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EXTRADIÇÃO DE NACIONAL (CABO-VERDIANO): Acto

Indigno, Abandono de uma Relíquia do Passado ou


Possibilidade Razoável?

José Pina Delgado *

Sumário: I. Introdução; II. Contextualizando a Discussão sobre a Extradição de Nacional em


Cabo Verde; III. Argumentos Pró-Extradição de Nacionais; 3.1. O argumento da incapacidade
do Estado; 3.2. O argumento da adesão ao Tribunal Penal Internacional; 3.3. O argumento do
santuário de criminosos; 3.4. O argumento da realização efectiva da justiça; IV. Argumentos
Contrários à Extradição de Nacional; 4.1. O argumento da soberania do Estado; 4.2. O
argumento dos direitos fundamentais do cidadão cabo-verdiano; 4.3. O último bastião: o
argumento da cláusula dos limites materiais à revisão constitucional; V. À Guisa de
Conclusão: Por que devemos estar abertos a rever a cláusula que proíbe a extradição de
nacionais?

“Causa repulsa ao sentimento nacional entregar


um nacional francês à justiça estrangeira” **.

“[A Itália] deve protecção aos seus filhos, e não


os pode abandonar à sua sorte, se acusados por
um crime, à mercê do direito e de juízes
estrangeiros. A dignidade nacional não pode
consentir que um cidadão, um membro do
Estado, possa ser compelido a curvar a sua

* Professor Assistente Graduado, Instituto Superior de Ciências Jurídicas e Sociais,


República de Cabo Verde.
** Palavras de um ministro da justiça francês em 1843 ante a possibilidade de

extraditar nacionais gauleses reproduzidas em Michael Plachta, “(Non) Extradition of


Nationals: a Neverending Story?”, Emory International Law Review, v. 13, n. 1,
1999, p. 94.
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cabeça a determinação de uma autoridade


estrangeira” ***.

“Não sentimos a nossa honra ultrajada ante a


possibilidade de entregar um inglês nas mãos de
juízes estrangeiros. Primeiro, ele é um criminoso
e somente depois um inglês” ****.

“Disseram-nos que o apelante é um cidadão dos


Estados Unidos da América. Mas tal cidadania
não lhe garante imunidades para cometer crimes
em outros países, nem lhe dá o direito de
requerer um julgamento de modo diverso
daquele que o país reserva aos seus nacionais
para aqueles que violam as suas leis e de cuja
justiça fugiu” *****.

I. Introdução
1. As palavras do Ministro da Justiça da França, o relatório da
Comissão governamental italiana, as declarações do Parlamentar
britânico e o voto do Juiz norte-americano, todos proferidos ou
publicados no Século XIX ou início do Século XX, constituem um marco
interessante de contrastes a respeito do problema da extradição de
nacional; além de marcar as diferenças entre a tradição continental
europeia e a anglo-saxónica relativamente ao controverso instituto 1,
assinalam duas perspectivas filosóficas opostas de concepção da questão:

*** Conclusões de um relatório de uma comissão criada pelo Governo italiano para
estudar a extradição de nacional, igualmente reproduzidas em Michael Plachta,
“(Non) Extradition of Nationals: a Neverending Story?”, p. 93.
**** Declaração do Presidente da Casa dos Comuns da Grã-Bretanha, também

reproduzida em Michael Plachta, “(Non) Extradition of Nationals: a Neverending


Story?”, p. 94.
***** Palavras do Juiz Conselheiro Harlan do Supremo Tribunal (Supreme Court) dos

Estados Unidos da América, representando a maioria dos seus pares, no caso Neely
vs. Henkel, 180, U.S. 123 (1901) (Disponível em
http://supreme.justia.com/us/180/109/case.html, consulta a 20 de Outubro de
2007).
1 Aprofundaremos esta ideia adiante.

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Aspectos Polémicos da Extradição

por um lado, a que toma por base a existência de um vínculo ontológico e


essencialista entre o Estado e os seus nacionais, que não pode ser
quebrado sob pena de significar algo próximo da vergonha nacional; por
outro lado, a concepção que pressupõe que os vínculos de pertença a uma
nação devem estar submetidos à realização efectiva da justiça universal,
tendo igualmente subjacente a ideia de que, quando um indivíduo sai do
seu país para cometer crimes no estrangeiro ele se coloca fora da
protecção do seu Estado, ficando, por conseguinte, submetido a uma
jurisdição externa (estrangeira ou internacional) 2- 3. A primeira pode ser
chamada de comunitário-nacionalista 4 e a segunda cosmopolita-
universalista 5. Defenderei uma versão moderada desta última.

2 Ver as palavras do Juiz Conselheiro Harlan do Supremo Tribunal (Supreme Court)


dos Estados Unidos da América, representando a maioria dos seus pares, no caso
Neely vs. Henkel, 180, U.S. 123 (1901): “Disseram-nos que o apelante é um cidadão
dos Estados Unidos da América. Mas tal cidadania não lhe garante imunidades para
cometer crimes em outros países, nem lhe dá o direito de requerer um julgamento de
modo diverso daquele que o país reserva aos seus nacionais para aqueles que violam
as suas leis e de cuja justiça fugiu” (Disponível em
http://supreme.justia.com/us/180/109/case.html, consulta a 20 de Outubro de
2007).
3 É de se salientar que esta discussão não tem qualquer conexão necessária com as

que se tem travado a respeito do Direito Penal do Inimigo (Feindstrafrecht), por


influência do penalista germânico Günther Jakobs (em especial, v. do próprio,
“Bürgerstrafrecht und Feindstrafrecht”, Online Zeitschrift für Höchstrichterliche
Rechtsprechung im Strafrecht, Jahrgang 5, Ausgabe 3, 2004, pp. 88-95; “Terroristen
als Personen im Recht”, Zeitschrift für die Gesamte Strafrechtswissenschaft, b. 117,
h. 4, 2005, pp. 839-851, e para comentários, endossos e críticas variados, Manuel
Canció Meliá & Goméz-Jara Diéz (coords.), Derecho Penal del Enemigo. El discurso
penal de la exclusión, Madrid/Montevideo/Buenos Aires; Edisofer/Editorial B de F,
2006, 2. v).
4 Vide, por exemplo, o seguinte trecho da principal obra do teórico político

comunitarista Michael Walzer, Las esferas de la justicia. Una defensa del pluralismo
y de la igualdad, Tradução Castelhana de Heriberto Rubio, México, D.F., Fondo de
Cultura Económica, 1993, p. 44, no qual embora a preocupação seja directamente a
não-pertença, acaba por assinalar os efeitos mais salientes da pertença a uma
comunidade política a partir de um viés comunitarista: “os homens e mulheres sem
qualquer pertença a algum lugar são como pessoas sem pátria. (…) Estão isolados das
previsões comunitárias de segurança e de bem estar. Mesmo os aspectos de
segurança e bem estar que, como a saúde pública, são distribuídos colectivamente
não são garantidos aos não-membros, já que estes não têm um lugar garantido na
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José Pina Delgado

Ora, antes de mais, a primeira concepção, institucionalizada em


França, fez também escola na Europa Continental e na América Latina 6.
Na Alemanha teve como corolário o conceito de Treuplicht, que se
consubstanciou num dever de lealdade exclusiva do indivíduo para com o
seu Estado e do correspondente direito de um cidadão não ser afastado
da sua própria comunidade política – seja por via de extradição, expulsão
ou perda de nacionalidade – e de poder desfrutar da sua protecção 7,
garantindo-se, de outra parte, jurisdição aos tribunais internos para

colectividade e estarão sempre expostos à expulsão. A condição de quem não tem


pátria é de perigo infinito”. Portanto, se alterarmos a ordem de exposição, a pertença
daria garantias absolutas de segurança e de bem-estar e fundamentalmente de um
cidadão não ser expulso da sua própria comunidade política.
5 A respeito das concepções cosmopolitas, ver as interessantes contribuições de David

Held, “Democracy: from the City-States to a Cosmopolitan Order?” In: David Held
(ed.), Prospects for Democracy. North, South, East, West, Cambridge, UK, Polity
Press, 1992, pp. 13-52, e Jürgen Habermas, “Kant’s Idea of Perpetual Peace, with the
Benefit of Two Hundred Years’ Hindsight” In: James Bohman & Mathias Lutz-
Bachmann (eds.), Perpetual Peace: Essays on Kant’s Cosmopolitan Ideal,
Cambridge, Mass/London, The MIT Press, 1997, pp. 113-153. Apesar de este texto não
pressupor as instituições cosmopolitas universais defendidas por esses autores, tem
por base a ideia de que as relações entre Estados de Direito devem ser conduzidas
como se elas os vinculassem efectivamente.
6 Sobre a tradição latino-americana em matéria de extradição de nacional, vide Ivan

Shearer, “Non-Extradition of Nationals – A Review and a Proposal”, Adelaide Law


Review, v. 2, n. 3, 1966, pp. 291-294, ainda que chamando a atenção para a ausência
de prática consistente de todos os Estados no sentido de não-extraditar os seus
nacionais. O texto foi escrito em 1966, obviamente antes da leva de constituições
democráticas da América Latina que vieram a cristalizar e elevar o princípio da não-
extradição de nacional a proibição constitucional.
7 Cf. o artigo 112 (2) da “Constituição de Weimar” In: Jorge Miranda (org.), Textos

Históricos do Direito Constitucional, 2. ed., Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da


Moeda, 1990, p. 283 (“Todos os alemães têm o direito a protecção do Império, dentro
e fora do seu território”), englobando não só a dimensão internacional da protecção
diplomática, mas igualmente interna, o que implicaria necessariamente na sua
manutenção na comunidade política; Ainda a respeito desta noção de treuplicht,
recomenda-se Michael Plachta, “(Non) Extradition of Nationals: a Neverending
Story?”, p. 82, sustentando, no essencial, que “treuplicht é o princípio jurídico alemão
que o Estado tem um dever especial de estender a sua protecção a todos os seus
súbditos”, apesar de que, para este autor, esse conceito não ser muito claro (p. 90);
ver igualmente In re Galwey Q. B. 230, 233 (1896), citado por Michael Plachta,
“(Non) Extradition of Nationals: a Neverending Story?”, p. 90, em que se sustentou
que “enquanto súbdito britânico o detido deve fidelidade à Rainha, tendo em troca o
direito à sua protecção, pois a nacionalidade envolve um duplex ligaman”.

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Aspectos Polémicos da Extradição

julgar os crimes que ele eventualmente cometa no estrangeiro; a segunda


foi sustentada continuamente pelos sistemas jurídicos de influência
anglo-saxónica, até porque tradicionalmente não se reconhece jurisdição
extra-territorial nesses países 8. No entanto, a evolução política e jurídica
global fez com que essas duas tradições começassem a sofrer mutações
consideráveis, traduzindo-se em alterações ao enfoque nacionalista nos
países europeus continentais e nos anglo-saxónicos, pelo reconhecimento
de jurisdição extra-territorial em determinados casos 9- 10.
2. Permitir-me-ei, antes de prosseguir, fazer mais uma incursão
pela História do Direito, com a desculpa de ser um cultor desse ramo das
ciências jurídicas 11. Duas imagens me ocorrem quando penso no

8 Conforme lembra João Marcelo de Araújo Júnior, “Extradição – Alguns aspectos


fundamentais”, Revista Forense, Rio de Janeiro, a. 90, v. 326, 1994, p. 72, “naqueles
países cujo direito está vinculado, em suas origens, ao direito romano, a jurisdição
está fundada na ideia da nacionalidade, em razão disso, não se admite a extradição de
nacionais. Já os Estados cujo sistema jurídico está fulcrado no direito comum,
adoptam como principal fundamento de jurisdição a territorialidade. Por isso, neles
prevalece o entendimento de que os criminosos devem retornar ao local onde
cometeram os crimes, pouco importando a nacionalidade do agente”.
9 Para discussões sobre esta dicotomia entre não-extradição e jurisdição extra-

territorial, cf. C. Sachor-Landau, “Extra-Territorial Penal Jurisdiction and


Extradition”, International & Comparative Law Quarterly, v. 29, 1980, pp. 274-295.
10 Notada igualmente por abalizados comentários acerca do problema da extradição

(e.g., Geoff Gilbert, Transnational Fugitive Offenders in International Law.


Extradition and Other Mechanisms, The Hague/Boston/London, Martinus Nijjhoff,
1998, p. 179, destacando, não obstante, a timidez do processo).
11 Não é, no entanto, preocupação deste pequeno comentário constitucional,

recuperar a evolução histórica do instituto. Para tanto, pode-se recomendar a


generalidade dos textos seminais sobre esta matéria, nomeadamente Ivan Shearer,
“Non-Extradition of Nationals – A Review and a Proposal”, p. 274 e ss, e Michael
Plachta, “(Non) Extradition of Nationals: a Neverending Story?”, pp. 80-84, que
fazem referência a alguns traços marcantes, porque na Antiga Grécia, os nacionais
não podiam ser extraditados, e em Roma, só em casos muitos limitados essa
possibilidade era considerada; por sua vez, a prática de não-extraditar os nacionais
conheceu algum reforço na Idade Média, fazendo parte do contrato feudal, no qual se
garantia o chamado ius non evocando, para depois conhecer dignidade convencional
com um tratado de 1834 entre a França e a Bélgica; não se trata do momento ideal
para se fazer esta discussão, mas não se pode deixar de se dizer que subsistem vários
pontos controversos e obscuros da reconstrução histórica tradicional que aqui
mereceriam uma discussão. No entanto, por limitações de espaço e de tempo não
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José Pina Delgado

problema da extradição de nacional. A primeira é bem longínqua e tem


lugar no Senado de Cartago no ano de 218 Antes de Cristo, tendo como
protagonistas Roma e esta influente cidade do Norte de África. Depois de
Aníbal Barca – o célebre general cartaginês –, atacar a cidade espanhola
de Saguntum, aliada de Roma, esta enviou uma delegação chefiada pelo
Senador Quintus Fabius, para, nos termos do Direito Romano de Guerra,
exigir a extradição do General, para ser julgado em Roma por crimes
contra a República e contra o Direito das Gentes 12. O pedido foi negado e
deu-se início à mítica II Guerra Púnica 13. Os motivos da recusa eram
naturais. Aníbal seria julgado, condenado e executado em Roma com
base no Direito Romano e na concepção romana do Direito
Internacional.
A segunda (imagem) é mais actual, apesar de não ser propriamente
contemporânea. Desenrola-se séculos depois do fim da era romana e

teremos condições de a fazer. Recomendando igualmente cautelas neste plano está


Michael Plachta, “(Non) Extradition of Nationals: a Neverending Story?”, p. 81;
recomenda-se para uma reconstrução histórica do instituto da extradição,
Christopher Blakesley, “The Practice of Extradition from Antiquity to Modern France
and the United States: a Brief History”, Boston College International & Comparative
Law Review, v. 4, n. 1, 1981, pp. 39-60, e, na literatura jurídica lusófona Mário
Mendes Serrano, “Extradição. Regime e Práxis” In: José Manuel da Cruz Bucho; Luís
Silva Pereira; Maria da Graça Vicente de Azevedo & Mário Mendes Serrano,
Cooperação Internacional Penal, Lisboa, Centro de Estudos Judiciários, 2002, pp.
15-25.
12 Sobre o direito romano de guerra, embora nem sempre com visões convergentes,

recomenda-se a leitura de Alan Watson, International Law in Archaic Rome: War


and Religion, Baltimore/London, The John Hopkins University Press, 1993, e David
Bederman, International Law in Antiquity, Cambridge, Cambridge University Press,
2001, pp. 231-241.
13 Cf. de modo resumido, William C. Morey, Outlines of Roman History, New

York/Cincinatti/Chicago, American Book Company, 1901 (Disponível em


http://www.forumromanum.org/history/morey15.html, acesso a 16 de Agosto de
2007), contando que “os romanos enviaram uma embaixada para Cartago a fim de
pedir a entrega de Aníbal. Reza a História que Quintus Fabius, o Chefe da Delegação
levantou uma dobra da sua toga e disse ao Senado cartaginês: “Aqui trazemos-lhes a
paz e a guerra, Qual delas vocês escolhem?” “Dá-nos qualquer delas” foi a resposta.
“Então ofereço-vos a guerra”, disse Fabius, “E é o que aceitamos”, gritaram os
cartagineses. Assim começou a guerra mais memorável da Antiguidade”.

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Aspectos Polémicos da Extradição

acontece na Alemanha do Pós-Primeira Guerra Mundial. Pela primeira


vez na história, o princípio da não-extradição de nacional ganhou
dignidade constitucional 14. Nada de estranho dir-se-ia. Porém, os
motivos eram muito claros. A Alemanha tinha perdido a Primeira Guerra
Mundial, a República em construção lutava pela existência face a uma
contestação permanente provenientes de projectos políticos
ideologicamente distintos 15; problema: a direita e os saudosistas da
Alemanha Wilhelmina 16; objectivo: viabilizar a Constituição, e,
consequentemente, a República de Weimar 17; Solução: proteger os
militares alemães de qualquer processo criminal por violações do direito
de guerra, incluindo uma cláusula constitucional que proibia a extradição

14 O princípio da não-extradição de nacional foi vertido para o artigo 112 (3) da


“Constituição de Weimar” In: Jorge Miranda (org.), Textos Históricos do Direito
Constitucional, 2. ed., Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1990, p. 283, com
a seguinte redacção: “Nenhum alemão pode ser entregue a um Governo estrangeiro
para ser perseguido ou punido”.
15 Diz-nos, por exemplo, Arthur Jacobson & Bernhard Schlink, “Constitutional Crisis:

The German and the American Experience” In: Arthur Jacobson & Bernhard Schlink
(eds.), Weimar. A Jurisprudence of Crisis, Berkeley/Los Angeles/London, University
of California Press, 2000, p. 8, “A Constituição de Weimar foi o resultado da derrota
alemã na I Guerra Mundial. A derrota significou o fim da instituição do Kaiser e das
dinastias estaduais e fez originar uma revolução da qual o futuro parlamentar e
democrático não era nada evidente; pelo contrário, elementos da esquerda
esforçaram-se por uma República Soviética no modelo da Rússia Soviética”.
16 Recorde-se que, desde cedo, Friedrich Ebert, face às ameaças comunistas de uma

revolução, decidiu convocar uma assembleia nacional constituinte e garantir o apoio


das forças armadas e de sectores mais conservadores da Alemanha, objectivo que
alcançou por via de um acordo com o General Groener em Novembro de 1918. Cf.
Arthur Jacobson & Bernhard Schlink, “Constitutional Crisis: The German and the
American Experience”, p. 9.
17 A aliança que viabilizou a Constituição de Weimar era constituída não só pela

esquerda democrática de Ebert, mas também pelo Centro Católico e pela direita,
igualmente moderada, mas que não estava inclinada para aceitar algo que viam como
um atentado à soberania e ao orgulho da Alemanha, como o Tratado de Versalhes.
Aliás, sintomático foi o pedido de demissão de membros do Governo filiados ao
Partido Democrático Alemão, quando o Parlamento aprovou a ratificação desse
tratado. Ver também Arthur Jacobson & Bernhard Schlink, “Constitutional Crisis:
The German and the American Experience”, p. 9.
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José Pina Delgado

de nacionais 18; alternativa: o julgamento em tribunais nacionais por


crimes de guerra 19; desfecho: a cláusula do artigo 112 da Constituição de
Weimar e os julgamentos “fantoches” de Leipzig, onde poucos foram
levados a julgamento, menos ainda foram condenados, e destes ninguém
sofreu uma pena correspondente à gravidade dos factos 20.
Entre o período romano e Weimar passou-se muita coisa sem
dúvida, porém, o aspecto mais relevante para os propósitos deste
comentário constitucional, prende-se com a demonstração de dois
extremos do mesmo problema. A utilização do princípio da não-
extradição de nacional para legitimamente proteger nacionais de

