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Teoria discursiva e seus reflexos no direito

segundo o pensamento de Habermas

Beclaute Oliveira Silva

Sumário
1. Introdução. 2. Da razão prática à razão
comunicativa. 3. Pressupostos para uma com-
preensão da razão comunicativa. 4. Aspectos
da validez no direito. 5. O direito e a moral. 6.
Reconstrução do conceito de direito. 7. Ordena-
mento jurídico. 8. Conclusão.

“Não é grande coisa temer a pena, mas grande


coisa é amar a Justiça. Quem ama a Justiça também
teme: teme bastante, não o fato de incorrer na pena,
mas o de perder a Justiça.” Santo Agostinho

1. Introdução
O presente estudo tem por objeto, como
epigrafado no título, uma análise da Teoria
discursiva e seus reflexos no direito, se-
gundo o pensamento de Jürgen Habermas.
Para tanto, efetivou-se pesquisa em algu-
mas obras capitais do referido jusfilósofo, a
saber: Direito e Democracia – entre Facticidade
e Validade. Vol. 1 e 2; Teoría de la Acción Co-
municativa. Vol. I; Consciência Moral e Agir
Comunicativo. Além disso, dada a comple-
xidade das categorias que o referido teórico
veicula, lançou-se mão de alguns de seus
Beclaute Oliveira Silva é Diretor de ­Secretaria
comentadores, como é o caso de Robert
da 2a Vara Federal em Alagoas. Doutorando
em Direito pela UFPE. Mestre em Direito pela
Alexy (2001), Juan Antonio Garcia Amado
UFAL. Especialista em Direito Processual pela (2003) e de Luiz Moreira (2004).
UFAL. Professor de Pós-graduação lato sensu No intuito de elucidar o referido tema,
no Curso de Direito do CESMAC e da ESAMC. partiu-se da identificação da categoria
Professor do Curso de Direito da Faculdade razão comunicativa e do motivo pelo qual
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essa nova formulação filosófica se faz neces- A renúncia ao normativismo decorreu
sária diante da mudança de paradigmas nas do fato de que a implosão da razão práti-
sociedades pós-tradicionais. Mais. Devido ca, em seu sentido original, pela filosofia
à inovação da referida teoria que, segundo do sujeito, impossibilitou a existência de
Habermas, não constitui uma mudança de fundamentação da normatividade do Es-
rótulo, efetivou-se, ainda que de forma su- tado a partir da filosofia, da teleologia da
cinta, uma análise acerca das categorias que história, da constituição do homem ou do
essa nova forma de pensar engendra. fundo causal de tradições bem-sucedidas
Ultimada essa verificação propedêutica, (HABERMAS, 1997, p. 19).
encaminhou-se para um esclarecimento Nesse contexto, Habermas (1997) pre-
acerca do conceito de validez que a teoria tende superar a ausência de fundamen-
do discurso veicula, qual seja: a vigência tação construindo um novo pressuposto
fáctica (facticidade) e a validez (legiti- denominado teoria do agir comunicativo.
mação). Estabelecidos esses pontos, foi Em vez da razão prática, a razão comunica-
possível discorrer sobre o papel do direito tiva. Adverte, entretanto, que “tal mudança
e da moral na construção e organização vai muito além de uma simples troca de
de uma sociedade estruturada por uma etiqueta” (HABERMAS, 1997, p. 19). Como
ordem justa. se dá a diferença entre razão prática e razão
Com base nesses pressupostos, foi pos- comunicativa?
sível também demarcar o que Habermas Até Hegel, a razão prática possuía por
compreende como o direito e qual o papel função primordial orientar o indivíduo
do ordenamento jurídico em uma comuni- em seu agir. Dessa forma, o direito natural
dade do discurso. de matriz racional funcionava como vetor
normativo que orientaria a única e correta
2. Da razão prática à ordem social.
razão comunicativa Com o fim desse viés, que se deu ironi-
camente com o triunfo do direito natural
O discurso filosófico da modernidade, racional ao se tornar categoria imanente
com raízes em René Descartes, reconstruiu – positiva – e não mais transcendente, fez-se
o conceito de razão prática1 como faculda- mister construir uma nova categoria apta
de subjetiva, retirando assim do conceito a fundar a conduta em sociedade. Essa
aristotélico a sua raiz cultural e política.2 No categoria é a razão comunicativa, que, por
contexto clássico, essa razão era dirigida sua vez, não está adstrita a um ato singular,
para a convivência na pólis. Com a subjeti- de um indivíduo historicamente determi-
vação, a razão prática foi transportada para nado ou de um macrosujeito sociopolítico,
a seara do indivíduo, ser privado, que pode o Estado. Ela necessita, para se realizar, da
atuar, entretanto, no mundo geral, na esfera mediação da linguagem. É a partir desse
pública. Em Hegel, há de certa forma um instrumento humano que as interações se
retorno a Aristóteles, quando ele constrói interligam, estruturando a forma de vida.
o conceito de “espírito objetivo”, uma vez Essa racionalidade está ligada pelo telos do
que a sociedade encontra sua unidade na entendimento.
vida política e na organização do Estado. Acrescenta Habermas (1997, p. 20)
Entretanto, a complexidade da socieda- que a razão comunicativa não é fonte de
de moderna obriga a separar os conceitos uma norma de agir, como a razão prática,
de sociedade e de Estado. As teorias mar- malgrado possua conteúdo normativo, na
xista e sistêmica, cada uma com seu enfo- medida em que quem age comunicativa-
que, renunciaram ao caráter normativo do mente é obrigado a apoiar-se em pressu-
Estado (HABERMAS, 1997, p. 18). postos pragmáticos de tipo contrafactual.

