.4 Processo de individuação ............................................................................ 20

3 PARTE II: O ARQUÉTIPO FEMININO NO JOGO LUFTIANO ......................... 22

3.1 O Arquétipo do feminino selvagem .............................................................. 25

3.2 Peças femininas no jogo d’As parceiras: do cotidiano a contemplação ....... 28

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 45

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................. 46


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1 INTRODUÇÃO

A escritora brasileira Lya Luft tem como qualidade uma literatura de base
intimista e psicológica, na qual suas histórias giram sempre em torno de dramas e
tragédias individuais ou familiares. Seus protagonistas mergulham no próprio reflexo,
em busca de autoconhecimento, observando o que se lhes apresenta tênue como
uma extensão do seu “eu” que lhe escapa. Essa imersão é quase sempre em um
ambiente hostil; não pelo local físico, mas pelas relações frágeis, ambíguas e
avessas, em que o sentimento predominante é de impotência ante a vida de
aparência e essência de uma triste realidade.
Lya Luft consegue traduzir vários sentimentos de famílias devastadas,
conjectura nas linhas dos romances aquilo que se tenta esconder no seio familiar.
Fatos e pensamento que são ocultos; em que os personagens preferem não notar,
ou “varrem para debaixo do tapete”; fatalidades que veem à tona nas entrelinhas ou
submergem a cada trecho da obra.
Acompanhamos em suas narrativas os segredos inconfessos das
personagens, e até a si mesmas, pois que são obscuridades recônditas do íntimo
feminino. Em suas narrativas há a necessidade da fuga diante do estado terrível da
realidade para um mundo de sonho, ou o “mundo branco do sótão”, quase uma “terra
do nunca”.
Observamos a decifração do sonho, do irreal e a instabilidade das
personagens na vivência desses sonhos que formam as principais peculiaridades
que compõe no enredo aquilo que há de mais sensível em termo de emoção. Esses
escapes alheios à realidade fazem com que personagens luftianas sofram pela
exclusão e marginalização do meio social, ou do próprio lar.
Tais narrativas são permeadas de sentimento, sensação, introspecção e
repressão dos personagens em suas narrações. Pela genialidade da escritora Luft
e, inclusive, pela originalidade de seu trabalho há vasto campo e profundidade
luftiana para ser estudado em torno da extensa obra. Eis, portanto, o motivo da
escolha; Além do apresso pessoal pelo supracitado romance. Nosso trabalho
culmina em mais uma, ou uma das contribuições e apreciações do corpus literário
luftiano pesquisado no curso de Letras (UFMA), mais precisamente, precursora pela
abordagem arquetípica do feminino selvagem da obra As Parceiras.
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Para alcançarmos esse objetivo, fizemos a divisão do trabalho em duas


partes. Na primeira, discorreremos sobre uma breve introdução aos estudos e
estruturas da psicologia do suíço Carl Gustav Jung. E na segunda parte, situaremos
o importante romance em análise, através de um pequeno histórico das obras de Lya
Luft, destacando seus principais traços e peculiaridades; bem como pontuaremos
minuciosamente nossa visão sobre arquétipo feminino refletido nas personagens
como se assim o fosse um jogo de vida-morte-vida entre as Parceiras.
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2 PARTE I: ESSÊNCIA E ESTRUTURA DA PSIQUE

“A alma é a parte viva do ser humano, aquilo que vive de si mesmo e que
causa vida”, conceitua Carl Gustav Jung (OC., 9/1, § 56), renomado pesquisador da
psiquê humana. Autor de uma extensa obra, o referido psiquiatra e psicólogo suíço
é reconhecido como precursor da psicologia analítica.
Jung dividiu sua psicologia em uma parte teórica, cujos tópicos
fundamentais são identificados da seguinte forma: primeiro, a estrutura da psique;
segundo, as leis de desenvolvimento e atuação da psique; terceiro, na parte prática,
conduzindo “a aplicação da teoria.
No intento de chegarmos a uma melhor compreensão das teorias de Jung,
precisamos objetivar alcançar o posicionamento do mesmo, reconhecendo consigo
a realidade plena de todo o psíquico”, orienta-nos a junguiana Jolande Jacobi (2013,
p. 15). Portanto, com o intuito de atingirmos tal posicionamento, enveredaremos
pelos conceitos junguianos do próprio Jung.
Para ele, segundo Jacobi, “todo o psíquico não é menos real do que todo
corpóreo”, isto é, “é passível de experiência e observação plena e clara em sua
imediaticidade”, ou seja, o referido teórico afirma tratar-se de um mundo por si, regido
e estruturado por leis e equipado com recursos de expressão próprios” (2013, p. 15).
Em se tratando disso, Jacobi faz um comentário pertinente: “tudo que
sabemos sobre o mundo, assim como tudo que sabemos sobre nosso próprio ser,
chega a nós apenas através da intermediação do psíquico” (2013, p. 15).
Para melhor explicar, ela busca no ilustre teórico a seguinte citação: “a
psique não faz qualquer exceção da regra geral, segundo a qual a essência do
universo só pode ser constatada na medida em que o permite nosso organismo
psíquico” (JUNG, OC 10/3, § 68).
Logo, podemos conceber que tal psicologia moderna e empírica tanto
participa das ciências da natureza quanto das ciências do espírito, assim como
salienta Jung:
Nossa psicologia considera tanto o ser humano natural quanto cultural, e
em consequência disso, em suas explicitações, deve focar sua mirada nos
dois pontos de vista, no biológico e no espiritual. [A considerar] o ser
humano como um todo (OC 17, § 160).

A psicologia junguiana investiga os caminhos tortuosos do pensar e sentir


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neuróticos, para sondar aquela via que reconduz do extravio de volta para
a vida’ (JUNG OC 17, § 172).
Em se tratando acima, Jung apresenta em desenvolvimento a sua teoria;
não no sentido depreciativo do puro psicologismo, tampouco como psiquismo
esotérico. E sim, “investigar esse ‘psíquico’ como o ‘órgão’ a nós concedido para
apreender o mundo e o ser, para observar seus fenômenos, descrevê-los e arranjá-
los numa ordem de sentido, é a meta e o objetivo de Jung” (JACOBI, 2013, p. 17).
Tanto assim, que o mesmo mantém sua fidelidade ao ponto de vista
psicológico, edificando um conhecimento fundamental e profundo da realidade
psíquica, erguido sobre uma base sólida da experiência. Tal edificação tem duas
colunas mestras, a saber:
O princípio da totalidade psíquica.
1) O outro é princípio da energia psíquica
Na consideração mais detalhada desses dois princípios, assim como do
emprego prática da teoria, devem ser usadas na medida do possível as
definições e explicitações dadas pelo próprio Jung [...]. Ao mesmo tempo, é
preciso mencionar aqui que, quando se trata de procedimento prático da
análise psicológica, Jung emprega a expressão “psicologia analítica” para
identificar sua teoria [...]. Mas tarde cunhou o conceito da “psicologia dos
complexos”, que empregava sempre que apareciam no plano de frente
pontos de vistas relativos a princípios e à teoria; com esse conceito queria
destacar que, em contraposição com outras teorias psicológicas [...], sua
teoria ocupava-se com fatos psíquicos complexos, ou extremamente
complicados (JACOBI 2013, pp. 17,18).

Após esta breve exposição acerca de Jung e seu posicionamento


psicológico, chegamos ao ponto de grande interesse, ou seja, a essência da psiquê
e como a concebemos em sua estrutura junguiana.
Começamos por evitar a confusão nos termos “alma”, “espirito”, “intelecto”
empregados na linguagem coloquial (no sentido estrito, ou no mais abrangente),
impedindo a compreensão do pensamento psicológico; esforçamo-nos juntamente
com os junguianos por delimitar cada um dos termos num âmbito de significado mais
determinado e definido.
Sob conceito alma, que na terminologia junguiana recebe um significado
específico, deve-se compreender, aqui, determinado complexo funcional
delimitado, cuja a melhor forma de caracterização, seria como uma espécie
de personalidade interior, como o sujeito, frente ao qual a consciência de eu
do indivíduo tem uma relação igual ao objeto exterior. Na definição de Jung,
significa “o sujeito apreendido como objeto interior”, mas é, porém, o
inconsciente [...]. A “personalidade interior” é o modo como alguém se
comporta para com os processos psíquicos interiores; [...] é a atitude
interior, o caráter com o qual se volta ao inconsciente. Eu identifico essa
atitude interior [...] como alma. A mesma autonomia que se atribui tão
usualmente à atitude exterior é reivindicada também para atitude interior, a
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alma [...]; ela costuma conter, de acordo com a experiência, todas aquelas
propriedades humanas gerais que faltam à atitude consciente (OC 6, § 803-
806). Aqui, deve-se compreender por “intelecto” a força racional de pensar
e compreender que está à disposição da consciência [...]. Mas por “espírito”,
deve-se compreender uma capacidade igualmente pertencente ao âmbito
da consciência, mas, [atrelada] ao inconsciente, que leva [...] ao
desempenho estético-criativo e religioso-moral. [...] Com esses três
conceitos foram compreendidos sempre “sistemas parciais” da totalidade
psíquica; mas, ao contrário, onde estão em questão todos os aspectos
desse todo[...] que abarca ao mesmo tempo o lado consciente e também o
lado inconsciente, ali empregou-se sempre a expressão “psique” ou
“psíquico” (JACOBI, pp.19,20)

Jacobi se mantém fiel ao ponto de vista psicológico junguiano deixando a


psiquê estruturada em sua natureza abrangente de consciente e inconsciente,
observado no tópico seguinte.

2.1 Consciência e inconsciente

Como havíamos nos referido acima, no que concerne à essência e


estrutura da psiquê, Jacobi faz a seguinte explicação:

Por psique Jung não compreende apenas aquilo que em geral identificamos
com a palavra “alma”, mas a totalidade de todos os processos psíquicos,
tanto os conscientes quanto os inconscientes. Portanto, algo mais
abrangente, mais amplo que a alma, que para ele representa apenas um
determinado “complexo funcional limitado”. A psique consiste de duas
esferas que se complementam, mais duas esferas que contrapõem em suas
propriedades: a consciência e o assim chamado inconsciente”. Nosso “eu”
tem participação nos dois âmbitos (2013, pp. 19,20).