18 Nina Jorgensen, “International Criminal Responsibility in the Two World Wars”

In: The Responsibility of States for International Crimes, Oxford, Oxford University
Press, 2003, p. 8, lembra que “entretanto, um movimento contra a entrega de
criminosos de guerra surgiu na Alemanha”.
19 Foi o que de facto aconteceu. Nas palavras de Timothy McCormack, “From Sun Tzu

to the Sixth Commitee: The Evolution of an International Criminal Law Regime” In:
Timothy McCormack & Gerry Simpson (eds.), The Law of War Crimes: National and
International Approaches, The Hague, Kluwer Law International, 1997, p. 49, “o
Governo alemão informou aos aliados que não tinha como cumprir [os pedidos de
entrega dos suspeitos] e propuseram como alternativa que os aliados submetessem os
casos ao Tribunal Supremo da Alemanha em Leipzig”.
20 Ver a este respeito o estudo de M. Cherif Bassiouni, “World War I: “The War to End

All Wars” and the Birth of an Handicapped International Criminal System”, Denver
Journal of International Law & Policy, v. 30, n. 3, 2002, pp. 285-290, onde se dá
conta dos processos de Leipzig – sede do tribunal competente, o Supremo Tribunal
da Alemanha –, e salienta-se que “no final, somente doze oficiais foram julgados (…).
Dos doze casos, seis resultaram em condenação dos arguidos” (p. 287).
Paradigmáticos foram o uso da obediência de ordem de superior hierárquico, como
causa de justificação e a reacção da população à absolvição dos arguidos de mais alta
patente militar (“Na sequência da absolvição do General Strenger, o (…) veterano de
guerra recebeu um banho de flores de uma multidão de admiradores alemães”) (p.
290); cf. igualmente Timothy McCormack, “From Sun Tzu to the Sixth Commitee:
The Evolution of an International Criminal Law Regime”, pp. 48-50 (“De uma lista de
quarenta e cinco nomes, alguns tinham falecido, outros tinham saído da Alemanha e
nenhum podia ser encontrado ou submetido a custódia alemã ou aliada. As
autoridades germânicas só puderam iniciar processos contra doze suspeitos. Destes,
alguns foram absolvidos por falta de provas e outros foram absolvidos em
circunstâncias mais controversas” (p. 49)), e Nina Jorgensen, “International Criminal
Responsibility in the Two World Wars”, pp. 4-9 (“aqueles que foram condenados
sofreram penas desproporcionalmente baixas e a imprensa e o público alemães
trataram-nos como heróis de guerra” (p. 8)) .

78
Aspectos Polémicos da Extradição

procedimentos criminais viciados, e sem qualquer preocupação pela


equidade e justiça, e a utilização de uma cláusula da não-extradição, para
garantir a impunidade de nacionais por crimes graves cometidos no
estrangeiro. Um dos propósitos deste texto será precisamente de mostrar
que, actualmente, e em determinados espaços, já não faz sentido
continuar-se a utilizar a não-extradição de nacional para proteger
concidadãos de processos criminais, a partir de uma presunção geral de
tratamento discriminatório, mas também advogar que a não-extradição
não resulta necessariamente em impunidade. As justificações pró ou
contra a extradição de nacional deverão ser encontradas em outros
argumentos ou contextos políticos, sendo no entanto certo que não existe
nenhuma ligação necessária entre Estado de Direito e não-extradição de
nacional. Neste sentido, devemos dissociar a questão da extradição de
nacional das suas antigas bases ontológicas e estudá-la dentro dos –
ainda assim complexos –, parâmetros e efeitos que inevitavelmente ela
tem para o Estado de Direito Democrático, inserido numa comunidade
de nações, muitas das quais partilham os mesmos valores públicos de
liberdade, justiça e segurança: por um lado, garantir a efectivação de uma
cooperação internacional entre os membros dessa comunidade no
combate ao crime, especialmente a criminalidade organizada e violenta,
que em alguns casos, faz perigar a estabilidade e a ordem em
determinados Estados, e, por outro, a necessidade de se garantir no
processo, que os direitos humanos e os direitos fundamentais, co-
naturais ao Estado de Direito Democrático e à comunidade liberal de
nações, dos indivíduos sujeitos a uma eventual colocação sob autoridade
de um outro Estado, sejam escrupulosamente respeitados 21. Ora, para

21Em sentido similar, ver Carlos Fernandes, A Extradição e o Respectivo Sistema


Português, Coimbra, Coimbra Editora, 1996, p. 8, que sentencia: “Na extradição,
como no asilo diplomático (ou militar e naval) e no refúgio, estão subjacentes dois
princípios fundamentais, só aparentemente contraditórios: a protecção dos direitos
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José Pina Delgado

garantir esse equilíbrio não parece existir qualquer distinção entre o


estrangeiro e o nacional. Neste sentido, a cláusula constitucional que
proíbe em absoluto a extradição de nacional parece realmente uma
relíquia de um passado remoto de comunidades políticas soberanas, cada
qual à busca da sua própria glória e realização 22.

II. Contextualizando a Discussão sobre a Extradição de


Nacional em Cabo Verde
3. A possibilidade de extradição de nacional cabo-verdiano é
indubitavelmente uma questão polémica, que toca por vezes os nossos
mais elementares sentimentos, mormente os de pertença a uma
comunidade política. Trata-se de uma questão que conheceu alguma
estabilidade na década de noventa, momento em que as opções
constitucionais em matéria de extradição de nacional, aparentemente
não foram questionadas e a prática estatal consistente 23. Imediatamente

humanos essenciais e a não impunidade dos criminosos, isto é, a protecção do


indivíduo contra a vingança e violências desumanas e o princípio da punição de
criminosos, que são bases estruturais do Direito e do Estado de direito, ou seja, o
princípio da efectivação da justiça, interna e internacionalmente”; no mesmo sentido,
representando a doutrina brasileira, Artur Gueiros Souza, As Novas Tendências do
Direito Extradicional, Rio de Janeiro, Renovar, 1998, pp. 97-99, sustentando que
“quem se debruça sobre o estudo das extradições, tanto no direito brasileiro quanto
no estrangeiro, percebe que dois valores se projectam, em nítido antagonismo: de um
lado, o postulado de se optimizar, com eficácia e celeridade, a chamada cooperação
judiciária em matéria penal; de outro, a obrigação que compete ao Estado, de fazer
valer, aos que se encontrem sob sua tutela, os direitos inerentes à condição humana”.
22 Estas palavras foram inspiradas em Martin Manton, “Extradition of Nationals”,

Temple Law Quarterly, v. 10, 1935-1936, p. 24, que, no entanto, e décadas antes, foi
muito mais contundente, chamando a não-extradição de nacional de “criatura da
desconfiança nacional, relíquia de uma ordem civilizacional mais primitiva”.
23 Muito embora seja também desse período a aprovação para ratificação do

“Protocolo de Extradição da CEDEAO” (aprovado para ratificação pela Resolução nº


160/V/00, de 4 de Setembro), Boletim Oficial da República de Cabo Verde, I Série,
nº 27, que no seu artigo referente à extradição de nacional deixa à discrição dos
membros o cumprimento de um pedido de extradição de nacional, porém, estipula
que “a qualidade de nacional aprecia-se com referência à época da comissão da
infracção pela qual a extradição é solicitada” (art. 10), um critério que não se coaduna
com a lei cabo-verdiana da nacionalidade. Ao que parece tratou-se de um descuido

80
Aspectos Polémicos da Extradição

a seguir ao ano 2000, também não se notaram ataques directos à


cláusula da proibição de extradição de nacional 24, com excepção de
alguma discussão, envolvendo o Tribunal Penal Internacional 25, que, a
acreditar nas orientações da República em matéria de negociação externa
e aprovação interna de acordos envolvendo extradição, não sofreu
inflexões claras 26. No entanto, desde que se retomou de forma mais
intensa o tema nos últimos tempos, volta-se a debater, e sempre com a
intensidade que uma questão tão delicada suscita, a hipótese de se
extraditar o nacional cabo-verdiano 27, num quadro evidentemente de

tanto do Governo quanto do Parlamento, que foi resolvido por um outro descuido. É
que, pelo que se sabe, esqueceu-se de mandar as cartas de ratificação, não ocorrendo,
pois a vinculação ao supramencionado protocolo comunitário.
24 Vide a prática do período em João Pinto Semedo, “Cooperação judiciária

internacional em matéria penal”, Revista Direito e Cidadania, a. v, n. 18, 2003, pp.


139-141, com vários exemplos de denegação de pedidos de extradição de nacionais
provenientes dos Estados Unidos da América e de Portugal.
25 Nesta altura, o Governo colocou a hipótese de aderir ao Estatuto de Roma, tendo,

no entanto, recebido um parecer da Comissão Interdisciplinar (ad hoc) para o


estudo do Estatuto do Tribunal Penal Internacional, “Memorandum: das
implicações na ordem jurídica cabo-verdiana na eventualidade da imediata
ratificação da Convenção de Roma de 18 de Julho que instituiu o Tribunal Penal
Internacional”, Praia, Junho de 2002, p. 1 e ss, constituída pelos juristas Eduardo
Rodrigues, José Lopes Graça e Felino Carvalho, a recomendar a necessidade de se
proceder a uma revisão da Constituição antes de o fazer, posição que tivémos a
oportunidade de analisar e criticar num artigo de nossa lavra publicado pouco tempo
depois (José Pina Delgado, “Obstáculos constitucionais à ratificação do Estatuto de
Roma e (outros) problemas de consolidação do Tribunal Internacional Penal:
desenvolvimentos recentes, principalmente relativos a Cabo Verde”, Revista Direito e
Cidadania, n. 19, 2004, pp. 143-194).
26 Por exemplo, é desse período, o “Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária entre

a República Portuguesa e a República de Cabo Verde” (Aprovado para ratificação pela


Resolução nº 98/VI/2004, de 7 de Junho), Boletim Oficial da República de Cabo
Verde, I Série, nº 17, 7 de Junho de 2004, que no seu artigo 54 continua a incluir
entre as causas de recusa da extradição a nacionalidade (“O Estado requerido tem o
direito de recusar a extradição dos seus nacionais e recusa-la-á sempre que a sua
Constituição ou a sua Lei o determine”).
27 A questão recomeçou a ser discutida em Cabo Verde, como demonstra o artigo

“Santuário de criminosos”, A Semana, nº 798, 6 de Abril de 2007, pp. 2-3, depois da


detenção de alguns nacionais suspeitos da comissão de crimes graves, mormente de
terrorismo, em países europeus e que não puderam ser extraditados em razão da sua
nacionalidade. Não obstante, tratar-se de questão recorrente de algum tempo a esta
parte, seja em discussões relativas à adesão ao Tribunal Penal Internacional, seja face
81
José Pina Delgado

lege ferenda, já que é pacífico na doutrina e na jurisprudência que não se


pode neste momento extraditar o nacional 28. Estes mesmos debates já
aconteceram em outros países, com maior ou menor aproximação ao
nosso 29. No entanto, raras vezes é possível manter níveis de
racionalidade adequados, quando se discute a possibilidade de se
extraditar o nacional 30. Se se propõe a manutenção do preceito

a preocupações que têm vindo a ser manifestadas por alguns órgãos de investigação
criminal ou de manutenção da ordem pública. Comprovando esta ideia, o artigo
supra-citado aponta que “a Procuradoria-Geral da República pretende propôr aos
partidos políticos a alteração do artigo 37 da Constituição, por forma a evitar
dissabores num futuro próximo”.
28 Vide, e.g., um despacho do Caso Jean Charles da Silva (“Autos do Pedido de

Detenção Provisória nº 4/2007, Juiz Conselheiro Manuel Alfredo Monteiro Semedo,


12 de Março de 2007, pp. 2-3), em que, sem ambiguidades, se diz que “visto o
preceituado no art. 37/1 da Constituição da República de Cabo Verde, que não admite
a extradição de cidadão cabo-verdiano (…) somos a concluir que o pedido de
extradição não deve ser deferido. Assim sendo, ordeno a soltura imediata do arguido
(…)”.
29 Discutindo num quadro mais jurídico o conteúdo dessas reformas e a evolução do

sistema constitucional português nesta matéria, cf. Nuno Piçarra, “As revisões
constitucionais em matéria de extradição e a influência da União Europeia”, Themis.
Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Edição Especial:
30 Anos da Constituição Portuguesa 1976-2006, 2006, pp. 217-241, artigo no qual o
autor descreve a influência da União Europeia na revisão dos artigos atinentes à
extradição na Constituição da República Portuguesa; veja-se, para caso do Brasil,
Florisbal de Souza del´Olmo, “A extradição na contemporaneidade: breves reflexões”
In: Wagner Menezes (org.), O Direito Internacional e o Direito Brasileiro:
homenagem a José Francisco Rezek, Ijuí, Ed. Unijuí, 2004, p. 794, sustentando que
“é chegado o momento de os legisladores do país verificarem a possibilidade de
inserirem o Brasil no rol dos Estados que deixam de privilegiar delinquentes apenas
pelo facto de serem nacionais” e que, entre a doutrina brasileira, existe larga maioria
favorável à revisão desse dispositivo da Constituição Federal de 1988 (“Gilda Maciel
Corrêa Meyer Russomano, Hildebrando Accioly, Oyama César Ituassú, Rodrigo
Otávio e Luís Ivani de Amorim Araújo, entre outros estudiosos brasileiros, se colocam
a favor da universalidade da extradição, sem excluir os nacionais do Estado
requerido” (p. 784)). Para uma análise de outros dois casos recentes, o alemão e o
polaco, Nuno Piçarra, “A Transposição da Decisão-Quadro Relativa ao Mandado de
Detenção Europeu sob Escrutínio dos Juízes Constitucionais Nacionais – Anotação
aos Acórdãos do Tribunal Constitucional da Polónia”, de 27 de Abril de 2005, e do
Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, de 28 de Julho de 2005”,
Jurisprudência Constitucional, n. 8, 2005, pp. 56-101.
30 Veja-se, ilustrativamente, o relato feito pelo antigo Ministro da Justiça da

República Portuguesa José Vera Jardim, “Por fim podemos extraditar portugueses!
Explicações de um ministro” in: AAVV, A inclusão do outro, Coimbra, Coimbra

82
Aspectos Polémicos da Extradição

constitucional que proíbe a extradição de nacional, está-se a pender para


o lado do terrorismo e do crime organizado e coniventes com a destruição
da estabilidade e quiçá das instituições democráticas da República; se,
pelo contrário, se propugnar pela necessidade de se discutir as virtudes
da manutenção da proibição de extradição de nacional, mais do que
atentar aos direitos fundamentais, algo de per se considerado ignóbil o
suficiente, estar-se-ia a conspirar contra a própria comunidade política,
ao se aventar a hipótese de se entregar parte dela a um Estado
estrangeiro. A meu ver as duas teses parecem pecar pelo seu radicalismo
e por não deduzirem justificações plenamente convincentes, para
fundamentar as respectivas posições. A extradição de nacional não é nem
uma necessidade imperiosa que o Estado de Cabo Verde tem para se
proteger de indivíduos indesejáveis e de ameaças letais, nem
incompatível com o Estado de Direito Democrático, ou por si só um acto
de lesa-pátria ou de violação dos direitos fundamentais dos cidadãos
nacionais.
Seguidamente, cuidarei de examinar alguns argumentos que têm
sido usados, por um lado, para justificar a limitação ou até a eliminação
da cláusula constitucional que proíbe a extradição de cabo-verdiano (2.1)
e aqueles que, de outro lado, fazem parte dos recursos argumentativos
contrários a tais diligências ou, por outras palavras, advogam a
manutenção da cláusula de proibição da extradição de nacional (2.2).

Editora, 2002, pp. 96-97, justificando a revisão de uma cláusula similar da


Constituição lusitana: “a discussão dessa e de outras questões relacionadas com a
revisão constitucional em matéria de extradição não decorreu a meu ver da forma
mais apropriada. Não me refiro à discussão parlamentar e sim à discussão extra-
parlamentar. Algumas intervenções, porventura mesmo donde menos se pode
esperar, roçaram, por vezes, a demagogia. (…). Sabemos que estas questões são
questões sensíveis da nossa sociedade, mas penso que é importante retomar um
debate sereno com vista a encontrar as melhores soluções para o futuro”. Em relação
ao Brasil, a questão é reputada por estudos relativamente recentes, como o de Artur
Gueiros Souza, As Novas Tendências do Direito Extradicional, p. 3, como uma das
mais polémicas desse país.
83
José Pina Delgado

III. Argumentos Pró-Extradição de Nacionais


3.1. O argumento da incapacidade do Estado
4. A ideia de que se deve expurgar do ordenamento jurídico-
constitucional a proibição de extradição de nacional em razão da
incapacidade do Estado de Cabo Verde fazer face a criminosos de alguma
periculosidade 31, foi sustentada por várias autoridades com as mais altas
responsabilidades nos órgãos do Estado cabo-verdiano ou equiparados,
entre as quais o mais alto magistrado da nação, o Presidente da
República, e o antigo Procurador-Geral da República, Franklin Furtado
na qualidade de representante máximo do Ministério Público e de
respeitado jurista do país.
A estrutura deste argumento, ou aquilo que dele se pode
depreender, é relativamente simples. Cabo Verde é um Estado com
poucos recursos, por conseguinte sem condições para garantir a sua
segurança, num contexto de presença no território nacional de
criminalidade altamente organizada e perigosa. Além disso, a nossa rede
penitenciária não teria os índices de segurança necessários para garantir
o cumprimento efectivo da pena por tais presos perigosos, nem para
prevenir evasões ou perturbações graves à ordem prisional.
Na minha opinião, e sem pretender ser extensível, até porque se
trata de objectivo que se deve afastar da filosofia desta publicação
colectiva, o argumento é muito perigoso. De facto, quando assumido da

31 De acordo com o artigo “Santuário de criminosos”, A Semana, nº 798, 6 de Abril de

2007, p. 4, o próprio Presidente da República sustentou esta tese quando em


entrevista emitida pelo canal público de televisão terá alertado para “a perigosa
graduação dos crimes que vêm sendo perpetrados no país nos últimos tempos e da
fragilidade de Cabo Verde para albergar cidadãos cabo-verdianos que, cometendo
crimes em países (sic), acabam por encontrar guarida nessas ilhas”. Alguém exprimiu
a ideia de modo ainda mais claro em declarações ao jornal A Semana (v. “A Semana
põe extradição na ordem do dia: Pires desafia partidos a encontrar solução”, A
Semana, nº 800, 20 de Abril de 2007, p. 4), com as seguintes palavras: “uma fonte
pergunta: como vamos manter na prisão cabo-verdiana um indivíduo que conseguiu
fugir de helicóptero de uma cadeia de alta segurança da França?”.