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Em outros termos, é obrigado a apreender endidos por diferentes sujeitos de forma
idealizações. Por exemplo: atribuir signi- distinta. Na representação temos objetos.
ficados idênticos a enunciados, levantar No pensamento estão estados de coisas e
uma pretensão de validade com relação fatos. Essas situações serão apreendidas
às assertivas e considerar os destinatários pelo pensamento. Logo depois, vaticina:
imputáveis, ou seja, autônomos e verazes fato é enunciado que reproduz pensamento
consigo mesmos e com os outros. Nesse verdadeiro, sendo que os pensamentos se
passo, quem age comunicativamente não articulam por proposições (HABERMAS,
se confronta com o “ter de fazer” de con- 1997, p. 28-29). Estas devem ser entendidas
teúdo prescritivo de uma regra de ação e, como sentenças a que podem ser atribuídas
sim, com o “ter de fazer” de uma coerção em si mesmas o valor verdade ou falsidade
transcendental fraca – derivado da validade (ARISTÓTELES, 2005, p. 84). E mais. “Real
deontológica de um mandamento moral, da é o que pode ser representado em propo-
validade axiológica de uma constelação de sições verdadeiras” (HABERMAS, 1997, p.
valores preferidos ou da eficácia empírica 32). A verdade, entretanto, não é vista como
de uma regra técnica. correspondência – adequatio intelectus, ade-
quatio et rei –3, mas consensual, ou seja, ela
3. Pressupostos para uma compreensão é para nós. Na visão de Peirce, a verdade é
da razão comunicativa aceitação racional a partir de uma preten-
são de validade criticável sob as condições
Para se compreender as categorias de- comunicacionais de um auditório.
senvolvidas por Habermas, é necessário Além disso, superou-se a dicotomia
lançar luzes sobre os pressupostos filosófi- realidade e idéia. As idéias passam a ser
cos que norteiam a sua construção. incorporadas na linguagem, em que a
A teoria discursiva se insere no que se facticidade dos signos se liga com a ideali-
denominou no século XX Giro Lingüístico dade da universalidade do significado e da
ou Reviravolta Lingüístico-pragmática, na validade em termos de verdade. A genera-
locução de Manfredo Araújo de Oliveira lidade semântica de significados obtém sua
(1996, p. 14). Antes, a linguagem era vista determinabilidade ideal na mediação de
como função apenas designativa do pensar, sinais e expressões que sobressaem, como
como defende Platão em sua obra Crátilo, tipos reconhecíveis da corrente de eventos
ou como símbolo do real, na perspectiva lingüísticos e processo de fala, seguindo
aristotélica (OLIVEIRA, 1996, p. 22-25). Na regras gramaticais (HABERMAS, 1997, p.
concepção em que se encontra Habermas, o 55-56).
giro lingüístico é “el elemento explicativo Percebe-se, desta feita, que o conceito de
último del orden social se va a hallar en el agir comunicativo leva em conta o entendi-
lenguaje, en la comunicación lingüística, mento lingüístico mediante a coordenação
y, concretamente, en los presupuestos da ação. Para tanto, faz-se mister que as
universales e inevitables de la misma” suposições contrafactuais dos autores que
(AMADO, 2003, p. 177). Nessa perspectiva, orientam seu agir por pretensões de vali-
a linguagem deixa de ser o medium entre o dade adquiram relevância imediata e assim
pensamento e o real. sejam aptas a construir e a manter ordens
A partir da contribuição de G. Frege, sociais: “pois estas se mantêm no modo de
J. Habermas estabelece a distinção entre reconhecimento de pretensões de validade
representação e pensamento. Esclarece que normativa” (HABERMAS, 1997, p. 35).
a representação é algo individual subjetivo O que demarca a ação comunicativa
historicamente determinado. O pensamen- ou a ação orientada para o entendimento
to transcende o indivíduo. Eles são apre- é a obtenção de um acordo entre os parti-

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cipantes da via comunicativa. Esse acordo dirigido ao mundo social, remeter-se-á
ou consenso é desenvolvido com base na ao argumento referente à legitimação, à
pretensão de validez dos atos enunciativos. justiça e aos valores; se a contradição for
Nesse caso, o entendimento decorre do re- endereçada ao mundo subjetivo, remeter-
conhecimento intersubjetivo da pretensão se-á ao argumento referente à reputação do
de validez veiculado pelo ato ilocucioná- emissor da fala.
rio4. É intersubjetivo, pois a comunicação Deve-se, entretanto, salientar que toda
se faz com a participação do outro, não se a discussão busca lastro em uma pré-com-
tratando de um solilóquio ou um monólo- preensão, conceito caro a Gadamer.
go, mas de um colóquio ou um diálogo. Há um discurso toda vez que se pro-
Essa comunicação é fundamental. Nas duzem argumentos a favor e contra deter-
palavras de Amado (2003, p. 177), “al co- minada pretensão de validez. Existe um
municarsen, los hombres hacen sociedad, intercâmbio de razões estruturadas pelas
interactúan, se coordinan; no puede ser de regras de comunicação. Essas regras são
otro modo mientras se sirvan del medio forjadas pela “teoria da argumentação”.
lingüístico”. Não se trata aqui de informações, mas de
Assim, comunicar é pretender o enten- razões e/ou rechaços que fundam a preten-
dimento, pôr-se de acordo em torno de são de validez. Nas palavras de Habermas,
algo. O entendimento, no contexto social, “una argumentación contiene razones que
funciona como mecanismo coordenador están conectadas de forma sistemática con
da ação. Sendo o entendimento obtido me- la pretensión de validez de la manifestación
diante o consenso racionalmente motivado, o emisión problematizadas” (HABERMAS,
tem-se que esse mecanismo possibilita a 1999, p. 37). Com relação à argumentação,
integração social. o mesmo ­Habermas a delimita como “tipo
O processo de busca do aludido acordo de habla en que los participantes temati-
se inicia com o ato de falar, que, por sua vez, zan las pretensiones de validez que se han
possui a pretensão de ser acolhido pelo au- vuelto dudosas y tratan de desempeñalas
ditório como correto. Em outras palavras, o de recusarlas por medio de argumentos”
gerar um acordo acerca de sua correção. (HABERMAS, 1999, p. 37).
Eis a pretensão de validez. Nela está con- Do que restou exposto, percebe-se que
tida uma oferta de entendimento acerca a preocupação de Habermas consiste em
do mundo objetivo, social ou subjetivo. O garantir, a partir do discurso, a pretensão
auditório pode acordar ou rechaçar. Mas, de validade, que no direito será a justiça
mesmo no rechaço, se busca, ao fim, o acor- ou retitude da produção normativa. Aqui
do acerca da comunicação. A comunicação a garantia para a justiça não está em seu
pressupõe o acatamento das pretensões de conteúdo, mas no seu procedimento.
validez dos discursos. Essa validade só será possível se houver
As pretensões de validez dirigem-se respeito às regras do discurso, que são pro-
ao mundo objetivo – aqui se terá uma pre- duzidas dentro da teoria da argumentação.
tensão de certeza; ao mundo social, que Para tanto, Habermas (1989, p. 110-112)
“é constitutivamente, realidade normada” cita Robert Alexy (2001, p. 112), que, por
(VILANOVA, 1997, p. 89) – possuindo aqui sua vez, se pautou no próprio Habermas.
uma pretensão de retidão, correção norma- Passa-se a transcrever as regras:
tiva, justiça; e ao mundo subjetivo – cuja “(1.1) A nenhum falante é lícito con-
pretensão de validade é a de veracidade. tradizer-se.
Com relação ao questionamento dirigido (1.2) Todo falante que aplicar um
ao mundo objetivo, há de se remeter ao predicado F a um objeto a tem que
discurso da experiência; se o rechaço for estar disposto a aplicar F a qualquer

