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Aristóteles: Os Quatro Discursos

Olavo de Carvalho

Capítulo I de Aristóteles em Nova Perspectiva: Introdução à Teoria dos Quatro Discursos (Rio,
Topbooks, 1997)

Há nas obras de Aristóteles uma idéia medular, que escapou à percepção de quase todos os seus leitores e
comentaristas, da Antigüidade até hoje. Mesmo aqueles que a perceberam — e foram apenas dois, que eu
saiba, ao longo dos milênios — limitaram-se a anotá-la de passagem, sem lhe atribuir explicitamente uma
importância decisiva para a compreensão da filosofia de Aristóteles (2). No entanto, ela é a chave mesma
dessa compreensão, se por compreensão se entende o ato de captar a unidade do pensamento de um
homem desde suas próprias intenções e valores, em vez de julgá-lo de fora; ato que implica respeitar
cuidadosamente o inexpresso e o subentendido, em vez de sufocá-lo na idolatria do "texto" coisificado,
túmulo do pensamento.

A essa idéia denomino Teoria dos Quatro Discursos. Pode ser resumida em uma frase: o discurso humano
é uma potência única, que se atualiza de quatro maneiras diversas: a poética, a retórica, a dialética e a
analítica (lógica).

Dita assim, a idéia não parece muito notável. Mas, se nos ocorre que os nomes dessas quatro modalidades
de discurso são também nomes de quatro ciências, vemos que segundo essa perspectiva a Poética, a
Retórica, a Dialética e a Lógica, estudando modalidades de uma potência única, constituem também
variantes de uma ciência única. A diversificação mesma em quatro ciências subordinadas tem de
assentar-se na razão da unidade do objeto que enfocam, sob pena de falharem à regra aristotélica das
divisões. E isto significa que os princípios de cada uma delas pressupõem a existência de princípios
comuns que as subordinem, isto é, que se apliquem por igual a campos tão diferentes entre si como a
demonstração científica e a construção do enredo trágico nas peças teatrais. Então a idéia que acabo de
atribuir a Aristóteles já começa a nos parecer estranha, surpreendente, extravagante. E as duas perguntas
que ela nos sugere de imediato são: Terá Aristóteles realmente pensado assim? E, se pensou, pensou com
razão? A questão biparte-se portanto numa investigação histórico-filológica e numa crítica filosófica. Não
poderei, nas dimensões da presente comunicação, realizar a contento nem uma, nem a outra. Em
compensação, posso indagar as razões da estranheza.

O espanto que a idéia dos Quatro Discursos provoca a um primeiro contato advém de um costume
arraigado da nossa cultura, de encarar a linguagem poética e a linguagem lógica ou científica como
universos separados e distantes, regidos por conjuntos de leis incomensuráveis entre si. Desde que um
decreto de Luís XIV separou em edifícios diversos as "Letras" e as "Ciências" (3), o fosso entre a
imaginação poética e a razão matemática não cessou de alargar-se, até se consagrar como uma espécie de
lei constitutiva do espírito humano. Evoluindo como paralelas que ora se atraem ora se repelem mas
jamais se tocam, as duas culturas, como as chamou C. P. Snow, consolidaram-se em universos estanques,
cada qual incompreensível ao outro. Gaston Bachelard, poeta doublé de matemático, imaginou poder
descrever esses dois conjuntos de leis como conteúdos de esferas radicalmente separadas, cada qual
igualmente válido dentro de seus limites e em seus próprios termos, entre os quais o homem transita como
do sono para a vigília, desligando-se de um para entrar na outra, e vice-versa (4): a linguagem dos sonhos
não contesta a das equações, nem esta penetra no mundo daquela. Tão funda foi a separação, que alguns
desejaram encontrar para ela um fundamento anatômico na teoria dos dois hemisférios cerebrais, um
criativo e poético, outro racional e ordenador, e acreditaram ver uma correspondência entre essas divisões
e a dupla yin-yang da cosmologia chinesa (5). Mais ainda, julgaram descobrir no predomínio exclusivo de
um desses hemisférios a causa dos males do homem Ocidental. Uma visão um tanto mistificada do
ideografismo chinês, divulgada nos meios pedantes por Ezra Pound (6), deu a essa teoria um respaldo
literário mais do que suficiente para compensar sua carência de fundamentos científicos. A ideologia da
"Nova Era" consagrou-a enfim como um dos pilares da sabedoria (7).