84
Aspectos Polémicos da Extradição

forma como o foi, por autoridades públicas, praticamente equipara Cabo


Verde a um Estado falhado 32, que não tem capacidade para assumir
funções mínimas de soberania 33, entre as quais estariam a manutenção
da segurança interna, o direito de punir e o exercício de poderes
jurisdicionais que ele próprio se atribuiu por via constitucional,
convencional ou legislativa.
A soberania no direito internacional é uma ficção; todos os Estados
que, após o seu reconhecimento, integram a comunidade das nações,
passam a partir de então a ser considerados formalmente soberanos, e a
gozar de personalidade jurídica, portanto com aptidão para desfrutar de
direitos, entre os quais o de concluir tratados, de ser tratado como igual
ou à não intervenção nos seus assuntos internos, e a ter deveres, cujo
desrespeito acarreta a sua responsabilização na esfera internacional 34. O
problema é que a soberania não se limita a ser uma ficção jurídica, mas
tradicionalmente exigiu alguma correspondência entre o legal e o real 35.
Os desenvolvimentos mais recentes no direito internacional têm

32 Por todos, vide Daniel Thürer, “The Failed State and International Law”,
International Review of the Red Cross, n. 836, 1998, pp. 731-761; Michael Ignatieff,
“State Failure and Nation Building” In: J.L. Holzgrefe & Robert Keohane (eds.),
Humanitarian Intervention: Ethical, Legal, and Political Dilemmas, Cambridge,
UK, Cambridge University Press, 2003, pp. 299-321; Richard S. Williamson, “Nation-
Building: The Dangers of Weak, Failing, and Failed States”, The Whitehead Journal
of Diplomacy and International Relations, v. 7, n. 1, 2007, pp. 9-19.
33 Vide a respeito da evolução do conceito de soberania, Telma Berardo, “Soberania,

um novo conceito?”, Revista Brasileira de Direito Constitucional e Internacional,


São Paulo, a. 10, n. 40, 2002, pp. 21-45.
34 Em geral, cf. Benedict Kingsbury, “Sovereignty and Inequality”, European Journal

of International Law, v. 9, n. 4, 1998, pp. 599-625.


35 Com objectivos muito específicos, Francis Fukuyama, A Construção de Estados.

Governação e Ordem Mundial no Século XXI, Tradução de F. J. Azevedo Gonçalves,


Lisboa, Gradiva, 2006, p. 106, e com muita ironia, põe em evidência o problema:
“soberania, e, portanto, a legitimidade, deixavam de poder ser conferidas
automaticamente ao detentor real do poder num dado país. A soberania do Estado
era uma ficção ou uma piada de mau gosto em países como a Somália ou o
Afeganistão, que tinham caído nas mãos de senhores de guerra”.
85
José Pina Delgado

agudizado essa tendência 36. Um Estado incapaz de exercer determinadas


funções não pode ser verdadeiramente soberano, ficando sob a tutela de
um outro ou da comunidade internacional. Explicitando melhor, o
Estado que, de facto, não consegue exercer essas funções mínimas passa
a gozar, passe a expressão, de uma soberania limitada ou cessa até de ser
soberano, deixando de ter direitos e deveres iguais aos seus congéneres 37.
Em suma, se Cabo Verde ainda não tiver condições de manutenção da
segurança interna e de um sistema prisional com capacidade para
executar sanções criminais contra delinquentes perigosos que as crie; se
não o conseguir é sinal de que está perigosamente num processo de
perda de estadualidade e de soberania. O mínimo que um Estado pode
fazer é conseguir exercer o jus puniendi, e garantir a segurança no seu
território, aliás, duas das mais clássicas funções do Estado Moderno, por
mínimo que seja.
De outra parte, não deixa de ser verdade que a Constituição não
pode ser vista como um contrato que, para estabelecer a comunidade
política, cria as condições para a sua própria destruição. Assim, a Lei
Magna não pode ser, como já disseram alguns, um “Pacto Suicida” 38.

36 Já havia alertado para tais desenvolvimentos num ensaio anterior intitulado “Os

perigos da (não) construção e da (não) Reforma do Estado. Lições de Fukuyama, A


Construção de Estados, para Cabo Verde”, Revista Direito & Cidadania, a. VII, n. 23,
2005, pp. 237-251; ver principalmente Francis Fukuyama, A Construção de Estados.
Governação e Ordem Mundial no Século XXI, passim e Robert Cooper, The
Breaking of Nations: Order and Chaos in the 21st Century, New York, Atlantic
Monthly Press, 2004, passim.
37 Não será esta a ocasião mais indicada para aprofundar esta discussão, de maneira

que se sugere a leitura dos seguintes textos: Alexandros Yannis, “The Concept of
Suspended Sovereignty in International Law and its Implications in International
Politics”, European Journal of International Law, v. 13, n. 5, 2002, pp. 1037-1052;
Stephen Krasner, “The Hole in the Whole: Sovereignity, Shared Sovereignity, and
International Law”, Michigan Journal of International Law, v. 25, n. 4, 2004, pp.
1075 -1112.
38 Cf., por todos, Richard Posner, Not a Suicide Pact. The Constitution in a Time of

National Emergency, Oxford/New York, Oxford University Press, 2006, citando um


voto do Juiz Robert Jackson no Caso Terminiello v. Cidade de Chicago (1949),

86
Aspectos Polémicos da Extradição

Porém, em relação a este aspecto, duas coisas podem ser ditas. Antes de
mais, as Constituições, mesmo as liberais-democráticas, possuem
mecanismos de defesa que, em princípio, lhes permitem fazer face a
momentos de excepção 39. No caso de Cabo Verde, perante situações que
o justifiquem, a possibilidade de declaração do estado de emergência ou
até do estado de sítio sempre está presente 40, implicando,
nomeadamente a suspensão temporária de determinados direitos
fundamentais e a concessão de poderes mais alargados aos poderes
públicos para proteger a Lei Fundamental 41. Aliás, a rigor, é possível até
discutir-se se, em razão disso, temos realmente neste momento uma

segundo o qual “a escolha não é entre ordem e liberdade. É entre liberdade com
ordem e anarquia sem um nem outro. Existe o perigo de, se o Tribunal não temperar
a sua lógica doutrinária com alguma sabedoria prática, converter o regime
constitucional de direitos fundamentais num pacto suicida”.
39 Em geral sobre esta matéria, cf. Jorge Bacelar Gouveia, O estado de excepção no

Direito Constitucional – Entre a eficiência e a normatividade das estruturas de


defesa extraordinária da Constituição, Coimbra, Almedina, 1998, vs. I e II.
40 Os dispositivos relevantes da Constituição cabo-verdiana estabelecem o seguinte:

artigo 265 – “O estado de sítio só pode ser declarado, no todo ou em parte do


território nacional, no caso de agressão efectiva ou iminente do território nacional
por forças estrangeiras ou de grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional”;
art. 266 – “O estado de emergência será declarado, no todo ou em parte do território
nacional, em caso de calamidade pública ou de perturbação da ordem constitucional
cuja gravidade não justifique a declaração do estado de sítio”. Para comentários sobre
o sistema cabo-verdiano da excepção constitucional, vide Jorge Bacelar Gouveia, O
estado de excepção no Direito Constitucional – Entre a eficiência e a normatividade
das estruturas de defesa extraordinária da Constituição, pp. 769-771, obra, no
entanto, publicada antes da última revisão da Constituição da República.
41 Cita-se, mais uma vez, a emblemática obra de Jorge Bacelar Gouveia, O estado de

excepção no Direito Constitucional – Entre a eficiência e a normatividade das


estruturas de defesa extraordinária da Constituição, p. 839, onde se sustenta que “a
ideia de expansibilidade do poder público, em resultado da suspensão dos direitos
fundamentais, não equivale, portanto, a uma efectiva intervenção de tal poder
público, mas apenas na possibilidade de isso acontecer. Isso explica-se facilmente se
considerarmos a estrutura dos direitos fundamentais enquanto instrumento de
limitação do poder público, maxime do poder legislativo. É que, para além da eficácia
privada de tais direitos, maior ou menor consoante as circunstâncias, os direitos
fundamentais representam punções específicas sobre o poder público geral, zonas de
vedação de intervenção segundo o sentido da defesa dos bens constitucionalmente
protegidos por seu intermédio. Uma vez “levantada” a barreira que proibia a
intervenção do poder público, esse poder, principalmente o legislativo, como que se
“expande”, ainda que temporariamente, para essas zonas”.
87
José Pina Delgado

proibição absoluta da extradição de nacional, ou se, em situações de


excepção, ela poderia ser levantada 42. Ademais, em situações de excepção
incontrolável, digamos, uma excepção política no sentido mais estrito, e
schmittiano, da palavra 43, supondo que a República está à beira da
destruição real, as autoridades, mormente o poder executivo, podem
tudo fazer, e mesmo tudo, para a salvar, ficando, no entanto,
responsáveis pelos actos cometidos 44. Não será, com toda a certeza, a
Constituição, ou qualquer outra lei, a impedir que um Estado lute pela
sua própria sobrevivência contra inimigos internos e externos 45, e tão
pouco a situação seria causada isoladamente pela cláusula da proibição

42 Sendo certo, no entanto, que, dependendo da forma como a suspensão for feita,
poderá eventualmente ocorrer violação de um dever de generalidade ou até de
igualdade, particularmente se a medida visar um grupo específico de pessoas que se
pretenda extraditar, podendo argumentar-se que o sistema cabo-verdiano não
permite a suspensão individual de direitos fundamentais. A respeito desta questão
ver também Jorge Bacelar Gouveia, O estado de excepção no Direito Constitucional –
Entre a eficiência e a normatividade das estruturas de defesa extraordinária da
Constituição, pp. 844-846.
43 No sentido que lhe é dado por Carl Schmitt, “Teologia Política I. Cuatro capítulos

sobre la teoria de la soberania” In: Héctor Orestes Aguilar (comp.), Carl Schmitt,
Teólogo de la Política, México, D.F., Fondo de Cultura Económica, 2001, p. 23, “É
soberano quem decide o estado de excepção. Esta definição é a única que faz justiça
ao conceito de soberania como conceito limite. Um conceito limite não é algo
confuso, como é usual utilizar-se na terminologia imprecisa da literatura popular,
mas sim um caso extremo. Por conseguinte, a sua definição não se pode basear no
caso normal mas sim no caso limite. Continuando, deixar-se-á claro que se deve
entender por estado de excepção um conceito geral de teoria do estado, não um
decreto de emergência ou um estado de sítio qualquer. O facto de que num sentido
amplo o estado de excepção seja idóneo para a definição jurídica da soberania tem
um motivo lógico-jurídico sistemático. A decisão sobre a excepção é uma decisão no
sentido amplo da palavra. Uma norma geral, como a representa a norma jurídica com
validade consuetudinária, nunca pode abarcar a excepção absoluta e por fim tão
pouco fundamentar a decisão sobre a existência de um verdadeiro caso excepcional”.
44 Cf. em sentido e contexto similar, a discussão empreendida por Jack Goldsmith,

The Terror Presidency. Law and Judgment inside the Bush Administration, New
York/London, W.W. Norton, 2007, passim, principalmente 141 e ss.
45 Mesmo em situações de completa e legítima submissão, nenhuma entidade deverá

estar legalmente vinculada a não resistir quando a sua existência está em perigo,
como o demonstra o clássico exemplo de Thomas Hobbes, Leviathan, C.B.
McPherson (ed.), London, Penguin, 1985, cap. XXI, pp. 268-270, sobre os limites aos
poderes do Estado em relação ao indivíduo.

88
Aspectos Polémicos da Extradição

da extradição de nacional, mas por uma incapacidade geral da


Constituição e das autoridades da República em se adaptar a novas
situações e ameaças concretas. Neste sentido, não é tão relevante
equiparar as situações.

3.2. O argumento da adesão ao Tribunal Penal


Internacional 46
5. Um outro argumento que tem sido utilizado pelas entidades e
individualidades favoráveis à revisão da cláusula da proibição da
extradição de nacional é o da adesão ao Tribunal Penal Internacional 47.
Por uma série de motivos, alguns dos quais aceitáveis, e que procurarei
arrolar e discutir em seguida, também não me parece a melhor
justificação. Primeiro, por uma questão de precedência. De facto, o país
deveria estar mais preocupado com a cooperação com os dois tribunais
ad hoc estabelecidos pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas do
que com o Tribunal Penal Internacional 48. Cabo Verde, neste momento,

46 Recuperamos aqui ponderações realizadas no âmbito de um outro escrito de nossa


autoria, para o qual remetemos para aprofundamentos: José Pina Delgado,
“Obstáculos constitucionais à ratificação do Estatuto de Roma e (outros) problemas
de consolidação do Tribunal Internacional Penal: desenvolvimentos recentes,
principalmente relativos a Cabo Verde”, pp. 143-194; recomenda-se igualmente a
leitura de Helen Duffy, “National Constitution Compatibility and the International
Criminal Court”, Duke Journal of Comparative and International Law, v. 11, n. 1,
2001, pp. 5-38, e Paul Rabbat, “Aut dedere aut judicare: Constitutional Prohibitions
on Extraditions and the Statute of Rome”, Revue Quebecoise de Droit International,
v. 15, 2002, pp. 179-204.
47 Este argumento foi utilizado por exemplo pelo antigo Ministro da Justiça, José

Manuel Andrade, sustentando que “o problema não se coloca apenas em relação à


extradição ou não de nacionais cabo-verdianos. Cabo Verde precisa aderir ao
Tribunal Penal Internacional e a extradição coloca-se, uma vez mais ao legislador
cabo-verdiano, já que um dos pontos do TPI prevê a extradição de indivíduos
acusados de crimes contra a humanidade. Portanto, mais cedo ou mais tarde, teremos
que decidir o que fazer em relação a este assunto”. Citado por “A Semana põe
extradição na ordem do dia: Pires desafia partidos a encontrar solução”, A Semana,
p. 4.
48 Está claro tratar-se de um argumento, de certa forma, académico, pois a solução

para um dos casos (do TPI) também seria necessariamente dos outros (dos tribunais
89
José Pina Delgado

não tem obrigação de cumprir qualquer pedido de cooperação judiciária


proveniente do Tribunal Penal Internacional, pelo simples facto de que
dele não fazemos parte, mas tem, sem sombras para quaisquer dúvidas,
de cumprir pedidos no mesmo sentido provenientes de um dos tribunais
ad hoc 49.
Em segundo lugar, condicionar a adesão a instituições judiciárias
internacionais, como o Tribunal Penal Internacional, ou no pressuposto
de que, assim sendo, teria capacidade para cooperar com outras mais
mandatoriais como o Tribunal Penal Internacional para a Antiga
Jugoslávia (TPIAJ) e o Tribunal Penal Internacional para o Ruanda
(TPIR) 50, com base na concepção de que para concretizar tais fins é
necessário levantar ou limitar a proibição de extradição de nacional, é
uma solução, com o devido respeito, desfocada. A preocupação, é
verdade, não é descabida, pois, no que diz respeito ao Tribunal Penal
Internacional, o Estado de Cabo Verde poderá ter interesse em aderir e
fazer parte de uma instituição que tem por objecto julgar os mais graves
crimes contra a humanidade, mas qualquer adesão sempre resultará de
um acto de vontade do Estado, em relação aos dois tribunais ad hoc
acima mencionados, não se trata sequer de uma opção. Por terem sido
criados pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas com base no

Ad hoc). Ao fim e ao cabo, dizem respeito ao mesmo problema. De todo o modo, para
benefício da precisão jurídica e da precedência de obrigações, torna-se necessário
fazer esta pequena incursão.
49 Para desenvolvimentos, cf. o nosso José Pina Delgado, “Obstáculos constitucionais

à ratificação do Estatuto de Roma e (outros) problemas de consolidação do Tribunal


Internacional Penal: desenvolvimentos recentes, principalmente relativos a Cabo
Verde”, pp. 159-163, e complementarmente, Shuichi Furuya, “Legal Effect of Rules of
the International Criminal Tribunals and Court upon Individuals: Emerging
International Law of Direct Effect”, Netherlands International Law Review, v. 47, n.
2, 2000, pp. 111-130.
50 Para um levantamento das principais características desses tribunais, ver o nosso

José Pina Delgado & Liriam Tiujo, “Tribunais penais internacionais” In: Welber
Barral (org.), Tribunais internacionais: meios contemporâneos de solução de
controvérsias, Florianópolis, Fundação Boiteux, 2004, pp. 60-76.

90
Aspectos Polémicos da Extradição

Capítulo VII da Carta, qualquer pedido de cooperação, inclusivamente de


entrega de cidadão nacional, deverá ser cumprido de imediato, sob pena
de aplicação de medidas não-coercivas ou mesmo coercivas 51 (que não se
pense ser uma hipótese distante e académica, pois, ainda que em
contexto diferente, foi aplicada contra a Líbia, quando esta se recusou,
com base em proibição constitucional, a extraditar dois nacionais
suspeitos pelo atentado que vitimou uma aeronave da Pan Am que caiu
sobre Lockerbie na Escócia 52- 53).
Efectivamente, desde a criação do TPIAJ em 1993, está firmemente
estabelecida a distinção entre duas modalidades de cooperação judiciária
em matéria penal 54. Antes de tudo, a tradicional colocação de pessoa sob
autoridade de outro Estado, quer seja para fins de processo criminal quer
seja para cumprimento de pena, a extradição, submetida a um processo

51 De acordo com o artigo 39 da Carta das Nações Unidas, “O Conselho de Segurança


determinará a existência de qualquer ameaça à paz, ruptura da paz ou acto de
agressão e fará recomendações ou decidirá que medidas deverão ser tomadas de
acordo com os artigos 41º e 42º, a fim de manter ou restabelecer a paz e a segurança
internacionais”.
52 A respeito deste caso, cf. Christopher Joyner & Wayne Rothbaum, “Lybia and the

Aerial Incident at Lockerbie: What Lessons for International Extradition Law?”,


Michigan Journal of International Law, v. 14, n. 2, 1992-1993, pp. 222-261, Sami
Shubber, “The Destruction of Aircraft in Flight over Scotland and Niger: The
Questions of Jurisdiction and Extradition under International Law”, The British Year
Book of International Law, v. 66, 1995, pp. 239-282; Michael Plachta, “The
Lockerbie Case: The Role of the Security Council in Enforcing the Principle of Aut
Dedere Aut Judicare”, European Journal of International Law, v. 12, n. 1, 2001, pp.
125-140.
53 Algo similar ocorreu com a extinta Federação Jugoslava que foi obrigada, sem

embargo da existência de clara proibição constitucional de extradição de nacional, a


entregar o antigo Chefe de Estado Slobodan Milosevic ao TPIAJ (v. Konstantinos
Magliveras, “The Interplay Between the Transfer of Slobodan Milosevic to the ICTY
and Yugoslav Constitutional Law”, European Journal of International Law, v. 13, n.
3, 2002, pp. 661-677).
54 Para traduções não oficiais de parte do regime jurídico do Tribunal Penal

