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O PEQUENO

Quais são as fronteiras entre a biografia e a história, a ficção literária e


a verdade dos fatos?
A historiadora Sabina Loriga decidiu examinar a obra de pensadores que,
ao longo do século XIX, buscaram restituir a dimensão individual da história:
três historiadores (Thomas Carlyle, Wilhelm von Humboldt, Friedrich Meinecke),
um historiador da arte (Jacob Burckhardt), um filósofo (Wilhelm Dilthey) e um
romancista (Leon Tolstoi).

X: da b io gra fia à história


Mas que história é essa de ‘pequeno x"? A fórmula é do grande historiador
alemão Johann Gustav Droysen, que, em 1863, escreveu que, se chamamos
de A o génio individual (aquilo que alguém é, possui ou faz), então podemos
dizer que A é a soma de a + x, em que a designa o que vem das circunstâncias
exteriores (país, época, etc.) e xresulta do talento pessoal, obra da livre vontade.
Muitos foram aqueles que, desde então, exploraram esse “pequeno x”.
Como ele se forma? Ele é inato? Que papel a pessoa singular desempenha
na história? Como se deve apreender a relação entre o indivíduo, seu gênio e
o movimento geral da história?
Esta obra de Sabina Loriga assinala o retorno da biografia, abandonada
por muito tempo, ao campo das pesquisas históricas.

SabmaLoriga

autêntica
fc«Ut»cL«*í>s*cov *
autêntica
Coleçõo
HISTÓRIA & HISTORIOGRAFIA
Coordenação
Eliana de Freitas Dutra

Sabina Loriga

O pequeno x
Da biografia à história

Tradução
Fernando Scheibe

autêntica
C opyright © Editions du Seuil, 2010.
Collection La Librairie du X X Ie siècle, so u s la direction de M a urice Olender.
Copyright © 2011 Autêntica Editora

TITULO ORIGINAL
Le petit x - D e l a biographie à 1'histoire
COORDENADORA DA COLEÇAO HISTORIA E HISTORIOGRAFIA
Eliana de Freitas Dutra
PROJETO GRÁFICO DE CAPA
Teco de Souza
(Sobre im agem A cor d o invisivel, W assily K andinsky)
EDITORAÇÃO ELETRONICA
C onrado Esteves
Christiane M orais de Oliveira
REVISÃO TÉCNICA
Vera Chacham
REVISÃO
Vera Lúcia D e Sim oni Castro
Lira Córdova
EDITORA RESPONSÁVEL
Rejane Dias

Revisado conforme o Novo Acordo Ortográfico.

Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora Nenhum a parte desta publicação
poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrômcos, seja via cópia xerográfica,
sem a autorização prévia da Editora

AUTÊNTICA EDITORA LTDA.


Belo Horizonte Sã o Paulo
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D a d o s In te rnacio nais de C a ta lo g a ç ã o n a P u b lica ção (CIP)


(C âm ara Brasileira d o Livro, SP, Brasil)

loriga. Sabina
0 pequeno x : da biografia à história / Sabina Loriga; tradução
Fernando Scheibe. - Belo Horizonte Autêntica Editora, 2011 - (Coleçào
História e Historiografia / coordenação Eliana de Freitas Dutra, 6)

Titulo original: Le petit x de la biographie à 1'histoire.


ISBN 978-85-7526-565-9

1 Biografia (Género literário) 2 História - Filosofia 3. Historiografia


- História - Século 19 I. Dutra, Eliana de Freitas. II Titulo III Série.

11-08584 C D D -90 7 2

índices para catálogo sistemático:


1 Biografia e história 907.2
AGRADECIMENTOS

Jacques Revel discutiu comigo o conjunto deste livro em seus


mínimos detalhes. Pude contar, além disso, com as observações e as
críticas de Giovanni Levi, Jean-Frédéric Schaub, François Hartog e
Fernando Devoto. Dominique Berbigier me ajudou, com grande
paciência, a preparar a versão francesa do livro.
Esta viagem pelo passado historiográfico foi também a ocasião
de intensas trocas de pontos de vista com Olivier Abel, Michèle
Leclerc-Olive, Isabelle U llem -W eité, David Schreiber, Françoise
Davoíne, Maurizio Gnbauldi e Stefano Bary.
Partilhei com Andrea Jacchia as interrogações, as paixões e as
hesitações que, dia após dia, acompanharam a redação deste livro.
Enfim, desejo agradecer a todos aqueles que participaram de
meu seminário “ Histoire et biographie" na Ecole des Hautes Etudes
en Sciences Sociales de Paris.
SUMÁRIO

Prefácio.......................................................................................... 11
Capítulo I - O limiar biográfico................................................ 17
Capítulo II - A vertigem da história.......................................... 49
Capítulo III - O drama da liberdade........................................ 81
Capítulo IV - A pluralidade do passado................................. 121
Capítulo V - O homem patológico.......................................... 157
Capítulo VI - A história infinita................................................. 181
Capítulo VII - Sobre os ombros dos gigantes........................ 21 1
Prefácio

Entretanto acontece com isso o mesmo que com a caça às


borboletas; o pobre anim al treme na rede, perde suas mais
belas cores; e quando se o apanha de supetão, está finalm ente
duro e sem vida; o cadáver não f a z todo o anim al, há algu­
m a coisa a mais, uma parte essencial e nesse caso, com o em
todo outro, uma parte essencialmente essencial: a vida.
Johann Wolfgang Goethe1

Desde o fim do século XVIII, os historiadores se desviaram


das ações e dos sofrimentos dos indivíduos para se dedicarem a
descobrir o processo invisível da história universal. Múltiplas razões
os conduziram a abandonar os seres humanos para passar de uma
história plural (die Geschicten) a uma história única (die Geschichte).2

1 C a rta de G o e th e a H etz le r de 14 de ju lh o de 1 7 7 0 , in G oeth es Briefe u nd Briefe an G o e lh e . K om -


m entare unil R egister, Ed. p o r Karl R o b e r t M a n d elk o w , M u n ic h , C .H . B e c k , 1 9 7 6 cita d o p o r Je a n
L a co ste, G o e lh c . S a e tu e et p h ilosop h ie, Paris, P U F , 1 9 9 7 , p. 9 0 .
1 E m seu te x to so b re o c o n c e ito de história, R e in h a r t K o se lleck co lo c a em ev id ên cia q u e o te r­
m o G eschichte nasce após dois a c o n te cim e n to s con vergentes', p o r um lado. a co n stitu içã o de um
c o le tiv o singu lar q u e religa o c o n ju n to das histórias especiais ( E inzelgeschichten); p o r o u tro , um a
co n ta m in a ç ã o m útu a d o c o n c e ito de G eschichte en q u a n to co m p le x o de ev e n to s e a q u ele de H istorie
e n q u a n to c o n h e c im e n to , relato e ciê n cia h istórica. R e in h a r t K o se llec k . “ Le c o n c e p t d 'h is to ir e ” ,
in V E x p é rien c e d e 1'histoire ( 1 9 7 5 ) , traduzido d o alem ão p o r A lexan d re E scu d ier, P an s. E d itio n s de
1’E H E S S , 1 9 9 7 , p. 1 5 -1 9 . C f. tam b ém R e in h a rt K o se lleck , L c fiitu r passé. C ontrihulion d la sém antique
des tem ps historiques ( 1 9 7 9 ), traduzido do alem ão p o r Jo c h e n H o o c k , Paris, C.allim ard-Edicions du
S eu il, 1 9 9 0 , cap ítu lo IV . |Tradução brasileira de W ilm a Patrícia Mass e C arlo s A lm eida Pereira. O
futuro passad o: contribuirão tí semilntica dos tempos históricos. R i o de ja n e iro : C o n tra p o n to / P U C , 1 9 9 6 .]