Nesse quadro, o velho Aristóteles posava, junto com o nefando Descartes, como o protótipo mesmo do
bedel racionalista que, de régua em punho, mantinha sob severa repressão o nosso chinês interior. O
ouvinte imbuído de tais crenças não pode mesmo receber senão com indignado espanto a idéia que atribuo
a Aristóteles. Ela apresenta como um apóstolo da unidade aquele a quem todos costumavam encarar como
um guardião da esquizofrenia. Ela contesta uma imagem estereotipada que o tempo e a cultura de
almanaque consagraram como uma verdade adquirida. Ela remexe velhas feridas, cicatrizadas por uma
longa sedimentação de preconceitos.

A resistência é, pois, um fato consumado. Resta enfrentá-la, provando, primeiro, que a idéia é
efetivamente de Aristóteles; segundo, que é uma excelente idéia, digna de ser retomada, com humildade,
por uma civilização que se apressou em aposentar os ensinamentos do seu velho mestre antes de os haver
examinado bem. Não poderei aqui senão indicar por alto as direções onde devem ser buscadas essas duas
demonstrações.

Aristóteles escreveu uma Poética, uma Retórica, um livro de Dialética (os Tópicos) e dois tratados de
Lógica (Analíticas I e II), além de duas obras introdutórias sobre a linguagem e o pensamento em geral
(Categorias e Da Interpretação). Todas essas obras andaram praticamente desaparecidas, como as demais
de Aristóteles, até o século I a. C., quando um certo Andrônico de Rodes promoveu uma edição de
conjunto, na qual se baseiam até hoje nossos conhecimentos de Aristóteles.

Como todo editor póstumo, Andrônico teve de colocar alguma ordem nos manuscritos. Decidiu tomar
como fundamento dessa ordem o critério da divisão das ciências em introdutórias (ou
lógicas), teoréticas, práticas e técnicas (ou poiêticas, como dizem alguns). Esta divisão tinha o mérito de
ser do próprio Aristóteles. Mas, como observou com argúcia Octave Hamelin (8), não há nenhum motivo
para supor que a divisão das obras de um filósofo em volumes deva corresponder taco-a-taco à sua
concepção das divisões do saber. Andrônico deu essa correspondência por pressuposta, e agrupou os
manuscritos, portanto, nas quatro divisões. Mas, faltando outras obras que pudessem entrar sob o
rótulo técnicas, teve de meter lá a Retórica e a Poética, desligando-as das demais obras sobre a teoria do
discurso, que foram compor a unidade aparentemente fechada do Organon, conjunto das obras lógicas ou
introdutórias.

Somada a outras circunstâncias, essa casualidade editorial foi pródiga em conseqüências, que se
multiplicam até hoje. Em primeiro lugar, a Retórica — nome de uma ciência abominada pelos filósofos,
que nela viam o emblema mesmo de seus principais adversários, os sofistas — não suscitou, desde sua
primeira edição por Andrônico, o menor interesse filosófico. Foi lida apenas nas escolas de retórica, as
quais, para piorar as coisas, entravam então numa decadência acelerada pelo fato de que a extinção da
democracia, suprimindo a necessidade de oradores, tirava a razão de ser da arte retórica, encerrando-a na
redoma de um formalismo narcisista (9). Logo em seguida, a Poética, por sua vez, sumiu de circulação,
para só reaparecer no século XVI (10). Estes dois acontecimentos parecem fortuitos e desimportantes.
Mas, somados, dão como resultado nada menos que o seguinte: todo o aristotelismo ocidental, que, de
início lentamente, mas crescendo em velocidade a partir do século XI, foi se formando no período que vai
desde a véspera da Era Cristã até o Renascimento, ignorou por completo a Retórica e a Poética. Como
nossa imagem de Aristóteles ainda é uma herança desse período (já que a redescoberta da Poética no
Renascimento não despertou interesse senão dos poetas e filólogos, sem tocar o público filosófico), até
hoje o que chamamos de Aristóteles, para louvá-lo ou para maldizê-lo, não é o homem de carne e osso,
mas um esquema simplificado, montado durante os séculos que ignoravam duas das obras dele. Em
especial, nossa visão da teoria aristotélica do pensamento discursivo é baseada exclusivamente na
analítica e na tópica, isto é, na lógica e na dialética, amputadas da base que Aristóteles tinha construído
para elas na poética e na retórica (11).

Mas a mutilação não parou aí. Do edifício da teoria do discurso, haviam sobrado só os dois andares
superiores — a dialética e a lógica —, boiando sem alicerces no ar como o quarto do poeta na "Última
canção do beco" de Manuel Bandeira. Não demorou a que o terceiro andar fosse também suprimido: a
dialética, considerada ciência menor, já que lidava somente com a demonstração provável, foi preterida
em benefício da lógica analítica, consagrada desde a Idade Média como a chave mesma do pensamento de
Aristóteles. A imagem de um Aristóteles constituído de "lógica formal + sensualismo cognitivo + teologia
do Primeiro Motor Imóvel" consolidou-se como verdade histórica jamais contestada.