Internacional para a Antiga Jugoslávia, vide: Maria José Rangel de Mesquita (org.),
Direito Internacional Penal e Ordem Jurídica Portuguesa. Textos básicos, Lisboa,
Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2006, p. 45 e ss.
91
José Pina Delgado

solene, sujeito a prévia decisão política 55, e ao cumprimento de uma série


de princípios jurídicos internos (dupla incriminação, especialidade,
proporcionalidade, ne bis in idem 56) que o transformam num processo
extremamente moroso, e a colocação de pessoa sob autoridade de
instituição penal internacional (ou no quadro de um processo avançado
de integração regional) para fins de processo criminal ou cumprimento
de pena, em que por razões de confiança recíproca entre as partes, ou de
controlo sobre os mecanismos de decisão da outra, existe um processo
simplificado, em que se prescinde de uma série de garantias
normalmente exigidas no caso da extradição, a entrega 57.
Ora bem, neste sentido não existe uma única orientação, formal ou
material, na Constituição da República que proíba a entrega de nacional
a tribunal internacional; proíbe sim a sua extradição para outros
Estados 58, sem embargo da ausência de previsão constitucional explícita

55 Veja-se paradigmaticamente o que estabelece o parágrafo 2º do artigo 99 do

Decreto Legislativo nº 6/97 (Lei do Estrangeiro), de 5 de Maio, Boletim Oficial da


República de Cabo Verde, I Série, nº 17, 1997, p. 328: “A fase administrativa é
destinada à apreciação do pedido de extradição pelo Governo para o efeito de decidir
se ele pode ter seguimento por razões de ordem política, de oportunidade ou de
conveniência”.
56 Cf. “Decreto Legislativo nº 6/97 (Lei do Estrangeiro)”, art. 90 e art. 107; sobre estes

princípios na legislação cabo-verdiana, cf. João Pinto Semedo, “Cooperação judiciária


internacional em matéria penal”, pp. 131-134; comparativamente, ver Artur Gueiros
de Souza, As novas tendências do direito extradicional, pp. 17-25, para o caso do
Brasil, e as conclusões de Carlos Fernandes, A Extradição e o Respectivo Sistema
Português, pp. 89-90, sobre o sistema português.
57 A respeito desta distinção, ver também Michael Plachta, “European Arrest

Warrant: Revolution in Extradition?”, European Journal of Crime, Criminal Law


and Criminal Justice, v. 11, n. 2, 2003, pp. 190-194, e, em especial, Pedro Caeiro, “O
procedimento de entrega previsto no Estatuto de Roma e a sua incorporação no
direito português”, In: Vital Moreira; Maria Leonor Assunção; Pedro Caeiro & Ana
Luísa Riquito (orgs.), O Tribunal Penal Internacional e a ordem jurídica
portuguesa, Coimbra, Coimbra Editora, 2004, p. 78, que afirma categoricamente ser
esta uma “forma de cooperação em que o sujeito requerente [a instituição
internacional] é o verdadeiro dominus de um procedimento onde o requerido [o
Estado] tem uma função meramente ancilar”.
58 Ver a este respeito o nosso José Pina Delgado, “Obstáculos constitucionais à

ratificação do Estatuto de Roma e (outros) problemas de consolidação do Tribunal

92
Aspectos Polémicos da Extradição

de privação de liberdade em processos de “entrega”, como salientaram


recentemente eminentes juristas cabo-verdianos provenientes tanto da
prática 59 quanto da academia 60. Logo, pode-se perfeitamente aderir ao

Internacional Penal: desenvolvimentos recentes, principalmente relativos a Cabo


Verde”, pp. 148-153, e o antigo Chefe de Governo e reputado jurista Carlos Veiga,
chegou à mesma conclusão (“Há uma diferença entre extradição e entrega. No caso
do TPI estamos a entregar alguém a um tribunal do qual somos parte. Eu defendo
que não são situações iguais. Por isso não acho que seja necessária nenhuma revisão
da CR para se entregar alguém ao TPI. Quando à extradição estamos a entregá-lo a
outro país”), Numa recente entrevista (“O Debate que faz História: Carlos Veiga e
José Maria Neves, Encontro Inédito”, A Semana, Especial Destaque, 10 de Outubro
de 2008, p. 18).
59 O texto do Juiz José Luís Jesus, “Extradição de cidadãos cabo-verdianos na

Constituição de Cabo Verde: como evitar que a disposição constitucional da não


extradição de nacionais se transforme numa inaceitável fuga à justiça”, neste volume,
tem o grande mérito de ter introduzido no debate um dispositivo constitucional até
então negligenciado, o artigo 29 da Constituição da República, como impedimento à
ratificação do Estatuto de Roma (“Não estamos, no entanto, convencidos de que essa
diferença, ainda que exista ao nível defendido pelos seus apoiantes, lá fora como cá
dentro, faz desaparecer a lógica que existe por detrás da inserção de uma disposição
da não extradição de nacional. A nosso ver a proibição da extradição de nacional, que
existe, aliás, como atrás ficou dito, em muitos países de diferentes quadrantes
geográficos e políticos, tem a ver mais com a afirmação da soberania do Estado sobre
os seus cidadãos, principalmente quando estes se encontrem no seu território e com a
protecção que o Estado deve aos seus cidadãos e menos com o mecanismo através do
qual o Estado se desembaraça do seu nacional acusado. No caso de Cabo Verde a não
menção do termo “entrega” na disposição constitucional que impede a extradição de
nacionais não quer dizer que o legislador constitucional quisesse dar um tratamento
diferente à entrega de cidadãos a tribunais estrangeiros daquele que deu à extradição.
A razão por que se fala de extradição na Constituição reside no facto de que a
transferência de pessoas acusadas de crime até ao tratado de Roma só se fazia para
Estados na medida em que não existiam tribunais penais internacionais. O espírito da
disposição constitucional da não-extradição parece abranger qualquer forma de
entrega de nacional a uma jurisdição estrangeira para nela ser julgado pela prática de
possíveis crimes. Esta interpretação parece resultar muito reforçada em vista do
disposto no artigo 29, designadamente nos números 2 e 3”). Deve-se admitir que,
parcialmente, as considerações do autor introduzem um verdadeiro desafio para a
tese da compatibilidade entre a Constituição da República e o Estatuto do Tribunal
Penal Internacional, mas parece que a um nível mais formal do que substancial.
Nesta dimensão, na verdade, partem de conceitos e factos pouco consensuais.
Primeiro, dizer que o legislador constitucional só falou de extradição e não de entrega
porque em 1992 só se colocava indivíduo sob autoridade de um Estado e nunca de um
tribunal penal internacional, é desconsiderar que em 1999, num momento em que
pelo menos três deles já haviam sido criados, esse mesmo legislador promoveu uma
abrangente revisão da constituição; segundo, é muito questionável apresentar-se o
Tribunal Penal Internacional e os dois tribunais ad hoc criados pelo Conselho de
Segurança das Nações Unidas como “tribunais estrangeiros” à luz da Constituição da
93
José Pina Delgado

República. Outrossim, é ela própria que prevê a existência de tribunais


internacionais, instituídos através de “tratados, convenções ou acordos internacionais
de que Cabo Verde seja parte, em conformidade com as respectivas normas de
competência e de processo” (art. 209.2), considerando claramente que um tribunal
estabelecido em tais condições não é um “tribunal estrangeiro”, resultado da
manifestação de uma soberania estranha, mas, ao invés, um “tribunal internacional”,
produto da manifestação conjunta e partilhada da vontade de várias soberanias, entre
as quais do próprio Estado de Cabo Verde; terceiro, por esses motivos, não me parece
o mais certo considerar-se que a filosofia da proibição da extradição de nacionais,
como se disse calcada no pressuposto da protecção de nacional de uma soberania
estrangeira, possa ser aplicada ao caso de uma entrega a um tribunal penal
internacional, do qual não se pode deixar de considerar que o próprio Estado faz
parte; por outro lado, o recurso ao artigo 29. 3 da Constituição da República, introduz
um problema efectivo, à medida que realmente não consagra a possibilidade de
privação de liberdade em processos de entrega, somente de extradição, o que não
impede uma interpretação sistemática da Constituição nesse sentido, pois
evidentemente se se autoriza a privação de liberdade num processo conducente a
submissão de um indivíduo a um outro Estado – extradição – seria razoável
pressupor-se que se autorizaria a sua colocação sob autoridade de uma instituição
judiciária que o Estado de Cabo Verde seja parte – entrega –, nos moldes descritos na
nota seguinte, mas, em todo o caso, teria que ser forçosamente lida de forma muito
restritiva.
60 O meu caro amigo e ilustre penalista cabo-verdiano Jorge Carlos Fonseca,

“Extradição nos Países de Língua Oficial Portuguesa: o Caso de Cabo Verde”,


Conferência Entrega Internacional de Pessoas: Uma Visão Intercontinental, Lisboa,
Centro de Estudos Judiciários/Academia de Direito Europeu, 6-7 Novembro
(arquivado com o autor), a quem agradeço pelos desafios quase inultrapassáveis que
me colocou, teorizando sobre a “descoberta” de José Luís Jesus, considera que tal
interpretação (a da nota anterior) seria totalmente contrária a princípios basilares de
Direito Penal (proibição da analogia) e particularmente regras fundamentais de
interpretação. Concordo parcialmente com as observações feitas no manuscrito
supra-citado, muito embora acredite que questões hermenêuticas estão longe de
apresentar um carácter único e certo, existindo ainda muitas zonas de penumbra
evidenciadas por teóricos e filósofos do Direito. Por exemplo, poderíamos discutir
com alguma razoabilidade se o artigo 29 impediria a privação de liberdade de
prisioneiros de guerra de um Estado inimigo de Cabo Verde num conflito armado
numa situação de inexistência de declaração do estado de sítio. Seja como for, a ideia
da interpretação sistemática esposada no comentário às teses do Juiz Jesus não está
directamente relacionada à introdução de “excepções” às “excepções”. Na realidade,
pressupõe que, ao permitir que a justiça seja administrada por “tribunais instituídos
através de tratados, convenções ou acordos internacionais de que Cabo Verde seja
parte, em conformidade com as respectivas normas de competência e de processo”
(art. 209.2), tributária da concepção de acordo com a qual um tribunal internacional
também é tribunal cabo-verdiano por força do consentimento que se expressa com
uma eventual vinculação, a Constituição transforma este tribunal internacional num
caso concreto em verdadeiro tribunal doméstico e o procedimento em verdadeiro
procedimento interno, susceptível, com a intermediação formal de autoridades
judiciais cabo-verdianas, de decretação de prisão preventiva (se se justificar)
enquanto se analisam os aspectos formais – e só formais – da entrega do suspeito, ou

94
Aspectos Polémicos da Extradição

detenção para efeitos de entrega a autoridade internacional depois daqueles serem


verificados. Por conseguinte, a privação de liberdade necessária para se efectivar um
pedido de entrega já estaria coberta pelas próprias possibilidades explicitamente
estabelecidas pelo artigo 29 porque o Tribunal Penal Internacional, caso Cabo Verde
se vincule ao Estatuto de Roma, transforma-se em verdadeiro tribunal cabo-verdiano
e as suas autoridades em verdadeiras autoridades cabo-verdianas e, por fim, como diz
o artigo 209 da sua Constituição, as suas “normas de competência e processo” em
verdadeiras “normas de competência e processo” da República de Cabo Verde.
Aliás, a experiência constitucional portuguesa que se traz à colação, na realidade,
reitera precisamente a posição defendida por este autor neste e noutro artigo. Mesmo
depois da sua vinculação ao Tribunal Penal Internacional e da revisão da Constituição
da República para acomodar tal enlace convencional, o artigo 27 da Lei Magna
lusitana (que equivale ao artigo 29 da Constituição da República de Cabo Verde)
continua a omitir qualquer referência à entrega. Ora, dessa premissa não se pode
inferir que o Estado português não pode, neste momento, privar portugueses da sua
liberdade para efeitos de entrega ao Tribunal Penal Internacional, ao Tribunal Penal
Internacional para a Antiga Jugoslávia, ao Tribunal Penal Internacional para o
Ruanda ou no espaço europeu. São tribunais ou procedimentos que são igualmente
portugueses e, portanto, o acto de cooperação com tais instituições – Tribunal Penal
Internacional – ou no quadro de tais procedimentos – o Mandado de Detenção
Europeu –, não precisa de uma referência especial no texto constitucional.
Ademais, o artigo 33 da Constituição da República Portuguesa, regra geral, dispõe
fundamentalmente das relações tradicionais de cooperação judiciária – Estado a
Estado – e, com raras excepções, das que se dão entre Estado-Instituição
Internacional da qual faz parte ou no quadro de processos de integração regional. Por
isso a necessidade de explicitar que “não prejudica a aplicação das normas de
cooperação judiciária em matéria penal estabelecidas no âmbito da União Europeia”
(para. 5). O parágrafo 6 é neste sentido curioso, por estabelecer um limite absoluto
em relação a qualquer modalidade de cooperação judiciária (extradição ou entrega):
pedido fundado em motivos políticos ou procedimentos que podem resultar na
aplicação de pena de morte ou lesão irreversível à integridade física. No entanto, fá-lo
reconhecendo explicitamente a diferença nominal entre uma e outra, e, ademais,
estabelecendo regimes jurídicos claramente distintos entre elas, portanto dando-lhe
dimensão substantiva. Não se pode, com efeito, de modo algum, utilizar o dispositivo
para negar o reconhecimento pela Constituição da República Portuguesa da distinção
entre entrega e extradição. Tanto reconhece, nomeadamente em relação à pena
aplicável, que estabelece três regimes claramente distintos: a) o primeiro para a
extradição de nacional (paras. 3 e 4), sujeita a reciprocidade e limitada materialmente
aos crimes de terrorismo e factos puníveis ligados à criminalidade organizada
transnacional, bem como a garantia de um processo justo e equitativo e de não
aplicação de pena ou medida de segurança de carácter perpétuo ou indefinido (para.
4), além da não aplicação de pena de morte ou lesão irreversível à integridade física
(para. 6); b) o segundo para a extradição de estrangeiro, claro está para outro Estado,
que dispensa qualquer reciprocidade estrita, não está limitada materialmente a
crimes graves, mas pode abranger quase todos os tipos penais, exigindo-se, no
entanto, as mesmas garantias de não aplicação de pena ou medida de segurança de
carácter perpétuo ou indefinido (para. 4), além da aplicação de pena de morte ou
lesão irreversível à integridade física (para. 6), e, c) a entrega, de cidadão estrangeiro
ou nacional, a uma instituição internacional ou no âmbito da União Europeia, que

95
José Pina Delgado

Tribunal Penal Internacional e cumprir qualquer pedido de cooperação


judiciária em matéria penal proveniente de um dos dois tribunais ad hoc
que implique na colocação sob sua autoridade de pessoa, sem que seja
necessário expurgar ou limitar o preceito constitucional que proíbe a
extradição de nacional 61.

3.3. O argumento do santuário de criminosos


6. Um terceiro argumento diz respeito à concepção difundida por
alguns, de que, da regra jusfundamental em análise, resultaria a
impunidade de criminosos, que, tendo conhecimento da protecção do
sistema constitucional 62, acabariam por se refugiar em Cabo Verde com o
fito de garantirem protecção em relação a qualquer procedimento

somente limita o acto de cooperação a questões politicamente motivadas ou


procedimentos que podem resultar na aplicação de pena de morte ou lesão
irreversível à integridade física, portanto permitindo-a em casos de aplicação de pena
de prisão perpétua.
61 José Pina Delgado, “Obstáculos constitucionais à ratificação do Estatuto de Roma e

(outros) problemas de consolidação do Tribunal Internacional Penal:


desenvolvimentos recentes, principalmente relativos a Cabo Verde”, p. 152, onde
sustentei que “a proibição constitucional de extraditar nacional para ser processado
criminalmente por outro Estado não visa impedir a sua transferência para uma
instituição internacional que, aliás, o próprio Estado deu a sua anuência e verificou o
grau de tratamento que os seus nacionais nela teriam”. Aliás, o Grupo Parlamentar do
MPD, “Projecto de Lei de Revisão Constitucional do Movimento para a Democracia
(2ª Revisão Ordinária)”, Praia, 2005, intui esta distinção quando propõe um novo
parágrafo para o artigo 37: “O disposto no presente artigo não prejudica o dever de
colaboração na apresentação de cidadãos cabo-verdianos arguidos perante tribunais
instituídos através de convenções internacionais de que Cabo Verde seja parte, nos
termos do artigo 209, nº 2, da Constituição”. Apesar da terminologia merecer reparos
técnicos, e de não se saber ao certo quais as intenções do dispositivo, o facto é que foi
feita uma distinção clara entre dois casos diferentes, num normativo que, quando
muito, teria uma natureza declarativa e não constitutiva.
62 Em contexto distinto, mas com similitudes à questão ora analisada, Carlos

Fernandes, A Extradição e o Respectivo Sistema Português, p. 7, disse: “Como


corolário, da parte do criminoso, para evitar um julgamento ou o não cumprimento
de uma pena, foge-se para o estrangeiro, procurando o país onde a extradição seja
mais difícil, tentanto assim quer a impunidade (…)”.