1 1
O PEQUENO X - D a BIOGRAFIA à HISTÓRIA P r e íá c io

É provável que duas revelações dolorosas da modernidade tenham de povos, de alianças, de grupos de interesses, mas bem raramente
contribuído para isso: por um lado, a descoberta de que mesmo a de seres humanos.5 C om o pressentiu um escritor particularmente
natureza é mortal e, por outro, a perda progressiva de confiança atento ao passado, Hans Magnus Enzensberger, a língua da históna
com eçou, então, a ocultar os indivíduos atrás de categonas impes­
na capacidade de nossos sentidos de apreender a verdade (desde a
soais: “A história é exibida sem sujeito, as pessoas de que ela é a
época de Copém ico, a ciência, no fundo, não para de nos revelar
história aparecem somente como tela de fundo, enquanto figuras
os limites da observação direta).’ Mas, para além dessas profundas
acessórias, massa obscura relegada ao segundo plano do quadro: ‘os
transformações, que ultrapassam nossos comportamentos conscientes
desempregados’, ‘os empresários’, diz-se Mesmo os pretensos
e, sob certos aspectos, nos escapam, diversas vicissitudes intelectuais
ittakers o f history parecem desprovidos de vida: “A sorte dos outros
menos trágicas, e mesmo mais banais, tiveram, sem dúvida, um
- aqueles cujo destino é calado - se vinga sobre a deles: ficam con­
papel nada negligenciável. Em primeiro lugar, a vontade de trazer
gelados com o manequins e se parecem com as figuras de madeira
às ciências humanas bases científicas estáveis e objetivas. Tratou-se
que substituem os homens nos quadros de De Chirico” .6
de um imenso esforço de conhecim ento que conduziu as discipli­
O preço ético e político dessa desertificação do passado é muito
nas mais heterogéneas - da demografia à psicologia, passando pela
alto. A partir do momento em que deixamos de lado as motivações
história e pela sociologia - a uniformizar os fenómenos, eliminando
pessoais, “podemos admirar ou temer, abençoar ou maldizer Ale­
muitas vezes as diferenças, os desvios, as idiossincrasias.
xandre, César, Átila, Maomé, Cromwell, Hitler, com o admiramos,
O vício de encarar tudo sob o signo da similaridade e da equi­ tememos, abençoamos ou maldizemos as inundações, os tremores
valência teve graves repercussões. Hannah Arendt as evoca numa de terra, os pores do sol, os oceanos e as montanhas. Mas denunciar
carta a Karljaspers de 4 de março de 1951. Voltando, uma vez ainda, seus atos ou exaltá-los é tão despropositado quanto fazer sermões
às tragédias políticas e sociais que afligiram o século X X , observa-se a uma árvore” .7 Essas palavras de Isaiah Berlin, escritas em 1953,
que o pensamento moderno perdeu o gosto pela diversidade: ‘‘Não permanecem atuais. Ao longo dos últimos anos, reprovou-se muitas
sei o que é o mal absoluto, mas parece-m e que tem a ver com o vezes à historiografia dita pós-modema, de inspiração nietzschiana,
seguinte fenómeno: declarar os seres humanos supérfluos enquanto ter minado a ideia de verdade histórica e afastado, assim, toda pos­
seres humanos”. E, mais adiante, acrescenta: “Suspeito que a filosofia sibilidade de avaliar o passado.8 Parece-me importante sublinhar o
não seja tão inocente quanto ao que nos é dado aí. Naturalmente, quanto o perigo do relativismo, que corrói o princípio de respon­
não no sentido de que Hitler podena ser aproximado de Platão. [...] sabilidade individual, é igualmente inerente a uma leitura impessoal
Mas, sem dúvida, no sentido de que essa filosofia ocidental jamais da históna que pretende descrever a realidade pelo viés de anónimas
teve uma concepção do político e não podia ter porque [...] tratava relações de poder. Isaiah Berlin nos lembra que a esperança de fa z e r
acessoriamente a pluralidade efetiva” .4 falar as próprias coisas nos leva a produzir uma imagem abusivamente
Além da filosofia, essa perda da pluralidade afetou igualmente necessária dessa realidade. Por vezes, mesmo a celebrar um pouco
a história. Os dois últimos séculos viram nossos livros de história
abundar em relatos sem sujeito: eles tratam de potências, de nações,
5 C f. P h ilip P o n ip er, "H isto n a n s and Individual A g e n c y ", History iind Tlieory, 1 9 9 6 . 3 5 , 3 , p. 2 8 1 - 3 0 8 .

4 H ans M ag n u s E n z e n sb erg e r, “ L etteratu ra c o m e s to n o g ra h a ", II M en ab ò, 1 9 6 6 , I X . p. 8 .


Isaiah Berlin. " D e la n écesité histonque" (1953), in É o g e de la liberte, Pans, Calm ann-Lévy, 1988, p. 118.
S o b re a tom ad a de c o n sc iê n cia da v uln erabilid ad e da n a tu reza, cf. H a n n a h A ren d t. L t C on cept
" C f. C a rio G in z b u rg , “Ju s t o n e W itn ess” , ín Saul F n ed la n d e r (d ir.), Probing lh e U m its o f R epresenta-
d histoire (1 9 5 b ) ín U cnse de k aillun-, Paris, G allim ard, 1 9 7 2 . C f. ig u a lm en te H a n s jo n a s , Philosophieal
lion . N a z is m an d lh e " F in al S olu tion " . C a m b n d g e (M A S S .), H arvard U m v e n ity Press, 1 9 9 2 , p.
Essays From A tu m u C reed lo Technological M an , C h ic a g o , T h e U m v e ra ty C h ic a g o Press, 1 9 7 4 .
8 2 - 9 6 ; R i c h a r d J . Evans, In D e/rtu e o f H istory, Lon dres, G ran ta B o o k s , 1 9 9 7 , cap. V III.
' H annah A ren d t. C orrespon dan ce, 1 9 2 6 - 1 9 6 9 (1 9 8 5 ) , trad u zid o d o a lem ã o p o r E lia n e K a u fh o l-
M essm er, Paris, Pay o t, 1 9 9 6 , p. 2 4 3 - 2 4 4 .

12
O PEQUENO x - Da b io g r a f i a à h is t ó r ia
Prefácio

demais os feitos realizados: “Tudo o que se encontra no campo da com o “herói” ou “grande homem”. Em parte porque, entre os
razão vitoriosa é justo e sábio; por outro lado, tudo o que está do historiadores, reina ainda a estranha e arrogante convicção de que
lado do mundo fadado à destruição pelo trabalho das forças da razão o presente historiográfico é preferível e superior —em suma, mais
é efetivamente estúpido, ignorante, subjetivo, arbitrário, cego”.9 científico - ao passado.
Sob vários aspectos, este livro se propõe a fazer uma incursão
II pela tradição. Aí está uma expressão que merece alguns esclareci­
mentos. Em pnmeiro lugar, não se trata de uma chamada à ordem ."
Por essa razão, penso que é essencial voltar àqueles autores que,
Não atribuo a nossos predecessores uma autoridade indiscutível e
através do século X I X , se esforçaram por salvaguardar a dimensão
não pretendo negligenciar a importância das inovações ou das expe­
individual da história. Foi uma época que deu lugar a uma reflexão
riências histonográficas realizadas nos últimos decénios. Parece-me,
extremamente interessante e com plexa sobre o “pequeno x ”. Do
entretanto, que uma relação mais profunda com a tradição só pode
que se trata? A expressão é de Johann Gustav Droysen, que, em ennquecer nossas possibilidades de experimentar. Com demasiada
1863, escreve que, se chamamos A o gênio individual, a saber, tudo frequência, sobretudo no debate em torno ao pós-moderno, o
o que um homem é, possui e faz, então este A é formado por a + x, passado historiográfico é descrito com o uma experiência m ono­
em que a contém tudo o que lhe vem das circunstâncias externas, lítica, imbuída de certezas sobre a verdade e a objetividade. Meu
de seu país, de seu povo, de sua época, etc., e em que x representa desígnio aqui é colocar em evidência pensamentos que desmentem
sua contribuição pessoal, a obra de sua livre vontade.1" Antes de essa imagem tão convencional da tradição.
Droysen e depois dele, outros pensadores exploraram o “pequeno
Além do mais, o salto na tradição não concerne à biografia
x . C om o se forma? E inato? Todos os seres humanos o têm? Deve enquanto tal: nem seu método, nem sua evolução narrativa. E nada
ser integrado à história? Neste caso, com o apreender a relação entre tem de filológico: não proponho uma leitura exaustiva de cada autor
o caso individual singular e o m ovim ento geral da história? Inicial­ e, muitas vezes, limitei-me a evocar as motivações políticas e sociais
mente, a abordagem está estreitamente ligada a uma reflexão sobre de suas reflexões —com o o impacto do bonapartismo ou a afirma­
a nação: com o veremos, a propósito de Johann Gottfried Herder, ção política das massas. E uma verdadeira lacuna que será, espero,
as particularidades dos povos envolvem as características pessoais. preenchida em breve por outras pesquisas. Mas, aqui, debruço-me
Depois ela se anima, na segunda metade do século X I X , no curso principalmente sobre a história biográfica: se tivesse que resumir
de uma discussão complexa sobre o estatuto epistemológico das em algumas palavras o que fiz nesses últimos anos, talvez dissesse
ciências humanas. Não se trata de um debate estruturado, bem que recolhi pensamentos para povoar o passado. Com essa finali­
definido, com uma data inicial e uma final, mas antes de um diá­ dade, privilegiei uma perspectiva ampla, indo alem das fronteiras
logo difícil, indireto, incessantemente interrompido, que atravessa geográficas, linguísticas e de género.
as fronteiras nacionais e que injustamente caiu no esquecimento. Os autores que frequentei longamente são historiadores (fora
Em parte por ser pontuado por certos termos obsoletos e perigosos Thomas Carlyle, principalmente autores alemães, de Wilhelm Von

