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Saúde e atenção psicossocial no sistema prisional

Health and psychosocial care in the prison system

La salud y la atención psicosocial en el sistema penitenciário

Oliveira. Walter Ferreira de; Damas. Fernando Balvedi, (2016) Saúde e atenção psicossocial

nas prisões: um olhar sobre o sistema prisional brasileiro com base em um estudo em Santa

Catarina. São Paulo: Ed. Hucitec, 190p.


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Estudos sobre o sistema prisional não são novidade na área das Ciências Sociais e

Humanas, sendo que mais recentemente começou a receber a atenção dos pesquisadores do

campo da Saúde Coletiva. Da mesma forma, a saúde já estava prevista como direito universal

nos preceitos da Reforma Sanitária, formalizado na Constituição Cidadã de 1988 e reverberou

na Reforma Psiquiátrica que problematizou e intensificou a crítica ao modelo da psiquiatria

normativa instituída, propondo redirecionar o modelo assistencial em Saúde Mental. Contudo,

a impressão de que novo é o esforço (e desafio) em integrar a atenção à população privada de

liberdade e aquelas pessoas que, nesta condição apresentam sofrimento ou transtorno mental

(antes ou após o aprisionamento), na rede do Sistema Único de Saúde – SUS e,

especificamente, na Atenção Psicossocial, respectivamente (Coelho & Mascarenhas, 2013).

E uma incursão em tais questões, em que contrastam descompassos entre avanços nos

planos legal e prático-social, é o que proporciona a obra Saúde e atenção psicossocial nas

prisões: um olhar sobre o sistema prisional brasileiro com base em um estudo em Santa

Catarina, assinada pelos psiquiatras Walter Ferreira de Oliveira e Fernando Balvedi Damas,

fruto de uma dissertação de mestrado. Os autores introduzem o leitor a este espaço fronteiriço

da saúde, psicologia, direito, segurança pública, assistência social permeado de tensões,

desalentos, mas também de esperanças e possibilidades interessando a profissionais,

estudantes, gestores, pesquisadores e comunidade comprometidos com o cuidado como

direito. Com este caráter interdisciplinar conflui, especialmente, com a área de Psicologia

Social e outras áreas de saberes, fazeres, dizeres, poderes e vivencias com reflexões

abrangentes que extrapolam a outros contextos para além do local analisado.

A obra está organizada em dez capítulos, precedidos de Introdução e encerrada com

Comentários Finais. No primeiro capítulo, os autores salientam características (infraestrutura

e dinâmica das interações sociais no contexto prisional) e o papel da prisão como elemento
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chave do aparato jurídico-policial, voltada à execução das penas, ao controle do crime e da

população prisional somado, mais recentemente, à ressocialização do preso.

Contextualizam a prisão envolta em complexos fenômenos e problemas sociais com

breve histórico das mudanças diante das transgressões/transgressores e desenvolvimento do

sistema prisional no Ocidente, da Antiguidade até a Idade Moderna. Recorrem ao clássico

Vigiar e Punir de Michel Foucault, ao explicar que, incidindo no corpo, as sanções penais se

deslocaram dos suplícios e morte, para seu disciplinamento e vigilância na reclusão visando

corrigir, reeducar ou curar; onde guardas, médicos, psicólogos, educadores, religiosos

substituíram o carrasco. Ou seja, do poder soberano de morte, para a gestão e controle da

vida, favorecida pela arquitetura panóptica e surgimento da penitenciária no final do século

XIX.

Assinalam o tenso equilíbrio entre punição, vigilância e direitos e, também, a opção e

vantagens das penas alternativas à privação de liberdade na atualidade. Apontam, ainda, o

paradoxo do atual sistema prisional do Brasil com movimentos em defesa dos direitos

humanos, aparatos legais e políticas públicas avançadas ao lado do modelo arcaico de punição

e suplício (que persiste sob a forma de perda de bens e de direitos imputada pelo Estado).