96
Aspectos Polémicos da Extradição

criminal ou execução de pena 63. De facto, fica claro, que, no nosso


ordenamento jurídico, não se pode inferir da premissa da não-extradição
de nacional, a impunidade de criminosos perigosos, com excepção de
situações muito residuais. Regra geral, os sistemas criminais,
independentemente de aceitarem ou não a extradição de nacional,
possuem mecanismos de equilíbrio. Conforme já mencionámos, os países
da common law permitem a extradição de nacional, mas não atribuem
jurisdição aos seus tribunais para julgar crimes cometidos pelos seus
nacionais fora do seu território; em sentido convergente, no sistema
continental europeu, alguns países proíbem a extradição de nacional,
mas garantem normalmente jurisdição aos seus tribunais para julgar
nacionais por crimes cometidos no estrangeiro 64. É o caso de Cabo Verde,
mesmo não podendo extraditar nacionais, os tribunais do país têm, por
princípio, ainda que limitado, jurisdição sobre qualquer crime por ele
cometido no estrangeiro 65. A Constituição da República já o prevê no
próprio artigo 37, apesar de, neste quesito, não se tratar de um dever
imposto pela Constituição ao legislador ordinário, mas de uma mera

63 Uma ideia que também decorre de intervenções oficiais. Realçando este ponto o

antigo Ministro da Justiça destaca que “Nisto tudo o que não queremos é que Cabo
Verde sirva de guarida para criminosos”. Vide: “A Semana põe extradição na ordem
do dia: Pires desafia partidos a encontrar solução”, A Semana, p. 4.
64 Ver discussões a este respeito, incluindo actualização dos termos desta distinção,

no sentido de uma interpretação progressivamente mais convergente entre os dois


sistemas, Michael Plachta, “(Non) Extradition of Nationals: a Neverending Story?”, p.
118, “enquanto a jurisdição, na maioria dos sistemas de justiça criminal, mantém-se
desenhada de acordo com linhas territoriais, a tendência crescente para “esticar” as
fronteiras territoriais para abranger eventos extra-territoriais e a inclusão flexível de
crimes indubitavelmente extra-territoriais põe em causa esta distinção. Do mesmo
modo, juristas de tradição continental reconheceram que interesses territoriais são a
primeira consideração numa decisão de processar, mesmo quando a jurisdição sobre
o caso é estabelecida com base no princípio da personalidade”.
65 Histórica e logicamente, dever-se-á entender a adopção da jurisdição com base na

nacionalidade do agente (personalidade activa), como “uma consequência da


proibição de entregar nacionais; em outras palavras, o Estado não tem outra opção
além de processar, ele próprio, os seus cidadãos por não poder extraditá-los”
(Michael Plachta, “(Non) Extradition of Nationals: a Neverending Story?”, p. 119).
97
José Pina Delgado

faculdade que se lhe dá 66. Com efeito, contempla-se, no artigo 4º do


Código Penal da República de Cabo Verde, de entre diversos mecanismos
de atribuição de jurisdição – sendo o baseado no território o principal 67 –
o que se funda na nacionalidade do agente, desde que, cumulativamente,
ele seja “encontrado em Cabo Verde, os factos sejam igualmente puníveis
pela legislação dos lugares em que tiverem sido praticados e constituírem
crime que legalmente admita extradição e esta não pode em concreto ser
concedida” 68.
Logo, na maior parte das situações, existindo vontade das
autoridades em perseguir devidamente esses crimes, a esmagadora
maioria dos casos pode ser, em teoria, abrangida 69- 70. Assim, se se

66 Lei Constitucional nº 1/99, de 23 de Novembro, Boletim Oficial da República de


Cabo Verde, I Série, n. 43, 23 de Novembro de 1999, art. 16), estabelecendo nova
redacção ao dispositivo relativo à proibição de extradição de nacional: “Não é
admitida a extradição de nacional, que pode responder perante os tribunais cabo-
verdianos pelos crimes cometidos no estrangeiro (Art. 37.1).
67 De modo, aliás, concordante com a prática internacional e comparada, como atesta

a precisa sentença de Luís Benevides, “The Universal Jurisdiction Principle: Nature


and Scope”, Anuário Mexicano de Derecho Internacional, v. 1, 2001, pp. 19-96: “a
territorialidade é considerada a base principal de atribuição de jurisdição” (p. 23).
68 Veja-se “Código Penal de Cabo Verde (aprovado pelo Decreto Legislativo nº

4/2003, de 18 de Novembro)”, Boletim Oficial da República de Cabo Verde, I Série,


n. 38, 18 de Novembro de 2003, art. 4º (“Salvo convenção internacional em
contrário, a lei penal cabo-verdiana é aplicável a factos praticados fora do território
nacional nos seguintes casos: (…) d) quando forem cometidos por cabo-verdianos (…)
desde que o agente seja encontrado em Cabo Verde, os factos sejam igualmente
puníveis pela legislação dos lugares em que tiverem sido praticados e constituírem
crime que legalmente admita extradição e esta não pode em concreto ser concedida”
(p. 16)).
69 Em Cabo Verde, neste mesmo sentido, Carlos Veiga: “O julgamento que ocorreu em

São Vicente é bem elucidativo de uma solução. Quer dizer, a justiça cabo-verdiana
pode julgar essas pessoas, condená-las com uma pena dura” (“O Debate que faz
História: Carlos Veiga e José Maria Neves, Encontro Inédito”, A Semana, Especial
Destaque, 10 de Outubro de 2008, p. 18).
70 Diz-se em teoria, pois não deixa de ser um perigo, observado em outras paragens, o

descaso e a leniência que tais situações podem gerar, principalmente quando o bem
jurídico lesado, por ser estrangeiro, não suscita qualquer repugnância especial à
população e aos funcionários judiciais. A este respeito, e considerando, não obstante,
a existência de alguma evolução desde então, uma carta de 1938 do Secretário de
Estado dos Estados Unidos da América, Cordell Hull – trecho reproduzido por

98
Aspectos Polémicos da Extradição

considerar, embora pouco pacificamente 71, que existe uma norma


costumeira internacional 72 – codificada, aliás, em diversos tratados 73 –

Michael Plachta, “(Non) Extradition of Nationals: a Neverending Story?”, p. 136 –


dizia o seguinte: “a punição que tem sido infligida a nacionais de outros países nos
seus Estados por crimes cometidos nos Estados Unidos tem, em geral, sido muito
leves relativamente ao que o crime aparentemente exigiria, e em muitos casos,
nenhuma punição foi infligida e os julgamentos resultaram em absolvições”.
71 Muitos autores, atribuem mero valor convencional ao princípio, e não geral, o que

significa que somente seria vinculativo para as partes de um tratado que o previsse,
na medida do objecto material de cada um. Ver, por todos, Edward Wise, “The
Obligation to Extradite or Prosecute”, Israel Law Review, v. 27, ns. 1 e 2, 1993, pp.
268-287 (“a demanda segundo a qual a obrigação de extraditar ou julgar regra
costumeira de direito internacional não ampara integralmente na prática dos
Estados”) e Zsuzsanna Deen-Racsmány, “A New Passport to Impunity? Non-
Extradition of Naturalized Citizens versus Criminal Justice”, Journal of International
Criminal Justice, v. 2, n. 3, 2004, p. 772 (“Não obstante, é amplamente reconhecido
que não existe qualquer obrigação geral no direito internacional de processar uma
pessoa por crimes comuns quando se recusa a extradição. Por outro lado, um número
significativo de convenções multilaterais com a finalidade de reprimir determinados
crimes internacionais estabelece uma obrigação de aut dedere aut judicare”). Sem
pretender discutir esta questão neste momento, pode-se sempre adiantar que sendo
verdade que não existe de forma inquestionável uma norma geral de direito
internacional que obrigue os Estados a julgar quando não podem ou não querem
extraditar, e que, por maioria de razão, não se trata de uma norma de jus cogens, por
outro lado, também não é certo que ela não exista em relação a determinados delitos.
72 Alguns mais radicais, como Michael Kelly, “Cheating Justice by Cheating Death:

The Doctrinal Collision for Prosecuting Foreign Terrorists – Passage of Aut Dedere
aut Judicare into Customary International Law & Refusal to Extradite Based on the
Death Penalty”, Arizona Journal of International and Comparative Law, v. 20, n. 3,
2003, pp. 491-522, chegam a sustentar que seria no “mínimo uma regra geral de
direito, vinculando teoricamente todos os Estados” (p. 500).
73 São várias as convenções de que a República de Cabo Verde faz parte e que incluem

uma obrigação de extraditar ou julgar. Não exaustivamente, cf. na área do terrorismo,


a “Convenção para a Repressão de Actos Ilícitos contra a Segurança da Aviação Civil”
(aceite para adesão pela Lei nº 55/III/89, de 13 de Julho), Boletim Oficial da
República de Cabo Verde, nº 27, Suplemento, 13 de Julho de 1989, p. 68 (art. 7º: “o
Estado Contratante em cujo território o presumível autor da infracção penal é
encontrado, se não proceder à extradição do mesmo, submeterá o caso sem qualquer
excepção, tenha ou não sido a infracção cometida no seu território, às suas
autoridades competentes para efeitos de instauração de acção penal”); “Convenção
para a Repressão da Captura Ilícita de Aeronaves” (aceite para adesão pela Lei nº
56/III/89, de 13 de Julho), Boletim Oficial da República de Cabo Verde, nº 27,
Suplemento, 13 de Julho de 1989, p. 68 (art. 7º); “Convenção Internacional para a
Repressão do Crime de Terrorismo”, (aprovada para ratificação pela Resolução nº
38/VI/2002, de 22 de Abril), Boletim Oficial da República de Cabo Verde, I Série, nº
11, 22 de Abril de 2002, p. 279 (art.10: “Nos casos em que as disposições do artigo 7º
são aplicáveis, o Estado Parte no território do qual se encontra o presumível autor da
99
José Pina Delgado

infracção é obrigado, se ele não o extraditar, a submeter o assunto, sem muitas


delongas e sem nenhuma excepção, quer a infracção tenha ou não sido cometida no
seu território, às suas autoridades para que elas desencadeiem as acções penais,
segundo o procedimento previsto pela sua legislação”); “Convenção Internacional
para a Repressão de Atentados Terroristas à Bomba”, (aprovada para ratificação pela
Resolução nº 38/VI/2002, de 22 de Abril), Boletim Oficial da República de Cabo
Verde, I Série, nº 11, 22 de Abril de 2002, p. 275 (art. 8º); “Protocolo à Convenção
para a Repressão de Actos Ilícitos contra a Segurança da Aviação Civil Internacional
sobre a Repressão de Actos Ilícitos Violentos em Aeroportos ao Serviço da Aviação
Civil”, (aprovada para ratificação pela Resolução nº 38/VI/2002, de 22 de Abril),
Boletim Oficial da República de Cabo Verde, I Série, nº 15, 27 de Maio de 2002, p.
176 (art. 8º); no domínio da repressão à criminalidade internacional, cf. “Convenção
das Nações Unidas contra a Criminalidade Transnacional Organizada” (aprovada
para ratificação pela Resolução nº 92/VI/04, de 31 de Maio), Boletim Oficial da
República de Cabo Verde, I Série, nº 16, 31 de Maio de 2004, p. 345 (art. 16.10: “Um
Estado em cujo território se encontre o presumível autor de uma infracção, se não
extraditar esta pessoa a título de uma infracção à qual se aplica o presente artigo pelo
único motivo de se tratar de um seu cidadão, deverá, a pedido do Estado Parte
requerente da extradição, submeter o caso, sem demora excessiva, às suas
autoridades competentes para efeitos de procedimento judicial (…)”; no domínio da
protecção dos direitos humanos, igualmente a título meramente exemplificativo,
podem ser destacados a “Convenção contra a Tortura e outras Penas e Tratamentos
Cruéis, Desumanos e Degradantes”, Boletim Oficial da República de Cabo Verde, nº
14, 9 de Abril de 1992, pp. 1-67 (Art. 9º: “Se o autor presumido de uma das infracções
referidas no artigo 4º for encontrado no terrritório sob jurisdição de um Estado parte
que não o extradite, esse Estado submeterá o caso, nas condições previstas no artigo
5º, às suas autoridades competentes para o exercício da acção penal”), a “Convenção
para a Melhoria da Sorte dos Feridos e Doentes dos Exércitos em Campanha”,
“Convenção para a Melhoria da Sorte dos Feridos Doentes e Náufragos das Forças
Armadas no Mar”, “Convenção Relativa ao Tratamento de Prisioneiros de Guerra”,
“Convenção Relativa à Protecção dos Civis em Tempos de Guerra” Boletim Oficial da
República de Cabo Verde, nº 14, 12 de Abril de 1984, p. 9 (Respectivamente arts. 49,
50, 129, 146, com uma redacção comum: “Cada Parte Contratante terá a obrigação de
procurar as pessoas acusadas de terem cometido ou dado ordem de cometer
quaisquer das infracções graves, devendo fazê-las comparecer perante os seus
próprios tribunais, seja qual for a sua nacionalidade. Poderá, também, se preferir, e
de acordo com as condições previstas na sua própria legislação, entregar as referidas
pessoas para que sejam julgadas, a uma outra Parte Contratante interessada na acção,
contando que esta tenha apresentado contra ela provas suficientes”); “Protocolo
Facultativo à Convenção sobre Direitos da Criança relativo à Venda de Crianças,
Prostituição e Pornografia Infantis” (Aprovado para ratificação pela Resolução nº
39/VI/2002, de 29 de Abril), Boletim Oficial da República de Cabo Verde, I Série, nº
12, 29 de Abril de 2002, p. 305 (Art. 5.5: “Sempre que seja apresentado um pedido de
extradição relativamente a uma infracção prevista no nº 1 do artigo 3º, e caso o
Estado Parte requerido não possa ou não queira extraditar com fundamento na
nacionalidade do infractor, esse Estado adoptará medidas adequadas para apresentar
o caso às suas autoridades competentes para efeitos de exercício da acção penal”);
mesmo em acordos bilaterais de extradição o princípio já é comum, sendo utilizado
como alternativa à não-extradição. Veja-se, por todos, o recente “Acordo de

100
Aspectos Polémicos da Extradição

que obriga o Estado a extraditar ou julgar (aut dedere, aut judicare) 74


determinados delicti jura gentium (delitos contra a ordem
internacional) 75, Cabo Verde tem condições para cumprir as suas
obrigações, mesmo que o agente seja alegadamente um nacional que não
possa ser extraditado 76. Por conseguinte, salvo os tais casos marginais
que podem, com efeito, ocorrer em algumas situações, o facto é que o

Cooperação Jurídica e Judiciária entre a República Portuguesa e a República de Cabo


Verde” (Aprovado para ratificação pela Resolução nº 98/VI/2004, de 7 de Junho),
Boletim Oficial da República de Cabo Verde, I Série, nº 17, 7 de Junho de 2004, p.
305, que, no seu artigo 54.2, estabelece, ainda que de um modo pouco vinculativo e
submetido a vários pressupostos, o seguinte: “Quando o Estado requerido se recusar
a extraditar uma pessoa pelo facto de ser seu nacional, deverá, caso o Estado
requerente o solicite e as leis do Estado requerido o permitam, submeter o caso às
autoridades competentes para que providenciem pelo procedimento criminal contra
essa pessoa por todos ou alguns dos crimes que deram lugar ao pedido de
extradição”.
74 Sobre este princípio, cf. Edward Wise, “The Obligation to Extradite or Prosecute”,

pp. 268-287; Declan Costello, “International Terrorism and the Development of the
Principle Aut Dedere Aut Judicare”, Journal of International Law & Economics, v.
10, 1975, pp. 483-501, especialmente 483-490; João Marcelo de Araújo Júnior,
“Extradição – Alguns aspectos fundamentais”, pp. 62-63, , Michael Plachta, “(Non)
Extradition of Nationals: a Neverending Story?”, p. 123 e ss, para uma visão mais
histórica, conceptual, jurisprudencial e internacional.
75 Por todos, cf. M. Cherif Bassiouni (ed.), International Criminal Law: Crimes,

Dobbs Ferry, Transnational Publishers, 1986; Steven Ratner & Jason Abrams,
Accountability for Human Rights Atrocities in International Law: Beyond the
Nuremberg Legacy, 2. ed., Oxford, Oxford University Press, 2001; Antonio Cassese,
International Criminal Law, New York, Oxford University Press, 2003; Robert
Cryer; Hakan Friman; Darryl Robinson & Elizabeth Wilmshurst, An Introduction to
International Criminal Law and Procedure, Cambridge, Cambridge University
Press, 2007; Ilias Bantekas & Susan Nash, International Criminal Law, London,
Routledge, 2007; Jorge Bacelar Gouveia, Direito Internacional Penal. Uma
Perspectiva Dogmático-Crítica, Coimbra, Almedina, 2008.
76 E, neste caso, é seguramente mais pacífico que não existe uma norma de direito

internacional costumeiro que obrigue o Estado a extraditar os seus nacionais. Como


assevera Zsuzsanna Deen-Racsmány, “A New Passport to Impunity? Non-Extradition
of Naturalized Citizens versus Criminal Justice”, p. 769, “pode-se concluir, com base
na leitura de tratados, leis internas e jurisprudência, que, apesar de nenhuma regra
de direito internacional explicitamente reconhecer aos Estados o direito de negar a
extradição dos seus nacionais (…), não os proíbe de o fazer e não limita a aplicação da
excepção de nacionalidade”.
101
José Pina Delgado

sistema jurídico cabo-verdiano consegue dar respostas adequadas aos


desafios colocados neste domínio 77.
Além disso, sendo a discussão deste texto prioritariamente
constitucional, não se pode deixar de observar, que não estando o
problema no plano da Lei Fundamental, uma vez que a Constituição
permite, embora não obrigue, o legislador ordinário, a garantir jurisdição
extra-territorial ao Estado cabo-verdiano sobre crimes cometidos por
agentes de nacionalidade cabo-verdiana, a existir algum inconveniente
neste último nível, a solução é relativamente fácil e não implicaria em
alterações à Constituição, mas sim da legislação criminal infra-
constitucional, neste caso do próprio Código Penal.

3.4. O argumento da realização efectiva da justiça


7. No entanto, analisando a questão de um outro prisma, não se
pode deixar de chamar a atenção para alguns pormenores e motivações
mais consistentes. É que, existem alguns casos em que a proibição
taxativa da extradição de nacional, especialmente quando é elevada a um
patamar constitucional, ultrapassando mera disposição convencional ou
legal, contribui para uma incorrecta administração global da justiça, em
se tratando de crimes internacionais 78. Deixando de lado os casos de

77 O recente Caso José Barbosa foi apenas um dos últimos em que um cabo-verdiano
foi julgado e condenado em Cabo Verde por crimes cometidos no estrangeiro em
razão da impossibilidade de se conceder a extradição (v. “S. Vicente: José Barbosa
condenado à pena máxima – 25 anos de cadeia (actualizada)”, Inforpress, 29 de
Agosto de 2008 (Disponível em
http://www.inforpress.cv/index.php?option=com_content&task=view&id=7430&Ite
mid=59, 4 de Setembro de 2008).
78 Neste sentido, não estamos de acordo com a posição externada pelo Presidente do

maior partido da oposição (Movimento para a Democracia), Jorge Santos, quando diz
que “para que a Justiça seja feita, não é necessário que se extraditem cabo-verdianos,
mas sim que se faça justiça. O MpD defende que se faça Justiça e que criminosos não
fiquem impunes” (“Extradição de Nacional contraria Princípios Consagrados na
Constituição da República”, Liberal Online, 30 de Abril de 2007, disponível em
http://www.liberalcaboverde.com/index.asp?idEdicao=50&id=13209&idSeccao=442

102
Aspectos Polémicos da Extradição

ausência de vontade das autoridades nacionais perseguirem


determinados delitos (como demonstra o Caso Fujimori, que, por ter
dupla-nacionalidade japonesa e peruana, não foi extraditado do Japão,
onde se tinha refugiado, nem foi tão pouco processado nesse país 79, ou o
mais recente Caso Lugovoy, em que a Rússia recusou-se a extraditar um
nacional pertencente aos seus serviços secretos pelo cometimento de
crime de homicídio na Grã-Bretanha 80) – e pressupõe-se que ela exista
em Cabo Verde – algumas situações podem ter respostas inadequadas
num julgamento por um tribunal nacional. A razão fundamental tem a
ver com o seguinte: se a pena, primordialmente, visaria a reintegração de
uma norma essencial para a protecção de bens jurídicos fundamentais de
uma comunidade política que foram lesionados 81, é natural que um

&Action=noticia), ou com o Primeiro-Ministro José Maria Neves, que diz: “Eu


também tenho sérias dúvidas se devemos extraditar cabo-verdianos. O que devemos
fazer é criar as condições aqui no país para perseguir, e julgar convenientemente,
todos aqueles que, eventualmente, queiram utilizar Cabo Verde como refúgio. Mas
sendo Cabo Verde uma nação global, um país de diásporas, temos de considerar os
cabo-verdianos que residem aqui e os que estão lá fora. E havendo o cometimento de
um crime grave lá fora e o presumível assassino fuja para Cabo Verde, tem de ter
condições para o perseguir e julgá-lo de acordo com as leis cabo-verdianas (“O Debate
que faz História: Carlos Veiga e José Maria Neves, Encontro Inédito”, A Semana,
Especial Destaque, 10 de Outubro de 2008, pp. 18-19).
79 Sobre este caso, cf. Kent Anderson, “An Asian Pinochet? – Not Likely: The

Unfulfilled International Law Promise Japan’s Treatment of Former Peruvian


President Alberto Fujimori”, Stanford Journal of International Law, v. 38, n. 2,
2002, pp. 177-206; Arnd Düker, “The Extradition of Nationals: Comments on the
Extradition Request for Alberto Fujimori”, German Law Journal, v. 4, n. 11, 2003,
pp. 1165-1177 (Disponível em
http://www.germanlawjournal.com/article.php?id=334).
80 Veja-se o relato e a análise de Jacques Hartmann, “The Lugovoy Extradition Case”,