Mesmo o prodigioso avanço dos estudos biográficos e filológicos inaugurado por Werner Jaeger (12) não
mudou isso. Jaeger apenas derrubou o estereótipo de um Aristóteles fixo e nascido pronto, para substituir-
lhe a imagem vivente de um pensador que evolui no tempo em direção à maturidade das suas idéias. Mas
o produto final da evolução não era, sob o aspecto aqui abordado, muito diferente do sistema consagrado
pela Idade Média: sobretudo a dialética seria nele um resíduo platônico, absorvido e superado na lógica
analítica.

Mas essa visão é contestada por alguns fatos. O primeiro, ressaltado por Éric Weil, é que o inventor da
lógica analítica jamais se utiliza dela em seus tratados, preferindo sempre argumentar dialeticamente (13).
Em segundo lugar, o próprio Aristóteles insiste em que a lógica não traz conhecimento, mas serve apenas
para facilitar a verificação dos conhecimentos já adquiridos, confrontando-os com os princípios que os
fundamentam, para ver se não os contradizem. Quando não possuímos os princípios, a única maneira de
buscá-los é a investigação dialética que, pelo confronto das hipóteses contraditórias, leva a uma espécie de
iluminação intuitiva que põe em evidência esses princípios. A dialética em Aristóteles é, portanto,
segundo Weil, uma logica inventionis, ou lógica da descoberta: o verdadeiro método científico, do qual a
lógica formal é apenas um complemento e um meio de verificação (14).

Mas a oportuna intervenção de Weil, se desfez a lenda de uma total hegemonia da lógica analítica no
sistema de Aristóteles, deixou de lado a questão da retórica. O mundo acadêmico do século XX ainda
subscreve a opinião de Sir David Ross, que por sua vez segue Andrônico: a Retórica tem "um propósito
puramente prático"; "não constitui um trabalho teórico" e sim "um manual para o orador" (15). Mas
à Poética, por seu lado, Ross atribui um valor teórico efetivo, sem reparar que, se Andrônico errou neste
caso, pode também ter se enganado quanto à Retórica. Afinal, desde o momento em que foi redescoberta,
a Poética também foi encarada sobretudo como "um manual prático" e interessou antes aos literatos do
que aos filósofos (16). De outro lado, o próprio livro dos Tópicos poderia ser visto como "manual técnico"
ou pelo menos "prático" — pois na Academia a dialética funcionava exatamente como tal: era o conjunto
das normas práticas do debate acadêmico. Enfim, a classificação de Andrônico, uma vez seguida ao pé da
letra, resulta em infindáveis confusões, as quais se podem resolver todas de uma vez mediante a admissão
da seguinte hipótese, por mais perturbadora que seja: como ciências do discurso, a Poética e a Retórica
fazem parte do Organon, conjunto das obras lógicas ou introdutórias, e não são portanto nem teoréticas
nem práticas nem técnicas. Este é o núcleo da interpretação que defendo. Ela implica, porém, uma
profunda revisão das idéias tradicionais e correntes sobre a ciência aristotélica do discurso. Esta revisão,
por sua vez, arrisca ter conseqüências de grande porte para a nossa visão da linguagem e da cultura em
geral. Reclassificar as obras de um grande filósofo pode parecer um inocente empreendimento de
eruditos, mas é como mudar de lugar os pilares de um edifício. Pode exigir a demolição de muitas
construções em torno.

As razões que alego para justificar essa mudança são as seguintes:

l. As quatro ciências do discurso tratam de quatro maneiras pelas quais o homem pode, pela palavra,
influenciar a mente de outro homem (ou a sua própria). As quatro modalidades de discurso caracterizam-
se por seus respectivos níveis de credibilidade:

(a) O discurso poético versa sobre o possível (17), dínatos), dirigindo-se sobretudo à
imaginação, que capta aquilo que ela mesma presume (, eikástikos,
"presumível"; , eikasia, "imagem", "representação").

(b) O discurso retórico tem por objeto o verossímil (, pithános) e por meta a produção de
uma crença firme (, pístis) que supõe, para além da mera presunção imaginativa, a anuência
da vontade; e o homem influencia a vontade de um outro homem por meio da persuasão (, peitho),
que é uma ação psicológica fundada nas crenças comuns. Se a poesia tinha como resultado
uma impressão, o discurso retórico deve produzir uma decisão, mostrando que ela é a mais adequada ou
conveniente dentro de um determinado quadro de crenças admitidas.

