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A ESCRITA RIZOMÁTICA – DANIEL LINS


18 de julho de 2014 • Aurora Baêta

A escrita rizomática.

Daniel Lins.

O rizoma faz o múltiplo, mais do que o anuncia. O fracasso de uma


biologia que não fosse molecular, segundo Félix Guattari, em seu livro
Revolução molecular, poderia encontrar na botânica os princípios de um
rizomorfismo. [1] Em outras palavras, simultaneamente conexões,
heterogeneidades, multiplicidades e assignificâncias, o rizoma em sua
orfandade radical desenha uma literatura e uma escrita cuja alma, sempre
carnal, nervura e gozo sem entraves da língua, na língua, está para além
das regenerações, das reproduções das hidras e medusas. Rizoma é só
produção, dança das palavras, viagem da língua na língua.Em oposição ao
modelo centralizado, coagulado, desidratado e organizado, o rizoma se
define como um agenciamento de alianças, sempre pelo meio, e em
perpétuo devir. Fazer rizoma é enveredar como um cavalo louco para uma
escrita cujo devir é o devir-pensamento-musical da própria escrita. A
escrita rizomática é órfã, inclusive, do pecado… Qual foi o castigo maior, a
infâmia suprema do Divino contra o homem pecador? Ao pecar, ele nela,
ela nele, ambos desaprenderam a cantar. Sem a música, sem a fascinação
nela inserida, como uma sina, a escrita torna-se seca, fria, túmulo do
pensamento. A escrita não perde apenas o sexo, as sexualidades, os
arrepios do gozo, mas seu destino maior: o acontecimento. Ser digno
daquilo que nos acontece, afora todo e qualquer axioma moral.

O corpo como pensamento melódico, o corpo como saúde, isto é, como


literatura sem o aprisionamento de uma língua que a asfixia na nulidade
de uma escritura que se substitui, como um câncer, ao fogo da escrita. A
escrita sempre por vir. Ora, saúde, enquanto literatura, consiste em
inventar um povo que falta. Cabe, pois, a função fabuladora da escrita de
engendrar esse povo que falta, sob o signo de palavras parideiras. Palavras
parideiras, disse eu?! Como as “Pedras Parideiras” de Frecha da Mizarela,
famosas em Portugal, a escrita rizomática são pedras que parem pedras.

Não se escreve, todavia, com as lembranças; sequer com as lembranças de


um povo por vir, salvo quando nossas recordações são aquelas de um povo
rizomático, múltiplo, composto por imigrantes de todos os países, e não
por um povo convocado para dominar o mundo. Trata-se de um povo
menor, eternamente menor, tomado em um devir-revolucionário.

Compreende-se, assim, o amor de Deleuze pela literatura americana e por


seus escritores que podem escrever com “suas” lembranças, a partir de um
eu sempre eclodido em mil devires encarnados pela matilha: americanos
de todos os planetas, inclusive aqueles ainda não “descobertos”. Escritores
das estradas e da escrita líquida, da fissura, da fenda, que, pelo que tudo
indica, produzem uma escrita que canta… [2]

E o devir é por definição o inumano. Pós-humano! Nestas condições,


compreende-se por que a estética deleuziana pode ser denominada como
estética dos fluxos ou da linha, estética órfã, rizomática. A ideia de
superioridade da literatura anglo-americana sobre todas as outras
literaturas está ancorada em seu saber prioritário, em sua arte de lançar
tais linhas. Superioridade, pois ela se aproxima do mais alto objeto da
literatura: o rizoma, as dobras, a invenção de mundos possíveis, não
históricos, não arborescentes. Mas, o que são essas linhas de fuga que
nutrem e se nutrem do rizoma, e que relação mantêm com a escrita? Vou
tentar avaliar essa pertinência. Deleuze encontra na literatura anglo-
saxônica um vitalismo ao qual não cessa de se referir e que vai guiar nossa
compreensão da literatura do que é pensar, do que pensar significa.

Qual é a trama principal de Deleuze? Libertar a vida é a tarefa principal do


pensamento, isso porque a vida e o pensamento estão encarcerados.
Estamos encarcerados, isso é um fato. O ponto de partida da filosofia
deleuziana reside, pois, na oposição maior, que nutre seu pensamento: o
casal libertação/prisão, liberdade/servidão. Memória das marcas em
detrimento da memória das palavras – invenção rizomática de uma
memória por vir. Ao invés da nostalgia ferina do passado, a saudade do
futuro.

