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o colocar a relação de volta em seu fundamento ontológico, e portanto implica em retornar Deus, desta o

teólogo e filósofo.

Entrevista de Márcia Junges e Gabriel Ferreira, do Instituto Humanitas Unisinos.

“O tornar-se cristão não é um tema entre outros na obra


de Kierkegaard, mas o núcleo de seu pensamento, o
fio vermelho, por assim dizer, que atravessa toda a sua
obra”, pondera o filósofo Jonas Roos na entrevista que
concedeu por e-mail à IHU On-Line.

Nesse pensador, a fé “é entendida como um processo


que envolve dois movimentos complementares, o de
resignação, o abandono da realidade finita e temporal,
e o de retomada da finitude e temporalidade. A fé só se
realiza na conjunção dos dois movimentos, de modo
que não é entendida como negação do finito e
temporal, mas sua ressignificação”.

Contudo, questiona Roos, como é possível “chegar a


uma construção de sentido que tenha um valor eterno
para o indivíduo, mas que esteja fundamentada em
relatos históricos como são, por exemplo, os
evangelhos?”

E acrescenta: “O paradoxo do cristianismo é justamente


o de que a verdade eterna irrompe na história e na
finitude. Neste entendimento a verdade não é um
conceito, mas uma pessoa, uma vida; a verdade cria corpo, é encarnação. Este é o sentido de Jesus
Cristo, a rigor o único paradoxo do Cristianismo”.

Jonas Roos é graduado em Filosofia pela Unisinos, mestre e doutor em Teologia pelo Instituto
Ecumênico de Pós-Graduação em Teologia com a tese Tornar-se cristão: o paradoxo absoluto e a
existência sob juízo e graça em Soren Kierkegaard, com pós-doutorado em Filosofia pela Unisinos. É
professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade
Federal de Juiz de Fora – UFJF e autor de Razão e fé no pensamento de Soren Kierkegaard: o
paradoxo e suas relações (São Leopoldo: Editora Sinodal; Escola Superior de Teologia, 2006).

IHU On-Line – Quais são as relações e o paradoxo existentes entre fé e razão no


pensamento de Kierkegaard?

Jonas Roos – Kierkegaard tem entendimentos muito próprios tanto do que seja fé quanto do que seja
razão. Apenas a partir do esclarecimento desses conceitos pode-se compreender tanto como ele articula
a relação entre razão e fé quanto o papel específico que o conceito de paradoxo desempenha nesta
relação.

Fé é entendida como um processo que envolve dois movimentos complementares, o de resignação, o


abandono da realidade finita e temporal, e o de retomada da finitude e temporalidade. A fé só se realiza
na conjunção dos dois movimentos, de modo que não é entendida como negação do finito e temporal,
mas sua ressignificação. Este entendimento de fé, contudo, não é desenvolvido por Kierkegaard à moda
de um tratado, mas personificado, por exemplo, na figura de Abraão.

Um bom desenvolvimento do conceito encontra-se, então, em Temor e tremor, do pseudônimo


kierkegaardiano Johannes de Silentio, na análise do difícil texto em que Abraão recebe a ordem de
sacrificar o próprio filho (Gênesis, cap. 22). Ponto-chave para a análise é que Abraão, quando, depois de
três dias de viagem, avista o monte do sacrifício, afirma a seus servos: esperai aqui, com o jumento; eu e
o rapaz iremos até lá e, havendo adorado, voltaremos para junto de vós. Este plural, “voltaremos”, é
decisivo na narrativa, pois indica que Abraão tinha esperança de retornar com Isaac.

Trata-se aqui da esperança que se articula não na certeza objetiva, mas na certeza de uma aposta
existencial. Abraão, portanto, personifica o duplo movimento da fé uma vez que abandona o próprio filho
(resignação), se dispõe a sacrificá-lo, e conserva a esperança de retornar com o filho e viver o seu amor
para com ele não em outra vida, mas na temporalidade e finitude (retomada). Vale notar que o autor não
personifica a fé na figura de alguém que está lendo, refletindo ou meditando, mas em alguém que se põe
a caminho. É processo.

Descontinuidade da verdade

No que diz respeito à razão e seu conceito, normalmente se entenderia que uma ênfase na fé implicaria
em uma redução de ênfase com relação à razão. Não é exatamente este o caso de Kierkegaard. Ele é um
autor muito lógico e até mesmo especulativo, a seu modo. Entende, contudo, que a razão, quando é
levada a seu ponto mais extremo, não chega a uma explicação objetiva do todo da realidade, mas à
consciência de seu limite.