Isaiah B e rlin . D e la necessite h is to n q u e " , op. rir., p .l 1 6. C f. ig u a lm e n te H u g h T r e v o r - R o p e r . " N o cu rso dos ú ltim o s an os, esp e cia lm en te n os m eio s a n g lo -sa x ô e s, n u m e ro so s h istoriad ores
H istory and Im ag m atio n ' , in H istory an d Im a^ inalion. E ssay s in H o n o u r o f H R T revor R oprr, p ropu seram um a o p o siçã o discu tív el en tre a antiga e a n ova história: cf. T h e o d o r e S . H a m e ro w ,
L o n d res. G erald D u c k w o rth , 1 9 8 1 , p. 3 5 6 - 3 6 9 .
R eflections on H istory an d Htstorians, M ad ison , U m v e m ty o f W isco sin Press. 1 9 8 7 , cap V ; E liz a -
jo h a n n G ustav D ro y se n , D ie E rh eb u n g d er G e s c h ic h te zun i R a n g e in e r W isse n sch a ft” , H istorisehe beth F o x -G e n o v e s e , E lisabeth L a s c h -Q u in n (d ir.), R econstm cting H istory: TTic E m ergente o / a N ew
Z n tschrifi. Ed . V o n S y b e l, M u m c h , L ite ra n s ch -a rtis tic h e A nstalt, 1 8 6 3 , v o l. I X , p. 1 3 - 1 4 . D ro y sen H istorieal S o n ely , N e w Y o rk -L o n d re s . R o u tle d g e , 1 9 9 9 , p. X I 1 I - X X I I .
se apoia n u m ex e m p lo d o filó so fo R u d o l f H e n n a n n L o tz e.

14
O PEQUENO x - Da b io g r a f i a à h is tô h ia

Humboldt a Fnedrich M einecke), um historiador da arte (Jacob CAPÍTULO I

Burckhardt), um filósofo (Wilhelm Dilthey) e um escritor (Leon


Tolstoi). De fato, a definição disciplinar se mostra bem pobre, pois
se trata na maioria dos casos de peças únicas que não provêm nem de
uma escola nem de uma corrente. N ão há entre eles continuidade ou O limiar biográfico
coerência, mas partilham ao menos duas convicções. Creem , antes
de tudo, que o mundo histórico é criativo, produtivo, e que essa
qualidade não repousa sobre um princípio absoluto, mas procede
da ação recíproca dos indivíduos. Por conseguinte, não apresentam
a sociedade com o uma totalidade social independente (um “siste­
ma ou uma “estrutura” impessoal superior aos indivíduos e que
os domina), mas com o uma obra com um . T êm , além disso, um
I
sentido agudo do que poderíamos chamar “a vitalidade periférica da
históna : visam antes a desvelar a natureza multiforme do passado Tácito, Suetônio e Plutarco. Antes deles, Critias, Isócrates,
do que a unificar os fenómenos. E claro, não são os únicos a abraçar X en ofon te, Teofrasto, Aristóxenes, Varrão, Cornélio Nepos.
tal abordagem. A diversidade da experiência histórica foi defendida Mais tarde, Eginhard, o abade Suger, Jean de Joinville, Philippe
nesses mesmos decénios por William Jam es e M ax W eber e, mais de Commynes, Femán Pérez de Guzmán, Filippo Villani, Giorgio
tarde, por W alter Benjamin, Siegfried Kracauer e outros autores Vasan, Thomas More. A Antiguidade grega e romana contou com
que cruzaremos nos meandros das páginas deste livro. importantes biógrafos, assim com o a Idade Média e a Renascença.
Mas antes de seguir essas grandes figuras no fio de seus pen­ Mas ainda não se chamavam assim. O termo “biografia só aparece
samentos, é importante explorar a fronteira, fluida e instável, que ao longo do século XV II, para designar uma obra verídica, fundada
separa a biografia da literatura e da história. numa descrição realista, por oposição a outras formas antigas de
escntura de si que idealizavam o personagem e as circunstancias
de sua vida (tais com o o panegírico, o elogio, a oração fúnebre e
a hagiografia).1 Os primeiros verdadeiros biógrafos foram ingleses.
Izaak Walton, autor de uma vida do poeta John Donne em 1640,
e o eclético John Aubrey, que, entre 1670 e 1690, escreveu uma
séne de notícias biográficas sobre diversas personalidades de Oxford
(o texto só seria publicado no século X I X ), seguidos por Samuel

' S o b re a ev o lu çã o da bio g rafia, cf. W ilb u r L. C ro ss, A n O u llin e o f B io g n p h y fio m Piutairlt lo Slrachey,
N e w Y o r k , H . H o lt & C o ., 1 9 2 4 ; H arold N ico ls o n , T h e D evclopm ent o fE n g lis h B iography. N e w
Y o r k , H a rc o u rt, B r a c e , 1 9 2 8 ; E d m o n d G o sse, “ B io g m p h y ” in Encyclopedia B rila n n k a , 11* ed .;
D o n a ld A . S tau ffer, E tiçlish Bioçrn phy hefore 1 7 0 0 , O x fo rd , O x fo rd U n .v ersity Press. 1 9 3 0 ; J o h n
A . G arraty, T h e N a ln re o f B iography. O x fo rd , K n o p f, 1 9 5 7 ; D a n iel M ad elén at, L a B iographie. Pan s,
P U F , 1 9 8 4 ; S c o tt C a sp e r. C onstructing A m erican L iv es: B iography an d C u llu re in N in eleen th -C en lu ry
A m erica, C h a p e i H .ll, U m v e m ty o f N o rth C a ro lin a Press, 1 9 9 9 ; M a rg a re tta jo lly (d .r.) L ife IVriting.
A u U io g r a p h ie a l an d Biographical Form s, L o n d re s -C h ic a g o , F itz ro y D e a r b o m Pu blish ers, 2 0 0 1 .

16
O PEQUENO * - Da b io g r a f ia A h is tô m a O UMIAD BIOGRÁFICO

Johnson com suas Lives o f the Poets (1 7 7 9 -1 7 8 1 ) e porjam es Boswell, intelectual. Sainte-Beuve, Hippolyte Taine e O tto W eininger
autor de uma Life of Samuel Johnson (1791). visam a instaurar uma biografia abstrata, suscetível de transformar
Atestada desde a Antiguidade, a biografia é, desde a origem, o individual em tipo,6 enquanto outros, mais sensíveis à dimensão
um género híbrido e com pósito.2 Equilibrando-se sempre entre ética da existência, sublinham seu caráter singular: com o escreve
verdade histórica e verdade literária, sofreu profundas transformações Giovanni Amendola, “a biografia, que não pode se engir em ciência
ao longo do tempo - quanto à escolha e à elaboração dos fatos e filosófica, [...] pode nos fomecer um conhecimento mais rico e mais
do estilo narrativo. E portanto difícil estabelecer regras gerais.1 Sem preciso da vida moral do que a própna Etica”.7
dúvida, numerosos biógrafos privilegiaram lima narração cronoló­ Por isso, em vez de formular regras gerais sobre um género de
gica seguindo as escansões biológicas da existência: o nascimento, escritura particularmente volúvel, parece-me mais fecundo meditar
a formação, a carreira, a maturidade, o declínio e a m orte. Mas isso sobre essa fronteira fluida que separa a biografia da história e da
não implica que a biografia deva necessariamente repousar sobre literatura, e analisar as proibições, os abalos, as incursões recíprocas
uma trama cronológica. Basta pensar em Plutarco, que coloca toda que a transpõem...
ênfase no caráter e nas qualidades morais do personagem, e não
II
em sua vida. Ou em Lytton Strachey, que prefere uma narração
sintomática, apoiando-se essencialmente nos m om entos-chave (as
Ao longo do século XV III, a reflexão biográfica se desenvol­
conversões, os traumatismos, as crises económ icas, as separações veu sobre dois eixos essenciais: além da vida dos santos e dos reis,
afetivas). Não existe nenhuma regra formal nesse domínio, nem interessou-se cada vez mais pela de poetas, soldados ou criminosos, e
mesmo a respeito das características individuais. John Aubrey e adota um tom mais intimista. Em 1750, Johnson invoca abertamente
Mareei Schwob cultivam-nas e mesmo as exaltam em revide ao geral o valor da existência qualquer: “Disse-me muitas vezes que não havia
e ao impessoal: A ciência histórica nos deixa na incerteza sobre os vida que, fielmente relatada, não oferecesse uma narrativa útil”. Após
indivíduos. Ela só nos revela os pontos por onde eles foram atrelados ter refutado a asserção segundo a qual a vida de um pesquisador,
as açoes gerais. [...] A arte é o contrário das ideias gerais, só descreve de um negociante ou de um padre dedicando-se a seus ofícios seria
o individual, só deseja o único. Não classifica; desclassifica” .4 Mas desprovida de interesse, parte para a guerra contra a noção de gran­
outros biógrafos minoram esses traços individuais em proveito das deza: “Aos olhos da razão, o que é mais difundido tem mais valor” .
semelhanças, na esperança de representar um tipo médio, ordinário Preocupado com o homem ordinário, Johnson ataca a prerrogativa
(no domínio da biografia literária, tal é o caso de Giuseppe Pontiggia, que é muitas vezes atribuída às questões públicas, sustentando que
que corrige as individualidades e as coloca mesmo em séries5). Sob um bom biógrafo deve guiar o leitor na intimidade doméstica para
certos aspectos, essa oposição está igualmente presente na biografia mostrar os pequenos detalhes da vida cotidiana. A concepção do