(c) O discurso dialético já não se limita a sugerir ou impor uma crença, mas submete as crenças à prova,
mediante ensaios e tentativas de traspassá-las por objeções. É o pensamento que vai e vem, por vias
transversas, buscando a verdade entre os erros e o erro entre as verdades (, diá = "através de" e indica
também duplicidade, divisão). Por isto a dialética é também chamada peirástica, da raiz peirá ( =
"prova", "experiência", de onde vêm , peirasmos, "tentação", e as nossas
palavras empiria, empirismo, experiência etc., mas também, através de , peirates, "pirata": o
símbolo mesmo da vida aventureira, da viagem sem rumo predeterminado). O discurso dialético mede
enfim, por ensaios e erros, a probabilidade maior ou menor de uma crença ou tese, não segundo sua mera
concordância com as crenças comuns, mas segundo as exigências superiores da racionalidade e da
informação acurada.

(d) O discurso lógico ou analítico, finalmente, partindo sempre de premissas admitidas como
indiscutivelmente certas, chega, pelo encadeamento silogístico, à demonstração
certa (, apodêixis, "prova indestrutível") da veracidade das conclusões.

É visível que há aí uma escala de credibilidade crescente: do possível subimos ao verossímil, deste para o
provável e finalmente para o certo ou verdadeiro. As palavras mesmas usadas por Aristóteles para
caracterizar os objetivos de cada discurso evidenciam essa gradação: há, portanto, entre os quatro
discursos, menos uma diferença de natureza que de grau.

Possibilidade, verossimilhança, probabilidade razoável e certeza apodíctica são, pois, os conceitos-chave


sobre os quais se erguem as quatro ciências respectivas: a Poética estuda os meios pelos quais o discurso
poético abre à imaginação o reino do possível; a Retórica, os meios pelos quais o discurso retórico induz a
vontade do ouvinte a admitir uma crença; a Dialética, aqueles pelos quais o discurso dialético averigua a
razoabilidade das crenças admitidas, e, finalmente, a Lógica ou Analítica estuda os meios da
demonstração apodíctica, ou certeza científica. Ora, aí os quatro conceitos básicos são relativos uns aos
outros: não se concebe o verossímil fora do possível, nem este sem confronto com o razoável, e assim por
diante. A conseqüência disto é tão óbvia que chega a ser espantoso que quase ninguém a tenha percebido:
as quatro ciências são inseparáveis; tomadas isoladamente, não fazem nenhum sentido. O que as define e
diferencia não são quatro conjuntos isoláveis de caracteres formais, porém quatro possíveis atitudes
humanas ante o discurso, quatro motivos humanos para falar e ouvir: o homem discursa para abrir a
imaginação à imensidade do possível, para tomar alguma resolução prática, para examinar criticamente a
base das crenças que fundamentam suas resoluções, ou para explorar as conseqüências e prolongamentos
de juízos já admitidos como absolutamente verdadeiros, construindo com eles o edifício do saber
científico. Um discurso é lógico ou dialético, poético ou retórico, não em si mesmo e por sua mera
estrutura interna, mas pelo objetivo a que tende em seu conjunto, pelo propósito humano que visa a
realizar. Daí que os quatro sejam distinguíveis, mas não isoláveis: cada um deles só é o que é quando
considerado no contexto da cultura, como expressão de intuitos humanos. A idéia moderna de delimitar
uma linguagem "poética em si" ou "lógica em si" pareceria aos olhos de Aristóteles uma substancialização
absurda, pior ainda: uma coisificação alienante (18). Ele ainda não estava contaminado pela esquizofrenia
que hoje se tornou o estado normal da cultura.

2. Mas Aristóteles vai mais longe: ele assinala a diferente disposição psicológica correspondente ao
ouvinte de cada um dos quatro discursos, e as quatro disposições formam também, da maneira mais
patente, uma gradação:

(a) Ao ouvinte do discurso poético cabe afrouxar sua exigência de verossimilhança, admitindo que "não é
verossímil que tudo sempre aconteça de maneira verossímil", para captar a verdade universal que pode
estar sugerida mesmo por uma narrativa aparentemente inverossímil (19). Aristóteles, em suma, antecipa
a suspension of disbelief de que falaria mais tarde Samuel Taylor Coleridge. Admitindo um critério de
verossimilhança mais flexível, o leitor (ou espectador) admite que as desventuras do herói trágico
poderiam ter acontecido a ele mesmo ou a qualquer outro homem, ou seja, são possibilidades humanas
permanentes.