E esta não é apenas uma questão epistemológica, embora também o seja, mas é fundamentalmente uma
questão existencial. No seu entender o conhecimento objetivo é insuficiente para as questões cruciais da
existência. Entende-se mal Kierkegaard quando se pensa que ele é crítico do pensamento objetivo; ele é
crítico daquilo que entende como um mau uso ou abuso da objetividade.

Com relação à relação entre razão e fé, o autor percebe – o que não é originalidade sua – que o
cristianismo, assim como outras religiões, repousa sobre saberes históricos, mas quer fornecer certezas
que vão para além do histórico. O problema é que certezas históricas são contingentes, ao passo que as
não históricas são análogas às verdades lógicas e estão para além de qualquer contingência.

Como conseguir o segundo tipo de verdades a partir das primeiras? Como chegar ao não contingente a
partir do contingente? Ou, mais concretamente: como chegar a uma construção de sentido que tenha um
valor eterno para o indivíduo, mas que esteja fundamentada em relatos históricos como são, por exemplo,
os evangelhos? Note-se que a descontinuidade entre esses dois tipos de verdade não é uma
descontinuidade de grau ou quantidade, mas uma descontinuidade qualitativa, uma descontinuidade no
nível do ser.

O problema da relação entre razão e fé é, em grande medida, o problema da superação dessa


descontinuidade que atinge o cerne do cristianismo. Kierkegaard entende que não é possível superar a
descontinuidade a partir de um aumento de quantidade de conhecimento das verdades do primeiro tipo.
Para questões existenciais, não é válido o princípio dialético de que um aumento na quantidade gera uma
nova qualidade.

O paradoxo como paradigma

O paradoxo do cristianismo é justamente o de que a verdade eterna irrompe na história e na finitude.


Neste entendimento a verdade não é um conceito, mas uma pessoa, uma vida; a verdade cria corpo, é
encarnação. Este é o sentido de Jesus Cristo, a rigor o único paradoxo do cristianismo. Isso, contudo, não
pode ser explicado filosoficamente. A relação para com o paradoxo não pode se fundamentar em
conhecimento objetivo, mas depende de uma atitude existencial, que é, grosso modo, o
que Kierkegaard entende por fé.

A razão encontra seu limite num único ponto, o paradoxo. A fé é entendida como modo de vida que
compreende que a única explicação verdadeira para o que é a verdade é tornar-se a verdade. O
paradigma para isso é o paradoxo. Esses são pontos fundamentais do entendimento que Kierkegaard tem
de cristianismo. Vistos com atenção, contudo, são pontos fundamentais de sua explicação do que seja a
existência. Só se entende o que seja religião ao se olhar atentamente para a vida.

IHU On-Line – Quais são as características do discurso antropológico de Kierkegaard?

Jonas Roos – Em meio a uma vasta produção literária Kierkegaard faz também aquilo que, à sua época,
se chamava psicologia – o que hoje chamaríamos antropologia filosófica. Ele se pergunta sobre como o
ser humano deveria ser compreendido para que certos fenômenos da existência fizessem sentido. O
pano de fundo desses desenvolvimentos é tanto a tradição filosófica quanto a judaico-cristã.

O ser humano, então, é compreendido, em linhas gerais, como uma relação de elementos polares:
infinitude e finitude, temporalidade e eternidade, possibilidade e necessidade. O problema é que na
existência nós relacionamos mal essas polaridades, ora aferrando-nos a um dos lados, ora a outro. Esse
fixar-se em qualquer um dos polos em detrimento do outro é o que Kierkegaard entende como desespero.
Entender que tudo é necessidade e que a vida está toda determinada de antemão é desespero.
Entender, por outro lado, que tudo é possibilidade, ignorando os elementos de necessidade que nos
constituem, é, embora de um tipo diferente, também desespero. Trata-se, portanto, de termo técnico:
desespero não diz respeito apenas a crises visíveis de falta de sentido ou desintegração. Embora tais
crises possam ser desespero, uma vida completamente adaptada à finitude, à temporalidade e,
consequentemente à tranquilidade que advém disso, pode ser igualmente desespero. Trata-se de
conceito espiritual e que, portanto, não pode ser medido pela mera exterioridade.

Imagine-se uma pessoa que centra toda a energia de sua vida, por exemplo, na aquisição de riquezas
materiais. Imagine-se, então, que, por alguma razão, esta pessoa de repente perde seus bens. Nesse
caso se diz que esta pessoa entrou em desespero. A rigor, toda essa vida centrada no acúmulo de bens
materiais – ou seja, centrada na finitude em detrimento da infinitude – já era desespero, o desespero
apenas ainda não havia se tornado manifesto. A manifestação do desespero revela apenas que aquela
vida já era, toda ela, desespero. Disso se pode inferir cor

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