C l , D an iel A aron (d ir.), Studi,< m B iography. C a m b n d g e (M a ss.). H arv ard U n iv e rs ity Press, 1 9 7 8 ; ‘ O tt o W e in m g e r . et caracttre ( 1 9 0 3 ) , traduzido d o alem ão p o r D a n iel R e n a u d , L au sanne,
a o e L u cian o N icastri ( d ir ) , B iografia e au tobiografia degli an tichi e d ei m o d em i. N ápoles,
L ’A g e d ’h o m m e , 1 9 8 9 , 2 a parte, cap. 5.
Z10m ^c ' e n a t,c *le Italian e, 1 9 9 5 ; L u cia B o ld n n i, B io g r a fiefittiz ie e personaggi siorici. {A u to bio g ra fia ,
7 G io v a n n i A m en d ola, Etica e biografia (1 9 1 5 ), M ila n -N a p les. R ic c .a rd i, 1 9 5 3 , p. 17. S o b re a dim ensão
soggettimta, leoria n el rom an zo inglese con tem porân eo. Pisa, E T S , 1 9 9 8 .
ética da bio g ra fia , cf. R o b e r t P artin . “ B io g ra p h y as ar. In stru m en t o f M o ra l In s tn ic tio n . A m en can
C f. AUan N ev in s, H o w Shall O n e W n te o f a M an s L ife ” , T h e N e w Y ork T im es B o o k R ev iew , 15 Q uarterly, 1 9 5 6 , 8 . 4 , p. 3 0 3 - 3 1 5 ; F ré d éric R e g a rd , " L -é th .q u e du b io g ra p h iq u e . R e f l e t t o m sur
de ju lh o de 1 9 5 1 , p. 2 0 .
u n e tra d itio n b n ta n n iq u e ” , U ttèrature, 2 0 0 2 , 1 2 8 , p. 8 0 - 9 2 .
M areei S c h w o b , 1/ies im agm a.res ( 1 8 9 6 ), P an s, F la m m a n o n . 2 0 0 4 , p. 5 3 . [T r a d u ç ã o brasileira de * S am u el J o h n s o n , ■‘B io g r a p h y ", R am bler. 13 de o u tu b ro de 1 7 5 0 , n. 6 0 , p. 3 5 7 . C f. ig u a lm en te
M ach ad o Vidas im aginárias. R i o de ja n e ir o , E d ito ra 3 4 , 1 9 9 7 ] S a m u el J o h n s o n , "B io g ra p h y h o w B e st P e rfo rm e d ", Idler. n ° 8 4 . 2 4 de n o v e m b ro d e 1 7 5 9 , m
r.iu sep jx - P o m ig g ia, Vie des hom m es non illustres (1 9 9 3 ) . trad u zid o d o ita lia n o p o r F ra n ço is B o u - T h e Idler an d the A dventurer. E d . P o r W . J . B a te , N e w H a v en , T h e Y a le E d it.o n , 1 9 5 8 .
ch ard, P an s, A lbin M ic h e l, 1 9 9 5 .

19
18
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia à HISTÔS1A
O UMIAfi BIOGRÁFICO

biógrafo preocupado em mergulhar na intimidade doméstica a fim


“É muito útil, em primeiro lugar, começar pelo com eço e, quando
de captar o indivíduo privado de sua máscara social é partilhada por
se dispõe dos meios, tomar o escritor superior ou distinguido em seu
James Boswell, que, em 25 de fevereiro de 1788, escreve a William
país natal, em sua raça” .12 O artista deve ser buscado no seio de seu
Temple: “Estou absolutamente certo de que o m étodo biográfico ambiente familiar: com seus pais, com sua mãe sobretudo, com suas
com o o entendo - dar não apenas uma história da trajetóna visível irmãs (é o caso de Chateaubriand, Lamartine, Balzac, Beaumarchais),
de Johnson no mundo, mas uma vista de seu espírito em suas cartas com seus irmãos (como Boileau-Despréaux) e com seus filhos (como
e conversações — é o mais perfeito que se possa conceber, e será Madame Sévigné). “Encontram-se aí lineamentos essenciais que são
mais uma Vida que qualquer obra já publicada” .^ muitas vezes mascarados por estarem demasiado condensados ou
E durante o século X I X que a biografia se impõe com o oficio unidos no grande indivíduo; o fundo se encontra, nos outros de seu
de pleno direito - graças a John Forster, John Morley, James Par- sangue, mais despido e em estado simples . Apos o nascimento, vem
ton, Charles-Augustin Sainte-Beuve. Em 1862, este último, em o tempo da formação: a época dos estudos, dajuventude, do primeiro
geral bastante reticente no que tange às afirmações teóricas, decide círculo artístico (a Muse française, o Globe, ou o Cénacle). “Nenhum
explicar de uma vez por todas os princípios metodológicos de sua dos talentos, então jovens, que viveram em um destes grupos, o fez
crítica literária: “Aqueles que me tratam da maneira mais benévola impunemente” :13 sob certos aspectos, é a verdadeira data original do

admitiram que eu era um juiz bastante bom, mas que não tinha artista. No termo da formação, aborda-se o triste tempo da defor­
mação: “É o momento em que [o artista] se estraga, se corrompe,
Código. Tenho um método no entanto, [...] ele se formou em num
decai, desvia. Escolham as palavras menos chocantes, as mais doces
pela própria prática”.10 A premissa é muito simples: “A literatura [...]
que vocês quiserem, a coisa acontece com quase todos .
nao e para mim distinta ou sequer separável do resto do homem e
da organização; posso saborear uma obra, mas é-m e difícil julgá-la Essa perspectiva analítica, que visa a buscar o homem na obra,
funda-se na esperança de que o caso singular possa assumir um valor
independentemente do conhecimento do próprio homem; diria mes­
tipológico. Assim, o retrato de Guy Patin, célebre médico do século
mo de bom grado: tal árvore, tal fruto. O estudo literário me conduz
XV II, deveria restituir o quadro de uma burguesia incoerente e de
naturalmente ao estudo moral” .11 O resultado também é simples:
uma época indolente: “Embora pareça um grande original, [Patin]
Para julgar o autor de um livro e o próprio livro, se esse livro não é
não é o único de sua espécie; não é mais do que um exemplo mais
um tratado de geometria pura”, é preciso colocar-se certas questões
saliente e mais em relevo de uma inconsequência burguesa e de classe
sobre a personalidade do artista: qual é sua posição religiosa? Sua
média, que é curioso estudar nele”.15 Com o escreve Sainte-Beuve
percepção da natureza? Quais suas relações com as mulheres? Com
em 1865, com certa dose de autoiroma: "Tipo é uma palavra bem
o dinheiro:' E com a comida? Mas também: quais seus vícios? Quem
vil, bem seca e bem dura, mas é uma bela coisa [...]. Tipo, em nossa
são seus amigos? E seus inimigos? O conjunto dessas questões deve
mitologia abstrata, em nosso novo panteão estético, é com o quem
ser levantado a cada etapa de toda vida: no nascimento, quando da
dissesse outrora semideus, Divus. Tendes altares .' Se essa demarche
formação e da deformação. A abordagem só pode ser cronológica: tipológica der resultado, a crítica literária poderá deixar o anedótico

d h ° ^ am e^ ^ ac^c ^ n a t. 1-4 B iographie, o p . c it., p. 5 6 . S o b r e o p ro ce sso de d e m o cra tiz a çã o


12 Ib id ., p. 18.
A J T ^ C^ Can S ta ro b 1n ski,Jf<ín-/íir<jiiei R ou sseau , la transparence el V obstacle, P a n s. P lo n , 1 9 5 7 ;
rea B jt u s n n i. L o s p e a h io d, D eã a lo . A u tobiografia e biografia, B o lo n h a , II M u h n o , 1 9 9 0 . 13 Ib id ., p. 2 2 - 2 3 .

iL UgUS' ln S a lm c ~U e u v e. N o u v ea u x lundis, P an s, C a lm a n n -L é v y , 1 8 9 1 , t. I I I, p. 13, 21 e H Ib id ., p. 2 6 .