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outro objeto que se assemelhe a a sob e a existência de um critério racional que
todos os aspectos relevantes. transcende as contingências da vida há
(1.3) Não é lícito aos diferentes fa- uma inevitável tensão. A conciliação des-
lantes usar a mesma expressão em ses extremos se dá pela ética no discurso.
sentidos diferentes. Esta se manifesta na medida em que o
(2.1) A todo falante só é lícito afirmar ser humano é forçado a fazer abstrações.
aquilo em que ele próprio acredita. Essas abstrações dirigem-se muitas vezes
(2.2.) Quem atacar um enunciado ou para o conteúdo específico da justiça dos
norma que não for objeto da discus- procedimentos.
são tem que indicar uma razão para Aqui ocorre o que Habermas (1997, p.
isso. 45) denominou tensão entre a facticidade e
(3.1) É lícito a todo sujeito capaz de a validez. A primeira é vista como o conjun-
falar e agir participar de Discursos. to de sanções exteriores que determinam o
(3.2) caráter obrigatório do direito, ou seja, seu
a. É lícito a qualquer um problemati- caráter coercitivo, no sentido kantiano. A
zar qualquer asserção. validez, por sua vez, consiste na “força
b. É lícito a qualquer um introduzir ligadora de convicções racionalmente
qualquer asserção ao Discurso. motivadas”.
c. É lícito a qualquer um manifestar A forma de solucionar essa tensão far-
suas atitudes, desejos e necessida- se-á como o recurso ao conceito de agir
des. comunicativo. Por meio dele, torna-se pos-
(3.3) Não é lícito impedir falante sível a integração social mediante a energia
algum, por uma coerção exercida aglutinadora da linguagem compartilhada
dentro ou fora do Discurso, de valer- intersubjetivamente, conferindo legitimida-
se de seus direitos estabelecidos em de ao direito posto.
(3.1) e (3.2)”. Desta feita, pode-se afirmar que a so-
A razão dessas regras consiste em pos- ciedade se apresenta como mundo da vida
sibilitar o consenso por meio do discurso estruturado simbolicamente e se reproduz
racionalmente motivado. O consenso, pelo agir comunicativo. O sistema de direi-
termo final de uma discussão de pretensão to provê as liberdades subjetivas de ação
de validez, não implica, porém, verdade ab- com a coação do direito objetivo, positivo.
soluta, incontestável, mas possível dentro
do mundo em um dado contexto histórico. 4. Aspectos da validez no direito
A única verdade perene é a do proceder
argumentativo. Seu conteúdo, não. Com a construção teórica de Thomas
Essa validez ganha contorno universal Hobbes (1997), as regras do direito priva-
quando os interlocutores, despidos dos do, apoiadas na liberdade do contrato e
fins egocêntricos, podem pôr-se de acordo na propriedade, passaram a servir como
com a verdade de um enunciado ou com a protótipo para o direito em geral. A fun-
justiça de uma norma. damentação do direito passa a ser tomada
A norma válida há de satisfazer as con- a partir da liberdade manifestada no pacto
dições de que todos os afetados possam fundamental.
livremente aceitar as conseqüências e os Nesse passo, Immanuel Kant (2002)
efeitos secundários que do cumprimento alega que, com base no direito natural
geral derivem para a satisfação do interesse subjetivo, cada pessoa tem o direito de
de cada um. reagir quando sua liberdade juridicamente
Entre a concreção do aparato normativo protegida for atingida. Com a assunção
produzido em um dado momento histórico do direito positivo sucedendo ao direito

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natural, o Estado monopolizou o uso da p. 52), apenas duas coisas: (a) a garantia
força, concedendo-se ao seu titular o di- da legalidade de um comportamento em
reito abstrato de acesso à proteção judicial geral, no sentido de respeito à norma; (b)
(HABERMAS, 1997, p. 48). a legitimidade da própria norma que tor-
Na dimensão de validade do direito, a na possível, a qualquer tempo, diante do
facticidade da imposição do direito pelo respeito à lei.
Estado se liga com a força a um processo de Saliente-se, ademais, que a mera vi-
normatização que tem a pretensão de ser ra- gência fática (ou validez positiva) não é
cional, uma vez que tem por fim garantir a suficiente para justificar a obediência à nor-
liberdade e fundar a legitimidade. Em Kant, ma. O direito positivo legitima um poder
a facticidade e a validade estabilizam-se político que pode modificar o direito, além
na relação interna fixada entre a liberdade de poder engendrar normas ilegítimas, sem
e a coerção (HABERMAS, 1997, p. 48-49). validez racional.
O direito está autorizado a usar a coerção, A legitimidade (validade) decorre do
mas esse uso só se justifica quando elimina resgate discursivo de uma pretensão de
os empecilhos à fruição da liberdade. Eis a validade normativa surgida num processo
validade do direito (HABERMAS, 1997, p. legislativo racional – justificada sob ponto
49). É possível assim vislumbrar legalidade de vista pragmático, ético e moral. A legi-
no mero cumprir o preceito legal. timidade prescinde de efetividade. Quanto
Uma lei pode ser atendida pela pos- mais ilegítima, maior o uso da força, inti-
sibilidade de coerção ou porque possui midação, repressão. No léxico pontiano,
pretensão de validade (concorda-se com há um aumento no quantum despótico
a justeza do preceito). No primeiro caso, (MIRANDA, 1983, p. 86 et seq.).
tem-se facticidade e, no segundo, validade, A retidão ou justiça de um preceito
no sentido habermasiano. Como assevera jurídico pode ser justificada por meio de
Kant (2002) acerca da legalidade, as normas argumentos, da mesma forma que se pode
do direito são de certa forma leis de coerção justificar uma assertiva empírica, malgrado
e leis da liberdade. as diferenças. A diferença é de conteúdo.
A validade do direito positivo (facti- Um argumento no mundo objetivo terá por
cidade) é determinada, dessa forma, pelo lastro argumentos pautados na experiência.
fato de que vale como direito o que obtém Um argumento dirigido ao mundo social
força de direito por meio de procedimen- terá como parâmetro a retidão ou justiça do
tos juridicamente válidos. Essa validade enunciado prescritivo, como já visto.
depende da validade social ou fática que A pretensão de justiça não pressupõe a
será determinada pelo grau de atendimento preexistência de padrão material de justiça.
da sociedade. Essa facticidade se apóia em Com isso, elimina-se a idéia kelseniana
ameaças de sanções definidas conforme o de que “a justiça é uma idéia irracional”
direito positivo que podem ser impostas ­(KELSEN, 1992, p. 20).
pelos tribunais. Trata-se de uma facticidade No caso, o que possibilita a existência de
artificial, pois é construída pelos homens normas morais e de normas jurídicas não
mediante o processo político. Ela distingue- é a justiça, mas a possibilidade de conflito,
se da denominada facticidade convencional, que no processo recebeu o nome de lide.
que se estabelece nas formas de vida con- O surgimento do conflito gera uma tensão
suetudinária e tradicional, que são pautadas que necessita se restabelecer mediante o
no consenso e na aceitação da tradição e do consenso no momento em que há a ruptu-
costume (HABERMAS, 1997, p. 50). ra, evitando assim o ocaso da convivência
A validade jurídica de uma norma organizada. O fracasso no entendimento e,
jurídica significa, em Habermas (1997, com ele, a integração social do mundo da