(b) Na retórica antiga, o ouvinte é chamado juiz, porque dele se espera uma decisão, um voto, uma
sentença. Aristóteles, e na esteira dele toda a tradição retórica, admite três tipos de discursos retóricos: o
discurso forense, o discurso deliberativo e o discurso epidíctico, ou de louvor e censura (a um
personagem, a uma obra, etc.) (20). Nos três casos, o ouvinte é chamado a decidir: sobre a culpa ou
inocência de um réu, sobre a utilidade ou nocividade de uma lei, de um projeto, etc., sobre os méritos ou
deméritos de alguém ou de algo. Ele é, portanto, consultado como autoridade: tem o poder de decidir. Se
no ouvinte do discurso poético era importante que a imaginação tomasse as rédeas da mente, para levá-la
ao mundo do possível num vôo do qual não se esperava que decorresse nenhuma conseqüência prática
imediata, aqui é a vontade que ouve e julga o discurso, para, decidindo, criar uma situação no reino dos
fatos (21).

(c) Já o ouvinte do discurso dialético é, interiormente ao menos, um participante do processo dialético.


Este não visa a uma decisão imediata, mas a uma aproximação da verdade, aproximação que pode ser
lenta, progressiva, difícil, tortuosa, e nem sempre chega a resultados satisfatórios. Neste ouvinte, o
impulso de decidir deve ser adiado indefinidamente, reprimido mesmo: o dialético não deseja persuadir,
como o retórico, mas chegar a uma conclusão que idealmente deva ser admitida como razoável por ambas
as partes contendoras. Para tanto, ele tem de refrear o desejo de vencer, dispondo-se humildemente a
mudar de opinião se os argumentos do adversário forem mais razoáveis. O dialético não defende um
partido, mas investiga uma hipótese. Ora, esta investigação só é possível quando ambos os participantes
do diálogo conhecem e admitem os princípios básicos com fundamento nos quais a questão será julgada, e
quando ambos concordam em ater-se honestamente às regras da demonstração dialética. A atitude, aqui, é
de isenção e, se preciso, de resignação autocrítica. Aristóteles adverte expressamente os discípulos de que
não se aventurem a terçar argumentos dialéticos com quem desconheça os princípios da ciência: seria
expor-se a objeções de mera retórica, prostituindo a filosofia (22).

(d) Finalmente, no plano da lógica analítica, não há mais discussão: há apenas a demonstração linear de
uma conclusão que, partindo de premissas admitidas como absolutamente verídicas e procedendo
rigorosamente pela dedução silogística, não tem como deixar de ser certa. O discurso analítico é o
monólogo do mestre: ao discípulo cabe apenas receber e admitir a verdade. Caso falhe a demonstração, o
assunto volta à discussão dialética (23).

De discurso em discurso, há um afunilamento progressivo, um estreitamento do admissível: da ilimitada


abertura do mundo das possibilidades passamos à esfera mais restrita das crenças realmente aceitas
napraxis coletiva; porém, da massa das crenças subscritas pelo senso comum, só umas poucas sobrevivem
aos rigores da triagem dialética; e, destas, menos ainda são as que podem ser admitidas pela ciência como
absolutamente certas e funcionar, no fim, como premissas de raciocínios cientificamente válidos. A esfera
própria de cada uma das quatro ciências é portanto delimitada pela contigüidade da antecedente e da
subseqüente. Dispostas em círculos concêntricos, elas formam o mapeamento completo das comunicações
entre os homens civilizados, a esfera do saber racional possível (24).

3. Finalmente, ambas as escalas são exigidas pela teoria aristotélica do conhecimento. Para Aristóteles, o
conhecimento começa pelos dados dos sentidos. Estes são transferidos à memória, imaginação ou fantasia
(), que os agrupa em imagens (, eikoi, em latim species, speciei), segundo suas
semelhanças. É sobre estas imagens retidas e organizadas na fantasia, e não diretamente sobre os dados
dos sentidos, que a inteligência exerce a triagem e reorganização com base nas quais criará os esquemas
eidéticos, ou conceitos abstratos das espécies, com os quais poderá enfim construir os juízos e raciocínios.
Dos sentidos ao raciocínio abstrato, há uma dupla ponte a ser atravessada: a fantasia e a chamada simples
apreensão, que capta as noções isoladas. Não existe salto: sem a intermediação da fantasia e da simples
apreensão, não se chega ao estrato superior da racionalidade científica. Há uma perfeita homologia
estrutural entre esta descrição aristotélica do processo cognitivo e a Teoria dos Quatro Discursos. Não
poderia mesmo ser de outro modo: se o indivíduo humano não chega ao conhecimento racional sem
passar pela fantasia e pela simples apreensão, como poderia a coletividade — seja a polis ou o círculo
menor dos estudiosos — chegar à certeza científica sem o concurso preliminar e sucessivo da imaginação
poética, da vontade organizadora que se expressa na retórica e da triagem dialética empreendida pela
discussão filosófica?