2 2 de ju lh o de 1 8 6 2 . 15 S a in te-B eu v e . Caustries du hm di. Pans. G am ier, s.d., t. V III. 2 5 de abn l e 2 de m aio de 1 8 5 3 , p. 8 8 - 1 3 3 .
" Ib id ., p. 15. 16 S a in te -B e u v e , N o u iv a u x lundis, op. d l ., t. I X , p. 2 4 6 , 2 de ja n e ir o de 1 8 6 5 .

20 21
O PEQUENO X - D a BIOGRAFIA À HISTÔdIA O LIMIAR BIOGRÁFICO

para estabelecer uma base científica, digna das ciências naturais: paleontológico desaparecido, da humanidade inferior fóssil,
“Entrevejo ligações, relações, e um espírito mais estendido, mais de todas as sociedades superpostas que serviram de suporte à
luminoso, capaz de permanecer fino nos detalhes, poderá descobrir sociedade moderna, da França de todos os séculos, do século
X I X , de meu grupo, de minha família.20
um dia as grandes divisões naturais que respondem às famílias de
' »». 17
espíritos
E é nessa ótica que uma definição científica da biografia é relançada:
O mesmo se aplica a Hippolyte Taine, para quem a crítica “Teremos ultrapassado, daqui a meio século, o período descritivo
literária deve ser biográfica: com o afirma no início de sua célebre [...] para entrar em breve no período das classificações naturais e
obra sobre Balzac, definitivas” .21

As obras de espínto não têm apenas o espírito por pai. O homem Ao longo da segunda metade do século X I X , multiplicam-se
inteiro contribui para produzi-las; seu caráter, sua educação e sua os dicionários biográficos, tais com o a Biographie universelle ancienne
vida, seu passado e seu presente, suas paixões e suas faculdades, et moderne, a Nouvelle Biographie générale depuis les temps plus anctens
suas virtudes e seus vícios, todas as partes de sua alma e de sua jusqu’à nos jours, o Dictionary o f National Biography, o Dictionary o f
ação deixam seu traço no que ele pensa e no que escreve.18 American Biography e a Allgemeine Deutsche Biographie. Mas a reali­
dade biográfica permanece geralmente bem longe das expectativas
Donde o valor conceituai dos “pequenos fatos, anedotas, citações,
científicas de Taine. Uma vez tornados biógrafos profissionais,
exemplos expressivos e significativos, [...] fragmentos autênticos e
muitos se põem a escrever vidas oficiais, obsequiosas e moralizan-
vivos, intactos, colhidos na realidade concreta” . 19 Em certo sentido,
tes. O resultado é dos mais decepcionantes. Enojado pela carolice
o processo de compreensão biográfica se aparenta à dissecção dos
deferente que impregna muitas biografias, preocupadas em não
corpos. Assim, ao eu sublime e infinito, evocado pelos românticos,
macular a imagem de respeitabilidade social de seus mandantes,
Taine opõe uma partícula, um produto, uma extremidade, uma
Thomas Carlyle declara: “C om o é delicada e respeitável a biografia
emergência do Paleoceno:
inglesa! Agradeçamos à sua hipocrisia"; depois decide confiar toda
Acabo de reler H ugo, Vigny, Lam artine, Musset, Gautier, documentação concernindo a sua vida ajames Anthony Froude, em
Sainte-Beuve, co m o tipos da plêiade poética de 1830. C om o troca da promessa de dizer toda a verdade.” A despeito dessas desa­
todos esses senhores se enganaram! Q ue ideia falsa têm do ho­ provações, a comemoração recatada predomina. C om o estigmatiza
mem e da vida! [...] Q uanto a educação científica e histórica o doutor Havelock Ellis, numa carta aberta de tom bastante picante,
muda o ponto de vista! M aterialmente e m oralm ente sou um os biógrafos continuam a apresentar uma silhueta elegante, digna,
atom o num infinito de extensão e de tem po, um botão num convencional, bem penteada e sobretudo “estritamente depurada de
baobá, uma pontinha florida num polipeiro prodigioso que
tudo o que está abaixo da cintura, uma figura tal qual aquela que
ocupa o oceano inteiro e, de geração em geração, emerge,
deixando seus inumeráveis suportes e ramificações sob a água;
o que sou chegou e chega a mim pelo tron co, pelo galho ■' H ip p o ly te T a in e , Panes choisies, c o m um a in tro d u çã o , n o tícia s e n otas de V ic to r G irau d , I ans,
grosso, o ram o, o talo de que sou a extrem idade; sou por H a ch e tte , 1 9 0 9 , p. 3 4 - 3 6 .

um m om ento a culm inação, o afloram ento de um mundo 21 C ita d o p o r W o l f Lap en ies. S d iriff-B iw c. A u scuil d e la m o d em itè ( 1 9 9 7 ) , traduzido d o a lem ã o p o r
B e m a rd L o rth o la ry , Paris, G allim ard , 2 0 0 2 , p. 2 1 6 .
22 O C arly le, q u e c o n ta , sem m ed ir suas palavras, o eg o ísm o co n ju g a l d o e s e n to r. suscita um a im ­
17 I b i J ; t. III, p. 17. p o rta n te discussão so b re a é tica b io g rá fica , n o cu rso da qual G e o rg e T y r re l, um je su íta irlandês
(e x c o m u n g a d o p o u c o te m p o d ep ois p o r m o d ern ism o ), c o n d en a a ex cessiv a cu n so sid a d e dos
H ip p o ly te T a in e , N o u v eau x essais de critique et d'histoire. P a n s, H a c h e tte , 1 8 6 6 , p. 6 7 .
bió g rafos e sustenta o dever d e calar certos fatos, e n q u a n to E d m u n d S P u rcell e Paul L e ice ste r F ord
H T a m e : sa m e et sa con espondance, P an s, H a c h e tte , 1 9 0 2 - 1 9 0 7 , t. IV . carta d e 1 3 d e m a rç o de
d efen d em o direito de d iz e r a verdade.
1891 a Franz B rcn ta n o .

23
22
O PEQUENO X - D a BIOGRAFIA À HISTÚRIA O LIMIAR BIOGRÁFICO

podemos observar sem corar na vitrine dos cabelereiros” .23 Mas é que importa verdadeiramente não é mais o momento da ação, mas
ao grande biógrafo iconoclasta Lytton Strachey que se devem as aquele que o precede. C om o precisa Lewis Mumford, a biografia se
críticas mais virulentas: povoa assim de personagens menos sagazes e menos densos, talvez
mesmo menos fiéis a um único objetivo existencial: “O indivíduo
Esses dois grossos volumes, co m os quais temos o costume tal com o se o concebia outrora, ser razoável, rigoroso e refletido,
de honrar os m ortos, quem não os viu co m sua massa de do­ era com o o universo newtoniano, mas é difícil conceber e explicar
cumentos mal digeridos, seu estilo descom posto, seu tom de
o novo indivíduo sob a ótica da física moderna. Por comodidade,
panegírico entediante, sua lamentável falta de seletividade, de
o biógrafo tende incessantemente a limitar sua investigação ao
distanciamento, de orientação? São-nos tão familiares quanto
movimento euclidiano newtoniano; mas, para tanto, é obrigado a
o cortejo das pompas tunebres e têm o m esm o ar de lenta e
ignorar que o sujeito se comporta, em certas relações, com o um
lúgubre barbárie.24
corpúsculo em movimento e, em outras, com o uma onda .2ft Essas
Bem entendido, Strachey não ataca a biografia enquanto tal. convicções, que traçam a via para a new biography e para a debunking
Bem pelo contrário: convencido de que “os seres humanos são im­ life, são partilhadas pelos maiores biógrafos da primeira metade do
portantes demais para serem encarados com o sintomas do passado”, século X X : Harold Nicolson, Philp Guedalla, Gamaliel Bradford,
quer utilizá-la com o uma ferramenta para desmascarar a história.25 Giovanni Papini, Emil Ludwig, André Maurois, Friedrich Gundolf,
Stefan Zweig. C om o este último precisa, a biografia se reveste de
O que trata de fazer na coletânea Vitorianos eminentes, em que es­
acentos anti-heroicos: “Não tomo nunca o partido dos pretensos
colhe quatro pessoas passavelmente antipáticas (o cardeal Manning,
‘heróis’, mas vejo sempre o trágico no vencido. Em minhas novelas,
Florence Nightingale, o doutor Amold e o general Gordon) para
é sempre aquele que sucumbe ao destino que me atrai, em minhas
fustigar as principais instituições vitorianas: o evangelismo, o hu-
biografias, o personagem que sobressai não no espaço real do sucesso,
manitarismo, o sistema educacional e a política colonial britânica.
mas unicamente no sentido moral. Erasmo e não Lutero, Maria Stuart
Com esse desígnio, abala duas regras usuais da tradição biográfica.
e não Elizabete, Castelion e não Calvino. É assim que não tomei por
Em primeiro lugar, a ideia de uma homenagem necessária: em suas figura heróica central Aquiles, mas o mais obscuro de seus adversários,
poucas obras (só escreveu quatro), nenhuma alusão à virtude, à Tersita: o homem que sofre ao invés daquele que, por sua força e
grandeza, à virilidade. Em segundo, a primazia do público: Strachey a segurança com que persegue seus fins, faz os outros sofrerem .
atribui mais importância à personalidade do que às ações e às obras
É precisamente nesse período que certos biógrafos renunciam
(em seu texto, Vitória é mais mulher do que rainha). Esta é uma
ao imperativo da verdade fatual, tão caro a Samuel Johnson, e
ruptura notável que concerne igualmente ao domínio psicológico: o reivindicam o direito, e até a obrigação, de imaginar o passado:
“A ignorância - lê-se no prefácio de Eminent Victorians - é a
H av elo ck EUh, "A n O p e n L e tte r to B io g r a p h c r s " ( 1 8 9 6 ) . in V ia » a n d R ev iew s. A Selection o f primeira necessidade do historiador, ela simplifica e clarifica,
I ncoikcted Arttcles, 1 8 8 4 - 1 9 3 2 . L o n d res, D e s m o n d H a rm s w o rth . 1 9 3 2 , p. 9 8 .

