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A ciência perdida no incêndio do Museu Nacional

Além do fóssil mais antigo das Américas, local abrigava registros não digitalizados de línguas nativas que já não existem mais

Crianças observam reconstrução do rosto de Luzia no Museu Nacional. AP

GIL ALESSI São Paulo 5 SET 2018 - 20:36 BRT

As cinzas do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, consumido pelas chamas na noite do último domingo, são mais do que restos de fósseis,
cerâmicas e espécimes raros. O museu abrigava entre suas mais de 20 milhões de peças os esqueletos com as respostas para perguntas que ainda não
haviam sido respondidas —ou sequer feitas— por pesquisadores brasileiros. E pode ter calado para sempre palavras e cantos indígenas ancestrais, de
línguas que não existem mais no mundo.

Três dias depois do incêndio que queimou o edifício de 200 anos que abrigava a primeira instituição científica do Brasil, ainda
não há um balanço preciso do que se perdeu e do que se salvou. Mas o clima entre os professores e alunos é de pessimismo:
eles convivem com a possibilidade de que o objeto de seus estudos tenha virado pó.

Uma das maiores preocupações é com o material coletado no sítio arqueológico de Lagoa Santa, no Estado
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de Minas Gerais, considerado de fundamental importância para entender as origens dos povos americanos
Orçamento para lavar pré-históricos. O museu abrigava o maior acervo do mundo coletado no Estado: são cerca de 200
carros de deputados é
quase três vezes maior
indivíduos fossilizados que integram o que os pesquisadores chamam de “o grupo de Luzia”, em referência
que o do Museu ao nome dado ao mais antigo esqueleto já encontrado nas Américas, descoberto em 1974, e com idade
Nacional aproximada de 11.500 anos.

O descaso que corrói o


patrimônio, de parque Luzia era a joia da coroa do museu. Sua descoberta abriu as portas para uma série de hipóteses sobre a
arqueológico à casa de
colonização do continente. Estudos feitos com seu crânio na década de 80 pelo professor Walter Neves
Santos Dumont
apontaram para uma possível origem africana dos primeiros nativos das Américas. Os traços de Luzia em
pouco lembravam os de indígenas brasileiros da época do descobrimento. A partir daí formulou-se a
hipótese de que houve uma primeira corrente migratória para o Brasil com estas características morfológicas africanas, que teria
cruzado da Ásia para a América pelo estreito de Bering há 14.000 anos, seguida por outra leva de migrantes com traços
asiáticos, como os dos ameríndios, há cerca de 12.000. Seu delicado crânio estava guardado dentro de uma caixa de aço nos
arquivos do museu incendiado. Até o momento, não se sabe o que aconteceu com ele.

“Existem pequenas coleções do material escavado em Lagoa Santa na Universidade de São Paulo, na Universidade Federal de
Minas Gerais e algo em Copenhague, mas não chega à metade do que havia no Museu Nacional”, lamenta Mercedes Okumura,
coordenadora do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos da USP, que trabalhou no acervo do museu por quatro anos.
Segundo ela, uma série de exames modernos nos esqueletos, que ainda estavam sendo feitas ou aguardavam financiamento,
como análise de isótopos e sequenciamento do genoma, poderiam confirmar (ou refutar) a teoria da migração africana para as
Américas.

Nos corredores e armários do Museu Nacional também estavam guardados fósseis que trazem a hipótese dos ameríndios
serem descendentes diretos de povos polinésios. São cerca de 40 esqueletos de índios botocudos, grupo já extinto, datados do
período de contato com os portugueses. “Trata-se de um material que não existe em nenhum outro museu do mundo”, afirma
Okumura.
O incêndio também pode ter colocado um fim em algumas pesquisas envolvendo uma das populações mais peculiares do
Brasil: os sambaquianos. Eram indígenas que habitavam a região costeira do país e moravam no topo de pilhas de conchas e
ossos de peixes (chamados de sambaquis). Estas estruturas, que podiam atingir muitos metros de altura, também eram local de
sepultamento. Era um povo que habitava o litoral do país, então atualmente a maioria dos sambaquis já não existe mais, deu
lugar a prédios e a outras construções. O museu abrigava a maioria do material destes povos do país –entre artefatos,
esqueletos e pedaços do próprio sambaqui.

As vozes que calam


O acervo do local também continha gravações de conversas, cantos e rituais de dezenas de sociedades indígenas, muitas feitas
durante a década de 1960 em antigos gravadores de rolo e que ainda não haviam sido digitalizadas. Alguns dos registros
abordavam línguas já extintas, sem falantes originais ainda vivos. "A esperança é que outras instituições tenham registros
destas línguas", diz a linguista Marilia Facó Soares. A pesquisadora, que trabalha com os índios Tikuna, o maior grupo
da Amazônia brasileira, crê ter perdido parte de seu material. "Terei que fazer novas viagens de campo para recompor meus
arquivos. Mas obviamente não dá para recuperar a fala de nativos já falecidos, geralmente os mais idosos", lamenta.

Lá também estavam arquivos considerados clássicos para o estudo da cultura indígena. Como os do professor Roquette Pinto,
que durante uma expedição em 1912 realizou com um fonógrafo as primeiras gravações de música indígena que se tem
conhecimento. Ou o material do etnólogo alemão Curt Nimuendajú, que na primeira metade do século XX percorreu centenas
de aldeias de grande parte dos povos nativos do país, e é tido como o pai da etnologia brasileira —o museu abrigava seus
negativos originais, cadernos de campo e outros manuscritos de valor inestimável.

No campo da biologia, as perdas do museu são inestimáveis, especialmente na área de invertebrados. "Tínhamos uma coleção
centenária com alguns milhões de insetos, dentre eles milhares de espécimes-tipo, que são exemplares que ancoram a
descrição de toda a espécie e se tornam um padrão, não podendo ser substituídos", explica Ronaldo Fernandes, professor
associado do departamento de vertebrados do museu. "Tudo isso foi perdido. O setor de aracnologia, que estuda aranhas,
escorpiões e carrapatos, foi completamente queimado", afirma. Segundo Fernandes, a coleção de malacologia (estudo de
moluscos) foi salva graças a um professor e um funcionário que conseguiram resgatar, com o prédio já em chamas, 80% dos
espécimes-tipo do acervo.

Alguns pesquisadores assistiram ao vivo pela TV todo seu trabalho ser consumido pelo fogo. "As bibliotecas dos professores
foram todas embora. Meus arquivos, cadernos de campo, registros, fitas gravadas ao longo de 40 anos de pesquisas no Brasil,
pesquisas ainda em andamento, tudo isso se perdeu", conta Luiz Fernando Dias Duarte, antropólogo e diretor adjunto do
museu. "Tínhamos a melhor biblioteca de antropologia social do país. Tudo virou cinzas".

Nem tudo, entretanto, está perdido. Alguns departamentos do museu, localizados fora do prédio principal do palácio, continuam
intactos, como o de invertebrados, com 500.000 espécies, e o de botânica, que possui um herbário com mais de 450.000
exemplares. Também se salvou o meteorito Bendegó, o maior do Brasil e o 16º maior do mundo. Apesar da dimensão das
perdas e do clima de desalento, professores e alunos se mostram dispostos a reconstruir de alguma forma o Museu Nacional o
mais rapidamente possível. A linguista Marilia Facó, se mostra esperançosa: "Dezenas de pesquisadores do Museu Nacional
são arqueólogos. O que restou do local agora é um grande sítio arqueológico, e este pessoal não vê a hora de poder entrar lá
para tentar recuperar, do meio das cinzas, os pedaços que ainda restaram".

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