Retórica e Poética uma vez retiradas do exílio "técnico" ou "poiêtico" em que as pusera Andrônico e
restauradas na sua condição de ciências filosóficas, a unidade das ciências do discurso leva-nos ainda a
uma verificação surpreendente: há embutida nela toda uma filosofia aristotélica da cultura como
expressão integral do logos. Nessa filosofia, a razão científica surge como o fruto supremo de uma árvore
que tem como raiz a imaginação poética, plantada no solo da natureza sensível. E como a natureza
sensível não é para Aristóteles apenas uma "exterioridade" irracional e hostil, mas a expressão
materializada do Logos divino, a cultura, elevando-se do solo mitopoético até os cumes do conhecimento
científico, surge aí como a tradução humanizada dessa Razão divina, espelhada em miniatura na
autoconsciência do filósofo. Aristóteles compara, com efeito, a reflexão filosófica à atividade
autocognoscitiva de um Deus que consiste, fundamentalmente, em autoconsciência. O cume da reflexão
filosófica, que coroa o edifício da cultura, é, com efeito, gnosis gnoseos, o conhecimento do
conhecimento. Ora, este se perfaz tão somente no instante em que a reflexão abarca recapitulativamente a
sua trajetória completa, isto é, no momento em que, tendo alcançado a esfera da razão científica, ela
compreende a unidade dos quatro discursos através dos quais se elevou progressivamente até esse ponto.
Aí ela está preparada para passar da ciência ou filosofia à sabedoria, para ingressar na Metafísica, que
Aristóteles, como bem frisou Pierre Aubenque, prepara mas não realiza por completo, já que o reino dela
não é deste mundo (25). A Teoria dos Quatro Discursos é, nesse sentido, o começo e o término da
filosofia de Aristóteles. Para além dela, não há mais saber propriamente dito: há somente a "ciência que se
busca", a aspiração do conhecimento supremo, da sophia cuja posse assinalaria ao mesmo tempo a
realização e o fim da filosofia.

Notas

1. Em vez de reproduzir exatamente o texto da primeira edição, este capítulo segue a versão ligeiramente corrigida que, sob
o título "A estrutura do Organon e a unidade das ciências do discurso em Aristóteles", apresentei no V Congresso Brasileiro
de Filosofia, em São Paulo, 6 de setembro de 1995 (seção de Lógica e Filosofia da Ciência). [volta]

2. Esses dois foram Avicena e Sto. Tomás de Aquino. Avicena (Abu 'Ali el-Hussein ibn Abdallah ibn Sina, 375-428 H. /
985-1036 d.C.) afirma taxativamente, na sua obra Nadjat ("A Salvação"), a unidade das quatro ciências, sob o conceito
geral de "lógica". Segundo o Barão Carra de Vaux, isto "mostra quanto era vasta a idéia que ele fazia desta arte", em cujo
objeto fizera entrar "o estudo de todos os diversos graus de persuasão, desde a demonstração rigorosa até à sugestão
poética" (cf. Baron Carra de Vaux, Avicenne, Paris, Alcan, 1900, pp. 160-161). Sto. Tomás de Aquino menciona também,
nos Comentários às Segundas Analíticas, I, 1.I, nº 1-6, os quatro graus da lógica, dos quais, provavelmente tomou
conhecimento através de Avicena, mas atribuindo-lhes o sentido unilateral de uma hierarquia descendente que vai do mais
certo (analítico) ao mais incerto (poético) e dando a entender que, da Tópica "para baixo", estamos lidando apenas com
progressivas formas do erro ou pelo menos do conhecimento deficiente. Isto não coincide exatamente com a concepção de
Avicena nem com aquela que apresento neste livro, e que me parece ser a do próprio Aristóteles, segundo a qual não há
propriamente uma hierarquia de valor entre os quatro argumentos, mas sim uma diferença de funções articuladas entre si e
todas igualmente necessárias à perfeição do conhecimento. De outro lado, é certo que Sto. Tomás, como todo o Ocidente
medieval, não teve acesso direto ao texto da Poética. Se tivesse, seria quase impossível que visse na obra poética apenas a
representação de algo "como agradável ou repugnante" (loc. cit., nº 6), sem meditar mais profundamente sobre o que diz
Aristóteles quanto ao valor filosófico da poesia (Poética, 1451 a). De qualquer modo, é um feito admirável do Aquinatense
o haver percebido a unidade das quatro ciências lógicas, raciocinando, como o fez, desde fontes de segunda mão. [volta]

3. V. Georges Gusdorf, Les Sciences Humaines et la Pensée Occidentale, t. I, De l'Histoire des Sciences à l'Histoire
de laPensée, Paris, Payot, 1966, pp. 9-41. [volta]