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vida fazem surgir a necessidade do direi- fundamentação pós-convencional re-
to. Desta feita, percebe-se que as normas presenta o abandono de certezas não
morais e jurídicas são normas de segunda problematizáveis, como as advindas
ordem. Só serão utilizadas quando não da metafísica e da força dos costumes
houver consenso entre os membros do e da tradição”.
discurso. Com isso, conclui-se que o justo significa
Saliente-se, de antemão, que a existência aquilo que é eticamente fundado com sus-
necessária da normatividade não implica tento em um procedimento racional. Esse
racionalidade ou, melhor dizendo, justifi- procedimento deverá obedecer às regras
cação racional, até porque uma lei sabida- fixadas pela teoria da argumentação.
mente ilegítima, por conta da facticidade, Assim, o preceito jurídico será univer-
pode ser aplicada. salmente válido se produzido conforme
Dar-se-á a validez da norma quando procedimento legal, sendo esses procedi-
esta puder alcançar a aceitação dos afetados mentos equivalentes à institucionalização
com participantes em um discurso prático. do procedimento discursivo racional
Ou seja, a possibilidade de aceitação geral proposto pela ética discursiva. O poder
da norma sob certas condições. legítimo respalda o interesse geral. O ile-
A idéia de aceitação geral remete ao gítimo, não.
conceito de vontade geral. Nesse pon-
to, Habermas defende que a validez do 5. O direito e a moral
dever-ser se manifesta na autoridade de
uma vontade geral compartilhada pelos No campo da fundamentação pós-me-
afetados que prescinde de toda qualidade tafísica, a regra jurídica e a regra moral são
imperativa, já que remete a um interesse pensadas de modo distinto do passado.
geral determinável discursivamente, inte- São dois tipos de normas de ação que se
ligível cognitivamente, além de visível a complementam.
partir da perspectiva dos partícipes. Essa Kant (2002) deriva a lei jurídica da lei
discussão só é possível após a quebra da moral. Para ele, o direito se dirige a três
tradição. Só assim se pode reconstruir ra- dimensões da moral: o arbítrio do destina-
cionalmente a convivência, uma vez que tário, a relação externa de uma pessoa para
em uma sociedade convencional, em que com outra e a autorização para a coerção. A
a legitimidade pressupõe a aceitação da partir dessa delimitação, a legislação moral
tradição, não é possível discutir os seus reflete-se na jurídica.
fundamentos. Não se pode pensar, hodiernamente,
Na sociedade pós-convencional, a em uma hierarquia entre as regras morais
fundamentação racional da validez das e jurídicas. Elas se complementam. Esse
normas encontra-se em seu aspecto proce- caráter complementar não implica neutrali-
dimental. A ética discursiva é formal. Não dade. Pelo contrário, o processo legislativo
possui orientação de conteúdo. Entretanto, permite que razões morais fluam para o
garante a imparcialidade da formação do direito, como é o exemplo de princípios
juízo. ­Submete-se assim aquilo que é posto como o da dignidade da pessoa humana, a
(positivado) ao tribunal da racionalidade. proibição de penas cruéis e desumanas etc.
Com isso, fica latente a consideração lan- (HABERMAS, 1997a, p. 313).
çada por Moreira (2004, p. 151), a seguir O direito não é reprodução da moral,
transcrita: numa visão platônica, mas categorias dis-
“A modernidade desliga-se da tintas movidas para o mesmo fim. Assim,
eticidade substancial no momento os direitos fundamentais catalogados nas
em que a passagem para o nível de Constituições não são cópias de direitos

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morais, nem a autonomia política cópia da a relação de complementaridade entre o
moral. Normas de ações gerais se ramificam direito e a moral. O direito torna coercitivos
em regras jurídicas e morais. os preceitos de conteúdo moral. A moral,
Tanto o direito quanto a moral se fun- no interior do discurso, garante legitimida-
dam na seguinte perspectiva: a ordenação de ao direito. O direito confere facticidade
das relações intersubjetivas de forma legí- à moral. A moral, nesse contexto, confere,
tima. Habermas (1997, p. 147) estabelece a de certa forma, validez ao direito.
diferença nestes termos: Com o fim da vinculação mediante a
“Normas morais regulam relações tradição, nada pode justificar a raciona-
interpessoais e conflitos entre pessoas lidade da obediência ao direito senão a
naturais, que se reconhecem reci- obediência ao próprio interesse. Mais uma
procamente como membros de uma vez, tem-se presente a dimensão da validez
comunidade concreta e, ao mesmo jurídica: facticidade da imposição estatal
tempo, como indivíduos insubstituí- das normas jurídicas (coação) e legitimi-
veis. Ao passo que normas jurídicas dade no procedimento racional de criação
regulam relações interpessoais e con- das normas.
flitos entre atores que se reconhecem O fim do vínculo com a tradição, nas
como membros de uma comunidade sociedades pós-convencionais, obriga o
abstrata, criada através de normas teórico do direito a justificá-lo. Na moder-
do direito”. nidade, o direito, mesmo no Estado social, é
Como já visto, a garantia última da formal, procedimental (HABERMAS, 1997,
manutenção da convivência social toda p. 242). Em seu ser formal, manifestam-se
vez que o vínculo racional não for capaz de as seguintes características: a positividade,
conduzir a conduta humana é o direito. a legalidade e o formalismo. Nas palavras
O direito encontra sua justificativa de J. Habermas (1999, p. 336):
moral na medida em que compensa a “Positividad. El derecho moderno
debilidade dos preceitos morais, pois, na rige como un derecho positivamente
sociedade moderna, a moral passa a ter o estatuido. No se forma por inter-
homem como seu juiz supremo. Vê-se isso pretación de tradiciones sagradas y
em Kant (2002, p. 51-52), quando deriva o reconocidas, sino que expresa más
imperativo categórico do homem. bien la voluntad de un legislador so-
As normas jurídicas serão racional- berano, que, haciendo uso del medio
mente válidas quando reconhecidas como de organización que es el derecho,
expressão da vontade geral. No entanto, regula convencionalmente situacio-
carrega em seu âmago o caráter coercitivo, nes sociales.
que é aparentemente contrário à liberdade. Legalidad. El derecho moderno no su-
Entretanto, deve ser posto para garanti- pone a las personas jurídicas ninguna
las e efetivá-las. A moral, que perdeu seu clase de motivación ética, fuera de
caráter coercitivo desde Kant, funciona una obediencia general al derecho;
na modernidade como um procedimento protege sus inclinaciones privadas
universal atuando na constituição interna dentro de límites sancionados. No
de um determinado jogo de argumentação se sancionan las malas intenciones,
(HABERMAS, 1997, p. 146). Nesse passo, sino las acciones que se desvían de las
salienta Moreira (2004, p. 151): “a moral normas (lo que supone las categorías
racional adstrita a uma forma de saber de responsabilidad y de culpa).
cultural não obtém obrigatoriedade insti- Formalismo. El derecho moderno defi-
tucional, salvo se apelar para a relação com ne ámbitos en que las personas priva-
o direito”. Vê-se, desta feita, mais uma vez das pueden ejercer legítimamente su