International & Comparative Law Quarterly, v. 57, 2008, pp. 194-200, que dá conta
do contencioso diplomático grave gerado pela recusa do pedido de extradição pela
Rússia, envolvendo expulsão de diplomatas dos dois países.
81 Apesar de ter dúvidas se realmente os fins das penas num Estado de Direito

Democrático residem exclusivamente na chamada prevenção geral, positiva, e


especial e na ressocialização do agente de factos delituosos, em razão da abertura que
tenho para outros, nomeadamente a mera retribuição para crimes de especial
gravidade, o facto é que o legislador ordinário erigiu esses dois fins como os únicos
que oficialmente justificariam as penas e as medidas de segurança, conforme resolveu
verter para o artigo 47 do Código Penal: “A aplicação de penas e de medidas de
103
José Pina Delgado

julgamento que tenha lugar onde o crime foi cometido contribua para
tais fins, muito mais do que um realizado em um lugar longínquo, do
qual, muitas vezes, nem se escutam ecos a respeito do mesmo 82
(precisamente por isto, mesmo nos casos em que Estados concedem
imunidades criminais a estrangeiros em razão do seu estatuto –
diplomatas, pessoal consular, autoridade em visita oficial 83– ou na

segurança tem por finalidade a protecção de bens jurídicos essenciais da comunidade


social e a reintegração do agente na vida comunitária”. Ver a este respeito, reflectindo
a generalidade – mas não toda – da doutrina penal de influência germânica, do
próprio autor material do Código Penal de Cabo Verde, Jorge Carlos Fonseca,
Reformas Penais em Cabo Verde: um novo Código Penal para Cabo Verde (Estudo
sobre o Anteprojecto seguido do correspondente articulado), Praia, Instituto de
Promoção Cultural, 2001, pp. 32-37, e também, embora em sentido formalmente
distinto, Claus Roxin, “Sentido e Limites da Pena Estatal” In: Problemas
Fundamentais de Direito Penal, Tradução Portuguesa de Ana Paula Luís
Natscheradetz, 3. ed., Lisboa, Veja, 2004, pp. 15-47, propugnando por uma teoria
unificadora dialéctica em que a pena teria a missão de servir como “protecção
subsidiária de bens jurídicos e prestações de serviços estatais, mediante prevenção
geral e especial, que salvaguarda a personalidade no quadro traçado pela medida da
culpa individual” (p. 43), e o, especialmente interessante, Günther Stratenwerth,
“Que aporta la teoria de los fines de la pena?”, Revista Brasileira de Ciências
Criminais, São Paulo, n. 66, 2007, pp. 53-66. Crítico em relação a essas concepções
eclécticas, Günther Jakobs, “Sobre a Teoria da Pena” In: Teoria da Pena; Suicídio e
Homicídio a Pedido (dois estudos de Günther Jakobs), Tradução Brasileira de
Maurício Ribeiro Lopes, São Paulo, Manole, 2003, pp. 1-27.
82 Aliás, mesmo que, por hipótese, reduzíssemos, o fim da pena à ressocialização do

agente, ou lhe levássemos em tanta conta quanto a prevenção geral positiva, ainda
assim, no caso de Cabo Verde, e dos problemas concretos que envolvem o país nessa
esfera, não seria líquido que um nacional cabo-verdiano teria melhores condições
internas de ressocialização. É que, mesmo colocando de lado a actual superlotação
das penitenciárias e da ausência de programas palpáveis de ressocialização, questões
que o Estado tem que resolver, o facto é que, em grande parte das vezes, os vínculos
de vários nacionais são muito mais fortes no estrangeiro onde nasceram, viveram e
têm os seus familiares e entes mais queridos do que em Cabo Verde.
83 Ver o artigo 31 da “Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas”, Boletim

Oficial da República de Cabo Verde, n. 25, 29 de Junho de 1990, p. 26, onde se


estabelece a imunidade de jurisdição criminal do agente diplomático (Art. 31: “O
agente diplomático goza de imunidade de jurisdição penal do Estado acreditador”).
Para comentários, cf. G.E. do Nascimento e Silva, A Convenção de Viena sobre
Relações Diplomáticas, 2. ed., Brasília, s.l., 1978, pp. 143-161; além disto, de modo
mais limitado, a “Convenção de Viena sobre Relações Consulares”, Boletim Oficial da
República de Cabo Verde, n. 25, 29 de Junho de 1990, pp. 29-53, art. 43, prevê
igualmente imunidades de jurisdição para os funcionários e empregados consulares
(“Os funcionários consulares e os empregados consulares não estão sujeitos à

104
Aspectos Polémicos da Extradição

sequência de acordos militares – acordos sobre o estatuto de forças,


conhecidos no meio militar por SOFAs 84– o Estado que tem primazia de
jurisdição, pondera sempre a possibilidade dela renunciar em benefício
do Estado no qual o crime foi cometido, especialmente quando este bulir
de forma intensa com o ordenamento e o sentimento de justiça locais 85).
À parte este factor mais fundacional, a verdade é que do ponto de
vista processual, outros inconvenientes podem emergir da não-
extradição de nacional. O Estado do nacional pode estar impossibilitado
de exercer a acção penal em razão de outros direitos fundamentais, como
a proibição do bis in idem, nos casos em que o indivíduo já foi julgado.
Ademais, mesmo que exista colaboração das autoridades do local onde o

jurisdição das autoridades judiciárias e administrativas do Estado receptor pelos


actos realizados no exercício das funções consulares”).
84 Ver “Acordo entre a República de Cabo Verde e a Organização do Tratado do

Atlântico Norte sobre o Estatuto das Forças para o Exercício Steadfast Jaguar 2006
(Aprovado para ratificação pela Resolução nº 156/VI/2006, de 2 de Janeiro)”,
Boletim Oficial da República de Cabo Verde, I Série, n. 1, 2 de Janeiro de 2006 (Art.
7.1: “É concedido ao pessoal da NATO, com a excepção dos fornecedores da NATO, o
estatuto, privilégios e imunidades concedidos ao pessoal administrativo e técnico, nos
termos do artigo 37.2 da Convenção de Viena sobre as Relações Diplomáticas, de 18
de Abril de 1961”); em geral, cobrindo vários desses acordos, inclusivamente a sua
dimensão criminal, cf. R. R. Baxter, “Criminal Jurisdiction in the NATO Status of
Forces Agreement”, International & Comparative Law Quarterly, v . 7, n. 1, 1958,
pp. 72-81; Rafael A. Porrata-Doria Jr., “The Philippine Bases Agreement and Status
of Forces Agreement: Lessons for the Future”, Military Law Review, v. 137, 1992, pp.
86-91; Yoon-Ho Alex Lee, “Criminal Jurisdiction under the US-Korean Status of
Forces Agreement: Problems and Proposals”, Florida Journal of International Law
& Policy, v. 13, n. 1, 2003, pp. 213-249.
85 A este propósito, vide, o parágrafo 1 do artigo 32 da “Convenção de Viena sobre

Relações Diplomáticas”, prevendo a possibilidade de renúncia das imunidades pelo


Estado acreditante (“O Estado acreditante pode renunciar à imunidade de jurisdição
dos seus agentes diplomáticos e das pessoas que gozam de imunidade nos termos do
art. 37”); em sentido similar, a previsão do Acordo entre a República de Cabo Verde e
a Organização do Tratado do Atlântico Norte sobre o Estatuto das Forças para o
Exercício Steadfast Jaguar 2006”, inserta no artigo 7.5: “Em casos específicos, por
razões de importância vital para Cabo Verde, Cabo Verde pode solicitar aos Estados
de Origem que renunciem à imunidade de jurisdição do Estado de Origem
relativamente ao seu pessoal militar ou civil presente em Cabo Verde nos termos
deste Acordo e no contexto do “Exercício”.
105
José Pina Delgado

delito for cometido 86, os órgãos nacionais com competência para realizar
a investigação criminal e posteriormente exercer a acção penal podem ter
dificuldades de acesso aos meios de prova (é evidente que se pode
recorrer às novas tecnologias para inquirir testemunhas por via de
teleconferência), porém, outras ficam muito distantes e não são tão
compatíveis com uma análise fria e à distância 87; pode-se igualmente
solicitar auxílio judiciário, em matéria penal, para ter acesso a
determinadas provas documentais, todavia, não é a mesma coisa, em se
tratando de determinados crimes; finalmente, faltaria algo que os
desenvolvimentos tecnológicos não respondem: a análise da própria cena
do crime em tempo oportuno, particularmente quando na execução do
crime são utilizados instrumentos que exigem alguma análise 88.

86 E, saliente-se, que tal colaboração não é garantida, uma vez que o Estado
requerente pode reagir patrióticamente à reacção nacionalista do Estado requerido,
não prestando qualquer auxílio judiciário ao seu congénere, conforme sustenta C.
Sachor-Landau, “Extra-Territorial Penal Jurisdiction and Extradition”, p. 287 (“Um
Estado que não é afectado pelo crime cometido no estrangeiro é insusceptível de
assumir o processo e a punição com algum entusiasmo”). De todo o modo, neste caso,
se o fizer, estará, em muitos casos, a obstaculizar a única forma real de realização da
justiça possível: o julgamento no país de nacionalidade.
87 Cf. Michael Plachta, “(Non) Extradition of Nationals: a Neverending Story?”, p.

136, chamando a atenção para três tipos de problemas que podem ser criados na
esfera processual pela não-extradição de nacional e consequente possibilidade de
julgamento interno: “1. Trazer testemunhas de países distantes impõe um pesado
fardo financeiro tanto às testemunhas quanto ao arguido, para não mencionar
dificuldades práticas sérias; 2. Certos meios de prova não estão disponíveis, como a
observação da cena do crime; 3. Se as provas foram reunidas no estrangeiro, a
acusação pode ter dificuldades em utilizá-la num julgamento em razão de eventuais
restrições de carácter processual”.
88 Ver também Luiz Roberto Araújo & Luiz Régis Prado, “Alguns aspectos das

limitações ao direito de extraditar”, Revista de Informação Legislativa, Brasília, a.


19, n. 76, 1982, p. 75, que argumentam em sentido similar, analisando o caso
brasileiro: “por não conceder a extradição do nacional, obrigava-se a puni-lo pelo
facto praticado no estrangeiro, evitando desta forma a sua impunidade, caso a nossa
legislação também o considerasse como delituoso. No entanto, essa não nos parece a
melhor orientação na matéria, pois, além de dificultar o auxílio internacional na
repressão à criminalidade, em termos práticos, torna extremamente penosa a colecta
de provas e informações pormenorizadas sobre a infracção penal. A distância do local
do delito e uma série de embaraços de toda a ordem fazem com que o ideal, em
termos de persecutio criminis, seja a jurisdição do forum delicti commissi”; no

106
Aspectos Polémicos da Extradição

Neste sentido, mesmo considerando, seguramente, que o sistema


jurídico nacional não contribui para a impunidade de criminosos, a
verdade é que, em determinadas situações, poderá prestar uma
colaboração deficiente à comunidade internacional, impedindo que um
suspeito seja julgado e condenado, se comprovada a sua culpa no próprio
local onde cometeu os seus crimes, ou inviabilizando a construção de um
caso verdadeiramente forte contra os arguidos em situações de
comprovadas dificuldades de acesso às provas, ou até possibilidade de
analisar a cena do crime. Neste sentido, o apelo a uma solução
cosmopolita do problema e não à irracional manutenção de uma
perspectiva comunitarista, faria todo o sentido.

IV. Argumentos Contrários à Extradição de Nacional 89

mesmo sentido, J.-G. Castel & Sharon Williams, “Extradition of Canadian Citizens
and Sections 1 and 6 (1) of Canadian Charter of Rights and Freedoms”, Canadian
Year Book of International Law, v. 25, 1987, pp. 268-269.
89 Em especial, vide o clássico artigo de Martin Manton, “Extradition of Nationals”,

pp. 21-24; vide também críticas a alguns argumentos da doutrina contrária à


extradição de nacional em Carolina Guimarães Lisboa, A relação extradicional no
Direito Brasileiro, Belo Horizonte, Del Rey, 2001, pp. 149-151, e particularmente a
conclusão de Michael Plachta, “(Non) Extradition of Nationals: a Neverending
Story?”, p. 85 sobre a solidez de justificações para manter uma cláusula absoluta de
não extradição de nacional: “Justificar a regra de não-extradição apresenta vários
problemas: primeiro e fundamentalmente, os argumentos avançados em seu favor
fora no Século XIX e alguns deles estão fundados em períodos ainda mais longíquos.
Na literatura contemporânea ninguém propôs uma nova fundamentação; (…) Hoje,
justificações que pretendem fazer são, na melhor das hipóteses, recapitulações de
argumentos antigos. A regra, é, muitas vezes, formulada num estilo algo dogmático,
sem qualquer base satisfatória de arrazoamento além da sua mera existência.
Algumas vezes, é declarado como um axioma político dificilmente aberto a
discussões. Por os legisladores contemporâneos se terem contido na apresentação de
razões, aqueles que se opõem veementemente à regra da não-extradição de nacional
parecem como Don Quixotes a lutar contra fantasmas”. Actualmente, face aos
desenvolvimentos internacionais e nacionais, a situação não está tão difícil para os
defensores da extradição de nacional, além do que a preocupação de alguns dos
subscritores do princípio com os direitos fundamentais ser legítima e atendível, o
facto é que no que toca à sua base de legitimação a doutrina da não-extradição de
nacional parece claramente inadequada para o contexto global de expansão da
107
José Pina Delgado

4.1. O argumento da soberania do Estado


8. Face aos inconvenientes referidos que podem resultar da não-
extradição de nacional, esta deve ser considerada de forma ponderada e
fora de um quadro de pânico geral. É que se se for analisar os principais
motivos para que tal regra tenha consagração nos ordenamentos
jurídicos internos de parte considerável dos Estados, chegar-se-ia à
conclusão que eles simplesmente deixaram de existir. A justificação da
inserção da proibição de extradição de nacional no Direito dos Estados,
resulta de argumentos hoje em dia obsoletos, para a maioria das
situações 90. Tratava-se, num mundo quase hobbesiano, ou, quiçá, mais
concretamente, hegeliano, em que os Estados faziam questão de manter e
invocar a todo o custo a sua soberania, sendo uma indignidade permitir
que parte da nação fosse julgada por uma potência exterior 91. A

democracia e dos direitos fundamentais, da internacionalização da justiça e da


cooperação na luta contra as formas mais perigosas e organizadas de criminalidade.
90 Apesar disso, a verdade é que os Estados Unidos da América são dos países que

mais extraditam os seus nacionais, não existindo qualquer proibição constitucional


neste sentido (cf. Michael Plachta, “(Non) Extradition of Nationals: a Neverending
Story?”, pp. 96-99; diz-nos, ademais, Ivan Shearer, “Non-Extradition of Nationals –
A Review and a Proposal”, p. 288, que “durante o Século XIX, negociações de
tratados de extradição foram terminadas pela insistência da outra parte em incluir
uma cláusula de não-extradição de nacional”). A postura dos Estados Unidos em
relação ao Tribunal Penal Internacional não tem nada a ver com a sua tradição em
matéria de extradição de nacional e deve ser vista como particular. Basta ver, por
exemplo, os tratados de consentimento prévio que têm sido concluídos pelos Estados
Unidos com vários Estados, incluindo Cabo Verde, com base no artigo 98 do Estatuto
de Roma, para se ver que o efeito que pretendem evitar é o julgamento pelo Tribunal
Penal Internacional, não se importando tanto com o julgamento dos seus nacionais
por outros Estados, por crimes comuns ali cometidos. Para desenvolvimentos, ver o
nosso José Pina Delgado, “Obstáculos constitucionais à ratificação do Estatuto de
Roma e (outros) problemas de consolidação do Tribunal Internacional Penal:
desenvolvimentos recentes, principalmente relativos a Cabo Verde”, pp. 187-189.
91 Paradigmaticamente, ver as conclusões de um relatório de uma comissão criada

pelo Governo italiano relativa à extradição de nacional, reproduzidas em Michael


Plachta, “(Non) Extradition of Nationals: a Neverending Story?”, p. 93. “[A Itália]
deve protecção aos seus filhos, e não os pode abandonar a sua sorte, se acusados por
um crime, à mercê do direito e de juízes estrangeiros. A dignidade nacional não pode
consentir que um cidadão, um membro do Estado, possa ser compelido a curvar a sua
cabeça a determinação de uma autoridade estrangeira”.

108
Aspectos Polémicos da Extradição

realidade, porém, é que a soberania do Estado não mantém tais


contornos nos dias de hoje, nem tão pouco o julgamento de um cidadão
nacional no estrangeiro seria algo indigno para a nação 92- 93, até porque,
se chegarmos a este ponto, estenderíamos de forma absoluta, e
absurda 94, o princípio de protecção do nacional previsto pelo Direito
Internacional, da protecção diplomática 95 para a protecção bélica 96,

92 O argumento recente avançado pelo Primeiro-Ministro Neves insere-se neste


quadro (“Nestas condições temos de proteger o nosso país. Muitas das pressões que
tenho visto são preconceitos em relação à capacidade de Cabo Verde perseguir e
julgar aqueles que prevaricam lá fora. Existe alguma desconfiança em relação a um
país africano, que é Cabo Verde. Por isso nós temos que defender o prestígio de Cabo
Verde e o prestígio das suas instituições. Neste tipo de questões, complexas
geralmente, a solução é a mais fácil (sic): ‘Bom, cometeu o crime lá fora, é um grande
criminoso, então que vá lá fora ser julgado’. Pelo contrário, este deve ser um elemento
de orgulho de Cabo Verde: perseguir, prender e julgar aqueles que estiverem nessa
situação. E não é por acaso que desde a independência temos esse princípio na nossa
CR”) (v. “O Debate que faz História: Carlos Veiga e José Maria Neves, Encontro
Inédito”, A Semana, Especial Destaque, 10 de Outubro de 2008, p. 19).
93 Nas palavras de Michael Plachta, “(Non) Extradition of Nationals: a Neverending

Story?”, p. 94, “somente através do mais ténue e artificial processo de arrazoamento


que se pode chegar à conclusão que entregar um criminoso nacional para julgamento
por um tribunal estrangeiro chega a ser uma indignidade nacional”, ideia
corroborada por um dos livros clássicos sobre a extradição no espaço lusófono de
autoria de Gilda Mayer Russomano, A Extradição no Direito Internacional e no
Direito Brasileiro, 3. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1981, pp. 107-108, onde à
questão de saber se “terá a Inglaterra, por exemplo, perdido o respeito das demais
nações do concerto universal por haver consentido, através dos tempos, na extradição
dos seus nacionais?”, responde dizendo taxativamente: “É claro que não! E isso
porque a honra nacional sobrepaira a essas controvérsias. Para não a ofender, ao
contrário, é preciso que o Estado não contribua, directa ou indirectamente, para a
impunidade de quem quer que se tenha tornado culpado de um delito”.
94 Cf. no mesmo sentido, as palavras proferidas por Martin Manton, “Extradition of

Nationals”, p. 21, em 1936 (“Negar a extradição de nacional com base na teoria do


dever do Estado proteger os seus cidadãos em qualquer país que ele esteja, é levar o
princípio da protecção diplomática a distâncias inimagináveis”), e, mais uma vez,
Gilda Mayer Russomano, A Extradição no Direito Internacional e no Direito
Brasileiro, p. 107 (“Os Estados, na verdade, não só podem, como, sobretudo, devem
proteger os seus nacionais. Essa protecção, no entanto, não é considerada absoluta,
de modo que não chega a extremos de impedir que eles respondam a julgamento,
perante tribunais estrangeiros”).
95 Recomenda-se a respeito deste instituto de Direito Internacional, as análises

clássicas de Edwin M. Borchard, “Basic Elements of Diplomatic Protection of Citizens


Abroad”, American Journal of International Law, v. 7, 1913, pp. 497-520, e Hersch
Lauterpacht, “Allegiance, Diplomatic Protection and Criminal Jurisdiction over
109
José Pina Delgado

como os Estados Unidos da América 97 fizeram recentemente, e de forma


ilegal, com a American Servicemember Protection Act, prevendo
provavelmente o uso da força para proteger nacionais americanos sob
custódia do Tribunal Penal Internacional ou de qualquer Estado com
base no Estatuto de Roma 98. Mais: desconfiavam que o nacional não
teria garantidos todos os seus direitos, inclusivamente o de um processo
justo e equitativo, em julgamentos, conduzidos por autoridade e sob leis
estrangeiras, as quais ele nem sequer conhecia ou compreendia 99. Bem,

Aliens”, The Cambridge Law Journal, v. 9, 1945-1947, pp. 330-348; Para discussões
actualizada do princípio da protecção diplomática e dos seus fundamentos, vide
Annemarieke Vermeer-Künzli, “As if: The Legal Fiction in Diplomatic Protection”,
European Journal of International Law, v. 18, n. 1, 2007, pp. 37-68.
96 Esta extensão, no entanto, não é pioneira na História do Direito Internacional. Até

ao início do Século XX, grades potencias ainda usavam a força para proteger os seus
nacionais no estrangeiro, incluindo os seus interesses económicos. Cf. Hersch
Lauterpacht, “Allegiance, Diplomatic Protection and Criminal Jurisdiction over
Aliens”, p. 335 (“A Guerra Sul-Africana, a (algo nominal) guerra com a Venezuela em
1903 e várias outras surgiram da necessidade de proteger os interesses de súbditos
britânicos em países estrangeiros”).
97 Por todos, vide Joanisval Brito Gonçalves, “Os EUA e o Tribunal Penal

Internacional”, Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 40, n. 160, 2003, pp.