L y tto n S tr.ich c\ , V uíoricns em inents ( 1 9 1 8 ), trad u zid o d o in glês p o r ja c q u e s D o m b a s le , P a n s, G a l-


k n u rd . 1 9 3 3 . p. 18-1 i E d m un d G osse form ula as m esm as críticas em " T h e C u s to m o fB io g ra p h y , “ L ew is M u m fo rd , “ T h e T a sk o f M o d e m B io g r a p h y ", English Jo u r n a l, 1 9 3 4 , X X I I I , p. 4 - 5 .
A nglo S axon R eview , 1 9 0 1 .
17 Stefan Z w e ig , Le M o n d e d'hier. Souvenirs à'u n E u ropérn ( 1 9 4 4 ) , traduzido d o a lem ã o p o r S erg e
L » tto n S trach ey , i h j , p 18. Essa ideia d e jo g a r a b io g ra fia c o n tra a h istória fora já form u lad a por N iê m e tz , Paris, B e lfo n d , 1 9 9 3 , p. 2 1 3 - 2 1 4 . O te rm o n ew biography p ro ce d e d e u m artig o de V ir­
Fru-diw h N ietzsch e. E m C on sideratw n s inacluelles ( 1 8 7 3 - 1 8 7 6 ) , trad u zid o d o a lem ã o p o r PierTe gínia W o o l f sob re S o m e P eop le (1 9 2 7 ) d ’H aro ld N ico ls o n , e n q u a n to o te rm o d ebu n ker foi forçado
ust+i m O fíw rcs philosopltiqu es com pletes. P an s. G a llim a rd , 1 9 9 0 , p. 1 3 5 , esc rev e : “ E se vocês p o r W illia m E. W o o d w a rd , na n ov ela Bunlr ( 1 9 2 3 ) , em q u e um dos p erson ag en s, M ic h e l W e b b .
P « n i!c biografias, q u e n ão sejam aquelas q u e tê m p o r refrão : ‘S e n h o r fu lan o e seu te m p o , estuda um a fam ília de m agnatas d o a u to m ó v e l d esem b a ra ça n d o -se da im ag em o fic ia l (lo take the
; “ I ^ UC d e v en a m ter p o r titu lo : U m lu tad or c o n tra seu te m p o ’. " [T r a d u ç ã o brasileira b u n k out o f t h a t fa m ily by show ing ir up on its true relations). S o b re a n ov a bio g rafia, cf. L io n el M .
u . cns . . o ó n g ru e s T o rr e s C o n sid e ra ç õ e s e x te m p o râ n e a s ". In : O bras incom pletas. S e le ç ã o de G e lb e r, “ H isto ry and th e N e w B io g r a p h y ", Q u een 's Q uarterly. 1 9 3 0 , X X X V I I . p. 1 2 7 - 1 4 4 .
te x to s G era rd L ebru n . S ã o P au lo: A b n l, 1 9 8 3 . (C o le ç ã o O s P en sad ores))

25
24
O PEQUENO X - D a BIOGRAFIA A HISTORIA O UMIAII BIOGRÁFICO

escolhe e o m ite".2M A biografia rom anceada não afasta apenas lembra, muitos anos mais tarde, o crítico inglês Terry Eagleton,
os historiadores,M mas também os romancistas: paradoxalmente, as biografias excitam em seus leitores o desejo de espiar os hábitos
quanto mais a biografia busca uma legitimidade literária, mais a sexuais do artista33). Um a perplexidade semelhante é expressa pela
literatura parece recusar-lhe tal legitimidade. psicanálise. Mesmo Sigmund Freud, que funda, no entanto, o essen­
É inegável que, apesar da fluidez de seu estatuto e de sua am­ cial de sua reflexão sobre o estudo de casos individuais (Leonardo
bivalência em relação a outros géneros de escrita (ou talvez mesmo da Vinci, Michelangelo, Dostoievski, Thomas W oodrow Wilson,
o presidente Schreber e sobretudo o pequeno Hans, O Hom em
por causa disso), a biografia suscitou múltiplas hostilidades nos meios
dos ratos, Anna O ., Dora, o Homem dos lobos...), proíbe Arnold
literários. Charles Dickens protestava já que as biografias pareciam
Zweig de escrever um livro sobre sua vida, alegando que “ [...]
todas escritas "por alguém que conviveu com as pessoas como vi­
aquele que se torna biógrafo se obriga à mentira, aos segredos, à
zinho e não em seu foro interior". Mesma reprovação da parte de
hipocrisia, à idealização e mesmo à dissimulação de sua incompre­
alt Whitman: "Detestei a maioria das biografias literárias, pois são
ensão, pois é impossível obter a verdade biográfica e, mesmo se a
tão mentirosas ,3' Mas, no início do século X X , as reações se fazem
tivéssemos, ela não seria utilizável. A verdade não e praticavel, os
cada vez mais severas. Assim, Paul Valéry se queixa do tratamento
homens não a m erecem ” .34
anedótico reservado aos artistas:
Desse coro compósito de vozes agastadas, duas questões se
Espreita-os o biógrafo, que se consagra a tirar a grandeza, que elevam. Concernem , por um lado, à ligação entre a biografia e a
os assinalou a seu olhar, dessa quantidade de pequenezas co­
obra artística e, por outro, à capacidade da biografia de dar conta das
muns e de misérias inevitáveis e universais. Ele conta as meias,
relações humanas próprias à modernidade. Em 1908, Mareei Proust
as amantes, as tolices de seu sujeito.31 Faz, em suma, precisa­
se exprime sobre o primeiro ponto quando reprova a Sainte-Beuve
mente o inverso do que quis fazer toda a vitalidade deste, que
se gastou contra aquilo que a vida im põe de vis ou monótonas
não ter compreendido a grandeza artística de Balzac, de Stendhal
semelhanças a todos os organismos, e de diversões ou acidentes e de Baudelaire. Sob certos aspectos, nada há aí de muito novo: é
improdutivos a todos os espíritos. Sua ilusão consiste em crer por essa mesma razão que os irmãos Goncourt, Zola, Nietzsche e
que o que busca pode engendrar ou pode explicar o que o Henry James acusavam a crítica de ter uma alma “feminina” (sic).
outro encontrou ou produziu.32 Entretanto, desta vez, não é apenas a sensibilidade de Sainte Beuve
que é posta em questão. O que está no banco dos réus é seu método,
As acusações são esmagadoras e recorrentes: superficialidade,
que faz do autor (digamos antes: daquilo que se sabe de sua vida)
excesso de coerência, aborrecimento, falsidade, voyeurismo, (como
um princípio de inteligibilidade da obra: É absurdo julgar o poeta
pelo homem ou pelo que dizem seus amigos. Quanto ao próprio
L y tto n S trach ey , V iaorim s ém in en is, op rir., p . 17 A o p ç ã o l.te rá n a é p artilhad a p o r A n d ré M a u ­
homem, não é mais do que um homem e pode perfeitamente
* la h’W * p f" ’ , P an s, A u sens parei], 1 9 3 0 . e será co n firm a d a p o r L e o n E d el. U terary
B iography, Lon dres, H a rt-D a v is. 1 9 5 7 . Ela será e n ricad a p o r Paul M u rra y K e n d a ll, U e A n o f ignorar o que quer o poeta que vive nele . Proust recusa a ideia
B iography, N e w Y o r k , N o r to n , 1 9 6 5 .
de “pedir à biografia do homem, à história de sua família, a todas
C f G o d trcy D av ies, B io g rap h y and H is to r y " , M o d em L an g u ag e Q u arterly, 1 9 4 0 , I, p. 7 9 - 9 4 ;
u D nC' and H isto ry , m jo s e p h R S tra y e r ( d i r ) , l h e In terpretation o f H istory,
n ce to n . P m c e io n U m v e rsity Press. 1 9 4 3 , p. 1 2 1 - 1 4 8 ; je a n R o m e i n , D ie B iog rap h ie. E m fi.h n m g
15 T e rr y E a g le to n , " T h e T a le o f a T u b T h u m p e r " , T h e G u ard ian IV eekly, 13 de s ete m b ro d e 1 9 9 8 .
^ m ,hre C «cln ch ie u „ d ihre P rob lem a,ik. B e rn a , A . F ra n ck e . 1 9 4 8 . p. 8 7 - 9 3 . '
“ S ig m u n d F reu d e A rn old Z w e .g . C o r r e s p o n d a * ' . 1 9 2 7 - W 9 ( 1 9 6 8 ) , traduzido d o alem ão p o r
Jo h n A G arraty, T h e N alu re o f B iography, op . d l ., p. 91 e 9 4 .
Lu c W e ib e l, P an s, G allim ard , 1 9 7 3 , p. 1 6 7 . S o b re a atitu d e de F reu d em relaçao a bio g ra fia , cf.
' In ,ralKCS' Pock slBn ‘f‘ca r. além de s u je ito , te m a , assu n to , o b je t o (c o in o o inglês M a n o L a v a g etto , F reu d, la letteralura e altro, T u r in , E in a u d i, 1 9 8 5 , p. 2 7 2 - 2 7 5 ; e a in tro d u çã o de
subject), o u , ainda, súdito ( N .T .) .
Use B a ra n d e à R e v u e F ,a n (aise d e P sychan alyse. 1 9 8 8 , 1. n ú m e ro especial " D e s b io g ra p h ie s ".
1’aul V aléry . M au vau es p e m ées et autres. m O eu vres, P an s, G a ll.m a rd . 1 9 4 2 . p. 9 3 - 9 4 .