Esse eu entre as duas esferas complementares ou compensatórias, para


a melhor compreensão será exposto mediante explanação e representação do
diagrama I:
A linha divisória que separa as duas esferas uma da outra em nosso eu
pode deslocar-se para as duas direções, como vem indicado na ilustração
por meio das setas e das linhas pontilhadas. Pensar que o eu se encontre
precisamente no centro é naturalmente apenas uma representação como
recurso e uma abstração. Da possibilidade de deslocamento se depreende
que, quanto menor a parte superior, tanto mais estreita a consciência e vice-
versa.
Se considerarmos a relação dessas duas esferas entre si, vemos que nossa
consciência perfaz apenas uma mínima parte do todo da psique [...]. Está
como que nadando como uma pequena ilha sobre o ilimitado mar do
inconsciente, mar imensurável e que abarca o mundo inteiro (JUNG, OC
11/1, § 141).
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Diagrama I

Em relação ao eu no âmbito das esferas do diagrama II, apresentado na


obra A psicologia de C.G. Jung (2013), Jacobi faz uma pertinente explanação:

O diagrama II, ilustra um pequeno ponto escuro no centro de nosso eu.


Rodeado e sustentado pela consciência, representa aquele lado da psique,
[...] pensado sobretudo como a adequação à realidade exterior. “Por eu,
compreendo um complexo de representações que perfaz em mim o centro
do campo da minha consciência e que parece ser de alta continuidade e
identidade consigo mesmo”, afirma Jung [...]. Todavia, ele define a
consciência como “a função ou atividade que mantém a relação dos
conteúdos psíquicos com o eu: “O eu, é denominado por Jung como “sujeito
da consciência”. Toda a nossa experiência do mundo externo ou interno tem
de passar necessariamente por nosso eu para poder ser percebida. Isso
porque, “as relações com o eu, enquanto não são sentidas como tais por
este, são inconscientes”. O próximo círculo mostra como a esfera da
consciência está envolta por conteúdos que se encontram no âmbito do
inconsciente. Aqui estão os conteúdos que são recalcados [...], mas que
podem subir à consciência a qualquer momento; lá estão aqueles que
reprimimos porque nos são desagradáveis por diversos motivos [...]. Jung
chama a esse âmbito de “inconsciente pessoal”, para distingui-lo daquele
“inconsciente coletivo”, vem ilustrando no diagrama III (JACOBI,2013 pp 22-
25) Isso porque essa parte coletiva do inconsciente não abarca apenas
conteúdo específicos do nosso eu individual [...], mas “das possibilidades
herdadas do funcionamento psíquico como tal, a saber, da estrutura do
cérebro herdada”. Esse patrimônio herdado provém do humano em geral,
ou até quem sabe, do animalesco em geral, formando a base fundamental
de todo a psique individual. (JOLANDE, 2013, pp. 21-25).

Ao assumir com sucesso essa árdua tarefa de expor resumidamente tais


traços fundamentais das teorias junguianas, Jacobi ainda explica que “essa parte
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coletiva do inconsciente não abarca apenas conteúdos específicos de nosso eu


individual ou provenientes de aquisição pessoal, mas ‘das possibilidades herdadas
do funcionamento psíquico como tal, a saber, da estrutura do cérebro herdada’”,
(2013, p.25), como dissera o próprio Jung (OC 6, § 841). Ambos concebem esse
patrimônio herdado como proveniente do humano em geral, ou até, quiçá, do
animalesco e instintivo, formando a base estrutural de todo psíquico individual.
Concluímos então, segundo a argumentação de Jacobi, que “o
inconsciente é mais antigo que a consciência. É o que é dado originariamente, a
partir de onde se destaca a consciência”; assim, a consciência edifica-se apenas
“secundariamente sobre a verdadeira atividade anímica, que é um funcionar do
inconsciente” (2013, pp. 25, 26)

Diagrama II

Diagrama III
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2.2 A persona e a sombra

Diante de um mundo circundante, implicado na maneira abrangente de


comportamento psíquico do ser humano, surge a persona para a adaptação à
sociedade.

O diagrama IV apresenta um sistema de relação psíquica no qual o ser


humano contata com o mundo externo, envolvendo ao ínterim o eu encapsulado
contra o mundo como se fosse uma “casca” (casca – eu), a persona.
Inclusive, achamos pertinente citarmos uma definição de Jung acerca da
persona: “A persona é um complexo funcional, que surgiu por razões de adaptação
ou de uma necessária comodidade, mas que não é idêntico com individualidade.
Refere-se exclusivamente à relação dos objetos, com exterior” (OC.6, §
803). Também na obra O eu e o inconsciente, ele menciona que “a persona é um
compromisso entre indivíduo e sociedade como alguém aparenta ser” (OC 07/02, §
466).
Quando a psique humana tem boa adaptação ao mundo exterior quanto
ao interior, sua persona é como um muro protetor “necessário”; entretanto flexível,
assegurando-lhe melhor compreensão com o mundo circundante. Porém, tal
comodidade com a qual sua real natureza se adapta e se esconde também pode lhe
proporcionar perigo quanto a isso.
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Segundo Jacobi, a persona “enrijece, torna-se mecânica e se transforma


[...] em uma máscara bem talhada, por trás da qual a individualidade, aquilo que a
pessoa humana é na sua verdadeira essência começa a definhar, caminhando rumo
a uma total asfixia” (2013 pp. 53, 54).
A inadequação persistente, bem como a identificação com a persona, com
o passar do tempo incorre em perturbações que podem tomar vulto ao ponto de se
transformar em crises existenciais e graves enfermidades da alma. Vejamos então
no seguinte diagrama IV:

Diagrama IV

Temos como sombra “a parte inferior da personalidade”. Isto se dá, diz


Jung, “devido à sua incompatibilidade com a forma de vida conscientemente vivida,
a soma de todas as disposições psíquicas pessoais e coletivas não é vivida e se
aglutina numa personalidade [...] autônoma, com tendências contrárias no
inconsciente” (JUNG, apud ROTH, 2011, p.85). Ela tem características
compensatórias em relação à consciência, causando efeito tanto positivo quanto
negativo. É importante salientar que, enquanto figura onírica, a sombra faz parte do
inconsciente pessoal, mas a pode se manifestar como entidade do inconsciente
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coletivo pertencente aos arquétipos – “elementos estruturais introduzidos na vida e,


portanto, herdados da psiquê humana, e responsáveis por determinadas
experiências de vida na história da humanidade” (ROTH, 2011, p. 111). Segundo
Jung, “os conteúdos do inconsciente pessoal são aquisições da existência individual,
ao passo que os conteúdos do inconsciente coletivo são arquétipos que existem
sempre e a priori” (OC. IX/2 § 13); aliás, os que se caracterizam com nitidez e
frequência, influenciando ou perturbando o eu, são eles: a sizígia anima-animus e a
sombra.
Wolfgang Roth comenta a importância individual da sombra, ou seja, a
mesma pode ser concebida no âmbito do inconsciente que se refere a repressão de
conteúdos que não estão de acordo com a consciência, ou seja, “com a forma de
vida conscientemente vivida, tornando-se patente a dicotomia”; no entanto, ele
argumenta que “a sombra deve sua existência ao trabalho de repressão que é
realizado para apresentar e conservar uma persona” (2011, p.86). Logo, a sombra
se opõe diretamente à persona. Portanto, aquela será apresentada como adversária
direta desta. Segundo explicação de Roth,
se a persona é qualificável como “máscara” e função adaptativa em primeiro
lugar a partir da situação individual de vida, deve-se aplicar à sombra,
igualmente em primeiro lugar, a qualidade de apropriar-se desses
conteúdos pessoais, isto é, representar um campo do inconsciente
individual (2011, p.87).

Se por um lado, a sombra significa a “parte inferior”, dissociada da


personalidade, “irmão obscuro e manipulador” da personalidade consciente do eu;
por outro lado, a sombra também pode dispor de valiosas aptidões e qualidades de
um indivíduo, as quais tiveram por repressão que definhar ao longo da individuação.
Ou seja, o sujeito não tem consciência de sua sombra, daí projetar no outro.
As projeções geralmente pertencem à esfera da sombra e transformam o
mundo externo na concepção própria, mas desconhecida; o indivíduo sonha com um
mundo cuja a realidade é inatingível, e há um sentimento de incompletude. Jung
relata que “como se sabe, não é o sujeito que projeta, mas o inconsciente. Por isso,
não se cria a projeção: ela já existe antemão” (C.G. JUNG OC IX/02 p. 07).
Projeção é o processo espontâneo em que os conteúdos do inconsciente
de alguém são percebidos como estando em outra pessoa ou objeto externo. Jung
relata:
Todos os conteúdos de nosso inconsciente são constantemente projetados
em nosso ambiente, e só na medida em que reconhecemos certas
peculiaridades de nossos objetos como projeções, como imagines
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[imagens], é que conseguimos diferenciá-los dos atributos reais desses


objetos. Mas se não estamos conscientes do caráter projetivo da qualidade
do objeto, não temos outra saída senão acreditar, piamente, que esta
qualidade pertence realmente ao objeto (A natureza da psique - § 507).

A consequência da projeção é um isolamento do sujeito em relação ao


mundo exterior; pois, em vez de uma relação real o que existe é uma relação ilusória.
Mas a projeção também pode ser positiva ao facilitar as relações do indivíduo com o
mundo, e quando entendida, ser o meio de perceber a si mesmo através das
projeções feitas nos outros. “Por isso, enquanto o interesse vital, a libido, puder
utilizar essas projeções como fontes agradáveis e úteis, ligando o sujeito com o
mundo, tais projeções constituem facilitações positivas para a vida (JUNG; A
natureza da psique - § 507)

2.3 Self (Si mesmo)

O Self (Si-mesmo) é concebido como o mais importante dos arquétipos


na psicologia junguiana; pois ele representa o centro ordenador da psique, e é ao
mesmo tempo o núcleo fundamental do inconsciente e a totalidade do psíquico.
Arquétipo da ordem e totalidade, abrangendo o consciente e o
inconsciente, e que, embora polares, não representam opostos; mas sim, uma
relação de complementaridade, tendo o Self como mediador e gestor dos recursos e
conteúdo do indivíduo. Segundo Jung, toda personalidade é formada a partir de um
centro que é responsável pelo desenvolvimento, ou seja, o Self não é apenas o ponto
central, mas abarca a totalidade. Assim, através dos acessos e ativações dos
arquétipos, motiva a formação e desenvolvimento do ego.
A conexão dialética mediadora entre o ego e o Self é a meta primordial do
processo do desenvolvimento da personalidade humana, a que Jung denominou
processo de individuação.
Jung identificou nos mitos e nas religiões as imagens arquetípicas do Self
(Si-mesmo) como representação da meta a ser atingida pela psiquê humana. Chegar
à experiência do Self é a máxima realização que um ser humano pode almejar e
conseguir. Essa conquista não significa que a perfeição foi atingida de uma maneira
definitiva, essa conexão permitirá que a personalidade possa ter um guia mais claro
e seguro para os passos que devem ser dados na senda da sua existência.
20

A conexão ego-Si-mesmo sempre existiu; uma vez que o Self (ou Si-
mesmo) “não é apenas o ponto central, mas também a circunferência que engloba
tanto o consciente quanto o inconsciente. Ele é o centro da totalidade, do mesmo
modo que o eu é o centro da consciência” (JUNG, 1994, p. 91).
A concepção de Self apontada por Jung é circunscrita como algo
indefinido, indefinível e indescritível. Enfim, uma totalidade impossível de ser
abarcada empírica e tão-somente pela consciência. Diante destas características, só
podemos percebe-lo através de inumeráveis manifestações simbólicas de sua
própria totalidade e infinitude.