Não nos perguntaremos qual é essa prisão na qual estamos desde o início
encarcerados, visto que ela se encontra em todos os lugares. Qualquer que
seja nosso estatuto, homens livres vivendo nas democracias modernas,
melhor dizendo, nas oligarquias sociais, ou escravos das novas ditaduras
econômicas, sobremaneira, ou totalitarismos religiosos, dominação
conjugal, amorosa, estamos igualmente aprisionados.

Compreende-se, pois, que a prisão não é uma instituição precisa que


releva do direito penal e da administração da pena como privação de
liberdade. Ela é a metáfora real susceptível de nos dar o axioma maior do
social instituído, ou descrever adequadamente a vida dos homens em seu
percurso ordinário e médio, cotidiano, inclusive nos países ricos e
desenvolvidos. Pois o social é o tipo de poder repressivo, opressivo, sob o
qual a liberdade pode tão só se asfixiar.

Mas, de que nos libertamos? Da prisão, prisão da linguagem, inclusive


daquela que enclausura o pensamento nas significações estabelecidas em
detrimento dos sentidos. A língua é vista unicamente como uma cadeia de
poderes opressivos. Ela não é um pensamento em ato, o poder de falar, a
língua aprisiona o pensamento. A língua contém, com efeito, signos
admitidos que remetem às significações relativamente fixas e registradas
pelas convenções e regras tão constrangedoras para a combinação desses
signos – estruturas e invariantes. A língua não é, pois, um “tesouro”, mas
o inimigo do escritor, como forma que o encarcera.

Daí o trabalho inventivo do escritor (Joyce, Guimarães Rosa, Blanchot,


Céline, Guyotat, Clarice Lispector, Borges, Lawrence, Kafka, Khatibi etc.),
que consiste em se libertar da língua, levando-a ao movimento, aos tubos
ou ondas selvagens, tornando-a itinerante, retirante, reduzindo-a,
desviando-a, deformando-a, desterritorializando-a em sua própria
territorialização. Uma língua bilíngue, segundo um bilinguismo que
supera o próprio marasmo e retorno do mesmo da língua: dois é uma
multidão. Dois são cães em matilha, em estado amoroso, conquistando
cadelas em pleno cio. O bilinguismo é sempre múltiplo. Não se fala uma
língua separada de suas inúmeras línguas tatuadas na própria língua.

O escritor rizomático está, pois, do lado do informal, do inacabado, da


deformação que abre e liberta, instiga os conteúdos e quebra aquilo que
esmaga a vida, faz passarem-se as linhas de fuga no horizonte, faz a
apologia do barato abstêmio e do porre com um copo de água. É isso: ficar
chapado com um copo de água! Não era esse um sonho de Henry Miller?

Neste contexto, emerge como um furacão a pergunta: “O que é escrever?”.


Ante essa terrível questão, sempre retomada, mas nunca fechada, que
desde Blanchot concentrou o essencial da reflexão contemporânea sobre a
literatura, Deleuze não hesita um segundo. Não há mistério, seu vitalismo
de origem nietzschiana lhe fornece a simplicidade de sua resposta: Por
que escrever senão para “libertar a vida em todos os lugares em que ela é
prisioneira”? Podemos, desde já, a partir dessa intuição organizadora de
toda sua obra, afirmar que a tarefa maior do pensamento é libertar a vida,
inventar novas possibilidades de vida.

Com essa expressão comum a Nietzsche, a Foucault e a Deleuze, e que


caracteriza seu vitalismo, sob o signo da estética, ou seja,
respectivamente: uma teoria da vontade de potência, uma teoria das forças
e de sua dobra, ou, ainda, uma teoria do desejo como agenciamento ou
máquina desejante, criação de modos de existência ou de novas
possibilidades de vida, estilo de vida, um estilo de escrita – a escrita
rizomática. Percebe-se, assim, por que a literatura está presente em toda a
filosofia de Deleuze: é que ambas são indiscerníveis quanto a sua
finalidade primordial. Porém, esta comunidade de objeto não deixa de dar
lugar a uma especificidade própria a cada uma, que tem a ver com a
substância e as formas que essas duas atividades põem em jogo,
distinguindo-as sem ambiguidades.