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arbitrio. Se presupone la libertad de pois estabelece os limites sob os quais o
arbitrio de las personas jurídicas en sujeito está autorizado a usar sua liberdade
un ámbito, éticamente neutralizado, ­(HABERMAS, 1997, p. 113). Esse conceito
de acciones que son privadas, pero de liberdade é encontrado em diversos ins-
que llevan anejas consecuencias ju- trumentos produzidos pela humanidade5.
rídicas. El comercio jurídico privado Essa forma de ver o direito subjetivo,
puede así quedar regulado negati- que em última análise irá constituir o po-
vamente por vía de restricción de las der político, pois o poder de participar da
facultades reconocidas en principio vontade legiferante é um direito subjetivo,
(y no por vía de regulación positiva vai ser analisada por Habermas a partir de
mediante deberes y mandatos mate- suas raízes fincadas na modernidade.
riales concretos). En este ámbito está Ao analisar Savigny, Habermas verifica
permitido todo aquello que no esté que o seu conceito de relação jurídica con-
jurídicamente prohibido”. siste em um vínculo que garante o poder
Em Habermas (1999), o direito e a a uma pessoa singular em uma região
moral estão unidos, ao contrário do que em que domina a sua vontade e domina
preconizam outros. Esse vínculo não se dá com o consentimento dos outros. Aqui o
ao modo jusnaturalista, mas por meio da conceito fundamental de relação jurídica
ética do discurso. é determinado pelo nexo entre a liberdade
Vale salientar que, no positivismo jurí- subjetiva e o reconhecimento intersubjeti-
dico, a validez é vista como pertinência. Na vo. Nesse diapasão, o direito subjetivo é
teoria discursiva, a norma, além de legal, considerado como categoria negativa que
será justa se fizer parte de um ordenamento protege os espaços de ação individual,
cujo procedimento de produção normativa além de fundamentar pretensões contra
reproduza os procedimentos que a ética intervenções ilícitas na liberdade, na vida
discursiva estabelece para a produção im- e na propriedade. A autonomia privada é
parcial de normas, ou seja, para a criação garantida pelo direito, principalmente por
de normas que expressem a vontade geral meio de fechar contratos, adquirir, herdar
e com ela recolham o interesse geral e uni- ou alienar propriedade.
versalizante. Percebe-se ainda, nos teóricos do século
A positivação consiste em um des- XIX, na esteira de Kant e Savigny, que a
locamento da fundamentação, mas não autonomia privada tinha por lastro a au-
sua eliminação. Será racional e justo o tonomia moral da pessoa. Esse lastro ruiu.
ordenamento que contenha preceitos uni- Coube a Windscheid a percepção de que o
versalizáveis. E serão universalizáveis se direito subjetivo é um poder de domina-
puderem ser aceitos racionalmente pelos ção estipulado pela ordem jurídica. Logo
destinatários. Percebe-se nesse ponto, de depois, Ihering afirmará que o proveito, e
certa forma, um retorno ao Iluminismo, não a vontade, é a substância do direito. Ele,
quanto à exigência de que a lei seja abs- o direito, passa a ser visto como um meio
trata, pois juridiciza situações de possível para satisfazer necessidades humanas. Na
ocorrência – e geral –, vinculando a todos sua célebre definição, direito é o interesse
sem distinção. juridicamente protegido.
Em Kelsen, as proposições do direito
6. Reconstrução do conceito de direito estabelecem liberdades de ações devidas.
Nele, o dever-ser, que é objetivo, não de-
A idéia de direito subjetivo é central na ontológico, é considerado como a validade
compreensão do fenômeno jurídico. Ele que o legislador político estabelece para
corresponde à liberdade de ação subjetiva, suas decisões acoplando normas penais