2.4 Processo de individuação

O processo pelo qual a consciência de um indivíduo se individualiza ou se


diferencia das outras é o processo de individuação. Na concepção de Jung, o termo
‘individuação’ nos remete a um processo através do qual o ser humano se torna
realmente um ‘individuum psicologico’, isto é, ele se transforma em uma unidade
autônoma e indivisível, tornando-se totalidade.
O processo de individuação é considerado o conceito central da psicologia
junguiana, pois este processo é a realização do si-mesmo. Jung relata que “O
processo psicológico da individuação está intimamente vinculado à assim chamada
função transcendente.
A função transcendente não se desenvolve sem meta, mas conduz à
revelação do essencial no homem. No início não passa de um processo
natural. Há casos em que ela se desenvolve sem que tomemos consciência,
sem a nossa contribuição, e pode até impor-se à força, contrariando a
resistência do indivíduo (JUNG 2008. § 186. Grifo do autor).

O processo de individuação consiste em confrontar os vários aspectos


sombrios, reconhecendo-os e despindo-se da persona e das imagens primordiais.
Segundo Jung, o processo de individuação nada tem de individualismo; muito pelo
contrário, é um processo que estimula o indivíduo a criar condições para que cada
um desperte o melhor de si e do outro o tempo todo; fazendo-o sair do isolamento e
empreender uma convivência mais ampla e coletiva, por estar mais próximo
conscientemente da totalidade, mas ainda assim mantendo sua individualidade.
A individuação consiste em aproximar o mundo do indivíduo e não em excluí-lo do
mesmo. “A individuação, em geral, é o processo de formação e particularização do
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ser individual e, em especial, é o desenvolvimento do indivíduo psicológico como ser


distinto do conjunto”. É, portanto, “um processo de diferenciação que objetiva o
desenvolvimento da personalidade individual. […] Uma vez que o indivíduo não é um
ser único, mas pressupõe também de um relacionamento coletivo para sua
existência.
Também, o processo de individuação não leva ao isolamento, mas a um
relacionamento coletivo mais intenso e mais abrangente” (JUNG, 2009, § 853. Grifo
do autor). Portanto, constata o renomado teórico:
Individualização significa: tornar-se um ser único e, nessa medida em que
por individualização compreendemos nossa unicidade íntima, última e
incomparável, significa tornar-se um si-próprio. Assim, poderíamos traduzir
“individualização” também por “torna-se si mesmo” (Verselbstung) ou como
“realização do si-mesmo” (Selbstverwirklichung) (JUNG, OC 7, § 266).

O processo de individuação está em ato num indivíduo quando a sua vida


começa a ser guiada pelo seu Self (Si mesmo), e no início é de modo muito
intermitente, episódico. Mas, se ele tem a aspiração de prosseguir, essa conexão
começa a se dar num ritmo mais frequente, com resultados positivos e cada vez mais
duradouros e abrangentes.
E assim, o Self, centro regulador e organizador da psiquê - em conexão
com o ego, cria um processo de desenvolvimento psíquico no indivíduo.
Gradualmente, vai emergindo na pessoa uma personalidade mais madura, que,
pouco a pouco se torna efetiva e perceptível pelos demais.
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3 PARTE II: O ARQUÉTIPO FEMININO NO JOGO LUFTIANO

O tema dos arquétipos representa o cerne da psicologia analítica de Carl


Gustav Jung. Ele conceitua arquétipo como “derivado da variada e repetida
observação de que, por exemplo, os mitos e contos de fadas da literatura mundial’
contêm certos motivos que aparecem sempre em todos os lugares”.
Segundo o pensador, tais motivos são encontrados nas fantasias, sonhos,
delírios e alucinações da psique humana de ontem e hoje. Logo, essas imagens e
associações frequentemente típicas são denominadas de “representações’’ ou
“ideias arquetípicas”. Inclusive, quanto mais nítidas as mesmas forem, tanto mais
surgirão acompanhadas de tons sentimentais e emocionais bastante vivos.
Jung aborda o quanto elas essas ideias arquetípicas são influenciadoras,
impressionantes e fascinantes; ao ponto de tais representações de imagens
arquetípicas terem “sua origem no arquétipo em si”, que é uma forma, também
representável, “inconsciente” e preexistente que parece ser parte da estrutura
hereditária da psique e que pode, por isso, manifestar-se como fenômeno
espontâneo em qualquer “lugar”(JUNG, OC.10, § 847).
O termo “arquétipo” tem sua origem provinda da Grécia no qual seu
significado se intitula como “modelo primitivo”, pois a composição dessa palavra vem
da junção do termo “Arkhé” que significa “antigo”, “primeiro”, “original”, e do termo
“Typos” que tem o significado de “modelo”, “molde”; ambos os termos são também
de origem grega.
A ideia de arquétipo pode ser usada tanto na filosofia, como na psicologia
e na crítica literária. Schimidtt apud Ramos coloca a seguinte etimologia para
arquétipo:
O primeiro elemento Arkhé significa início, origem, causa, fonte primal, e
princípio, mas também significa posição de liderança, domínio supremo e
governo (em outras palavras, um tipo de “dominante”) [...]. O conceito de
arquétipo deriva, então, das palavras arkhé (começo, origem, princípio) e
typos (forma, imagem, modelo).

Por sua vez, Wolfgang Roth alerta que o termo “arquétipo”, no sentido de
“tipos desde tempos remotos”, tome seu lugar na linguagem cotidiana; ou seja, sua
compreensão psicológica ainda causa embaraços e dificuldades. Segundo ele, “a
denominação inicial de imagens “primordiais” é mais compreensível, até porque Jung
pesquisou a origem das mesmas com a ajuda de imagens, ou símbolos concretos,
23

como formas de expressão dos processos inconscientes como eles se apresentam,


por exemplo, nos sonhos. (2011, p. 107)
Acerca disso, permeando as teorias junguianas, Roth nos faz entender
com a seguinte explicação:
O conceito dá sempre ensejo a mal-entendidos porque faz supor
erroneamente que no inconsciente coletivo se encontre prontas imagens
acabadas, que determinadas situações de vida se mostram à consciência
nos sonhos, fantasias, ou outras possibilidades de expressão. Os
arquétipos não são absolutamente “imagens prontas” que teriam sua sede
no inconsciente coletivo, mas instâncias ordenadas com a “capacidade” de
produzir, de maneira significativa, imagens e símbolos e assim torná-los
acessíveis à consciência [...]. Em sua concepção do inconsciente coletivo,
Jung parte da ideia de que, além dos conteúdos adquiridos individualmente,
portanto durante a história da sua vida, existe um campo muito mais
profundo da psique humana, campo entendido como sendo a sede dos
arquétipos (2011, pp. 107,108).

Em sua concepção, Jung afirma que as experiências primitivas, contidas


no inconsciente coletivo são “a herança filogenética da história da humanidade”.
Aliás, “este tesouro experimental, que chega bem fundo no campo dos impulsos,
instintos e desenvolvimento da consciência o [arquétipo] de “caráter junguiano” vem
ao mundo”, informa-nos Roth (2011, p. 109).
Em se tratando que, os conteúdos do inconsciente coletivo não seguem
uma divisão aleatória, mas vem ordenados a partir dos temas centrais do conteúdo;
ou seja, que eles ficaram interligados a certos elementos em torno dos quais se
agrupam tematicamente bem concentrados. “Esses elementos centrais de
ordenamento representam os arquétipos que emprestam sua estrutura ao
inconsciente coletivo”, diz W. Roth (2011, p. 109)
Ao fazer uma Introdução à Psicologia de C.G. Jung, o autor acima
supracitado, salienta a distinção entre “arquétipo em si” e o arquétipo perceptível
enquanto imagem e sua manifestação; inclusive, argumenta sobre modos de ação e
reação arquetípica, seus cursos e processos como, por exemplo, o devir do eu e as
formas de vivência; ou seja, formas de sofrimento, concepções e ideias arquetípicas
que, visíveis, abandonam seu funcionamento e que até então, transcorriam de
maneira inconscientes.
Para Jolande Jacobi o arquétipo “pode brotar em muitas camadas e níveis
nas mais diversas constelações, em sua forma de manifestação, em sua
“indumentária” adapta-se à respectiva situação, [mas] sua estrutura fundamental
continua [...] – como a melodia – transponível” (2013, p. 77).
24

Inclusive, há vários esquemas das teorias junguianas que estão contidos


alguns aspectos de manifestações da psique em sua essência e estrutura; entre eles
o esquema de alguns aspectos do “fenômeno”, salientado aqui por Jacobi. Com a
citação, porém longa, mas necessária:
Assim, por exemplo, [...] o arquétipo é mãe, no sentido estrutural - formal já
mencionado, pré-existente em e superior a toda a forma estrutural de
manifestação do “materno”. É um núcleo de significado que permanece
inalterável, que pode ser preenchido com todos os aspectos e símbolos do
“materno”. O protótipo da mãe e os traços da “grande mãe”, com todas as
suas propriedades paradoxais, na alma humana atual são as que dos
tempos míticos. A distinção do eu da “mãe” está no começo de todo e
qualquer tornar-se consciente. Todavia, tornar-se consciente, ou
consciencialização, é tornar-se mundo através da distinção. Criar
consciencialiadade é formular ideias, isso é o princípio paterno do logos,
que numa luta infinita se arranca das trevas originárias do seio materno, do
reino do inconsciente. No princípio ambos eram um, e jamais um poderá ser
sem o outro, assim como a luz seria privada de seu sentido num mundo no
qual o escuro não estivesse contraposto. “O mundo só persiste porque seus
contrários mantêm o equilíbrio” (2013, pp. 78, 79).

