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Citado mediante Carta de Ordem (f. 100), o requerido contestou, alegando: a) falha na
formação da peça citatória, além de falta em algumas das peças que a acompanharam do visto
consular brasileiro; b) que a sentença é ofensiva da ordem pública e dos bons costumes (RISTF,
art. 216), uma vez que se cuida de débito proveniente de dívida de jogo e aposta, cuja cobrança
não é contemplada no ordenamento jurídico brasileiro (C. Civil, art. 1.477 e ss) (f. 108/109).
Replicou o requerente (f. 125/131). Argumentou que o réu não pode invocar a origem do
débito, já que se trata de “transação manifestada em procedimento próprio, segundo as
formalidades da legislação americana”, ato jurídico de natureza bilateral, comutativa, que só
poderia ser anulado, se demonstrada a ocorrência de um dos vícios de vontade capitulados nos
arts. 86 a 113 do Código Civil. “Ainda que se invocasse a origem do débito” - afirmou -, “tal fato
não eximiria o réu do cumprimento da obrigação que se lhe impunha, em razão da licitude da
dívida em território americano, obedecido o princípio da territorialidade previsto no artigo 9º
da Lei de Introdução ao Código Civil” (“Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei
do país em que se constituírem”).
O Ministério Público Federal, pelo indeferimento da sentença, dado cuidar-se
originariamente de dívida de jogo, e caracterizar ofensa à ordem pública brasileira (f. 134).
O requerente voltou aos autos para responder ao parecer, dada a aplicação ao caso do artigo
9º da Lei de Introdução. Nessa linha juntou acórdãos do Tribunal de Alçada Civil de São Paulo.
Sustentou ainda que a condenação de que se cuida resultou de não ter o réu honrado o acordo
firmado e homologado pela Corte de New Jersey e que não se trata de dívida exclusivamente de
jogo, mas que “a verba advinda do crédito havido pelo réu foi utilizada livremente pelo Sr.
Dualibe nas dependências do hotel (restaurante, casino, etc.)”.
É o relatório.
VOTO
O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDAPERTENCE- (Relator):
I.
Improcede a preliminar de defeito na instrução da carta de ordem de citações. Nada impõe
que nela se contenha cópia integral de todos os documentos que acompanhem a petição inicial
(C.Pr.Civ., art. 202, II, a contrario, e § 1º); acaso não trasladados papéis relevantes, deles tomará
ciência o citado, mediante vista dos autos, à sua disposição por todo o prazo de contestação, que,
por isso mesmo, se conta da juntada da carta de ordem.
De resto - se é certo que à carta de ordem não se juntaram cópia dos originais dos documentos
estrangeiros - das cópias das peças essenciais, dela constantes, se verifica a autenticação consular
dos originais.
Rejeito a preliminar.
II
É deste teor o parecer da Procuradoria Geral, da lavra do ilmo. Subprocurador-Geral Miguel
Frauzino e subscrito pelo em. titular da chefia do MPF:
“Pretende-se a homologação de sentença prolatada pelo Tribunal Superior de Nova Jersey,
Condado de Atlantic, que condenou o requerido a pagar débito decorrente de dívida de jogo.
O pedido encontra obstáculo no art. 216 do R.I. Na legislação brasileira, as dívidas de jogo não obrigam a
pagamento (arts. 1.477 e 1.478 do Código Civil).
Não é, em lugar algum, modalidade usual de pagamento de despesas hoteleiras não ligadas
à jogatina: muito menos em Atlantic City a uma empresa exploradora de cassino.
De resto, alegada na contestação ser o débito original oriundo de jogo, não o negou a
requerente no momento próprio - o da réplica à contestação que ofereceu (f. 125) - mas apenas -
e ainda aí genérica e parcialmente - ao comentar o parecer da Procuradoria Geral, momento já
inoportuno para suscitar a controvérsia de fato (f. 139).
Na réplica, preferiu a requerente apegar-se à licitude e exigibilidade da dívida de jogo no
país onde contraída, o que, sustenta, à vista do art. 9º LICC, elidiria a oposição da ordem pública
brasileira à homologação da sentença.
Invoca, nessa linha, decisões do Tribunal de Alçada Civil de São Paulo (Apelações 577331
e 570426).
O argumento não convence.
Certo, não se desconhece que, a teor do art. 9º LICC, “para qualificar e regular as
obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem”. É dado que não se
desconhece do direito internacional privado brasileiro, mas que nada tem a ver, data
venia, com a ressalva da ordem pública: “o direito estrangeiro” - ensinou o grande
Amilcar de Castro (Direito Internacional Privado, Forense, 1956, I/331 -, “que deve ser
imitado por força do sistema indígena de direito internacional privado, deixa de o ser,
por ofensivo à ordem pública internacional. Em proteção da ordem pública
internacional, levanta-se no forum um anteparo da imitação do direito estrangeiro”. “E
isso acontece” - explicou o mestre de Minas com a inexcedível clareza de sempre -
“porque o direito internacional privado contempla os direitos primários em abstrato, isto
é, fazendo abstração de suas disposições, tomando-as como símbolos, sem examinar o
sentido, ou o efeito, de seus dizeres; e por isso mesmo, em caso concreto, o direito
estrangeiro que, pelo direito internacional privado indígena, só foi considerado em
abstrato, pode ser insuportável, inconvenientíssimo ao meio social nacional, contrário à
moralidade média do povo, ao seu sentimento religioso, à sua economia, ou à sua organização
política, e para controle de efeitos do direito especial mantém-se essa válvula de segurança, esse
meio de defesa da sociedade, que é o poder de rejeitá-lo confiado ao juiz. Assim como não é
permitida a entrada de estrangeiros doentes de moléstia infecto-contagiosa no território
nacional, assim também não se permite no meio social indígena a manutenção de usos jurídicos
que lhe sejam política, econômica, moral, religiosa ou socialmente prejudiciais. Pode-se dizer
que a autorização para rejeitar direito estrangeiro ofensivo da ordem pública internacional é
modalidade do poder de polícia: O Poder Judiciário cuida de afastar o que pode ser nocivo à
população que se encontra sob sua jurisdição”.
Claro, aí se cogita da ordem pública internacional brasileira como obstáculo à aplicação -
rectius, imitação – do direito estrangeiro no forum, ou seja, pelo juiz brasileiro
Mas, na conformidade do art. 17 LICC, ofensa à ordem pública e aos bons costumes não é
obstáculo oponível apenas à eficácia no Brasil de leis ou atos estrangeiros, mas também da
sentença estrangeira, a ser verificada precisamente neste juízo de homologação.
Ser a sentença estrangeira derivada de dívida de jogo tem sido considerado no Tribunal
motivo bastante à sua inexequibilidade no Brasil (cf. por último, CR5332, 26.5.93, Gallotti, DJ
2.6.93; CR7424, 25.6.96, Celso de Mello, DJ 1º.8.96; CR7426, 7.10.96, Pertence, DJ 15.10.96):
se assim se tem decidido para indeferir simples rogatória de citação, a fortiori, a circunstância
inviabiliza a homologação da sentença estrangeira.
E a qualificação impeditiva do exequatur se estende, conforme o parág. único do art. 1477
C. Civ., a ato ou contrato que “envolva reconhecimento, novação e fiança de dívida de jogo”,
como o da transação de cujo inadimplemento resultou a sentença homologanda.
Indefiro a homologação: é o meu voto.