4. A obra de Bachelard, refletindo o dualismo metódico do seu pensamento, divide-se em duas séries paralelas: de um lado,
os trabalhos de filosofia das ciências, como Le Nouvel Esprit Scientifique, Le Rationalisme Appliqué, etc.; de outro, a série
dedicada aos "quatro elementos" — La Psychanalyse du Feu, L'Air et les Songes, etc., onde o racionalista em férias exerce
livremente o que chamava "o direito de sonhar". Bachelard parecia possuir um comutador mental que lhe permitia passar de
um desses mundos ao outro, sem a menor tentação de lançar entre eles outra ponte que não a liberdade de acionar o
comutador. [volta]

5. Para um exame crítico dessa teoria, v. Jerre Levy, "Right Brain, Left Brain: Fact and Fiction" (Psychology Today, may
1985, pp. 43 ss.). [volta]

6. Ezra Pound fez um barulho enorme em torno do ensaio de Ernest Fenollosa, The Chinese Characters as a Medium for
Poetry (London, Stanley Nott, 1936), dando ao Ocidente a impressão de que a língua chinesa constituía um mundo fechado,
regido por categorias de pensamento inacessíveis à compreensão Ocidental exceto mediante uma verdadeira torção do
conceito mesmo de linguagem. O simbolismo chinês, no entanto, é bem mais parecido com o Ocidental do que imaginam
os apreciadores de abismos culturais. Uma similaridade patente que tem escapado a essas pessoas é a que existe entre a
estrutura do I Ching e a silogística de Aristóteles. [volta]

7. A crença na teoria dos dois hemisférios é comum a todos os teóricos e gurus da "Nova Era", como Marilyn Ferguson,
Shirley MacLaine e Fritjof Capra. Sobre este último, v. meu livro A Nova Era e a Revolução Cultural. Fritjof Capra &
Antonio Gramsci, Rio, Instituto de Artes Liberais & Stella Caymmi Editora, 1994. O mais curioso desta teoria é que ela
pretende vencer a esquizofrenia do homem Ocidental e começa por dar a ela um fundamento anatômico (afortunadamente,
fictício). — É evidente, pelo que se verá a seguir, que não levo muito a sério as tentativas, tão meritórias no intuito quanto
miseráveis nos resultados, de superar o dualismo mediante a mixórdia metodológica generalizada que admite como critérios
de validade científica a persuasividade retórica e a efusão imaginativa (v. por exemplo Paul Feyerabend, Contra o Método,
trad. Octanny S. da Motta e Leônidas Hegenberg, Rio, Francisco Alves, 1977). [ volta]

8. "É talvez excessivo exigir que as obras de um autor correspondam ponto por ponto à classificação das ciências tal como a
compreende esse autor." (Octave Hamelin, Le Système d'Aristote, publié par Léon Robin, 4e. Éd., Paris, J. Vrin, 1985, p.
82.) [volta]

9. Refiro-me ao período da chamada "retórica escolar". V. Ernst Robert Curtius, Literatura Européia e Idade Média Latina,
trad. Teodoro Cabral, Rio, INL, 1957, pp. 74 ss. [ volta]

10. Isso torna ainda mais engraçada a trama d'O Nome da Rosa, de Umberto Eco, trama propositadamente impossível que o
espectador desinformado toma como ficção verossímil: pois como poderia surgir uma disputa em torno da desaparecida
Segunda Parte da Poética de Aristóteles, numa época que desconhecia até a Primeira? [ volta]

11. No quadro medieval, o fenômeno que descrevo tem certamente alguma relação com uma estratificação social que
colocava os sábios e filósofos, classe sacerdotal, acima dos poetas, classe de servidores da corte ou artistas de feira.
O status inferior do poeta em relação aos sábios nota-se tanto na hierarquia social (veja-se o papel decisivo que no
desenvolvimento literário medieval desempenharam os clerici vagantes, ou goliardos, todo um "proletariado eclesiástico" à
margem das universidades), quanto na hierarquia das ciências mesmas: os estudos literários estavam rigorosamente fora do
sistema educacional da escolástica, e as mais elevadas concepções filosóficas da Idade Média foram escritas num latim
bastante grosseiro, sem que isto, na ocasião, suscitasse qualquer estranheza e muito menos reações de escândalo esteticista
como as que viriam a eclodir no Renascimento. Cf., a propósito, Jacques Le Goff, Os Intelectuais na Idade Média, trad.
Luísa Quintela, Lisboa, Estudios Cor, 1973, Cap. I § 7. [ volta]

12. V. Werner Jaeger, Aristoteles. Bases para la Historia de su Desarrollo Intelectual, trad. José Gaos, México, Fondo de
Cultura Económica, 1946 (o original alemão é de 1923). [ volta]