É importante frisar que a linguagem do inconsciente é feita por meio de


imagens; logo, os arquétipos também surgem em forma de imagens quer sejam
personificadas ou simbólicas. Portanto, para melhor compreensão do “arquétipo
feminino” remetemos ao seguinte diagrama:
Diagrama V

A massa primordial destes fatores arquétipos forma o legítimo conteúdo


do inconsciente coletivo, como argumenta Jacobi, “seu número é relativamente
limitado”, pois corresponde ‘às possibilidades das vivências fundamentais típicas’,
que o ser humano já experimentou desde os primórdios. Seu sentido para nós reside
25

precisamente naquela “experiência originária” que apresenta e comunica (2013, pp.


80, 81), exatamente o que acontece na obra As Parceiras, de Lya Luft.

3.1 O Arquétipo do feminino selvagem

“A fauna silvestre e a Mulher Selvagem são espécies em risco de


extinção”, fala-nos em lamentoso prenúncio a autora de Mulheres que correm com
os lobos (1992), denunciando por “esmagamento da natureza instintiva feminina”
(ÉSTES, 2018, p. 15). Consequentemente o instintivo feminino é banido para as
regiões mais profundas e sofridas da psique, isto porque as terras espirituais da
Mulher Selvagem ao longo do percurso histórico foram saqueadas e seus refúgios
destruídos à força pela sociedade patriarcal.
Sabemos, por intermédio da brilhante pesquisa de Clarissa Pinkola Estés,
que o aspecto Selvagem é um ponto de contato com a vibração da natureza que
pulsa em cada ser. Esses aspectos naturais que habitam os viventes revelam o
princípio de organização e formam a consciência. Por isso, o perigo do instinto
selvagem encontrar-se com a negação de seu poder. Isto porque a sociedade
patriarcal projeta nos lobos, ursos, coiotes e mulheres selvagens uma reputação
cruel, perigosa e voraz por todos eles compartilharem arquétipos instintivos.
O instinto nada mais é do que a vivacidade e a labuta da mulher que uiva,
ama, chora, guerreia, e que se deixa tocar pela Vida, e pelo Eros, que percorrem as
suas veias, suas matas virgens, se encantando com cada encontro e sentindo a
pulsação do universo na sutileza e singularidade do instante.
O que os lobos e as mulheres saudáveis têm em comum? Decerto,
ouvíssemos juntamente com Pinkola Éstes os uivos e instintos dessas mulheres que
correm com os lobos; porque nossa estudiosa do feminino arquetípico selvagem vem
nos responder com a seguinte afirmação:
...percepção aguçada, espírito brincalhão e uma elevada capacidade para
devoção. Os lobos e as mulheres são gregários por natureza, curiosos,
dotados de grande resistência e força. São profundamente intuitivos e têm
grande preocupação com seus filhotes, seu parceiro e sua matilha. Têm
experiência para se adaptar a circunstâncias em constante mutação. Têm
uma determinação feroz e extrema coragem (1999, p. 16).

Todas as mulheres sentem falta destas características quando são


“domesticadas” pela cultura. A compreensão do selvagem é uma prática, um
conhecimento da alma. Portanto, ir ao encontro desse arquétipo é retornar a si
mesma.
26

A Mulher Selvagem (ESTÉS, 1999) é a memória das intenções femininas


na atemporalidade, equilibrando a dança que realiza com o outro, é o ponto onde o
Eu e o Tu se beijam, onde a mente e os instintos se fundem, formando o espaço da
racionalidade e do mito. As palavras “Mulher” e “Selvagem” revelam uma passagem
das profundas camadas da psique, onde é despertada pela intuição e da recordação
ancestral do ser alfa matrilinear.
Segundo a autora citada, do ponto de vista da psicologia arquetípica, a
Mulher Selvagem é a “alma feminina”, mais do que isto é a origem do feminino. “Ela
é tudo que for instintivo, tanto do mundo visível quanto do oculto - ela é a base”:
Ela é a força da vida-morte-vida; é a incubadora. É a intuição, a vidência, é
a que escuta com atenção e tem o coração leal. Ela estimula os humanos a
continuarem a ser multilíngues: fluentes no linguajar dos sonhos, da paixão,
da poesia. Ela sussurra em sonhos noturnos; ela deixa em seu rastro no
terreno da alma da mulher um pelo grosseiro e pegadas lamacentas. Esses
sinais enchem as mulheres de vontade de encontrá-la, libertá-la e amá-la
[...]. Ela ficou perdida e esquecida por muito, muito tempo. Ela é a fonte, a
luz, a noite, a treva e o amanhecer. Os pássaros que nos contam segredos
pertencem a ela. Ela é a voz que diz: ‘Por aqui, por aqui’ (ESTÉS, 1999, p.
27).

Talvez, o primeiro passo para libertar a Mulher Selvagem seja ter coragem
para se destacar da massa e seguir seu próprio caminho, isto é, realizar o processo
de diferenciação. Em nossa cultura há um estigma voltado para tudo o que é
diferente, haja vista a necessidade da criação da política da inclusão social; tal fato,
pode ser observado pelas denúncias de Lya Luft no romance As Parceiras, através
de suas personagens femininas estigmatizadas.
Então, para ter uma mulher o seu empoderamento, deve o feminino deixar
fluir o que naturalmente emana de si, é preciso ter ousadia. Isto, na maioria das
vezes, acaba se tornando um caminho solitário, tal qual o caminhar das personagens
luftianas, principalmente, o caminhar da veranista, bem como o narrar solitário e
diário da protagonista Anelise.
Outras vezes, a própria mulher se perde por caminhos e atividades que
roubam e/ou desviam a sua energia. É preciso estarmos atentas aos predadores
externos e internos. Trilharmos o rumo certo é um desafio para a grande maioria. Diz
a autora: “Há uma necessidade correta e oportuna de acordar para um movimento
destrutivo dentro da própria psique; para aquilo que está furtando nosso fogo;
intrometendo-se na nossa energia; roubando de nós o lugar, o espaço, o tempo e o
território para a criação” (Ibid., p. 94).
27

Muitas vezes isto vem expresso na forma de sonhos. Existe um sonho


iniciático universal entre as mulheres: o sonho com o “homem sinistro”. Em geral,
são terroristas, estupradores, bandidos que a aterrorizam e ameaçam sua
integridade física e psicológica. O “homem sinistro” surge na obra As Parceiras logo
no início, referente ao capítulo “Domingo” cronometrando o diário de Anelise. Surge
como um “jogo surjo”, assusta e agride como um predador, a priori como “o destino
zeloso” e patriarcal na vida de Catarina von Sassen:
O destino foi zeloso: caçou-a pelos quartos do casarão, seguiu-a pelos
corredores, ameaçou arrombar os banheiros chaveados como arrombava
dia e noite o corpo imatura. Mais tarde, entenderam que os arroubos de meu
avô eram doentios: nada aplacava suas virilhas em fogo (LUFT, 2007, p.13)

O sonho dessa natureza ameaçadora (representada pelo “homem


sinistro”) afirma que a vida da mulher precisa mudar, revela que a sonhadora ficou
enredada em algum estado inercial, como Catarina aprisionada em seu sótão:
Chamava de sótão a esse quarto do terceiro piso do casarão [...].
Combinava bem o nome: uma palavra triste e sozinha. A porta rangeu como
essas velhas madeiras... [eis que surge] a mulher de branco, moradora do
sótão, voltou para nós um rosto interrogativo. Parecia alegre por nos ver
mas também assustada como se não soubesse o que lhe trazíamos: o bem,
o mal [...] casamento era para ela a noção difusa de abraços e beijos
demorados, e alguma coisa mais assustadora. Algo de que nunca falavam
direito. Como as doenças e a morte [...] no esconderijo branco, [...] Catarina
von Sassen murmurava, falando com gente que só existia para ela. Ou
espreitava o jardim, pela a porta de vidro. (LUFT, 2007, pp 12-17)

Essa natureza ameaçadora nos sonhos e pesadelos femininos está


relacionada a alguma escolha difícil, onde a mulher reluta em dar o passo seguinte,
evitando arrancar sua própria força das mãos do predador.
A intimidade com a natureza da vida-morte-vida talvez seja o traço mais
marcante da Mulher Selvagem. Trata-se de um ciclo de animação, desenvolvimento,
declínio e morte, que sempre se faz seguir de uma reanimação. Esse ciclo afeta toda
a vida física e todas as facetas da vida psicológica.
Diz a lenda que a Mulher-lobo (uma das facetas da Mulher Selvagem) em
sua caminhada pelo deserto, tem o trabalho de recolher todos os ossos que encontra
pelo caminho, particularmente os dos lobos. Quando consegue reconstituir um
esqueleto inteiro de um destes animais, ela se aproxima, ergue seus braços sobre
ele e começa a entoar um hino. Lentamente o esqueleto começa a se forrar de carne
até que a criatura começa a respirar. Portanto,
se quisermos ser alimentados por toda a vida, precisamos encarar e
desenvolver um relacionamento com a natureza da vida-morte-vida.
Quando temos esse tipo de relacionamento, não saímos mais por aí à caça
de fantasias, mas nos tornamos conhecedores das mortes necessárias e
28

nascimentos surpreendentes que criam o verdadeiro relacionamento


(ESTÉS,1999, p. 171).

Segundo Pinkola Estés (1999), três aspectos diferenciam a vida a partir


da alma, da vida a partir do ego: - a capacidade de pressentir novos caminhos e de
aprender com eles; - a tenacidade necessária para atravessar uma fase difícil; - a
paciência para aprender o amor profundo com o tempo. O ego, no entanto, tem uma
queda e uma predisposição para evitar o aprendizado. A paciência não é seu forte.
Nem o relacionamento duradouro. Portanto, não é a partir do ego inconstante que
amamos o outro, mas sim, do fundo da alma selvagem.
Para ela, a experiência plena e o viver de acordo com a sabedoria da
Mulher Selvagem, latente em todas nós, é uma etapa fundamental da diferenciação
e do desenvolvimento da personalidade para todas as mulheres, especialmente
aquelas que já transitam na linha tênue entre o mundo visível e o invisível. Isto pode
ajudá-las a terem uma vivência plena de totalidade e a se apropriarem de seu poder
pessoal na sua mais ampla manifestação: como no jogo das parceiras luftianas.