Finalizam ilustrando com dados da população carcerária no Brasil e no sistema prisional de

Santa Catarina, onde desenvolveram o estudo propriamente.

O segundo capítulo, “Os Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico”, apresenta

as variações, no tempo e no espaço, das sensibilidades sobre o louco, sua inserção social e as

instituições asilares destinadas às pessoas com transtorno mental, em geral e para o louco

criminoso. Longe de finalidade terapêutica, tal instituição visava a proteção e a segurança

com seu caráter segregacionista e de custódia aos loucos, transgressores da ordem que, por

isso, representavam perigo à sociedade pelos desvios de conduta e moral que materializavam

os problemas sociais. Tal forma de exclusão marcou a Renascença pelo que Foucault designou
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a “Grande Internação” com o hospital psiquiátrico ganhando centralidade para a proteção e

segurança à sociedade, acrescido ao diferencial da função de abrigar, cuidar, investigar,

diagnosticar, classificar e tratar os considerados doentes mentais – o que era arbitrado pelo

saber-poder da nascente ciência médico-psiquiátrica no século XVIII predominando, contudo,

a internação como escolha terapêutica.

Somente no século XX, aos doentes mentais que cometessem delitos, o contexto de

inspiração democrática, de críticas e rejeição à exclusão é que propiciou o surgimento, no

Brasil, da instituição jurídico-psiquiátrica do Manicômio Judiciário – a partir de 1963

denominado Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP). Como doentes, não

podem ser responsabilizados e punidos, mas tratados em internação e, pela periculosidade

embutida, devem ficar sob custódia, por medida de segurança (prevista pelo Código Penal

brasileiro a partir de 1940) até cessar o perigo – fato que deveria ser atestado pela perícia

médico-legal como exigência às decisões judiciárias.

Proposto para atuar como organismo técnico, científico, assistencial e de defesa social

(p.58), o HCTP refletia a associação da Medicina com o Direito na potencialização do

controle social (Cunha & Boarini, 2016), no entanto, configurando-se como prisão, foi alvo

de denuncias no bojo do avanço da Reforma Psiquiátrica na década de 1970, ainda que

houvesse quem o defendesse. A complexidade envolvida na situação e destino do louco

criminoso segue na atualidade com contradições, mas também propostas e experiências

viáveis e diferenciadas atestam possibilidades (Silva, 2010; Brasil, 2014).

No terceiro capítulo, os autores trazem a discussão das bases jurídicas e políticas em

saúde mental e a atenção psicossocial no âmbito do sistema prisional. Para tanto, abordam o

processo histórico de democratização do Brasil, pautados nos ordenamentos legais que

fundaram o SUS, a partir dos imperativos sociais e políticos dos direitos humanos
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consolidados na Constituição de 1988 e o seu imbricamento com as leis e portarias que

estruturaram a política de Saúde Mental, destacando-se a Lei da Reforma Psiquiátrica/2001.

À descrição destas bases jurídicas, salientam os reflexos dos avanços das

neurociências, das politicas de saúde (diagnóstico, cuidado, tratamento) e da

psicofarmacologia (permitiu intensificar a desospitalização) no pós-guerra no século XX. Os

aparatos, avanços e deficiências do sistema de saúde e da atenção psicossocial, repercutem

nos seus correlatos no contexto das prisões como é mostrado no quarto capítulo. Nele, os

autores retomam a lei da Reforma Psiquiátrica e as legislações que ampararam a Atenção

Psicossocial na especificidade para o sistema prisional, como o Plano Nacional de Saúde no

Sistema Penitenciário (PNSSP) e a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas Privadas

de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP) como estratégias de implementação da atenção

integral à saúde das pessoas em situação de encarceramento.

No que tange à Saúde Mental, as Portarias 94 e 95/2014/MS vinculam-se à Pnaisp e

instituem o Serviço de Avaliação e Acompanhamento de Medidas Terapêuticas Aplicáveis à

Pessoa com Transtorno Mental em Conflito com a Lei – conhecida como EAP. Contrasta o

avanço no plano legal com o panorama precário e desolador da estrutura e da atenção à saúde

no sistema prisional que reproduz o comprometimento de direitos humanos anterior à prisão

e, consequentemente, a proposta ressocializadora.