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ao direito legislado. O poder de sanção do tensão entre facticidade e validade é solvida
Estado eleva a vontade do legislador ao com a manutenção jurídica de um sistema
nível de vontade de Estado. Não é à-toa de egoísmo ordenado e preferido por todos.
que Kelsen, na Teoria Pura do Direito, irá Para universalizar sua teoria, Hobbes re-
estabelecer a norma que prescreve a sanção corre ao artifício do contrato, visto como “a
como norma autônoma e a que prescreve a transferência mútua de direitos” (HOBBES,
conduta devida como não-autônoma (KEL- 1997, p. 115). Um contrato de dominação
SEN, 1995, p. 60-61). Mais. A distinção entre constituído por todos em favor de um – o
direito e moral consiste basicamente no fato Soberano.
de que o direito, por meio do instrumento Alguns problemas surgem na concep-
da sanção, é coercível. Além disso, excluiu ção de Hobbes. Primeiro, os pactuantes em
do direito o conceito de pessoa natural, pois estado de beligerância teriam de compreen-
esta é vista como um feixe de normas. der o sentido geral de uma relação pautada
Após a Segunda Guerra Mundial, há na reciprocidade. Mais. Para utilizar-se do
uma tentativa de retorno ao pensamento de contrato, eles teriam de possuir uma mu-
Savigny, no que concerne às liberdades de dança de perspectiva entre opositores. Em
ação. Este, entretanto, será complementado segundo lugar, as partes no contrato teriam
pelos denominados direitos sociais. Coube de poder assumir um distanciamento de
a Raiser o resgate do caráter de cooperação suas liberdades naturais, adotando uma
intersubjetiva da concepção de Savigny perspectiva social que não existiria no
­(HABERMAS, 1997, p. 120). Aqui não se vê estado de natureza (HABERMAS, 1997, p.
o indivíduo atomizado, mas como sujeitos 124-125). Além disso, apesar de pretender
que se reconhecem mutuamente em seus um Estado destituído da moral, reconhece
direitos e deveres como membros livres e o preceito moral, tido por ele como lei de
iguais da sociedade. todos os homens, “quod tibi fieri non vis,
Percebe-se assim que, no desenvolver da alteris ne feceris”6 (HOBBES, 1997, p. 114).
modernidade, o direito subjetivo passou de Acrescenta ainda que Kant, criticando
categoria com fundamentação moral para Hobbes, afirma que este não diferenciou
categoria com fundamentação no direito um contrato de socialização de um contra-
positivo, cuja fonte de legitimação encontra- to privado. O primeiro tem um fim em si
se no processo democrático de legiferação, mesmo ao estabelecer o direito de todos de
que tem por base a soberania popular. viver sob leis coercitivas públicas mediante
Afirma Habermas que Kant não deixa o que é assegurado a cada um, o que é seu e
clara a relação entre moral, direito e demo- a garantia contra a usurpação por parte dos
cracia, muito embora, à sua maneira, eles demais. Os que formam um contrato social
exprimam a mesma idéia: a autolegislação. não devem esperar apenas enfoque egocên-
Essa foi, inclusive, a tentativa de rechaçar trico. O segundo é estabelecido como meio
a pretensão de Hobbes de justificar um para atingir uma finalidade (HABERMAS,
sistema burguês destituído de argumentos 1997, p. 126).
morais. Entretanto, Habermas adverte que Além disso, Kant vaticina que o direito
­Hobbes não foi apologeta do absolutismo, consiste na limitação da liberdade de cada
mas do Estado constitucional burguês. O um à condição de sua concordância com a
soberano, em Hobbes, deve garantir, por liberdade dos demais, na medida em que
meio de leis gerais e de sua atuação, a paz esta é possível conforme uma lei geral.
externa e interna, permitindo aos cidadãos Nesse aspecto, o contrato institucionaliza o
que gozem com tranqüilidade de sua fortu- direito natural a iguais liberdades de ação
na adquirida conforme o respectivo esforço subjetivas (direito humano fundamental
­(HABERMAS, 1997, p. 123). Nesse caso, a em Kant) (HABERMAS, 1997, p. 126).

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Os direitos do homem fundados na da soberania do povo, nem subordinar
autonomia moral só podem adquirir uma a sua autonomia política. Qualquer dos
figura positiva mediante a autonomia po- caminhos levará fatalmente à quebra na
lítica dos cidadãos. Aqui há uma mediação legitimidade.
entre a moral e a democracia na positivação A substância dos direitos humanos
(HABERMAS, 1997, p. 133). insere-se nas condições formais para a
Argumentos em prol da legitimidade do institucionalização jurídica desse tipo de
direito devem ter vínculos com a justiça e formação discursiva da opinião e da von-
a solidariedade universal, além dos prin- tade, na qual a soberania popular assume
cípios éticos da conduta auto-responsável forma jurídica.
projetada conscientemente (HABERMAS, A idéia de lei abstrata e geral explicita a
1997, p. 133). idéia de igual tratamento. Essa construção
Com isso, surge a fundamentação do esclarece, segundo Habermas, por que o
direito moderno pautado nos direitos hu- direito se ajusta ao sistema econômico.
manos e na soberania popular. O primeiro As referidas leis retiram a sua legitimi-
como autodeterminação moral e o segundo dade do processo legislativo, que se apóia
como auto-realização ética. Esses valores na soberania popular. Há, entretanto,
encontram-se de certa forma contrapostos uma tensão entre o público e o privado,
e animam o debate jurídico contemporâ- bem como entre a soberania popular e os
neo, colocando, de um lado, os adeptos direitos humanos. Essa tensão pode ser
das regras contramajoritárias de proteção solucionada segundo a teoria do discurso
das minorias (constitucionalistas), que racional. Este vem a ser a “tentativa de
Habermas chamou de liberais, e, do outro, entendimento sobre pretensões de vali-
os defensores da soberania do popular dade problemáticas, na medida em que se
(princípio democrático), que Habermas realiza sob condições da comunicação que
chamou de republicanos (HABERMAS, permitem o movimento livre de temas e
1997, p. 135-136). contribuições, informações e argumentos
Tanto Rousseau como Kant tentaram no interior de um espaço público constitu-
conciliar essa tensão interpenetrando os ído através de obrigações ilocucionárias”
dois conceitos. Tentativa não bem-suce- (HABERMAS, 1997, p. 142).
dida. No primeiro deu-se ênfase a um
princípio republicano (soberania popular) 7. Ordenamento jurídico
e no segundo, ao princípio liberal (direitos
humanos). Em Kant, a soberania é delimi- A partir do ponto de vista de uma situa-
tada previamente pelos direitos humanos ção comunicativa, “o ordenamento jurídico
fundados moralmente. Rousseau, por sua pode ser visto como sistema de comunica-
vez, introduz a posteriori um vínculo entre ção, como mecanismo de intercâmbio de
a soberania e os direitos humanos. Estes mensagens mais imperativas do que infor-
serão materializados por meio de leis so- mativas” (MÜLLER, 1995, p. 38-39).
beranas abstratas e gerais que garantem Com relação ao direito, Habermas
a todos as mesmas liberdades subjetivas. (1997, p. 110-111) lançou a seguinte con-
Entretanto, não é suficiente a forma lógico- sideração:
semântica das leis gerais e abstratas para “Por ‘direito’ eu entendo o mo-
garantir a sua legitimidade (HABERMAS, derno direito normatizado que se
1997, p. 135-137). apresenta como a pretensão à funda-
Não se pode, ademais, reduzir o sistema mentação sistemática, à interpretação
dos direitos a uma interpretação moral dos obrigatória e à imposição. O direito
direitos, nem a uma interpretação ética não representa apenas uma forma