3.2 Peças femininas no jogo d’As parceiras: do cotidiano a contemplação

Entendemos por necessário fazer uma breve apresentação da autora do


romance enquanto objeto do nosso estudo. Referimo-nos à renomada gaúcha Lya
Luft, escritora e tradutora brasileira nascida em 1938. Senhora de si e de uma vasta
importante contribuição no que se trata a literatura brasileira. Bem como,
destacando-se pelas traduções de autores destacados pela literatura universal,
dentre eles, Virgínia Woolf, Herman Hesse e Thomas Mann. Teve participação como
colunista da Revista veja, além disso lançou-se na escrita literária pela coleção de
contos “Matéria do Cotidiano” e em 1980 publica seu primeiro romance As parceiras.
O romance “Reunião de Família” (1982) foi lançado nos Estados Unidos com o título
“The Island of the Dead”. Em 1985, separada do marido passa a viver no Rio de
Janeiro, com o escritor Hélio, Lya voltou a viver com Celso Luft, de quem ficou viúva
em 1995.
Lya Luft teve obras premiadas tais como: O rio do meio considerada a
melhor obra de ficção de 1996, com o Prêmio da Associação Paulista de Críticos de
Arte. Em 2013 recebe o prêmio Machado de Assis pela academia brasileira de Letras
com a obra O tigre na sombra (2012) eleita como melhor ficção do ano na categoria
romance.
29

Na obra As Parceiras somos apresentadas à protagonista Anelise que,


enquanto narra a histórias femininas da família, procura no passado as razões para
seu infortúnio no jogo da vida. Sua narrativa compõe os capítulos do romance em
questão, cujos os mesmos são divididos em sete dias da semana intitulados como
se fossem folhas de um calendário; é o tempo em que a protagonista passa na praia,
no Chalé de sua família de mulheres. É o tempo de rememorar trazendo as narrativas
íntimas e marcantes. É o passar das páginas do tempo, do passado e do presente,
onde Anelise busca a coragem para enfrentar seus antigos fantasmas. Segundo
Estés: “Num único ser humano existem muitos outros seres, todos com seus valores,
motivos e projetos. [Há sugestão] de que prendamos esses seres, que os
enumeremos [e] forcemos a aceitar o comando [de] vencidos”; entretanto, se assim
o fizéssemos, diz, equivaleria o impedimento à “dança das luzes selváticas nos olhos
de uma mulher”, bem como “proibir os relâmpagos e reprimir toda emissão de
centelhas”. Logo, comenta Estés: “em vez de deturpar sua beleza natural, nossa
tarefa consiste em criar para todos esses seres uma paisagem selvática na qual os
artistas entre eles possam criar, os amantes amar, os curandeiros curar” (2018, p.
53).
E assim, Anelise conduz o público leitor a sua dimensão criativa e
torturada. Apresentando-nos ao universo feminino de uma família conturbada por
traumas da infância e suas sequelas.
As Parceiras é um romance sobre mulheres, sem que isto signifique
literatura feminista. É uma visão feminina sob uma família marcada pela
loucura, pela morte, por um mundo decadente que a envolve e desagrega.
A vida de Anelise, narradora desta história, está à beira do caos. Mas ela
busca no passado as razões para seu infortúnio e encontra coragem para
enfrentar os fantasmas que a perseguem: a avó Catarina – uma menina
linda, obrigada a se casar aos 14 anos com um homem rude, o que a leva
a um isolamento físico e mental; tia Beata – uma figura grotesca que marca
a sua infância; a amiga Adélia – a ausência para sempre sentida; a irmã
Vânia – seu oposto, uma mulher forte, mas que esconde um segredo.
No casarão da família, as lembranças de outrora se confundem com o tempo
presente. Anelise tem medo da casa, das vozes na cozinha, do barulho do
vento nas frestas e, principalmente, do sótão, lugar proibido, lugar de
confinamento. Numa narrativa construída sobre uma circularidade de
elementos que dão suporte ao texto, Lya permite que Anelise uma as pontas
soltas de sua história e, assim, vá lutando contra o fardo de sua herança,
contra a repressão da sociedade e contravalores hipócritas. (CITAÇÃO DE
CAPA)

Eis as peças do jogo [quando] não tinham começado a sumir ou a


confundir-se no “tabuleiro”, dissera a protagonista luftiana enquanto pensava na avó
Catarina (LUFT, 2007, p.11).
30

Catarina: o princípio da iniciação

Catarina é a primeira personagem de iniciação feminina, também aquela


que inicia a identidade do feminino reprimido na obra de Lya Luft. Empresta o seu
nome para ilustrar como a primeira palavra escrita (num Domingo) no diário da
narradora Anelise: “Para mim, a peça mais importante sempre fora minha avó, que
eu vira só uma vez no sótão branco recendendo a alfazema” (LUFT, 2007, p.42).
Um nome de sinônimo feminino numa escrita escura e contrastante com
a página branca...
“Catarina tinha catorze anos quando casou, penso, enquanto seguro a
balaustrada, me debruço para aspirar melhor a maresia [...]. Catorze recém-feitos.
Jogaram com ela um jogo sujo” (LUFT, 2007, p.11), de força, aliás, fora predestinada
à passividade como a peça vencida.
“Catarina”, um nome com síntese expressiva e simbólica, que nos remete
ao significado do termo “nome”:
O esoterismo conceitua o nome como síntese expressiva do horóscopo.
Estabeleceram-se muitas especulações sobre os elementos simbólicos que
entram no nome: letras em aspectos gráfico e fonético, similitudes, analogias
etc. [...] O problema de por que um determinado nome realiza um sentido de
destino [...]. Limitamo-nos a dar o fundamento racional do simbolismo do
nome, relacionado com a ideia egípcia do “poder das palavras” [...]. Dado o
sistema simbólico da linguagem egípcia, compreende-se que o nome nunca
podia proceder do acaso, mas sim de um estudo das qualidades da coisa
nomeada, quer se tratasse de um nome comum ou próprio [...]. Quanto à
pessoa, os egípcios acreditavam que o nome representa o reflexo da alma
humana. Desta crença deriva a ideia mágica de que se pode atuar por meio
do nome sobre outra pessoa. A consequência da identificação entre nome e
caráter (e destino) leva aos nomes descritivos (CIRLOT, 1984, p. 410).

“Catarina”, um nome próprio, porém desapropriado de si (poder do


Feminino) na obra luftiana; um nome que nos conduz às especulações sobre fatores
simbólicos inseridos no nome: a letra “C diferenciado no aspecto gráfico de tamanho,
fonte, colocada em negrito, como se fosse uma Conceição (marcada de melancolia
e luto), uma concepção obscurecida, quiçá, uma busca de consciencialização pelos
meandros angustiosos e enegrecidos do inconsciente (pessoal e coletivo) permeado
de arquétipo. Aqui, lembrando que “o arquétipo não é somente um dinamismo
(dynamis), uma força condutora que, como a religião, exerce influência sobre a
psique [...], mas também corresponde a uma ‘concepção’, a um conteúdo
inconsciente”, como afirma o junguiano Erich Neumann (2008, p. 28).
31

“Catarina”, um nome que perpassa todos os estágios da escala do


arquétipo Feminino, mesmo com repressões (às luzes selváticas) e atropelos: quer
seja menina e moça, uma menina-mulher, quer uma louca mãe e avó.
Catarina costuma ficar horas a fio atrás do vidro da porta que abria para a
sacada. Dizem que do jardim se via seu rosto branco e ausente. [...]. Um
quarto de menina, aquele. Limpo. Chamavam de sótão a esse quarto do
terceiro piso do casarão [...]. Combinava bem o nome: uma palavra triste e
sozinha. [...] A mulher de branco, moradora do sótão, voltou para nós um
rosto interrogativo. Parecia alegre por nos ver mas também assustada como
se não soubesse o que lhe trazíamos: o bem, o mal.
Olhou para mim e pergunta insegura:
- É Sibila?
- Não – respondeu minha mãe – é Anelise. Minha filha mais nova. Sua neta.
Como podiam me confundir com Bila, a Bilinha? [...]. Me pegou no colo, me
abraçou. Alfazema: mais tarde aprendi a palavra (LUFT, 2007, p. 12).

“Catarina”, um nome de santa e das similitudes e analogias.


“Catarina vem de catha, que quer dizer ‘universo’, e de ‘ruína’, significando ‘ruína
universal’, e de fato, nela o edifício do diabo foi inteiramente arruinado: a soberba
pela humildade, a concupiscência carnal pela virgindade, a cupidez mundana pelo
desprezo às coisas materiais” (VARAZZE, 2003, p. 961).
A personagem Catarina surge na obra luftiana como uma representação
arquetípica da “mulher ingênua como presa” (símile à mulher no conto do Barba-
azul). Em se tratando desse tipo do Feminino (menos desenvolvido), Estés a
caracteriza como aquela que cumpre seu roteiro tipicamente; isto é, “a mulher
ingênua [...] será capturada temporariamente pelo seu próprio inimigo interior;
[porque] ainda não aprendeu perfeitamente a reconhecer o predador inato” (2018, p.
61).
Uma quase menina quando casou, quase um paralelo com a irmã mais
nova no conto Barba-azul. O referido conto “é útil para todas as mulheres,
independentemente de serem jovens e terem acabado de saber da existência do
predador ou de terem sido acossadas e acuadas por ele década a fio, encontrando-
se, afinal, preparadas para um confronto final e decisivo com ele”, explica-nos Estés
(2018, p. 61).
Uma menina-mulher (ou mulher-menina) a se esconder da fúria sexual de
seu experiente marido (= projeção do predador natural da psique feminina), Catarina
acabou fechando-se no seu próprio mundo. Fez do sótão um ponto de refúgio,
eximindo-se de qualquer responsabilidade que recaísse sobre ela.
32

Sucumbida a um terror sexual, a personagem vivia em agonia e tinha


compulsão por fugir desse mundo que a deixava cada vez mais desiludida e menos
lúcida.
Lembro-me da minha avó: roupas brancas, alfazema, solidão. E medo.
Hoje, sei todos os detalhes que há para saber sobre sua vida, mas a
verdade perdeu-se entre aquelas paredes.
Quando casou Catarina von Sassen mal começara a menstruar. E, se já não
acreditava piamente que o sinal no dorso de sua mão vinha duma bicada
da cegonha, também não tinha certeza de como os bebês entravam e saíam
da barriga das mães [...]. Casando, Catarina deixou na cama de solteira três
bonecas de rosto de porcelana. [...] O destino foi zeloso: [...] mas tarde,
entenderam que os arroubos do meu avó eram doentios: nada aplacava
suas virilhas em fogo.
Catarina sucumbiu a um fundo terror do sexo e da vida. Não os medrosos
pruridos de muitas noivinhas do seu tempo, mas uma agoniada compulsão
de fugir [...]; ela se refugiou onde pode: um mundo branco e limpo que
inventava e onde se perdia cada vez mais. Assumiu o ar distraído que
caracterizaria outras mulheres da família depois dela [...] (LUFT, 2007, pp.
11-14).