13. Essa constatação fez surgir por sua vez a disputa entre os intérpretes que consideram Aristóteles um
pensador sistemático (que parte sempre dos mesmos princípios gerais) e os que o enxergam como pensador aporético (que
ataca os problemas um por um e vai subindo na direção do geral sem ter muita certeza de aonde vai chegar). A abordagem
sugerida no presente trabalho tem, entre outras, a ambição de resolver essa disputa. V., adiante, Cap. VII. [ volta]

14. V. Éric Weil, "La Place de la Logique dans la Pensée Aristotélicienne", em Éssais et Conférences, t. I, Philosophie,
Paris, Vrin, 1991, pp. 43-80. [volta]

15. Sir David Ross, Aristóteles, trad. Luís Filipe Bragança S. S. Teixeira, Lisboa, Dom Quixote, 1987, p. 280 (o original
inglês é de 1923). [volta]

16. Desde a sua primeira tradução comentada (Francesco Robortelli, 1548), a Poética redescoberta vai moldar por dois
séculos e meio os padrões do gosto literário, ao mesmo tempo que, no campo da Filosofia da Natureza, o aristotelismo
recua, banido pelo avanço vitorioso da nova ciência de Galileu e Bacon, Newton e Descartes. Isto mostra, de um lado, a
total separação entre o pensamento literário e a evolução filosófica e científica (separação característica do Ocidente
moderno, e que se agravará no decorrer dos séculos); de outro, a indiferença dos filósofos pelo texto redescoberto. Sobre as
raízes aristotélicas da estética do classicismo europeu, v. René Wellek, História da Crítica Moderna, trad, Lívio Xavier,
São Paulo, Herder. t. I, Cap. I. [ volta]

17. Por dificuldades técnicas de edição, omito aqui os acentos das palavras gregas. [ volta]
18. Quatro fatos da história do pensamento contemporâneo fazem ressaltar a importância dessas observações. 1°) Todas as
tentativas de isolar e definir por seus caracteres intrínsecos uma "linguagem poética", diferenciando-a materialmente da
"linguagem lógica" e da "linguagem cotidiana" fracassaram redondamente. V., a respeito, Mary Louise Pratt, Toward a
Speech Act Theory of Literary Discourse, Bloomington, Indiana University Press, 1977. 2°) De outro lado, desde Kurt
Gödel é geralmente reconhecida a impossibilidade de extirpar do pensamento lógico todo resíduo intuitivo. 3)° Os estudos
de Chaim Perelman (Traité de l'Argumentation. La Nouvelle Rhétorique, Bruxelles, Université Libre, 1978), Thomas S.
Kuhn (The Structure of Scientific Revolutions) e Paul Feyerabend (cit.) mostram, convergentemente, a impossibilidade de
erradicar da prova científico-analítica todo elemento dialético e mesmo retórico. 4)° Ao mesmo tempo, a existência de algo
mais que um mero paralelismo entre princípios estéticos (vale dizer, poéticos, em sentido lato) e lógico-dialéticos na
cosmovisão medieval é fortemente enfatizada por Erwin Panofsky (Architecture Gothique et Pensée Scolastique, trad.
Pierre Bourdieu, Paris, Éditions de Minuit, 1967). Esses fatos e muitos outros no mesmo sentido indicam mais que a
conveniência, a urgência do estudo integrado dos quatro discursos. [ volta]

19. V. Poética, 1451 a-b. [volta]

20. Sobre as três modalidades na tradição retórica, v. Heinrich Lausberg, Elementos de Retórica Literária, trad. R. M.
Rosado Fernandes, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª ed., 1972. [ volta]

21. Retórica, 1358 a — 1360 a. [volta]

22. Tópicos, IX 12, 173 a 29 ss. [volta]

23. Entre a analítica e a dialética, "a diferença é, segundo Aristóteles, aquela que há entre o curso de ensinamento dado por
um professor e a discussão realizada em comum, ou, para dizer de outro modo, a que há entre o monólogo e o diálogo
científicos" (Éric Weil, op. cit., p. 64). [volta]

24. É quase impossível que Aristóteles, cientista natural com a mente repleta de analogias entre a esfera dos conceitos
racionais e os fatos da ordem física, não reparasse no paralelismo — direto e inverso — entre os quatro discursos e os
quatro elementos, diferenciados, eles também, pela escalaridade do mais denso para o mais sutil, em círculos concêntricos.
Num curso proferido no IAL em 1988, inédito exceto numa série de apostilas sob o título geral de "Teoria dos Quatro
Discursos", investiguei mais extensamente esse paralelismo, que aqui não cabe senão mencionar de passagem. [ volta]

25. V. Pierre Aubenque, Le Problème de l'Être chez Aristote. Éssai sur la Problematique Aristotélicienne, Paris, P.U.F.,
1962. [volta]

In http://www.olavodecarvalho.org.

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