Escrita rizomática como variação contínua

Cabe deixar viajarem a língua e as palavras, pôr a língua em variação


contínua, pois é assim que se podem esvaziar os conteúdos, desfazer as
formas e deixar passar algo assignificante, informal, assubjetivo. A
variação contínua é como o rizoma, não tem princípio nem fim, mas meio;
não é arborescente, tão tem raiz, é órfã. É encontro. É uma espécie de
bate-papo entre internautas: só se entra pelo meio. Neste sentido, a
variação contínua, a escrita como puro devir, desterritorializa as
dualidades, as oposições pertinentes, para, por meio da vibração das
palavras e do estremecimento das regras, provocar, no sentido também de
vomitar, uma cheia, uma inundação, uma libertinagem, profusões de
signos úmidos, secos, irrigados e, assim, abrir alas para uma língua
desviante que fia e engendra um sentido novo, inédito: uma escrita por
vir.

Tal é o objeto do estilo, procedimentos próprios a cada escritor. Cabe,


pois, de certo modo, fazer uma língua na língua. Tudo aquilo que subverte
e a torna estrangeira é muito bom para a língua. “Falo todas as línguas,
mas em iídiche” (Kafka). Donde o tema célebre que Deleuze pediu
emprestado a Proust, e que abre seu livro Crítica e Clínica:

“Os belos livros são escritos em uma espécie de língua estrangeira.”


Efetua-se, pois, o encadeamento das seguintes ideias: Somos prisioneiros.
Como nos libertar? Pela criação de linhas de fuga. Como criar linhas de
fuga? Mediante a variação contínua que é a única inventora e livre, pois
escapa aos poderes e invariantes que nos encarceram. A liberdade é uma
linha de fuga, é fuga ativa, engendradora de vidas e gradientes. Surge,
uma vez mais, a pergunta que não quer calar: mas, o que significa fugir? A
fuga significa no mínimo uma abertura, uma brecha que fende, fissura
àquilo que aprisiona. Um pouco de ar fresco, uma espécie de antiutopia: a
imanência.

Experimento I – Éden, Éden, Éden

O modelo evocado é aquele do cano que se fura para deixar jorrarem os


fluxos, ao mesmo tempo em que se espraiam, derramam, aspergem. Ou
ainda, o da máquina masturbatória de Pierre Guyotat, em seu livro Éden,
Éden, Éden, cujo prefácio escrito por Roland Barthes é hoje um texto cult!
[3]

Nada mais chato, mais entediado que uma sala de aula com uma
professora/professor escrevendo no quadro negro, ou passando suas
eternas transparências, para crianças/jovens. Plenos de vitalidade, asas,
sonhos molhados, tatuados em seus corpos como uma escrita vagabunda,
viajante, errante, eles molham o papel ou a tela com seu líquido
gelatinoso, quente, rico em proteínas como as lágrimas, outro nome para
dizer esperma. Lágrima = proteína, leite, sal são os mesmos componentes
do esperma, segundo Aristóteles.

Chorar com a verga, grande olho pronto a furar o quadro ou a tela de uma
pedagogia insossa, ou cano entupido, sem invenção, de uma escrita
mimética, castrada, educastradora. Barthes: “(…) é preciso ‘entrar’ na
linguagem de Guyotat: não para acreditar em sua linguagem, ser cúmplice
de uma ilusão, participar de uma fantasia, mas escrever essa linguagem
com ele, em seu lugar, assinar o livro com ele”.

A escrita de Guyotat é um sopro no qual se tem antes de tudo a impressão


de que as palavras não podem ser ditas: anêmicas, falta às palavras a força
da escrita/rizomática, e de súbito não podem também ser ouvidas, estão
no limite do audível. Para superar o inevitável sentimento de provocação e
de arrogância, induzido na visão deste Éden atroz, cabe aceitar que cada
signo de pontuação advenha das inspirações, das expirações, dos soluços
de um sopro que provoca a eclosão das formas, das marcas, das nódoas,
dos contornos que enlameiam uma tela enorme impossível de pintar,
insuportável de se olhar.