Catarina assumiu um ar distraído e alienado como uma tentativa de fuga


diante de uma sociedade patriarcal repressora, representada na obra em questão
pela personagem do marido machista e fogoso que oprime a natureza instintiva e
feminina.
Pinkola Éstes acerca do princípio da iniciação do Feminino faz o seguinte
comentário:
Mas o que devemos fazer com esses seres interiores que são completamente
loucos e com aqueles que destroem sem pensar? Mesmo a esses deve ser
atribuído um lugar, muito embora seja um lugar que os possa conter. Uma entidade
especial, o fugitivo mais traiçoeiro e mais poderoso na psique , exige nossa
conscientização e contenção imediatas – e esse é o predador natural (2018, p.
53).

Menciona ainda que “embora a causa de grande parte do sofrimento


humano possa ser atribuída a uma criação negligente, existe dentro da psique um
aspecto contra naturam inato, uma força voltada “contra a natureza” [...] que se opõe
ao que for positivo: ele é contra ao desenvolvimento, contra harmonia e o que for
selvagem. Trata-se de um antagonista debochado e assassino [...] sua única função
é a de tentar transformar todas as encruzilhadas em ruas sem saídas (1999, p.32).
A personagem continha o arquétipo Feminino reprimido pelo que a vida lhe reservou,
trancando-se e vivendo apenas para seus interlocutores invisíveis.
O nome Catarina provêm do grego e denota “casta - pura” definição que
guia a existência da personagem na obra, mesmo quando casa e tenta manter a
sua pureza e depois ao fechar-se em seu quarto branco no sótão para recompor-se,
33

a personagem do sótão é levada a viver em um mundo paralelo, alienando-se da


realidade e convertendo-se em loucura. A narradora relata:
Com o tempo, minha avó foi perdendo a lucidez a intervalos cada vez
menores. Por fim, baixou a penumbra definitiva. Os médicos acharam que
sua mania de morar no sótão não era de todo má: livrara-a da
responsabilidade por uma casa que não podia administrar, e das três filhas
que não tinha condições de criar. Ficou ela com seus duendes. No esconder
o branco, atendida por alguma empregada, pela governanta e pela filha
Beatriz, Catarina Von Sassen murmurava, falando com gente que só existia
para ela. Ou espreitava o jardim, pela porta de vidro (LUFT, 1980, pp. 12,13)

O acúmulo de experiências individuais uma vez conscientes, ora


inconscientes, mas que foram reprimidas, assim a avó Catarina foi se delineando
ao se distanciar do mundo, tentando resgatar a pureza perdida com o casamento,
tendo sua castidade e sua inocência arrancadas brutalmente, deixando-a em
devaneios e penumbra.
O arquétipo da Mulher Selvagem aspira por sua contraparte, aquele que,
ao invés de roubar o seu fogo e ceifar-lhe a vida (como aconteceu com o marido da
personagem Catarina) vem para legitimar os seus símbolos e comungar consigo na
aspereza do seu pelo grosseiro; vem para, em união com ela, ajudá-la a se
apropriar de seus poderes instintivos: o insight, a intuição, a resistência, a
tenacidade no amor, a percepção aguçada, o alcance da sua visão, a audição
apurada, os cantos sobre os mortos, a cura intuitiva e o cuidado com seu próprio
fogo criativo, e assim fazê-la vicejar na sua plenitude.
Segundo Pinkola Éstes, “para amar uma mulher, o parceiro deve também
amar sua própria natureza primitiva. Se a mulher aceitar um companheiro que não
possa amar ou que não ame esse seu outro lado, ela sem dúvida sofrerá algum tipo
de dano”; aliás, fato ocorrido no sótão e representado através da loucura da
personagem Catarina.

Personagem Beata

Filha mais velha de Catarina, Beatriz gosta de dedicar-se à igreja e, por


isso foi denominada em toda a trama como “Tia Beata”. Fora casada, porém tornouse
viúva três semanas após o seu casamento. Desconsolada, resolveu cuidar do
casarão e se dedicar às sobrinhas. Assim como sua mãe Catarina, teve problemas
em relação ao matrimônio e ao sexo. A autora coloca que ela era uma “viúva-virgem”,
pois, o marido não conseguiu saciar seus ardores e, então por não cumprir com o
34

seu papel de marido, suicidou-se deixando a “tia Beata” viúva, o que contribuiu para
que ela buscasse na religião o seu isolamento. Sobre a “tia Beata”, a autora revela
na fala da narradora assim:
Em compensação, tia Beata vinha seguidamente à nossa casa. Sempre na
igreja. Padres convidados para o almoço, o jantar. Novenas, promessas.
Dedicação absoluta a Bila e ao casarão. Tia Beata interessava-se por nós,
que não gostávamos dela. Vinha, queria saber da nossa roupa, do nosso
estudo, era solícita e boa, mas sem carinho.
Devíamos ser-lhe uma obrigação a mais, a educação negligenciada, o
domino das empregadas, a fragilidade de mamãe, a complacência de meu
pai.
Desconfiei sempre de que tia Beata não se importava de não ser amada
pelas sobrinhas: o contato físico, mesmo conosco, a repugnava. Ou
assustava? O rosto seco, severo, o beijo rápido, com pelos espetando, me
deixavam encolhida e hostil. (LUFT, 1980, pp. 21, 22).

A personagem levava uma vida amarga e triste por conta da desventura


da sua vida conjugal, esquivava-se de todo e qualquer carinho ou contato físico
mesmo com as sobrinhas, compartilhando da mesma sina que sua mãe Catarina.
Essa fuga da realidade pela religiosidade mostra em tia Beata mais uma marca das
mulheres da sua família.
Caracterizada pelas amarguras sentidas, as experiências da Tia Beata
retratam uma vida que se configura em uma triste e banal história de alguém que
não quis ir em busca de algo novo, simplesmente se entregou à sua sina de tia
virgem, uma quase mãe dos sobrinhos; e isso a isolou do restante do mundo,
colocando sua existência como irrelevante. Assim, a autora relata a vivência da
personagem no romance, como justifica a narradora em sua fala:
Um mundo triste o da minha tia, que crescera sob império da Frãulein, a
mãe louca no sótão da casa enorme, as duas irmãs mais novas tendo que
ser protegidas, o pai raro e grosseiro. Magra e taciturna, mesmo nas poucas
fotos de menina. Casara e enviuvara em pouco tempo, voltara ao casarão,
a mãe enfurnada lá em cima. Começou a cuidar dela, depois de Bila. (LUFT,
1980, p. 25).

Mesmo depois de assumir as rédeas do casarão e tentar educar as


sobrinhas após a morte dos pais delas, Tia Beata é frustrada mais uma vez por não
conseguir, devido à resistência que as sobrinhas impuseram a sua influência. Então,
julga sua missão com a família terminada e muda-se para um convento “caminhos
de Deus. As Parceiras riam dentes amarelos”. (LUFT, p. 31) Onde vive seus últimos
dias, como discorre a autora na fala da narradora:

Minha tia, já tão religiosa, de certo se julgou predestinada à virgindade.


Passos rápidos, xalinho no ombro, cheiro de leite-de-rosas, santos e rezas,
Bíblia na cabeceira, tantas boas intenções. Retidão, nunca vi tanta retidão.
35

Dentes grandes, amarelos, que quase não riam. Vida difícil, alma
amargurada. Todo mundo tão precário ao seu redor, loucura, suicídio,
aleijão. [...] Julgou sua missão cumprida para com aquela família
complicada. Foi morar num quarto de um convento a quem doara parte do
seu dinheiro, e que há muitos anos costumava visitar para consolar-se com
as freiras suas amigas. Viveu ali o resto dos dias, freira sem votos. (LUFT,
1980, p. 28).

Sobre a personagem tia Beata podemos relacionar com o arquétipo da


deusa Hera – Juno (Deusa do casamento, do compromisso e esposa) que como
deusa do casamento, Hera foi reverenciada e injuriada, honrada e humilhada. Ela,
mais do que qualquer outra deusa, tem atributos marcadamente positivos e
negativos. O mesmo ocorreu com a tia Beata casou e foi humilhada com o suicídio
de seu marido no qual os boatos de sua morte se deu por murmúrios de não cumprir
com seus deveres de marido.
Esse arquétipo da deusa Hera, a mulher sente-se fundamentalmente
incompleta sem um companheiro. Seu desgosto por estar sem um conjunge pode
ser uma experiência interior profunda e ofensiva; fato que pode levar tal parceira a
desenvolver um espírito vingativo contra outras mulheres, mas nunca contra o
homem, embora tia Beata não tenha se vingado de outras mulheres, ela
simplesmente deixou de buscar novos romances, refugiando, desvencilhando suas
experiências negativas do casamento através do convento como uma reclusa porém
reprimida válvula de escape para não buscar outro relacionamento amoroso.

Personagem Sibila

Nascera fruto de um estupro, quando sua mãe Catarina havia se recluído


em seu mundo branco, no sótão do casarão. Logo depois do nascimento foi rejeitada
pela mãe “louca” que não quisera nem olhar para ela recém-nascida. Vivia afastada
de todos; apenas aos 3 anos de idade fora vista por sua mãe Catarina. Não era como
as outras crianças; provavelmente não era uma criança feliz; Bila era repugnada pela
mãe e por todos, excluída por ser a anã da família, por não ser loura e bonita como
todos queriam e esperavam que ela fosse. Sibila era uma criança atípica em relação
as outras da sua família. A narradora relata sua pouca convivência com a mãe como
surpreendente:
Surpreendentemente, quando todos se tinham habituado àquilo, Catarina
'pediu para ver Sibila, que já tinha uns três anos. Talvez soubesse que era
sua filha. Talvez a memória obscurecida registrasse a gravidez, o parto, o
36

primeiro grito. Talvez lembrasse o terror da concepção. Pode ser que tivesse
notado o problema da menina, porque logo quis que a levassem embora, e
chorou muito. Depois, voltou a ignorar sua existência. Possivelmente
criouse uma filha loura e perfeita, incida entre as personagens do sótão. É
querido me vira naquela minha única visita, perguntara se eu era Sibila.
(Luft, 1980, p, 44).

Mantida sobre os cuidados das empregadas do casarão e também de sua


irmã Beatriz, ela não tinha o contato e o carinho da própria mãe que nem mesmo
lembrava-se dela. Viveu pouco, mas o suficiente para ser condenada a olhares,
maldições e repulsões. Era tida como o monstro da família. encontra-se em Jung
(2001) algo que possa ajudar a compreender como ao arquétipo podem ser
colocados:
Quer o homem compreenda ou não o mundo dos arquétipos, deverá
permanecer consciente do mesmo, pois nele o homem ainda é natureza e
está conectado com suas raízes. Uma visão de mundo ou uma ordem social
que cinde o homem das imagens primordiais da vida não só não constitui
uma cultura, como se transforma cada vez mais numa prisão ou num curral.
Se as imagens originárias permanecerem de algum modo conscientes, a
energia que lhes corresponde poderá fluir no homem. (JUNG, 2001, p. 102).