O quinto capitulo, “A pesquisa sobre o sistema prisional de Santa Catarina”, explicita

os aspectos metodológicos do estudo qualitativo cujo objetivo foi analisar como se efetivavam

as políticas e ações de saúde mental ofertadas aos presos do Sistema Prisional-psiquiátrico de

Santa Catarina, a partir da percepção dos gestores. Detalham a revisão bibliográfica e o

trabalho de campo pela observação participante (visita e percepção do ambiente) e entrevistas,

tratando os dados pela Análise do Discurso.


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No sexto capítulo, “Condições Gerais das Unidades Prisionais Catarinenses”, baseados

em observações e conversas “informais” com gestores e funcionários, os autores retratam a

situação do sistema penitenciário-psiquiátrico de Santa Catarina quanto à estrutura física,

superlotação, serviços e suas condições de higiene e (in)salubridade mostrando fatos comuns

a outros contextos.

O sétimo capítulo, “Acesso à saúde e ressocialização nas prisões”, traz reflexões sobre

a produção social de saúde e doença cujas diversas determinações interconectam-se, operando

em rede sendo que, no contexto das prisões tal produção enredada atinge presos e outros

contatos diretos e indiretos (familiares, funcionários) e a sociedade como um todo, lembrando

do acesso universal à atenção previsto no SUS cabendo ao Estado garanti-lo.

Referem a pouca autonomia das pessoas privadas de liberdades no acesso aos

diferentes tipos de serviços, explorando temas centrais como: assistência à saúde; alimentação

e higiene; atividade física, opções desportivas e de lazer (a atividade religiosa figura como

uma delas); acesso a atividades laborais; acesso à educação e visitas; questões de gênero.

No oitavo capítulo, “Condições gerais de saúde e (des)assistência nas prisões”, é

ressaltada, comparativamente, a singularidade da assistência de saúde do sistema prisional,

agravada pelo contexto deteriorado com negação de direitos básicos constituindo-se em uma

entre outras formas de violência mais diretas. Como principais problemas de saúde entre os

presos, os gestores apontam dores de cabeça, febre e torções, transtornos, doenças sazonais,

doenças crônicas pre-existentes ao aprisionamento. Tem seu lugar histórico as doenças

infectocontagiosas com destaque à tuberculose, sensível que é às condições das unidades para

sua disseminação; somando-se às dificuldades de acompanhamento nutricional adequado;

sedentarismo; excesso de tabagismo.

Quanto aos atendimentos nas unidades (internas e externas com escolta), gera-se uma

situação dúbia: dificuldades em atender, ao passo que não atender, negligenciando as queixas
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e o direito a saúde, criam-se riscos que ameaçam a segurança da unidade prisional e a

segurança pública como um todo (motins, rebeliões, fugas), já que presos não são passivos ao

se sentirem injustiçados.

No nono capítulo, “Transtornos mentais e uso de drogas de abuso nas prisões”, os

participantes reconhecem o aprisionamento e as formas internas de punição como geradores

de problemas psicológicos que podem se estender e causar transtornos mentais e riscos

maiores de suicídios. Recordando que o compartilhamento do mesmo ambiente suscetibiliza,

também, agentes prisionais e outros funcionários das prisões.

As drogas são referidas como presentes na população carcerária, seja como tráfico ou

consumo, podendo este envolver transtorno primário (problema principal) ou secundário

(comorbidade) compondo e/ou exacerbando outros problemas existentes, além da síndrome de

abstinência constituir problema aos administradores. Não obstante, predomina a opinião do

uso de drogas como devastador na prisão, mas há pessoas, funcionários (em outros estudos)

que entendem que as não estimulantes “acalmam” e tem utilidade social, ainda que

simbolizem o desrespeito à segurança pela quebra de regras. Os autores lembram que,

também, neste contexto há discussões e controvérsias sobre a tolerância ao uso de drogas e

sua descriminalização. Podemos assinalar, neste sentido, que estratégias e ações de Redução

de Danos, com adequações, tem se mostrado profícuas no contexto prisional (Bravo, 2009).