41-48; Mark D. Kielsgard, “War in the International Criminal Court”, New York City
Law Review, v. 8, n. 1, 2005, pp. 1-52.
98 Ver “ ‘American Service-members’ Protection Act”, de 30 de Julho de 2003, Secção

2008 (Autorização para a libertação de membros das forças armadas dos Estados
Unidos e outras pessoas detidas ou presas pelo ou em favor do Tribunal Penal
Internacional), especialmente alínea a), “o Presidente fica autorizado a usar todos os
meios necessários e apropriados para libertar qualquer pessoa descrita na sub-secção
b) que esteja detida ou presa pelo, em benefício do, ou a pedido do, Tribunal Penal
Internacional” (disponível, inter alia, em
http://www.state.gov/t/pm/rls/othr/misc/23425.htm, acesso no dia 8 de Novembro
de 2007); para desenvolvimentos, recomenda-se Colonel M. Tia Johnson, “The
American Servicemembers’ Protection Act. Protecting Whom?”, Virginia Journal of
International Law, v. 45, n. 2, 2002-2003, pp. 405-488, em especial p. 468; Mark D.
Kielsgard, “War in the International Criminal Court”, pp. 26-27.
99 Quando o Primeiro-Ministro, na supra-citada entrevista, levanta o problema da

desconfiança e menorização das nossas instituições (“Muitas das pressões que tenho
visto são preconceitos em relação à capacidade de Cabo Verde perseguir e julgar
aqueles que prevaricam lá fora. Existe alguma desconfiança em relação a um país
africano, que é Cabo Verde”), não deixa de incorrer em comportamento similar se
nega a extradição de nacional em situações em que existem garantias de due process,
igualdade de tratamento e reciprocidade, pois estaria a duvidar, em abstracto, da

110
Aspectos Polémicos da Extradição

hodiernamente, essas razões não subsistem em abstracto, em relação a


Estados que garantem direitos semelhantes aos que estão consagrados na
nossa Constituição Penal 100, sendo certo que, existindo, in concreto,
qualquer suspeita nesse sentido, o Estado tem sempre o poder de recusar
a extradição de nacional, desde que inclua cláusulas de salvaguarda nas
convenções de extradição que concluir.

4.2. O argumento dos direitos fundamentais do cidadão


cabo-verdiano
9. O artigo 37. 1. da Constituição da República pode ser
interpretado no contexto descrito 101. Apesar de não ser um dispositivo
pioneiro na ordem jurídica cabo-verdiana, uma vez que preceito similar
já estava presente na Constituição de 1980 102, o que importa é verificar e

capacidade dos sistemas judiciais estrangeiros julgarem com justiça e equidade o


cidadão cabo-verdiano.
100 Para discussões sobre este conceito, ver Maria Fernanda Palma, Direito

Constitucional Penal, Coimbra, Almedina, 2006, passim, no sentido de serem “os


valores e critérios constitucionais que limitam e conformam o Direito Penal” bem
como princípios e normas penais que desenvolvem ou colidem” com eles (p. 14).
101 O princípio aparece origináriamente no “Ante-Projecto de Constituição de Cabo

Verde”, Movimento para Democracia, Praia, 1992, art. 38.1, com a seguinte redacção:
“Nenhum cidadão cabo-verdiano pode ser extraditado ou expulso do país”. Esta
mesma redacção aparece na versão originária da “Constituição da República de Cabo
Verde de 1992” (Aprovado pela Lei Constitucional nº 1/IV/92, de 25 de Setembro),
Boletim Oficial da República de Cabo Verde, I Série, n. 12, 25 de Dezembro de 1992,
art. 35.1: “Nenhum cidadão cabo-verdiano pode ser extraditado ou expulso do país”
(p. 7). Com a revisão ordinária de 1999, procede-se a cisão do instituto da extradição,
que passa a figurar num artigo autónomo, sob a epígrafe “Extradição”(veja-se a “Lei
Constitucional nº 1/99”, de 23 de Novembro, Boletim Oficial da República de Cabo
Verde, I Série, n. 43, 23 de Novembro de 1999, art. 16), com a actual redacção: art.
37.1. “Não é admitida a extradição de nacional, que pode responder perante os
tribunais cabo-verdianos pelos crimes cometidos no estrangeiro”.
102 A versão originária da primeira “Constituição da República de Cabo Verde”,

Boletim Oficial da República de Cabo Verde, n. 41, 13 de Outubro de 1980, p. 4,


estabelecia, no seu artigo 37, que “em caso algum é admissível a extradição ou a
expulsão do país, do cidadão nacional”, redacção esta que não chegou a ser alterada
por nenhuma das revisões constitucionais subsequentes, mudando unicamente a
posição do princípio, que passou a estar no artigo 33. Cf. as diversas versões da
Constituição de 1980 em: Mário Pereira Silva (org.), As Constituições de Cabo Verde
111
José Pina Delgado

analisar a sua incorporação à primeira constituição democrática do país,


a Constituição da República de 1992, tendo, neste caso, provavelmente,
como fonte longínqua o art. 112 da Constituição de Weimar 103, a Lei
Fundamental de Bona de 1949 104, que influencia, entre outras, a
Constituição da República Portuguesa de 1976 105 e chega até Cabo Verde
por esta via 106. No entanto, e ao contrário de outras disposições
fundamentais de teor similar – a proibição de expulsão de cidadão do
território nacional 107 e a proibição de privação de nacionalidade ao cabo-

e Textos Históricos de Direito Constitucional Cabo-Verdiano, Praia, Edição do Autor,


2007, pp. 11-138.
103 Nomeadamente, ainda que não inquestionavelmente, e de modo pioneiro no

mundo lusófono, é de considerar a influência da Constituição de Weimar na


Constituição Brasileira de 1934, conforme autores como Luiz Roberto Araújo & Luiz
Régis Prado, “Alguns aspectos das limitações ao direito de extraditar”, Revista de
Informação Legislativa, Brasília, a. 19, n. 76, 1982, p. 74, acreditam ter sido possível.
104 A fórmula da Grundgesetz era a seguinte: “Nenhum alemão pode ser extraditado

para o estrangeiro” (art. 143). Ver: “Lei Fundamental da República Federal da


Alemanha” In: A Lei Fundamental da República Federal da Alemanha – Com um
ensaio e anotações de Nuno Rogeiro, Coimbra, Coimbra Editora, 1996, p. 143.
105 A respeito da influência da Lei Fundamental de Bona na Constituição Portuguesa

de 1976, ver por todos, Nuno Piçarra, “Die Einflüsse des deutschen Verfassungsrechts
auf das portugiesische Verfassungsrecht” In: Eryk Jaime (hrsg), Deutsch-
Lusitanische Rechtstage: Seminar in Heidelberg, 20-21.11.1992, Baden-Baden,
Nomos Verl. - Ges., 1994, pp. 55-65.
106 Sobre a importância da Constituição Portuguesa de 1976 na estrutura básica da

Constituição Cabo-verdiana de 1992 e no seu regime de direitos fundamentais, ver


Jorge Carlos Fonseca, “Do Regime de Partido Único à Democracia em Cabo Verde: As
Sombras e a Presença da Constituição Portuguesa de 1976”, Themis. Revista da
Faculdade de Direito da UNL, Edição especial: 30 Anos de Constituição Portuguesa
1976-2006, 2006, pp. 104-107, especialmente o trecho em que diz: “(…) recortado
fica o espectro de aproximações entre as duas leis fundamentais. Elas vão dos
princípios fundamentais (Estado unitário, República organizada num Estado de
Direito, autonomia do poder local, concepção de soberania popular, tarefas do Estado
e regras sobre recepção do direito internacional) ao modo de organização dos direitos
fundamentais e o essencial do seu regime, incluindo a diferente força jurídica
conferida às normas respeitantes, por um lado, aos direitos, liberdades e garantias
individuais e, por outro, aos chamados direitos sociais, passando por um muito afim
acervo de normas e princípios relativos à constituição penal, processual penal e de
execução de sanções criminais (…)” (p. 106).
107 Estabelece o artigo 35.1. que “Nenhum cidadão cabo-verdiano pode ser expulso do

país”.

112
Aspectos Polémicos da Extradição

verdiano de origem 108 – não existe qualquer justificação simbólica,


histórica ou ontológica para que exista em Cabo Verde 109.
Contrariamente à proibição de expulsão de cidadão nacional e de perda
de nacionalidade que gozam de tal fundamento legitimatório, uma vez
que, directa ou indirectamente, foram prática corrente na I República, a
némesis da actual ordem constitucional, a proibição de extradição de
nacional não a possui 110. Não existe uma ligação ontológica entre o
Estado e o seu cidadão, de tal sorte que ele não possa dele ser afastado,
para responder por crimes graves cometidos no estrangeiro. O Estado
somente tem o dever de garantir que, o seu cidadão, tenha no país de
julgamento um tratamento adequado, e lhe seja garantido um due
process 111, com direito a defesa, de contra-interrogar as testemunhas, de

108 A redacção desse princípio constitucional é a seguinte: “Nenhum cabo-verdiano de


origem poderá ser privado da nacionalidade ou das prerrogativas da cidadania” (art.
39).
109 Durante a sessão que aprovou o artigo 37 (extradição e expulsão), não existiu,

talvez pela não participação dos parlamentares do PAICV, qualquer discussão sobre
as razões que justificariam a sua inclusão na Lei Fundamental. Depois de lida a
redacção constante do projecto e tendo o Presidente perguntado se existiam
objecções, ninguém se pronunciou e o artigo foi aprovado (Vide Assembleia Nacional
Popular, Acta das Sessões: Apresentação e Debate da Constituição da República, 2ª
Sessão Legislativa Extraordinária, IV Legislatura, Praia, 1992, p. 157 (policopiado)).
110 Não se pode deixar de notar face ao contexto político e legislativo que deu origem

ao regime jurídico actual da nacionalidade, e, diga-se, face igualmente à


compromissos internacionais de se evitar a apatridia que seja o Movimento para a
Democracia a propor no seu “Projecto de Lei de Revisão Constitucional do
Movimento para a Democracia (2ª Revisão Ordinária)”, Grupo Parlamentar do MPD,
2005, p. 8, a possibilidade de privação de nacionalidade ou das prerrogativas da
cidadania em caso de condenação por crimes contra a humanidade, que reputo ser
uma medida muito mais gravosa do que a extradição de cabo-verdiano.
111 Diga-se, ademais, que em relação o outro argumento utilizado, o direito a não ser

afastado do juiz natural, vertido para o artigo 34.8 da Constituição da República de


Cabo Verde (“Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja
fixada em lei anterior”), não é convincente, pois juiz natural não significa juiz
nacional. É mais lógico até que o juiz natural seja precisamente aquele do local do
crime e não o do local de refúgio. Ver também Martin Manton, “Extradition of
Nationals”, pp. 22-23; Michael Plachta, “(Non) Extradition of Nationals: a
Neverending Story?”, pp. 89-90, e na doutrina de expressão portuguesa, José Calvet
de Magalhães, “Extradição” In: José Carlos Fernandes (dir.), Dicionário Jurídico da
113
José Pina Delgado

apelar de sentença desfavorável 112, e condições de cumprimento


adequado da pena, que favoreçam, quando possível, a sua
ressocialização 113- 114.
O Estado do nacional fá-lo-á, com certeza, quando, em abstracto,
tenha garantias de que um Estado ou um grupo de Estados partilham dos
mesmos valores jurídico-políticos e criminais, o que pode acontecer tanto
numa perspectiva de integração formal, como o tem demonstrado a
experiência do Espaço de Segurança, Cooperação e Justiça da União
Europeia 115 e o Mandado de Detenção Europeu 116, como deverá acontecer

Administração Pública, Lisboa, s.e., 1991, v. IV, p. 316, e Gilda Meyer Russomano, A
Extradição no Direito Internacional e no Direito Brasileiro, p. 106 (“A verdade é que
o juiz natural dos indivíduos acusados de factos delituosos não é o juiz de sua pátria
e, sim, o juiz do lugar onde foi cometido o delito”).
112 Ver sobre os direitos fundamentais em processos de extradição, John Dugard &

Christine Van den Wyngaert, “Reconciling Extradition with Human Rights”, pp. 187-
212, e também Danai Azaria, “Code of Minimum Standards of Protection of
Individuals Involved in Transnational Proceedings”, Strasbourg, Council of Europe,
16 de Setembro de 2005 (disponível em www.coe.int/tcj); em relação a um aspecto
particular do direito interno cabo-verdiano, Jorge Carlos Fonseca, “Prazos de
“detenção” ou “prisão” para extradição no direito cabo-verdiano: um rápido olhar”,
Boletim da Ordem dos Advogados de Cabo Verde, n. 5, 2005, pp. 14-22.
113 Por exemplo, por motivos óbvios, não existiria qualquer dever de extraditar,

quando, em concreto, existirem dúvidas se esses fins da aplicação da sanção penal


pudessem estar irremediavelmente perdidos pelo mau tratamento dado ao nacional
durante a execução da pena (v. “Cabo-verdianas vítimas de sevícias nas cadeias de
São Paulo. Consulado de Cabo Verde demite-se de intervir pelas reclusas”, Liberal
Online, 16 de Outubro de 2008, Disponível na página web
http://liberal.sapo.cv/index.asp?idEdicao=64&id=20903&idSeccao=542&Action=no
ticia, acesso a 28 de Outubro de 2008).
114 Recomenda-se, no mesmo sentido, Martin Manton, “Extradition of Nationals”, p.

24, que se pronuncia no seguinte sentido: “Um criminoso não tem qualquer direito de
protecção do seu próprio Estado relativamente às consequências dos seus actos
ilícitos. A única protecção que padrões comuns de justiça lhe estendem é de um
julgamento justo e imparcial na jurisdição onde cometeu o crime”.
115 Em geral, e cobrindo diversas fases e diversas valências do sistema, ver Euclides

Dâmaso Simões, “O Espaço Judiciário Europeu (Órgãos e instrumentos para a sua


construção)”, Revista do Ministério Público, a. 23, n. 92, 2002, pp. 81-91; Nuno
Piçarra, “O espaço de liberdade, segurança e justiça após a assinatura do Tratado que
Estabelece uma Constituição para a Europa”, Polícia e Justiça, III Série, n. 4, 2004,
pp. 17-64; Nuno Piçarra, “A União Europeia enquanto Espaço de Liberdade,
Segurança e Justiça: alguns desenvolvimentos recentes” In: Jorge Bacelar Gouveia &
Rui Pereira (orgs.), Estudos de Direito e Segurança, Coimbra, Almedina, 2007, pp.

114
Aspectos Polémicos da Extradição

numa perspectiva mais ampla e mesmo fora de um quadro comunitário 117


com qualquer Estado que partilhe dos mesmos valores democráticos e
liberais que os nossos 118.

10. Assim, se interpretarmos o preceito constitucional que proíbe a


extradição de nacional cabo-verdiano como mera garantia reforçada – no
sentido de que parte de uma presunção de tratamento diferenciado e
prejudicial – que o Estado dá ao seu cidadão, de se diligenciar no sentido
de que ele receba um tratamento processual adequado, as razões que o

317-336, dizendo que o “grande impulso para o avanço da União Europeia tem vindo
do Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça” (p. 321), não obstante os problemas e
disfunções que lhe aponta; Nuno Piçarra, “As garantias de cumprimento das
obrigações dos Estados-Membros no Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça. A
Avaliação Mútua” In: AAVV, Estudos em Memória do Professor Doutor José Dias
Marques, Coimbra, Almedina, 2007, pp. 707-729.
116 Por todos, cf. Anabela Miranda Rodrigues, “O Mandado de Detenção Europeu –

Na via da Construção de um Sistema Penal Europeu: um Passo ou um Salto?”,


Revista Portuguesa de Ciência Criminal, n. 13, 2003, pp. 27-63, com uma
perspectiva parcialmente crítica; Jorge Costa, “O mandado de detenção europeu.
Emissão e execução segundo a lei nacional”, Polícia e Justiça, III Série, n. 4, 2004,
pp. 231-254; Michael Plachta, “European Arrest Warrant: Revolution in
Extradition?”, pp. 178-194; Manuel Guedes Valente, Do Mandado de Detenção
Europeu, Coimbra, Almedina, 2006.
117 Por exemplo, já é antiga a prática da extradição de nacional entre países que

partilham valores e culturas similares como os Estados nórdicos, conforme


desenvolve e assevera Michael Plachta, “(Non) Extradition of Nationals: a
Neverending Story?”, p. 100: “os factores mais importantes que contribuem para uma
cooperação tranquila nessa região é a confiança mútua no, e o respeito pela, ordem
social e jurídica e no sistema de justiça criminal nos outros Estados Nórdicos”.
118 O próprio Supremo Tribunal de Justiça, pronunciou-se, neste sentido no Caso dos

Ucranianos – que não tem a ver, evidentemente, com a extradição de nacional –,


quando sustentou que “o Reino da Espanha [o requerente], é notória e
reconhecidamente um Estado de Direito Democrático, sujeito a um apertado
escrutínio da comunidade internacional, e de modo muito particular de instituições
da União Europeia a que se encontra vinculado, facto que constitui uma garantia
suplementar da rigorosa observância não só do seu direito interno, mas também de
compromissos internacionais assumidos, nomeadamente das garantias apresentadas
ao Estado de Cabo Verde para conseguir a extradição de pessoas que pretende
submeter à sua jurisdição” (v. “Acórdão nº 31/2004”, Rel. Maria de Fátima Coronel;
Adj. Benfeito Mosso Ramos e Raul Querido Varela, 12 de Abril de 2004, p. 10).
115
José Pina Delgado

justificam são inexistentes 119. Neste sentido, de lege ferenda, não nos
pode repugnar que a proibição da extradição de nacional deixe de estar
presente no nosso ordenamento jurídico-constitucional de forma tão
categórica como está actualmente. Consequentemente, não me
escandalizaria a existência de excepções a esta norma constitucional, ou
mesmo a sua abolição total da Carta Magna da República de Cabo Verde;
trata-se de um direito fundamental (meramente formal, diga-se) que
francamente não faz sentido nenhum, manter como dogma absoluto nos
dias de hoje.