27
26
O PEQUENO X - D a BIOGRAFIA A HISTÓRIA
O LIMIAR BIOGRÁFICO

suas particularidades, o entendimento de suas obras e a natureza


ao crítico nem ao autor (destacou-se do autor ao ser escrito e vai
de seu gênio”.35 Não basta catalogar os hábitos e as frequentações pelo mundo independentemente de sua faculdade de decidir sobre
de um artista para captar o sentido de sua obra, pois “nossa pessoa ele ou controlá-lo). O poema pertence ao público. Manifesta-se na
moral se compõe de várias pessoas superpostas. Isso é talvez mais linguagem [e] é um objeto de conhecimento público”.40 Nos anos
sensível ainda no caso dos poetas que têm um céu a mais, um céu 1960, é a vez de Roland Barthes que, em diversas ocasiões, declara
intermediário entre o céu de seu gênio e aquele de sua inteligência, que a história literária deve renunciar à noção de indivíduo. Em seu
de sua bondade, de sua finesse diárias: sua prosa” .36 Isso significa que ensaio sobre a morte do autor, enuncia que não existe nenhuma
o eu íntimo do artista escapa ao eu cotidiano: “ Só se o encontra matriz de sentido: a escritura é uma atividade contrateleológica que
fazendo abstração dos outros e do eu que conhece os outros, o eu dissolve toda identidade, inclusive aquela do corpo que escreve. A
que esperou enquanto se estava com os outros, que a gente sente figura do autor é abolida; em seu lugar, há o escritor que nasce no
bem ser o único real, e para o qual apenas os artistas acabam viven­ livro. Quanto ao leitor, ele também é concebido com o instância
do, como um deus que eles deixam cada vez m enos” .3^ Destacada impessoal, “um homem sem história, sem biografia, sem psico­
da personalidade do autor, a obra artística exige ser avaliada em si logia” (e, por essa razão, livre para gerir à vontade os sentidos do
mesma, para além de toda referência biográfica imediata: “U m livro texto).41 Embora exaltando nos anos subsequentes as características
e o produto de um outro eu que não aquele que manifestamos em individuais (os célebres biografemas), Barthes não cessa de reiterar
nossos hábitos, na sociedade, em nossos vícios” .38 suas convicções antibiográficas até em sua autobiografia: a infância
não é contável, e o “tempo do relato (da imagética) acaba com a
Infelizmente, ao longo do século X X , o eu mais profundo
juventude do sujeito: só há biografia da vida improdutiva. A partir
de que fala Proust tom a-se frequentemente um eu impessoal,
do momento em que produzo, em que escrevo, é o próprio texto
abstrato, incorporai - com o se uma obra de arte pudesse nascer
que me despossui (felizmente) de minha duração narrativa .
espontaneamente do nada. A sedução da impessoalidade convence
uma parte da crítica literária a banir toda leitura biográfica: para O segundo ponto, concernente à capacidade da biografia de
o assim chamado New Criticism, a personalidade e as emoções do restituir as relações humanas próprias à modernidade, é formulado
em termos particularmente claros por Virginia W oolf. Filha de
artista contam tanto quanto a cor de seus cabelos; o que importa é
Leslie Stephen, o editor do Dictionary o f National Biography, amiga
a obra. William K. Wimsat e M onroe C . Beardsley afirmam-no
de Strachey e de Harold Nicolson, ela sublinha, em diversas ocasiões,
sem desvios em 1946: as questões concernentes ao desígnio do autor
são falaciosas. Donde a acusação de intentionalfallacy: “ Avaliar um que a psicologia humana mudou:
poema é a mesma coisa que julgar um pudim ou um aparelho”. A N ão quero dizer aqui que saímos uni belo dia, com o se sai num
obra de arte só funciona e só é compreensível quando despojada jardim para ver que uma rosa floriu ou que uma galinha pôs
de todo traço de subjetividade — do autor e do crítico. C om o se
faz com os grumos de um pudim: “O poema não pertence nem
" M o n ro e C . Beardsley, “ T h e Intentional Fallacy” , in W illiam Kurtz W inisat and M .C . Beardsley, T h e
Verbal leon. Studies in lhe M eaning ofP oetry (1 9 4 6 ). Lexington. U m v eroty o f K entucky Press, 1 954, p. 4 -5 .
41 R o la n d B a rth es, “ La m o rt de l'a u te u r " ( 1 9 6 8 ) , in L e Bruissem ent d e la langue, P a n s, É d m o n s du
M areei Proust. C on tre S am te-B eu v e (190H ), p a m . G allm iard , 1 9 5 4 p 1 2 2
S eu il, 1 9 8 4 A id eia de a m p u ta r a litera tu ra d o in d iv íd u o é ig u a lm e n te ela b o ra d a p o r R o la n d
Ibid., p. 1 6 8 -1 6 9 .
B a rth es in " H is to ir e o u litté r a tu r e ? ". Swr R acin e. Paris. É d itio n s D u S e u il, 1 9 6 5 . C f . na m esm a
Ib id ., p. 131
o rd e m de ideias, Pau l d e M a n , “ A u to b io g ra p h y as D c - f a c c m e n t ( 1 9 7 9 ) , T h e R h eío ric o f R i
I h d ., p. 127.
m a n tiasm , N e w Y o r k , C o lu m b ia U m v e m t y P ress. 1 9 8 4 , q u e d e fin e a e sc ritu ra b io g rá fica c o m o

um a o p e ra rã o d c tra v e stism o .
C“ re' 0m a ° tÍ,U )0 de “ m llvr° * J o h n R a n s o m , 7 7 ., N e w C n ticism (1 9 3 9 ).
M 11 ° n n )> re en w o o d Press, 1 9 7 9 . Cf Ja cq u e s B a rz u n . "B io g r a p h y and C n tic is m - a R olan d Barthes par R olan d B ,m hes, Pans, Éd m on s du S eu il, 1 9 7 5 , p. 6 . C f. Fran çoise G aillard, “ R o la n d
M isallian ce D isp u te d ". C n nccl Inqu.ry. 1 9 7 5 . 1. 3 . p. 4 7 9 - 4 9 6 . Barthes: le b io g rap h iqu e sans la bio g ra p h ie” , R ev u e des sciences hum aines, 1 9 9 1 , 2 2 4 , p. 8 5 - 1 0 3 .