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do saber cultural, como a moral, de validade é um momento da facticidade
pois forma, simultaneamente, um social.
componente importante do sistema Não há indiferença diante das preten-
de instituições sociais. O direito é um sões de validade. Ou se apóia ou se rechaça.
sistema de saber e ao mesmo tempo Essa tensão ideal surge da realidade social
um sistema de ação. Ele tanto pode e remonta ao fato de que a aceitação de
ser entendido como um texto de pro- pretensões de validade, que constitui fatos
posição e de interpretação normativa, sociais e os perpetua, repousa sobre a acei-
ou como uma instituição, ou seja, tabilidade de razões que dependem de um
como um complexo de reguladores contexto e estão, por isso, sempre expostas
de ação”. ao risco de serem desvalorizadas mediante
Na análise do ordenamento jurídico, argumentos melhores e processos de apren-
deve-se ter em conta que este goza de maior dizagem que transformam a situação.
legitimidade do que as leis específicas. Com O direito está ligado a três forças de
isso, deflui que a legitimidade do ordena- integração social. São elas: a autodetermi-
mento não resulta da legitimidade de suas nação, que exige dos cidadãos o exercício
normas, mas o contrário: a legitimidade comum de sua liberdade comunicativa; a
das normas decorre da legitimidade do instituição de direito privado e público,
ordenamento, ou seja, quando esta reveste que possibilita o surgimento de mercados
certos caracteres. e a organização de um poder estatal; e as
São condições para validade jurídica de operações do sistema administrativo e
um sistema: possuir eficácia na sociedade, econômico, que se configuram a partir do
ser justificado moralmente. Quanto às nor- mundo da vida.
mas particulares: legalização conforme a O desencontro entre o idealismo do
Constituição; um mínimo de eficácia social; direito constitucional e o materialismo de
mínimo de justificativa ética (ou capacidade uma ordem jurídica, especialmente de um
de justificativa). direito econômico, que simplesmente refle-
A ordem jurídica deve pautar-se em te a distribuição desigual do poder social,
leis legítimas para que garanta liberdades encontra o seu eco nas diversas abordagens
idênticas aos partícipes da comunidade. filosóficas e empíricas do direito.
As regras morais, a priori, preenchem Para se começar a constatar a legitimi-
esse requisito, mas a jurídica necessita do dade de um ordenamento, deve-se verificar
legislador político – aqui se encontra o lu- se as regras procedimentais estão fixadas
gar da integração racional. Para tanto, os na Constituição. A Constituição que não
partícipes não entram no processo como as contiver carece de validez racional, de
sujeitos individuais, mas como cidadãos legitimidade. Essa falta contaminará todo
que estarão orientados pelo entendimento o ordenamento.
que decorre de uma prática intersubjetiva. O direito é mais válido (sentido haber-
Aqui há um retorno a Rousseau e a Kant, masiano) quanto mais ele institucionaliza
pois a pretensão de legitimidade de uma os procedimentos decisórios do discurso
ordem jurídica construída com direitos moral.
subjetivos só pode ser resgatada pela A separação entre direito e moral se dá
força socialmente integradora da vontade nas normas particulares, mas não em nível
geral que é produzida por cidadãos livres de ordenamento, que requer o mencionado
e iguais. A conexão entre a facticidade e a fundamento moral, sua congruência com
validade é que funda a validade social. os postulados procedimentais da ética dis-
A tensão lingüística desencadeada no cursiva. Deve-se salientar, ademais, que a
agir comunicativo por meio de pretensões moral penetra o procedimento de criação

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do direito positivo, mas não o seu conteúdo, quanto está sendo efetivado. Acrescenta
condicionando, pelo procedimento, sua ainda que a Constituição é um projeto
legitimidade. inacabado. Por essa razão, defende a ne-
É condição para o procedimento racio- cessidade de os sistemas jurídicos tratarem
nal a existência de um catálogo de direitos com certa parcimônia a desobediência
humanos e a soberania popular. O sistema civil, sem legalizá-la, pois ela pode ser o
assim deve contemplar os direitos funda- sinal de que a ordem jurídica perdeu a sua
mentais que os sujeitos devem acatar mu- dimensão ética.
tuamente. Na dicção de Habermas (1999, Os direitos fundamentais vislumbrados
p. 338-339): por Habermas (1997, p. 159-160) são os
“El catálogo de derechos funda- que têm por função realizar, na comuni-
mentales que contienen las constitu- dade, o princípio discursivo, base para o
ciones burguesas cuando están fijadas procedimento democrático e fundamento
por escrito, junto con el principio de da legitimidade das normas resultantes.
la soberanía popular, el cual vincula São eles:
la facultad de legislar a una com- “1 – Direitos fundamentais que resul-
prensión democrática de la toma de tam da configuração politicamente
decisiones colectivas, es expresión de autônoma do direito à maior medida
esa justificación que ahora se torna possível de iguais liberdades subjetivas
estructuralmente necesaria”. da ação.
O princípio democrático decorre da Esses direitos exigem como correlatos
interligação entre o princípio do discurso necessários:
e a forma jurídica (HABERMAS, 1997, p. 2 – Direitos fundamentais que resul-
158). Aqui está a gênese lógica dos direitos. Eis tam da configuração politicamente
o itinerário: aplicação do princípio do dis- autônoma do status de um membro
curso para o direito a liberdades subjetivas numa associação voluntária de par-
de ação em geral, constitutiva para forma ceiros do direito.
jurídica enquanto tal; institucionalização 3 – Direitos fundamentais que resul-
jurídica de condições para um exercício tam imediatamente da possibilidade de
discursivo da autonomia política (pode postulação judicial de direitos e da con-
equiparar-se à autonomia privada) com a figuração politicamente autônoma da
forma jurídica. proteção jurídica individual.
Sob esses pressupostos e com os con- 4 – Direitos fundamentais à partici-
troles processuais adequados, a chave do pação, em igualdade de chances, em
assunto pode sintetizar-se no respeito ao processos de formação da opinião
procedimento democrático, pois na sobe- e da vontade, nos quais os civis
rania popular há a garantia da participa- exercitam sua autonomia política e
ção de todos os cidadãos na comunidade através dos quais eles criam direito
do discurso na criação normativa. Não legítimo.
existe um direito racionalmente válido 5 – Direitos fundamentais às condi-
sem democracia. Entretanto, nem sempre ções de vida garantidas social, técnica
a racionalidade procedimental garante a e ecologicamente, na medida em que
racionalidade dos resultados. Para isso, faz- isso for necessário para um aproveita-
se mister o respeito a direitos fundamentais mento, em igualdade de chances, dos
que possibilitem a ética discursiva. direitos elencados de (1) a (4)”.
Além disso, defende Habermas que Sem eles não é possível a legitimidade
nenhum sistema jurídico pode alegar ser do processo democrático, que fatalmente
o mais racional, até porque o direito é en- desembocaria, na precisa visão de Aristó-