A vida da personagem transformou numa prisão por sua natureza, sua


forma de vir ao mundo na qual originou um círculo de incertezas. Embora se
mostrava feliz em certas ocasiões, “Bila” não tinha consciência de suas raízes, mas
estava conectada a mesma por sua transfiguração decorrida ao fato de como fora
concebida e da vida de sua mãe Catarina que por diversas vezes fora violentada pelo
próprio marido.
Portanto, Sibila era perturbada enquanto elemento perturbador por sua
patologia, por seu ananismo, porem sua perturbação sem sentido acabou que
purificando o coração de sua irmã Beatriz que a cuidava com um amor fraternal
materno e como Jung coloca na citação acima o clarão que Sibila acendera com a
sua transformação colocando todas as vítimas da história de sua família como peças
de seu quebra cabeça insignificante.

Personagem Dora

Dora era a segunda filha de Catarina nascida viva. Parecia ser a mais
diferente da família. Sua profissão era de pintora, não se prendia a casamentos, vivia
entre um e outro e tinha uma vida aparentemente “livre” da sina que assolava as
mulheres daquela família. A narradora retrata Dora como um exemplo a ser seguido,
37

um modelo que sinaliza um afastamento do grupo de mulheres que rompe o vínculo


de pertencimento entre elas.

A personagem fora uma das tias que menos a narradora conheceu. Ela
quase não ia ao casarão visitar a família e também não tinha o costume de levá-las
ao seu ateliê. As impressões trazidas da vivência de infância da narradora Anelise
com a sua tia Dora foram baseada nos poucos momentos que tiveram juntas. A
narradora relata que sua tia era bonita, ressalta qualidades que a encantava e ainda
dizia que queria que fosse como ela. Em um de seus relatos sobre as tias ela coloca:

Havia também as minhas tias: a pintora nos visitava pouco, e não nos
levavam nunca ao seu ateliê. Eu sabia que tivera vários maridos, que viajava
muito, que adotara aquele meu único primo, Otávio, um menino esquivo
mas simpático. Tia Dora era bonita, parecia alegre também, de uma
vitalidade que, nos raros encontros, me impressionava: assim que eu queria
ser. Assim desejava que fosse minha mãe: interessada, viva, falastrona,
exuberante. (LUFT, 1980, p. 21).

Essa vitalidade toda de Dora foi aos poucos se mostrando como ela não
diferia tanto da sina das mulheres de sua família quanto a narradora pensara no
início dos relatos de sua tia. Embora ela não tenha se firmado a um casamento falido
como o de sua mãe Catarina e de sua irmã Beatriz ela tinha a angustias da solidão
mesmo quando adotara o seu filho Otávio, teve tanta solidão quanto às outras
mulheres de sua família tiveram. Essa solidão se concretiza no afastamento que a
tia Dora prefere manter de sua família.
Tia Dora tinha essa autoconfiança, esse espirito independente, pois ela
não se prendia a ninguém matrimonialmente, e seus objetivos foram colocados no
terreno da arte e de cuidar de seu filho adotivo Otávio.

Personagem Norma

Norma seria a terceira filha de Catarina, a mais que se parecera com ela
fisicamente. Sua presença na história teve pouca relevância embora tenha sido a
personagem que se deu “bem” no casamento tivera uma relação materna de
distanciamento com suas filhas. Parecia ser frágil e necessitar de cuidados extremos.
Encontrou no marido o refúgio que precisava para fugir de suas obrigações de mãe
e de dona de casa. Vivia para ao marido e ele para ela, e mesmo assim não deixou
de ganhar o amor de suas filhas. Anelise relata:
38

Mas, embora minha mãe fosse assim, alheada com seus livros e músicas,
eu a amava muito, e sabia que ela me amava também, na sua maneira
etérea e infantil. Era uma mulher alta, clara, bonita, parecendo com minha
avó. Apenas, tão esquecida: sempre perdendo suas coisas, pedia que
ajudássemos a encontrar o livro, a partitura, o lenço. Depois sorria um
sorriso inocente, parecia um pouco admirada de nos ver ali, ao seu redor,
de sentir-se amada e necessária. Uma menina crescida, com quem se tinha
vontade de brincar de comidinha e casa de bonecas. (Luft, 1980, p. 22).

Essa forma de viver levou Norma a ter um mundo só dela. Anelise a coloca
como uma fada, linda e boa, ainda tentou algum diálogo sobre sua avó, mas Norma
ao ouvir sempre dava evasivas e ficava triste quando lhe era indagada se realmente
a mãe era louca. A narradora descreve Norma como frágil, que necessitava de
muitos cuidados e que dependia para sobreviver de todos os cuidados que o seu pai
lhe dedicara ao longo de seu casamento.
Assim era Norma, com sua fragilidade de menina, sua jovialidade, tinha
apenas entendimento para compreender o horror que fora a história de sua família
e no mais vivia para o marido e amava as filhas à sua maneira, porém tinha um
mundo paralelo a todos.

Personagem Vânia

Vânia irmã mais velha de Anelise, vivia ausente de sua companhia. A


chamava de “boboca” e quase não tinha tempo para ela. Se fazia de superior e não
compartilhava os mesmos medos que a menina sentira na infância por conta da
história de sua família. Anelise conhece pouco da infância e adolescência de sua
irmã, mas relata que “Vânia era objeto de minha admiração constante: forte,
independente, altiva. Parecia com tia Dora” (LUFT, 1980, p. 33 e 34). Anelise
descreve um pouco de como sua irmã Vânia se comportava com ela:

Dava risada, fazia ar superior, me chamava de boba. Eu era a ‘boboca'.


Vânia tinha suas amigas, umas mocinhas quietas e sérias, com quem se
fechava no quarto, falando baixo, dando risadinhas, comentando coisas de
que nunca pude participar. Nem dormíamos no mesmo quarto como outras
irmãs. Eu ficava sozinha, com meus duendes e medos. (LUFT, 1980, p. 20)

Vânia simplesmente achava que a sina de sua família não podia atingi-la,
achava que era diferente das mulheres que eram predestinadas a maus histórias de
amor, mal sabia o que lhe reservava ao casar com o homem de seus sonhos.
39

Ao começar seus laços matrimoniais, a jovem foi vista como uma “sortuda”
que tinha arranjado o casamento perfeito e que nada poderia abalar a sua vida ao
lado de seu príncipe. “Por muito tempo acreditei que Vânia não tinha nenhum medo,
nenhum problema, que não gastava preocupação alguma com nossa família” (LUFT,
1980, p. 34), descreve Anelise. Ao encontrar-se com a irmã, a protagonista,
descobriu a farsa por detrás do seu casamento perfeito, que sonhara com uma vida
de união preenchida e satisfatória. “Vânia fora a única aparentemente predestinada
a uma vida normal. Corajosa, forte, independente. Merecia escapar”. (LUFT, 1980,
p. 72). Na verdade ela vivia uma vida de aparência com seu lindo marido. Anelise
descreve:
Tia Dora me ajudou muito, até Vânia me fez companhia, de repente achei
mesmo que ela tirara a máscara de superficialidade. A dor nos fazia irmãs.
Para me distrair dos meus dramas, punha-se a falar dos seus. Foi assim
que fiquei sabendo da promessa que o marido exigira antes de casar: nada
de filhos, ele não podia arriscar, com aquela família, a tia anã, a avó doida.
O casamento começara a desmoronar ali: ninguém se prende a vida toda
numa criatura desanimada e insatisfeita. Se o marido a amasse, não teria
exigido a promessa. (LUFT, 1980, p. 86).

Para ter uma vida feliz, prometera não ter filhos e isso lhe angustiava após
ver sua solidão quando seu cônjuge saia para uma vida de orgias com outras
mulheres e a deixava sozinha com sua amargura de não poder ter filhos. Triste vida
de Vânia.
Arquétipos femininos que retratam essa personagem Neumam (1955)
apud Fonsenca (2000) coloca que:
Neumann (1955) quando analisa o arquétipo feminino refere-se, dentro dos
aspectos de estudo da psicanálise, à imagem primordial ou arquétipo da
Grande Mãe como a uma "imagem interna, trabalhada no interior da psique
humana". A relação existente entre a construção e elaboração dessa
psique, sofre influência de uma historicidade e, como tal, opera
transformações, marca e define. Crê o mesmo autor, que a expressão
simbólica deste fenómeno psíquico fundamenta-se nas figuras das Grandes
Deusas, representadas nos mitos e criações artísticas do gênero.
(FONSECA, 2000, P. 226).

A historicidade da vida de Vânia influenciou deveras no seu casamento.


Definiu seu pensamento quanto ao fato de ter filhos ou não, apesar da grande paixão
que sentia pelo seu esposo, ela foi marcada definitivamente pela falta de um amor
materno. E isso lhe custara um complexo de negação de sua identidade materna.
Jung (2000) coloca isso como:
De todas as formas de complexo materno é na segunda metade da vida que
ela tem as possibilidades de ser bem-sucedida no casamento, mas isso só
40

depois de sair vencedora do inferno do apenas-feminino, do caos do útero


materno que (devido ao complexo negativo) é sua maior ameaça. Um
complexo só é realmente superado quando a vida o esgota até o fim. Aquilo
que afastamos de nós devido ao complexo, deveremos tragá-lo junto com a
borra, se quisermos desvencilhar-nos dele. (JUNG, 2000, p. 107).

Vânia tinha esse complexo negativo do materno. Negava-se a si mesmo


de ser mãe por amor ao seu homem e para manter a aparência de seu casamento
que já estava falido, antes mesmo de ser consumado. “Olhar para frente”, porém faz
com que o mundo se abra para ela pela primeira vez na clara luz da maturidade,
embelezada pelas cores e todos os maravilhosos encantos da juventude e, às vezes,
até da infância” (JUNG, 2001, p. 107). O que ainda lhe influenciava a viver era a
beleza e juventude que ainda tinha.