Por fim, citam a judicialização das internações psiquiátricas que reflete a inadequação

e desassistência da atenção psicossocial no serviço público externo que acaba levando pessoas

ao ingresso no sistema prisional. Por sua vez, na prisão há pressões para transferência para

leitos psiquiátricos sob a égide da “internação compulsória”.

O capítulo 10 conta com a colaboração de Pedro Affonso Rosar sobre a Telemedicina

como proposta alternativa à saúde no sistema prisional e a Telepsiquiatria na sua aplicação na

área de saúde mental. Pontuam exemplos fora das prisões em contextos internacionais e as
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barreiras encontradas no Brasil, como questões éticas postas pelo Conselho Federal de

Medicina. Não obstante, sugere a aplicação diagnóstica complementar sendo necessária a

discussão para normatizá-la como coadjuvante e promissora em saúde mental.

Arrematam a obra admitindo a complexidade das condições de saúde no sistema

prisional com relações politicas, institucionais, profissionais, interpessoais (e morais,

podemos acrescentar) distintas e que requerem alianças a serem assumidas e construídas com

outros serviços públicos de saúde, entre eles os de Atenção Psicossocial. Com esta visão

ampla entre sistemas interdependentes, sinaliza para o papel mediador da Saúde Coletiva

neste processo e afirma que “Nosso País merece um sistema de saúde que cumpra seus

próprios preceitos de garantir saúde para todos, também no sistema prisional, em uma

perspectiva equitativa e integral” (p.181). Acrescentamos que a Psicologia Social tem seu

lugar em tal mediação, especialmente na vertente crítica quanto às instituições, organizações e

práticas da sociedade atual, visando o bem-estar do ser humano (Ferreira, 2010).

Com linguagem simples e clara sobre tema complexo, o livro facilita o entendimento

da saúde e da atenção psicossocial nas prisões, apresentando um panorama com importantes

referências como ponto de partida e balizamento aos interessados e comprometidos com a

saúde como direito social. Em tempos de crises e retrocessos das conquistas sociais, é bem-

vinda tal reflexão pautada como questão “que atinge a todos nós” (p.120).
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Referências

Brasil. (2014) Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações

Programáticas Estratégicas. Coordenação de Saúde no Sistema Prisional. Serviço de

Avaliação e Acompanhamento de Medidas Terapêuticas Aplicáveis à Pessoa com Transtorno

Mental em Conflito com a Lei / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde,

Departamento de Ações Programáticas Estratégicas, Coordenação de Saúde no Sistema

Prisional – Brasília: Ministério da Saúde. 58 p.

Bravo, O.A. (2009) Avaliação de ações de redução de danos no sistema penitenciário

brasileiro. Psicol. Am. Lat., México, 18. Disponível em:

<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1870-

350X2009000200002&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 04 dez. 2016.

Coelho, M.T.AD. & Mascarenhas, L.M.; (2013). O direito à saúde nas prisões e hospitais de

custódia e tratamento do Brasil: em foco a saúde mental. In: Lourenço, L.C.; Gomes, G.L.R.;

(org.) Prisões e punição no Brasil Contemporâneo. (pp. 301-320). Salvador: Edufba.

Cunha, C.C. & Boarini, M.L. (2016). A medicina como voto de Minerva: o louco infrator.

Psicologia & Sociedade, 28(3), 442-452.

Ferreira, M.C. (2010) A Psicologia Social Contemporânea: Principais Tendências e

Perspectivas Nacionais e Internacionais. Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, 2010, 26, 51-64.

Silva, M.B.B. (2010) O desafio colocado pelas pessoas em medida de segurança no âmbito do

Sistema Único de Saúde: a experiência do PAILI-GO. Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio

de Janeiro, 20(2), 653-682.

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