É como se, acossado pelo estado tísico da palavra esvaziada pelas


representações e significações chupadoras de sangue, acopladas a um
vampirismo abjeto, Guyotat apelasse para a força das pedras e delas
extraísse pedras de sangue coladas como a peste na carne das palavras-
sopros aspirando ao vitalismo de uma escrita contra a escritura: doxa e
redundância vazia, uma espécie de lei para ser seguida, numa morte
anunciada da invenção da própria escrita.
Para compreender a necessidade daquele que escreve, cabe infalivelmente
reencontrar alguém que fala, que projeta em um espaço que – O delírio é
superbrilhante – [4], em seus entrechoques, graças aos inúmeros signos
que os pontuam, é que sua rítmica se confunde com a respiração daquele
que fala. Como descrever, todavia, a escrita de Guyotat? “Aquilo” que não
se poder descrever, Guyotat nos diz de soprá-lo, de ingeri-lo para poder
expulsá-lo. Engolir a escrita-punheteira como se engole a hóstia: sem
mastigar. Eis por que Guyotat bane o ponto de seu texto: o ponto pararia o
sopro abrindo espaço para a morte da palavra. A necessidade literária de
Éden, Éden, Éden torna-se uma necessidade teatral. Cabe observar que,
adaptada a obra inúmeras vezes para o teatro, a apresentação em Paris, no
Teatro Rond-Point,2004, alcançou imenso sucesso e provocou um efeito
bombástico no marasmo da dramaturgia francesa.

Éden, Éden, Éden é uma exploração de territórios proibidos, perigosos,


censurados, é um mergulho vertiginoso nas interrogações, é também o
confronto com a morte mediante a sexualidade, ou com a sexualidade
mediante a morte, é contar o horror, o estupro, a tortura. É fazer escorrer
o sangue, o suor, o catarro, a merda numa dança do esperma maluco;
enfim, todas as matérias mais nobres às mais vergonhosas e que são, sem
embargo, estatuárias de vida. Trata-se de transgredir as leis, feitas
exatamente para serem transgredidas. É assim que Guyotat concebe a
sexualidade como o “caroço das coisas”. Para nela chegar, ele produz uma
escrita posta a serviço de uma língua de combate, numa luta contra a
língua maternal, uma língua matricida. Ele quer, em todo caso, matar
aquilo que de maternal existe na língua.

Em Éden, o sexo aparece em toda a sua brutalidade, sem relação com


nada: nem raízes nem começo, nem gênero nem diferença, aqui a escrita
rizomática atinge seu paroxismo! O “caroço das coisas”, que é o próprio
sexo, numa escrita sem limite, sem direção, sem identidade-prisão em que
a potência do caos é ainda a força das sexualidades, para além do sexo
dirigido ou procriador: mulher, homem, animal ou planta, o sexo é,
sobremaneira, uma servidão do gozo, de outrem. Abaixo, pois, o sexo
privado! Abaixo a mitologia privada dos sexos catalogados pela ordem de
gênero! Tristes gêneros!

Para Guyotat, amante inveterado do onanismo, a obrigação sexual é uma


das tarefas mais monstruosas que o Criador impôs a sua criatura. As cenas
de bordéis que habitam a quase totalidade de Éden, nas quais padecem,
indiferentemente, moças e rapazes, atestam que a ferramenta sexual é o
membro menos “humano” que existe na criação. Que diz o autor a respeito
de Éden? Em uma entrevista, logo após a publicação e censura, em 1971,
de seu livro em Paris, [5] expõe publicamente seu método:

“Em minha prática há três níveis de escrita. Primeiro, um texto ‘selvagem’


que escrevo desde a idade de catorze anos; a seguir, comecei a escrever
textos ‘doutos’. Um texto inserido à masturbação, escrito durante a própria
experiência sexual cuja redação periódica e sempre ligada a uma prática
sexual imediata – e interdita enquanto imediata, esta observação é capital
–, interrompida a cada vez pelo orgasmo (…). Há por outro lado um texto
de notas, um imenso amontoado de notas; e finalmente, o texto dito
“douto” ou ‘erudito’. Estes três momentos do texto formam um percurso,
ao mesmo tempo histórico e simultâneo da representação: histórico é a
passagem do texto selvagem ou douto, por exemplo; simultânea é a escrita
de textos selvagens, notas e erudito.”

O texto original, o texto matriz, se apresenta sob a forma do “texto


selvagem”: cabe ficar à escuta da ressonância arcaica, selvagem e mítica
inserida como um gozo sem entraves no corpo e sexo da própria escrita,
na carne sexual da escrita. Uma escrita-tesão, tão somente tesão. Esse
texto selvagem, escrito em paralelo ao ato sexual, leva-me a afirmar que o
ato sexual é uma perda de texto. A vontade de escrever, ligada diretamente
à vontade sexual, a vontade de ejacular, é vontade de escrever. Não por
caso, o título desse texto selvagem é A Outra mão bate punheta (L’Autre
main branle).