4.3. O último bastião: o argumento da cláusula dos


limites materiais à revisão constitucional
11. Dizer que se deve efectuar a mudança de modelo de extradição
de nacional, não significa, no entanto, que juridicamente seja
permissível. A constituição de uma comunidade política, implica que o
cidadão, enquanto co-proprietário do Estado, tenha direitos e deveres,
entre os quais o de respeitar o que foi pactuado e vertido para a sua Lei
Fundamental, inclusivamente de não alterar por via da revisão a
estrutura básica da Constituição; vale dizer: por vontade do poder
constituinte, mesmo que uma determinada cláusula se torne contrária
aos interesses de parte considerável da comunidade política nacional –
portanto incómoda para alguns –, nem mesmo maiorias qualificadas a

119Aliás, como Michael Plachta, “(Non) Extradition of Nationals: a Neverending


Story?”, p. 88, sustenta – recorrendo à conclusão do Harvard Research in
International Law, segundo a qual, se não devemos confiar na administração da
justiça dos outros países, então não deveria existir extradição de qualquer espécie,
fora de um contexto de arraigado nacionalismo –, é difícil para um Estado de Direito
Democrático justificar a extradição do estrangeiro se não confia que, em abstracto,
ele receberia um tratamento processual adequado no país que requer a sua
extradição.

116
Aspectos Polémicos da Extradição

pode alterar 120. São os limites materiais à revisão constitucional, também


chamados por alguns de cláusulas pétreas 121. O problema que nos toca é
o de saber se o artigo 285.2 da Constituição da República 122, que afasta
do poder de revisão a restrição aos direitos, liberdades e garantias,
permitiria qualquer limitação ao preceito constitucional que proíbe a
extradição de nacional 123. Existem duas respostas para esta questão: se
interpretarmos o supracitado dispositivo como protegendo do alcance da
revisão constitucional qualquer norma inserida no título sobre direitos,
liberdades e garantias, uma visão meramente formal dos direitos

120 A este respeito, devemos deixar claramente sacramentada a rejeição da ideia de

que uma geração não tem legitimidade para vincular as seguintes aos seus princípios
e valores fundamentais, como argumento para tornar completamente vazia a cláusula
dos limites materiais à revisão e poder-se alterar qualquer dispositivo por ela
protegido. A legitimidade existe e funda-se na vontade daqueles que elaboraram a Lei
Magna, e que, destarte, inauguram uma determinada ordem constitucional. E,
enquanto esta estiver em vigor, as condições para a sua alteração impostas por eles,
não só são legalmente válidas, como são moralmente legítimas, não podendo ser
alteradas por quem supostamente tem um mero poder delegado e não é fonte do seu
próprio poder, o legislador da revisão constitucional. Chamamos atenção para que diz
J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7. ed.,
Coimbra, Almedina, 2003, p. 1060: “a superioridade do poder constituinte não pode
terminar na ideia de constituição ideal, alheia ao seu plebiscito quotidiano, à
alteração dos mecanismos constitucionais derivados das mutações políticas e sociais
e indiferente ao próprio sismógrafo das revoluções. O que o legislador constituinte
pode, porém, exigir do poder de revisão, é a solidariedade entre os princípios
fundamentais da constituição e as ideias constitucionais positivadas pelo poder de
revisão”.
121 Expressão mais utilizada no Brasil, mas que simboliza de modo adequado a ideia

de imutabilidade de determinadas normas consagradas por uma lei fundamental. Ver


por todos, Carlos Ayres Brito, “As cláusulas pétreas e sua função de revelar e garantir
a identidade da Constituição” In: Cármen Lúcia Antunes Rocha (coorda.),
Perspectivas do Direito Público (Estudos em Homenagem a Miguel Seabra
Fagundes), Belo Horizonte, Del Rey, 1995, pp. 175-195; e Ives Gandra Martins,
“Cláusulas Pétreas” In: Jorge Miranda (org.), Perspectivas constitucionais: Nos 20
anos da Constituição de 1976, Coimbra, Coimbra Editora, 1996, v. I, pp. 145-166.
122 Curiosamente, a cláusula dos limites materiais, também não foi discutida em

plenário aquando da aprovação da Constituição de 1992 (vide: Assembleia Nacional


Popular, Acta das Sessões: Apresentação e Debate da Constituição da República, p.
752).
123 De acordo com o parágrafo 2º do artigo 285 da Constituição da República de Cabo

Verde, “as leis de revisão não podem, ainda, restringir ou limitar os direitos,
liberdades e garantias estabelecidos na Constituição”.
117
José Pina Delgado

fundamentais e dos limites materiais, o problema está solucionado. Por


mais que quiséssemos e arguíssemos que a proibição absoluta da
extradição de nacional é obsoleta, ultrapassada, e um direito
fundamental que não se consegue justificar racionalmente, ter-se-ia que
respeitar tais limites constitucionais 124.
No entanto, perguntar-se-ia: terá sido a vontade do legislador
constituinte retirar da consideração do poder de revisão, mesmo numa
constituição hiper-rígida como a nossa, todas as cláusulas relativas a
direitos, liberdades e garantias, mesmo nas suas mais ínfimas minúcias?
Será uma interpretação razoável nos dias de hoje, considerar todo o
pacote, por vezes importados acriticamente, de direitos, liberdades e
garantias, alguns dos quais nem sequer gozam de um estatuto de conexão
necessária com o Estado de Direito Democrático então criado, do poder

124A menos que resolvêssemos seguir a doutrina da dupla-revisão, segundo a qual, e


dependendo da sua variante, como a cláusula dos limites materiais não impede a sua
própria revisão, seria possível fazer uma revisão dos limites materiais em duas
etapas: primeiro, revendo a própria cláusula, que não se impermeabiliza a si própria
de alterações, e modificando a cláusula de limites; segundo, fazendo, já sem os limites
materiais, a revisão de uma norma que deixaria de estar protegida de uma revisão
constitucional. Bem, no mínimo, a doutrina da dupla-revisão é, utilizando o
magistério de J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição,
p. 1068, “sério indício de fraude à constituição”, não podendo estar de acordo com o
constitucionalista de Lisboa, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, 3.
ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1996, t. II (Constituição e Inconstitucionalidade), p.
197 e ss, que justifica a doutrina da dupla-revisão a partir das seguintes
considerações: “as cláusulas de limites realçam de novo a ideia do Direito, a estrutura
fundamental, aquilo que identifica a Constituição em sentido material subjacente à
Constituição em sentido formal. Mas não podem impedir futuras alterações que
atinjam tais limites, porque o poder constituinte é, por definição, soberano. O que
obrigam é a dois processos, em tempos sucessivos, um para eliminar o limite da
revisão e o outro para substituir a norma constitucional de fundo garantida através
dele (...)”; ver a propósito desta questão o interessante ensaio de Luís Virgílio Afonso
da Silva, “Ulisses, as sereias e o poder constituinte derivado. Sobre a
inconstitucionalidade da dupla revisão e da alteração no quorum de 3/5 para
aprovação de emendas constitucionais”, Revista de Direito Administrativo, Rio de
Janeiro, v. 226, 2001, pp. 11-32, e, antes dele, o clássico brasileiro da matéria Nélson
de Souza Sampaio, “Os Limites da Reforma Constitucional” In: O Poder de Reforma
Constitucional, 3. ed. (1ª edição: 1954), Uadi Lamêgo Bulos (revisão e actualização),
Belo Horizonte, Nova Alvorada, 1995, pp. 127-128.

118
Aspectos Polémicos da Extradição

de revisão, ou terá querido meramente salvaguardar o regime de direitos,


liberdades e garantias naquilo que ele tem de essencial e co-natural ao
modelo de organização de comunidade política que os cabo-verdianos
escolheram dar a si próprios?
Obviamente, defendo a segunda solução, pois parece-nos que não
se pode fazer uma interpretação tão absolutista da cláusula! 125 São os
princípios e o regime que estão a ser salvaguardados, não as cláusulas
particulares. 126 Neste sentido, quaisquer limitações por via de revisão, de
um preceito constitucional marginal no seio dos direitos fundamentais,
não deveria ser totalmente inaceitável. É o que ocorre com a cláusula que
proíbe a extradição de nacional cabo-verdiano. Não se tratando de um
direito fundamental essencial, e estando neste momento histórico,
claramente datado, podendo o seu âmbito de protecção ser garantido por
outras vias, nomeadamente pela exigência de garantia de um processo
justo e equitativo ao cidadão nacional, sempre que por hipótese, ele seja
extraditado para responder a processo-crime ou garantir-lhe uma
situação de cumprimento de pena favorável. Não seria, todavia difícil
aceitar que uma lei de revisão constitucional limitasse a cláusula da

125 A respeito da interpretação das cláusulas constitucionais de limites à reforma da


Constituição, recomenda-se o soberbo estudo de Guilherme Soares, Os direitos, os
juízes, o povo: a cláusula pétrea dos direitos e das garantias individuais e o controlo
judicial de constitucionalidade de emendas à Constituição de 1988, Tese de
Doutoramento, Florianópolis, Centro de Ciências Jurídicas, Universidade Federal de
Santa Catarina, 2006, pp. 294-324.
126 Lembra J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p.

1069, que “os limites materiais devem considerar-se como garantias de determinados
princípios, independentemente da sua concreta consagração constitucional, e não
como garantias de cada princípio na formulação concreta que tem na Constituição.
Por outro lado, a positivação constitucional dos limites de revisão não elimina a
necessidade de selectividade dos princípios, pois bem pode acontecer que alguns
destes sejam limites genuínos respeitantes a autoidentificação material da esfera
jurídico-constitucional e outros sejam limites conjunturalmente justificados”. Ora
bem, se o autorizado mestre nos permite acrescentar, no caso da cláusula da não-
extradição de nacional, além de não se a poder classificar como princípio, há muito
deixou de ser justificada conjunturalmente.
119
José Pina Delgado

proibição da extradição de nacional. “Fossilizar” por completo um


conjunto extenso de cláusulas constitucionais, não obstante ser a sua
pretensão a defesa da liberdade 127, não pode ter sido a vontade do
legislador constituinte num Estado de Direito, que o é plenamente, mas
igualmente um Estado Democrático, onde se o pressuposto fundamental
é proteger minorias da vontade opressiva das maiorias, não deixa de ser
uma ordem política que se assenta igualmente na vontade livre e
soberana do povo 128.
Por conseguinte, deve-se ponderar e considerar esses dois pilares
essenciais – que, não obstante, podem apresentar-se de forma conflitual
–, da Constituição Cabo-verdiana, nomeadamente no tocante às
cláusulas abrangentes e elásticas como a do artigo 285.2, resultando
dessa ponderação abstracta que aqueles direitos, liberdades e garantias,
realmente necessários à protecção da esfera de liberdade individual é que
estão verdadeiramente a resguardo de qualquer revisão constitucional.

12. Esta medida pode ser importante para minimizar um receio


francamente pertinente e legítimo para qualquer cidadão que se
preocupe com o Estado de Direito Democrático: se se começar a limitar
os direitos, liberdades e garantias, mormente os que não seriam
essenciais, o resultado a prazo será a extinção do próprio regime dos
direitos fundamentais e a abolição inclusivamente das cláusulas

127A expressão é do jurista brasileiro Luís Virgílio Afonso da Silva, “A Phossilised


Constitution?”, Ratio Juris, v. 17, n. 4, 2004, pp. 454-473.
128 Sobre esta questão, cf. Jorge Reis Novais, Os Princípios Constitucionais

Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra, Coimbra Editora, 2004, pp. 36-


42; Miguel Nogueira Brito, A Constituição Constituinte. Ensaio sobre o Poder de
Revisão na Constituição, Coimbra, Coimbra Editora, 2000, e particularmente Jürgen
Habermas, Direito e democracia. Entre facticidade e validade, Tradução de Flávio
Beno Siebeneichler, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1997, v. I, Cap. III (I), “os
direitos humanos e a soberania do povo formam as ideias em cuja luz ainda é possível
justificar o direito moderno” (p. 133), e Delamar Dutra, Manual de Filosofia do
Direito, Caxias do Sul, Educs, 2008, pp. 147-167.

120
Aspectos Polémicos da Extradição

essenciais que se dizem invioláveis 129. Tal como será, evidentemente, o


facto de necessariamente existirem controlos prévios à revisão da
Constituição, incluindo judiciais, onde seriam controlados precisamente
a essencialidade desses direitos fundamentais no quadro de qualquer
limitação que se lhes pretenda fazer 130. Finalmente, uma revisão da
constituição que incida sobre a actual regra, que proíbe a extradição de
nacional não significa que não possa existir alguma protecção
constitucional a nacionais alvo de processos de extradição,
nomeadamente, limitando-se as hipóteses e a circunstância em que isso
poderá ocorrer, bem como a qualidade da entidade estatal que a pode
requerer. E, mesmo nos casos limitados em que se a pode em abstracto
permitir, ainda assim tratar-se-ia de um acto submetido à
discricionariedade do Estado de Cabo Verde, que, caso a caso, decidiria
sobre a pertinência da extradição ou se, em caso concreto, invocaria o seu
direito/dever de julgar o cabo-verdiano em território nacional, ressalvas
que deverão estar presentes numa nova Lei de Cooperação Judiciária em
Matéria Penal ou de Extradição e, acima de tudo, de todos os tratados de
extradição que Cabo Verde concluir doravante.

129A título comparativo vide Anabela Miranda Rodrigues, “O Mandado de Detenção


Europeu – Na via da Construção de um Sistema Penal Europeu: um Passo ou um
Salto?”, p. 55 e ss.
130 Nas palavras de J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da

Constituição, p. 1074, “a não observância, pela lei de revisão, dos limites


estabelecidos na constituição, coloca-nos perante o problema da desconformidade
constitucional das leis de revisão, problema esse que não é substancialmente
diferente do problema da inconstitucionalidade das leis ordinárias, dado que o poder
de revisão é um poder constituído e não uma novação do poder constituinte. (…).
Dada a existência de limites formais e materiais, as leis de revisão que não
respeitarem esses limites serão respectivamente inconstitucionais sob o ponto de
vista formal e material. Assim acontecerá por exemplo nos casos de (…) b) leis de
revisão constitucional que violam os limites materiais (…)”.
121
José Pina Delgado

V. À Guisa de Conclusão: Por que devemos estar abertos a


rever a cláusula que proíbe a extradição de nacionais?
13. Tentei defender que, apesar de muitos dos argumentos
utilizados pelos defensores da extradição de nacional, nomeadamente os
que sustentam as suas posições na fragilidade do Estado de Cabo Verde,
para fazer face a determinadas ameaças, na necessidade de permitir a
adesão ao Tribunal Penal Internacional, ou como forma de evitar que a
República colabore com a impunidade de criminosos, não se revelarem
muito convincentes para justificar a alteração da cláusula constitucional
que proíbe a extradição de nacional, existem motivos que a podem
fundamentar. Refiro-me, concretamente, à necessidade de se reprimir o
crime, precisamente no lugar onde ele é cometido, não só em razão da
facilidade de acesso a provas e de processo penal em geral, mas
igualmente porque é lá onde a norma é efectivamente violada, que se
deve realizar o julgamento, a menos que exista forte probabilidade de,
inclusivamente em decorrência de nacionalidade, os direitos do suspeito,
do arguido ou do condenado não sejam respeitados ou tal desiderato por
motivos exógenos não seja possível.
De facto, desde que sejam respeitados, não faz mais sentido, no
Século XXI, quando o vínculo de um indivíduo a uma nação é mais de
aceitação institucional (na senda daquilo que Habermas denomina
“patriotismo constitucional” 131) do que de sangue, e que as relações entre

131 Por exemplo, cf. as ilustrativas observações do filósofo político alemão no


Facticidade e Validade: “A existência de sociedades multiculturais, tais como a Suíça
e os Estados Unidos, revela que uma cultura política, construída sobre princípios
constitucionais, não depende necessariamente de uma origem étnica, linguística e
cultural comum a todos os cidadãos. Uma cultura política liberal forma apenas o
denominador comum de um patriotismo constitucional capaz de agudizar, não
somente o sentido para a variedade, como também a integridade das diferentes e
coexistentes formas de vida de uma sociedade multicultural. Numa futura República
Federal dos Estados Europeus, os mesmos princípios jurídicos terão que ser
interpretados nas perspectivas de tradições e de histórias nacionais diferentes. A
própria tradição tem que ser assimilada numa visão relativizada pelas perspectivas

122
Aspectos Polémicos da Extradição

Estados que partilham os mesmos valores político-públicos deixaram de


estar submetidos a desconfiança mútua, tratar a extradição de nacional
como um dogma inquestionável e uma indignidade para a pátria. Por
outro lado, não será ainda um instituto totalmente anacrónico, na
medida em que nem todas as relações bilaterais, dariam ensejo àquela
fidúcia máxima, que permite ao Estado transferir o seu cidadão para
efeitos de julgamento e execução da pena em território estrangeiro, sem
qualquer receio de tratamento discriminatório. Neste sentido, a proibição
de nacional não é uma relíquia do passado em todas as situações. Trata-
se, no entanto, de possibilidade razoável que pode ser seguida, nas
relações entre duas nações que partilham valores estruturantes e que, por
isso, têm confiança absoluta de que os seus nacionais serão tratados de
modo imparcial em qualquer processo judicial ou de execução de pena,
que seja realizado em território do seu congénere. Não há que ter medo
da extradição de nacional; mesmo que essa possibilidade exista, Cabo
Verde pode desenhar um regime que salvaguarde, caso a caso, a
possibilidade de negar extradição quando, em concreto, ela não se
mostrar adequada, inserindo-o numa cláusula constitucional de
protecção mínima, em dispositivos de tratados de extradição ou numa lei
de cooperação judiciária em matéria penal ou extradição interna.

dos outros, para que possa ser introduzida numa cultura constitucional transnacional
da Europa Ocidental. E uma ancoragem particularista deste tipo não diminuiria, num
só ponto, o sentido universalista dos direitos humanos e da soberania popular.
Portanto, não há o que mudar: não é necessário amarrar a cidadania democrática à
identidade nacional de um povo; porém, prescindindo da variedade de diferentes
formas de vida culturais, ela exige a socialização de todos os cidadãos numa cultura
política comum” (Jürgen Habermas, Direito e Democracia. Entre Facticidade e
Validade, Tradução de Flávio Beno Siebeneichler, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro,
1997, p. 289) (Anexo: “Cidadania e Identidade Nacional”).
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