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teles, na demagogia. A democracia também ral racional, chancelou-se o fim das ordens
não pode ser vista como um princípio transcendentais, já que todas as aspirações
moral, já que este opera em um nível de or- jusnaturalistas de então se encontravam,
ganização interna de um determinado jogo graças à revolução burguesa, garantidas
de argumentação. O princípio democrático, em um texto escrito, positivo.
por sua vez, refere-se ao nível externo de Essa positivação, surgida para garantir
participação simétrica numa formação as liberdades, passou a ser um empecilho
discursiva da opinião e da vontade, em no momento em que ordens totalitárias,
formas comunicacionais garantidas pelo pautadas na positivação, fizeram da lei
direito. Há, claro, uma diferença de níveis um instrumento de supressão da hu-
de referência. O princípio moral destina-se manidade ao tolher ou até eliminar as
a todas as regras de ação justificáveis com liberdades.
argumento moral, enquanto o princípio Tudo isso relançou a questão da legi-
democrático é formatado conforme as re- timação do direito posto e da sua relação
gras de direito. com a moral.
Vale frisar, ademais, que o princípio de- Entretanto, os paradigmas pretéritos
mocrático só se realiza plenamente com os não servem mais para explicar a atual
direitos fundamentais. Não há como sepa- conjuntura. Para tanto, novos instrumentos
rá-los, sob pena de constituir-se um sistema tiveram de ser construídos no intuito de
jurídico destituído de legitimidade. buscar a legitimação perdida.
Com base nisso, percebe-se que Ha- Nesse passo, surge a teoria discursiva
bermas fornece um procedimento apto a como uma forma de explicar, dentro dessa
verificar em dado contexto se um ordena- nova ordem, a possibilidade de legitimação
mento jurídico positivo, que é facticidade, do direito positivo, reatando seu vínculo
responde ao crivo da legitimidade. Essa com a moral racional.
análise só é possível dentro da teoria do Não se trata de uma volta a critérios
discurso em que todos os fundamentos metafísicos ou transcendentais, mas objeti-
possam ser revistos. vos, uma vez que a teoria do discurso toma
a linguagem como meio de organização
8. Conclusão da realidade social por meio da comuni-
dade discursiva. Esse discurso, segundo
A necessidade de fundamentação da Habermas,­ deve desenvolver-se de acordo
ordem que organiza a vida em sociedade com deveres éticos arquitetados pela teoria
sempre foi motivo de preocupação da hu- da argumentação, que garante consensos
manidade, desde que esta se envolveu no racionalmente motivados.
processo civilizatório. A verdade, sob esse pressuposto, é vista
Essa fundamentação tomou por lastro como consensual e não como correspon-
diversas matizes, variando de acordo com dência. Com isso, evita-se o dogmatismo
o nível de desenvolvimento de uma dada e se possibilita, dentro do discurso, que
comunidade. Pode ser esse critério a exis- uma assertiva tida como verdadeira possa
tência de uma ordem divina; uma ordem ser revista sempre que se objetarem racio-
natural transcendental pautada na tradição, nalmente argumentos que lhe neguem a
na sociabilidade ou na razão. pretensão de verdade antes acatada. Esse
A modernidade, entretanto, rompeu procedimento possibilita a adequação dos
com esse parâmetro no momento em que a preceitos às especificidades históricas de
racionalização do mundo social tornou-se, uma determinada comunidade sem perder
em seu desenvolvimento, objetivada pela o viés da racionalidade, conceito caro às
positivação. Com o triunfo do direito natu- sociedades pós-tradicionais.

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A garantia da legitimidade encontra-se Referências
na observância do princípio democrático
ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica. Tra-
que, para realizar-se plenamente, neces- dução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo:
sita do pré-requisito denominado por Landy, 2001.
Habermas­ direitos fundamentais. Estes AMADO, Juan Antonio Garcia. Ensayos de filosofia
serão aqueles que possibilitam a participa- jurídica. Bogotá: Temis, 2003.
ção do cidadão no processo democrático de
ARISTÓTELES. Órganon. Tradução de Edson Bini. São
forma efetiva e apto a aceitar ou rechaçar Paulo: Edipro, 2005.
pretensões de verdade.
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre factici-
Vê-se assim que a teoria de Habermas é
dade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneich-
procedimental, por não propor conteúdos ler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. 1 v.
específicos para um dado sistema jurídico,
______ . Direito e democracia: entre facticidade e vali-
além daqueles que possibilitem os discur-
dade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de
sos racionalmente motivados. Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997a. 2 v.
Nesse arcabouço garante-se, além do
______ . Teoría de la acción comunicativa. Tradução de M.
resgate da moral, a efetivação do direito
Jiménez Redondo. 3. ed. Madrid: Taurus, 1999. 1 v.
positivo conforme critérios racionais.
______ . Consciência moral e agir comunicativo. Tradu-
ção de Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1989.
Notas HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de
um estado eclesiástico e civil. Tradução de João Paulo
1
Desde Aristóteles, razão prática vem a ser aquela
Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo:
orientada para a ação, a que determina os atos da
Nova Cultura, 1997. (Os pensadores).
vontade.
2
Em Aristóteles (2005) o homem é naturalmente KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos
político. Ele pertence a um gênero animal que não costumes e outros escritos. Tradução de Leopoldo
consegue viver senão com o outro, em sociedade. Para Holzbach.­ São Paulo: M. Claret, 2002.
ilustrar, pertencem a esse gênero: o cupim, a formiga,
as abelhas etc. KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado.
3
“Adequação entre o que se afirma da coisa e o Tradução de Luís Carlos Borges. 2. ed. São Paulo: M.
que a coisa realmente é”. Fontes, 1992.
4
Ilocucionária é a qualidade de quem age para ______ . Teoria pura do direito. Tradução de João
consolidar a sua fala, tentando influenciar o ouvinte Baptista­ Machado. 4. ed. São Paulo: 1995.
ou receptor.
5
A título de exemplo, Habermas (1997, p. 113- MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Introdu-
114) enuncia: “no artigo 4 da Declaração dos Direitos ção à política científica. 2. ed. Rio de Janeiro, 1983.
do Homem e do Cidadão, de 1879, podemos ler o MOREIRA, Luiz. Fundamentação do direito em ­Habermas.
seguinte: a liberdade consiste em poder fazer tudo o 3. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004.
que não prejudica a um outro. O exercício dos direitos
naturais de um homem só tem como limites os que MÜLLER, Friedrich. Direito, linguagem e violência:
asseguram aos outros membros da sociedade o gozo elementos de uma teoria constitucional. Tradução de
de iguais direitos. Esses limites só podem ser estabe- Peter Naumann. Porto Alegre: S. A. Frabris, 1995.
lecidos através de leis. Kant apóia-se neste artigo, ao
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüís-
formular o princípio geral do direito segundo o qual
tico-pragmática na filosofia contemporânea. São Paulo:
toda ação é eqüitativa, quando sua máxima permite
Loyola, 1996.
uma convivência entre a liberdade de arbítrio de cada
um e a liberdade de todos, conforme uma lei geral. O VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema
primeiro princípio da justiça, de Rawls, ainda segue do direito positivo. São Paulo: M. Limonad, 1997.
a máxima: todos devem ter o mesmo direito ao sis-
tema mais abrangente possível de iguais liberdades
fundamentais”.
6
“Não faças a outrem o que não queres que te
façam”.

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