O texto selvagem evacua um vocabulário bruto, economicamente


prostitucional, sinteticamente retórico e linguisticamente da ordem do
palavrão ou do “baixo calão”. As palavras em Guyotat se excitam, excitam,
ejaculam na cara lisa do leitor inundando-o ao mesmo tempo de urina,
“chuva de prata” mesclada ao líquido menstrual e ao odor forte de clitóris
e vagina em movimento, abalos, agitação, impulso, oscilação, dança e
sacudidas. Ora, uma só palavra em francês, usada como gíria, branle, do
verbo blanler,carrega em si todos os sentidos aqui repertoriados e explica
melhor o título citado: L’Autre main branle.
Experimento II – Como fazer para si uma máquina masturbatória

Pierre Guyotat inventa uma escrita-punheteira, máquina para produzir


gozo orgástico, colada à escrita rizomática do gozo imediato, presente.
Como fazer para si uma máquina masturbatória engendradora de uma
escrita do gozo?

Receita ou Manual de autoajuda: Enquanto a professora escreve no


quadro, ele amarra com um cordão a entreglande de seu pênis rígido, de
garoto saindo da puberdade, cavalo selvagem extraído diretamente de
Água viva, de Clarice Lispector. Como um bom aluno, com a mão direita
copia a lição, e com a esquerda se masturba. Puxa delicadamente o
barbante, movimentando o vergão numa cadência progressiva, o que
provoca na sala tremores de terra… Emascula o branco celeste de sua
bermuda dilacerada pela força de um gozo, pura escrita-punheteira, e pelo
sexo enfeitiçado, contaminado pela alegria de um orgasmo, o mais
solitário dos orgasmos, orgasmo roubado, virtual/real, que tem a força de
transformar o tédio heideggeriano da escola em festa e olhos revitalizados
do bordel!

Chamo esse acontecimento fuga ativa, ou rizomática, distinguindo-a da


fuga através do sonho e do imaginário, ou da arte que faz da obra um fim
em si, embora ela seja tão somente um meio de resistir, inclusive quando
não resiste a nada:

“As grandes aventuras geográficas da história são linhas de fuga, ou seja,


longas caminhadas, a pé, a cavalo ou de barco: a dos hebreus no deserto, a
de Genserico, atravessando o Mediterrâneo, a dos nômades através da
estepe, a longa caminhada dos chineses – é sempre sobre uma linha de
fuga que se cria, não é, é claro, porque se imagina ou se sonha, mas, ao
contrário, porque se traça algo real, e compõe-se um plano de
consistência. Fugir mas, fugindo, procurar uma arma.” [7]

O rizoma é um agenciamento, o livro, agenciamento com o fora, contra o


livro imagem do mundo. Como o fora não tem imagem nem significação
nem subjetividade, não se trata mais de imitar, de copiar, mas agenciar.
Não livro imagem do mundo, da sociedade, da época, não livro mensagem,
não livro número com uma unidade de sentido camuflado e secreto. A obra
literária é um agenciamento de fluxo heterogêneo, ou de signos ou linhas
que valem por si, por sua potência de revolta contra as significações
dominantes e libertação de sujeitos dominados.

Em síntese, cabe entrançar um plano de uma escrita-composição, escrita


bailarina, que inclua os domínios heterogêneos: literatura, poesia,
imagem, pintura, música, filosofia, ciência. É uma escrita que faz rizoma
por meio de uma linha nômade-barroca, sob os traços de Deleuze e
Guattari, segundo uma autonomia cigana capaz de esvaziar os dois autores
para preenchê-los com nossos vazios plenos, nossos alfabetos criadores
de uma língua na própria língua: um alfabeto e não uma gramática. Trata-
se, pois, de uma composição literária escrita numa língua que gagueja.
Ora, como se sabe, há gagos que cantam muito bem. Assim, a escrita
rizomática abstrata, vazia, traça linhas de fuga e se atualiza por meio das
leis físicas da natureza e se realiza pela sua velocidade nômade. É parado
que os nômades andam mais depressa.