Personagem Anelise – narradora personagem

Anelise, vivera sua infância em meios a tragédias. Perdera sua melhor


amiga, com quem compartilhava seus medos, suas dores, seus segredos. Perdera
os pais na adolescência e fora criada pela tia Beatriz. “Os primeiros meses que
passei lá foram um tormento. Eu estava nervosa, perturbada com a morte súbita de
meus pais”. (LUFT, 1980, p. 52). Sua adolescência também fora um pouco
conturbada pois vivera aos cuidados das regras rígidas da tia e por vezes ela a
desafiava. Porém, com a chegada do seu primo Otávio essa convivência foi mais
suportável. Com seu primo descobrira sua primeira paixão de adolescente, tivera sua
primeira experiência de beijos e sexo e isso Anelise descreve assim:
Otávio era muito especial, eu não entendia bem por que, achava tudo nele
diferente, amava tudo, os olhos, a pele, o cheiro, a boca, o cabelo, as mãos
de pianista.
E o que nos uniu, breve e fulgurante, até hoje continua em mim, embora
mudado. Foi Otávio quem me deu o primeiro beijo na boca, me fez partilhar
de uma primeira, incompleta e assustada experiência de sexo, me ajudou a
enxergar outra v ida além dos paredões sombrios daquela casa. (LUFT,
1980, p. 51).

Viveu seus dias de gloria quando seu primo estava em sua companhia no
casarão, mas tão logo ele fora embora sua vida nostálgica voltara a ser como antes
e assim sua convivência com sua tia Beatriz voltou a ser entediante. “Quando fiz
dezoito anos, a convivência com tia Beata se tornou insuportável. Ela não podia mais
comigo, repetia a todo instante. Afinal, tia Dora concordou em ficar comigo, eu não
era mais a criançola precisando de controle” (LUFT, 1980, p. 57).
41

Ao ir morar com a tia Dora, Anelise, teve uma vida mais sociável, “a
Faculdade me impunha novos horários, eu precisava de mais liberdade” (LUFT,
1980, p. 59). Adaptou-se com uma espantosa rapidez, fez novas amizades e
namorados, estava a espera dessa vida por muito tempo.
Conviveu alguns anos com a tia Dora, mas logo conheceu Tiago seu futuro
marido. “Finalmente pertencia a alguém, e queria pertencer mais ainda, partilhar
tudo: casa, cama, pensamentos, corpo, recantos que até eu ainda estava por
descobrir”. (LUFT, 1980, p. 63). Ao se juntar em matrimonio, Anelise vivera
momentos de plena felicidade. “A felicidade dos primeiros tempos de casados me
fizera achar que o mal sumira como aquelas flores do campo, bolinhas de plumas de
seda, a gente sopra e somem no ar. Dente-de-leão” (LUFT, 1980, p. 80). Chegou até
a pensar que sua vida amorosa seria diferente da vida das mulheres de sua família,
até que resolveu que queria ter um fruto desse amor.
A história vinha de longe. Todo mundo queria ter filho, mas em mim isso foi
mais que um sentimento natural. Depois das tempestades da paixão,
comecei a sentir falta de uma criança junto de Tiago e de mim. E, sem notar
quase, também iniciei um jogo de esconde-esconde com meus antigos
medos. Como costumavam ser as crianças na nossa família? A avó, louca.
A tia, anã. Bila era uma criança da nossa família. (LUFT, 1980, p. 79).

A certeza de que queria ser mãe foi tomada por Anelise durante muito
tempo, e isso contribuiu para muitos acontecimentos em sua vida. Estava tão ansiosa
por realizar esse papel que começou a ser seu objetivo principal. Apesar de seu
cônjuge compartilhar do mesmo desejo, ela queria incessantemente. Porém, houve
a primeira decepção.
Foi aí que tive o meu primeiro aborto. Dor, repouso, hemorragia, pedaço de
carne vermelho, escura na mão do médico. Chorei muito, porque queria
estar na ala da maternidade do hospital — só que a criança deveria ter
esperado mais seis meses. (LUFT, 1980, p. 80).

Anelise não desanimou. Tão logo passou o período de repouso e de


espera para uma nova gravidez ela logo se dispôs a uma nova tentativa. E por ironia
do destino sem êxito. E durante algum tempo houve essas tentativas e todas sem
sucesso. Uma até teria se estendido até o sétimo mês, era a sua concepção mais
demorada. E estava feliz, pois achava que desta vez a gravidez iria vingar. Inútil sua
esperança. Sua vida se transformava em um deserto no qual sua única vontade de
viver era a esperança e segurança de uma gravidez que vigasse. Eis que os meses
se passaram e o casamento foi desabando aborto após aborto.
42

Não sobrava tempo para Tiago, nem calor. A paixão dos primeiros anos se
apagara, nos períodos de gravidez não podia fazer amor, se pudesse teria
medo demais de qualquer jeito: e se Tiago matasse a criança na minha
barriga?
Quando queria engravidar, podia amar à vontade, mas ficava hirta, seca,
implorando: por favor, meu Deus, este filho tem de ser perfeito, tem de
nascer, tem de dar certo.
Um patético fingimento de amor, Tiago se afastava depois, quieto e sombrio.
Estávamos apenas inaugurando uma nova morte, eu pensava, para que
alegria? (LUFT, 1980, p. 84).

Quando Anelise não mais pensava em filhos e simplesmente esquecera


essa ideia, eis que a vida lhe prega mais uma peça. A personagem não esperava
que uma gravidez acontecesse naquele momento, principalmente porque seu
casamento estava num estado defasado e sem amor. Porém resistiu, prosseguiu
com a gravidez e aguentou até o último minuto seguindo sempre as ordens médicas
para segurar a criança em seu ventre. E, por fim, deu certo.

Tiago e eu viajamos, depois recomecei a trabalhar, pedi novo setor, novas


colegas, tudo novo.
Era só a superfície, mas não complicava as coisas, no fundo o rio de águas
sujas deslizava, eu fingia nem notar. Só quanto Tiago dormia, ficava
escutando o rumor, o rumor.
Fazíamos amor uma e outra vez, mas sabíamos que não havia mais amor.
Tiago devia ter amantes, quem sabe uma amante que lhe desse o esplendor
que existira comigo outrora. Outrora. Nossos encontros agora eram tão
raros e sem graça, que as vezes eu tentava lembrar: quando foi a última
vez? E não lembrava.
E, quando já me acostumara a essa vida fácil, quando até já conseguia olhar
as crianças de minhas amigas sem nenhuma amargura, engravidei pela
quinta vez. (LUFT, 1980, p. 88).

Entretanto sua felicidade foi breve, sua maternidade tão desejada outrora
foi dissipada como um sopro de uma vela. Seu bebê não tivera nem tempo de
desfrutar da família perfeita que Anelise queria para ele; em um acidente na hora do
parto, nascera com uma paralisia cerebral, lhe deram apenas nove meses de vida.
“Agora eu tinha o filho tão desejado. Bonito e bonzinho, Tiago e eu tínhamos brincado
sobre a minha provável atrapalhação com um bebê quase aos quarenta” (LUFT,
1980, p. 93).
O que lhe parecia o começo de uma nova vida foi apenas o início do fim
de suas esperanças para com o seu casamento e sua família perfeita. Não se trancou
num sótão por que não havia nenhum no apartamento em que ela morava, seu sótão
era ela mesma, até pensou consigo que poderia ter feito como sua irmã Vânia que
prometera não ter filhos, mas sabia que não iria aceitar uma proposta dessa vinda
de seu amado marido, queria a todo custo a prova de como é ser mãe e a experiência
43

de todo esse processo até cegar nas vias de fato que é realmente ser mãe. “Não
haveria promessa alguma, eu queria aquela prova, precisava dela. A prova estava
estendida ao lado da minha cama” (LUFT, 1980, p. 94).
Anelise agrupava várias imagens dentro de si; quer fossem relacionadas
a “ganchos” e projeções, porém necessárias para a formação de sua identidade:
imagens provenientes do inconsciente pessoal, bem como imagens arquetípicas do
Feminino: Sua avó Catarina, sua mãe, suas tias e sua irmã. Todas tiveram sua
contribuição, enquanto família de mulheres (espécie de metáfora coletiva do
Feminino).
Personagem também predestinada, ouvia as histórias e contava histórias;
às vezes, para fugir delas, criava também o seu “sótão interior”, como o sótão da avó
Catarina, mais uma predestinada a ser como as mulheres de sua família, ou seja, a
vida amorosa e os casamentos malsucedidos marcaram para sempre a vida de todas
sem chance de escapatória e com Anelise não foi diferente.
Porém, a personagem precisou de tempo, uma semana como relata a
história, para fazer uma tomada de consciência, para isso ela fez projeções com as
demais mulheres de sua família, as suas parceiras e, ao encontrar-se com a
veranista ela precisou encarar e desenvolver um relacionamento com a natureza da
vida-morte -vida. “Quando temos esse tipo de relacionamento, não saímos mais por
aí à caça de fantasias, mas nos tornamos conhecedores das mortes necessárias e
nascimentos surpreendentes que criam o verdadeiro relacionamento” (Ibid., p. 171).
Não existia mais o medo da natureza da vida-morte-vida, em especial do
aspecto da morte. Em grande parte da cultura ocidental, o personagem original da
natureza da morte foi encoberto por vários dogmas e doutrinas até o ponto em que
se separou em definitivo de sua outra metade: a vida. Fomos ensinados
equivocadamente a aceitar a forma mutilada de um dos aspectos mais básicos e
profundos da natureza selvagem. Aprendemos que a morte é sempre acompanhada
de mais morte. No desfecho do diário de Anelise, a morte irrompe como se estivesse
sempre no processo de incubar uma nova vida.
44

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A obra As Parceiras faz uma análise do passado da narradora Anelise,


para buscar nas suas raízes, uma melhor compreensão da saga das mulheres de
sua família, mostrando histórias vividas por todas.
Considerando que as personagens do livro de Luft, tiveram uma forte
propensão a maus casamentos e relacionamentos amorosos, elas não deixaram de
ligarem-se sentimentalmente quando algo lhe roubavam a paz assim como
aconteceu com os abortos de Anelise que serviu para que ela e sua irmã ficassem
mais próximas.
Entretanto pode-se afirmar que embora não seja hereditário essa sina de
relacionamentos maus sucedidos, porém, é uma ligação intrínseca entre as mesmas
pois foram, experiências vivenciadas desde crianças quando ainda estavam em
companhia da avó Catarina.
Anelise passou a vida inteira temendo ser como as outras mulheres de
sua família, que pareciam aceitar aquelas vidas incompletas, o que a fez lutar de
todas as formas que pôde contra esse desfecho.
Dessa forma, essa mesma luta levou-a diretamente a esse final, assim
como todas as mulheres da sua família. Elas são parceiras na tristeza e na tragédia,
cada uma a seu modo.
45

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VARAZZE, Jacopo. Legenda áurea: vidas se santos; trad. de Hilário Franco Júnior.
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