Eis as dobras da escrita rizomática, mergulhada numa topologia pictorial à


dimensão fractal, mais que duas e menos que três dimensões, próxima do
Universo amarrotado, de J. P. Luminet, da teoria das catástrofes de R.
Thom e da esponja de Sierpinsky. Uma escrita que se faz com o
pleno/vazio é permeável ao mundo. Lençóis do Maranhão, com suas
dobras infinitas e barroco-carne, seus líquidos e sólidos em núpcias,
impostos ao olhar dos mortais que os contemplam. Entre a dança dos
lençóis e as dobras eróticas de santa Tereza D’Avila, a escrita rizomática é
um convite, um banquete, pura superfície selvagem: a imanência, uma
vida, a vitalidade radical de um campo que é dobras de seda em
movimento, que nomadiza o olhar e sacode os corpos esvaecidos.

O método da dobra consiste em experimentar a vida, os sentidos ou


sensualidades, em todos os nervos vivos de um pensamento e considera os
personagens de um romance como conceitos; assim, o indivíduo é
interpretado, reinventado, sob as dobras do mundo que o envolve ou é por
ele envolvido.

A literatura rizomática não falará, pois, em seu nome ou sob a pretensão


de funções imaginárias e mesmo institucionais. Se a escrita desenvolve um
nome é, sobremodo, para perder a forma do “eu” e integrar a cumplicidade
de um “nós” no qual o leitor poderá encontrar um lugar-comum que é,
ainda, um não lugar. Não copiar, mas interpretar; não comentar, mas
inventar. Em Deleuze, “nós” designa uma multiplicidade e, desde sua
enunciação impessoal, nos faz encontrar o diferente, antes de tudo,
evasivo, manco, desestabilizado pelo mesmo gesto nos catálogos
razoáveis.

A obra, não menos que o autor, se liberta da unidade subjetiva, abre folhas
soltas difíceis a enclausurar nos encadeamentos por demais artificiais do
dogma. A obra implica antes a forma de uma nota, entendida como
notação marginal, esboço tomado no calor do informal, no seio de uma
variedade, de uma mistura um pouco especial. A escrita de Deleuze atesta
a dança das palavras, sob o signo de um pensamento não arborescente,
rizomático, viagem ao país do corpo, corpo que é caosmos aberto aos
afectos e encontros-surpresas, desembaraçado da cognição reguladora de
um saber dado de antemão. A escrita rizomática é como o devir inumana:
o inumano do humano com sua constelação de devires: animais, vegetais
etc.

Assim, os parágrafos nos livros de Deleuze são verdadeiras folhas


andarilhas, pé na estrada, grampeadas entre as quais se entrelaçam signos
vindos de todos os lugares, como imigrantes do alfabeto e da escrita, tão
difíceis a ler sem se deixar agarrar ou aferrar por eles. Donde, sem dúvida,
a extraordinária referência aos lobisomens ou bichos-papão, aos
feiticeiros, aos animais que, explorados como linhas de fuga, são
intercessores, extras-seres, não sem humor nem malícia. Há um prazer do
texto que passa pela evocação/participação de devir-animal ou devires-
imperceptíveis próprios ao rizoma e acontecimento.

Notas

[1] GUATTARI, Félix. Revolução molecular. São Paulo: Brasiliense, 1987.

[2] Cf. DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. São Paulo: Editora 34.

[3] GUYOTAT, Pierre. Éden, Éden, Éden. Paris: Gallimard, 1970.

[4] Cf. Guyotat. Vivre. Paris: Gallimard, 2003, p. 11. Explications. Paris:
Léo Scheer, 2000, Littérature interdite. Paris: Gallimard, 1972, pp. 73-7.

[5] Esta censura provocou forte reação de diversos intelectuais contra a


falta de liberdade de expressão na França, entre outros: Barthes, Foucault,
Simone de Beauvoir, Sartre, Leiris, Duras, Derrida, Sollers e muitos
outros. Jacques Lacan, plagiador conhecido de Pierre Guyotat, se recusou a
assinar o manifesto… Éden, Éden, Éden foi proibido aos menores de 18
anos, de 1971 a 1981. Com a vitória de François Mitterand, a censura foi
erradicada.

[6] DELEUZE, Gilles & PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998,
p. 158.

*Publicado originalmente em: LINS, Daniel. A Escrita Rizomática. Belém;


Palmas: REVISTA POLICHINELLO, 2009.

**Partilha textual do território:


http://sibila.com.br/novos-e-criticos/a-escrita-rizomatica/5331

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