28 o o
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia a h is t ó r ia O LIMIAR BIOGRÁFICO

um ovo. N ão, a mudança não foi tão súbita, tão nítida. Não National Biography, a duração da vida humana não é talvez tão
obstante, houve uma mudança e, já que não podemos precisar evidente quanto parece e nem sempre coincide com a escansão
melhor, datem o-la do ano de 1 910. [...] Todas as relações hu­ nascimento e m orte biológica... Sem dúvida, as possibilidades
manas se alteraram: entre mestres e servidores, entre marido mentais (inclusive aquelas que concernem ao tempo e ao espaço)
e mulher, entre pais e filhos. E quando as relações humanas
são bem mais vastas e profundas do que os fatos venerados pelos
mudam, há ao mesmo tem po uma mudança na religião, na
biógrafos: “U m a biografia é vista com o completa quando dá conta
conduta, na política e na literatura.43
simplesmente de cinco ou seis eus, quando um ser humano pode
Ora, a biografia está em condições de encarar tal mudança? Pode ter milhares deles” ...45 C om mais forte razão, quando a pessoa em
dar lugar a uma nova forma de narração capaz de exprimir as con­ questão passa seu tempo a pensar em lugar de agir.
tradições da vida? A questão está longe de ser simples e é abordada Mas que pode fazer o biógrafo quando seu herói o colocou
inicialmente em termos literários. na situação em que nos coloca agora Orlando? A vida —todos
Flush escora o projeto irreverente da new biography: o herói aqueles cuja opinião tem algum peso estão de acordo quanto

não é nem um homem célebre nem um hom em qualquer, mas a isto - a vida é o único tema que convém ao romancista ou
ao biógrafo; viver, decidiram as mesmas autoridades, não tem
um Cocker ruivo, o cão da “mais célebre poetisa da Inglaterra,
nada em com um com se sentar numa poltrona e pensar. [...]
Elizabeth Barret, a adorada em pessoa”; e suas peregrinações são um
Se portanto o herói de uma biografia não consente nem em
pretexto para denunciar o profundo fosso (higiénico, arquitetural, amar nem em matar, e se obstina em querer apenas pensar e
económico e cultural) que separa o mundo respeitável de Wimpole imaginar, devemos concluir que ele, ou antes que ela não vale
Street do bairro miserável de W hitechapel, formado “de espécies mais do que um cadáver, e abandoná-la.46
de estrebarias em ruína onde rebanhos de seres humanos viviam
sobre rebanhos de vacas à razão de dois metros quadrados para As considerações sobre os limites da verdade biográfica são
cada duas pessoas” .44 Orlando, escrito dois anos antes, é um livro ainda o objeto de vários ensaios: The Lives o f the Obscure, The Neu>

bem mais ambicioso. Ele toma a figura do biógrafo, dedicado a Biography, The Art o f Biography. Este último coloca a questão em
reconstruir a vida de um indivíduo de seu nascimento até a morte. termos precisos: a biografia é uma arte? Por que produziu tão poucas
C om o se faz para contar a vida de uma pessoa que muda de sexo e obras primas imperecíveis? C om o pode ser que mesmo o doutor
de condição social, que um dia traja um costume cor de tabaco, à Johnson de Boswel tenha uma duração de vida menor que a do
maneira dos juizes, e no dia seguinte um peignoir chinês equívoco Falstaff de William Shakespeare? Por certo, a biografia é uma arte
ou ainda um vestido florido de seda? E que vive, com o se nada ainda jovem : “O eu que escreve um livro de prosa se manifestou
de especial houvesse nisso, durante quatro bons séculos, da época numerosos séculos após o eu que escreve um poema” . Mas não se
elisabetana a 11 de outubro de 1928, passando pela Restauração trata unicamente de inexperiência. De fato, “a arte da biografia é
r pelo úmido século X IX ? O que quer que diga o Diciotiary o f a mais restrita de todas as artes”. Os livros de Strachey são prova
disso. Enquanto sua obra sobre a rainha Vitória é particularmente

" V irgini.i W o o ll. M r B r,m el an d M n Broum ( 1 9 2 4 ) , in V A r l du rom an, trad u zid o d o inglês por
R o s e C e lli. Pans, E d itio n s du S e u il. 1 9 9 1 , p. 4 4 - 4 5 .
*■ V irgínia W o o lf, O rlando ( 1 9 2 8 ), traduzido d o inglês p o r C h arles M a u ro n . Pans. S to c k . 1 9 9 2 . p. 2 8 4 .
“ V irg in ia W o o lf. Flush, b u g rap h ie ( 1 9 3 0 ), traduzido d o m glês p o r C h a rle s M a u ro n , C íerm am e
' H»d., p. 2 6 3 . C f. F lo n a n e R e v ir o n , " O rla n d o " d e V irginia W o o lf ( 1 9 2 8 ) : u ne ríp on se i E m in en l
M a m a m e C o le tte -M a n e H u e t in L ’O eu vre rom anesqu e, Paris, S to c k , 1 9 7 9 , p. 2 9 - 6 2 . D e z anos
Yictorians?, in F ré d é rie R e g a r d (d ir.), lui B iogrtiphie littèraire cn Artgletcrrr ( X V I T - X X ). C on fig u ra-
A tp o.s, R o b e n M usil con sid era a possibilidade de esc rev e r a b .o g ra fia d e u m c o r v o : cf. T a Vebuchrr,
tions, rcconfiqurations du soi artistiqu e, S a in t- E tic iin e , P u b lica tto n s d e ! u n iv crsité d e S a in t E tie n n e ,
A p h on sm tn , E ssays und R e d e» , ed itado p o r A d o lf F n sé , H a m b u rg o , R o w o h l t V erla g , 1 9 5 5 . H eft
3 5 , p. 5 2 3 - 5 4 1 . 6 1 9 9 9 , p. 1 1 7 - 1 4 0 .
O PEQUENO x - D a b i o g r a f i a à h i s t ó r ia O LIMIAR BIOGRÁFICO

brilhante, aquela que consagra a rainha Elizabete é um verdadeiro inelutável: “É uma sujeição falaciosa a que nos dobramos” . Enfim,
fracasso, mas “parece que o fiasco é imputável não a Lytton Strachey, ela reduz a vida a uma séne de ações:
mas à arte da biografia. Em Victoria ele tratara a biografia com o uma O utro lugar comum absurdo quer que o indivíduo seja aquilo
técnica: submetera-se a seus limites. Em Elizabeth, tratou a biografia que fàz. Tudo aquilo de que temos medo, todos nossos desejos
como uma arte: desdenhou seus limites” . Virginia W o o lf atrai assim mais loucos, todas nossas angústias: é esse conjunto de coisas, que

a atenção para um ponto extremamente delicado: a impossibilidade nossa biografia não reflete, que faz a pessoa. Provavelmente um
indivíduo jamais fez isto ou aquilo porjamais ter ousado se amscar.
estética de conciliar os fatos e a ficção.
Mas mesmo se jamais teve a coragem, o que não fez é talvez tão
A biografia impõe certas condições, e estas implicam que ela importante quanto aquilo que fez. Quero dizer que a diferença
deve se fundar nos fatos. E, por fatos, entendem os fatos que entre as coisas feitas e as coisas não feitas não significa que aquelas

podem ser controlados por outras pessoas além do artista. Se o são verdadeiras e estas não. [...] U m sonha em ser Nero e reduzir a
cinzas toda a cidade de Zurique, o outro quena apenas ser campeão
biógrafo inventa fatos co m o os inventa um artista — fatos que
de boxe e isso também faz parte dele, mas nem um é Nero pondo
nenhuma outra pessoa pode controlar — e tenta combiná-los
fogo em Zurique nem o outro jamais ganhará uma luta de boxe.4*
com fatos de outro tipo, eles se destroem reciprocam ente.

Existe um limite necessário que deve ser respeitado:


III
U m a vez que o personagem inventado vive num mundo
livre onde os fatos são controlados por uma única pessoa — o
A fronteira que separa a história da biografia também se mos­
próprio artista —, sua autenticidade reside na verdade de sua trou incerta e conflituosa. As razões são diferentes daquelas alegadas
visão. O mundo criado por essa visão é mais raro, mais intenso, pelos romancistas. Concernem essencialmente à qualidade científica
inteinço em relação ao m undo que é em grande parte feito de da verdade. Tucídides manifestava um desprezo absoluto pela bio­
informações autênticas fornecidas por outros. P or causa dessa grafia: em seu programa de uma historiografia exata, impessoal e
diferença, os dois tipos de fatos não se misturam; se eles se universal, deixava bem pouco lugar para um género narrativo que
tocam, se destroem. N inguém , parece ser a conclusão, pode buscava agradar um público popular. Dois séculos mais tarde, Políbio
obter o melhor dos dois mundos. escreve que a história biográfica, fundada sobre os meios do teatro
trágico, confunde poesia e história. Suas considerações provem de
A vida da biografia é, por conseguinte, diferente da vida da poesia
uma discussão mais ampla, aberta no seio da historiografia grega, que
e do romance, é uma vida vivida num grau de tensão inferior”.47
via o ideal do verdadeiro com o oposto àquele do verossímil procurado
Ao longo do século X X , essas reflexões vão angariar o sufrágio pelo sofista Gorgias: à diferença do que haviam sustentado certos
de numerosos romancistas. Max Frisch recordou a inevitável pobreza historiadores dos séculos IV e III a.C (tais com o Filarco ou Duris
estrutural do género biográfico. Fiel aos fatos, a biografia achata a de Samos), preocupados em dramatizar o relato, Políbio pretende
vida. compreendemos bem melhor um indivíduo “contando enor­ estabelecer e transmitir uma verdade objetiva.49 A distinção entre
midades de toda espécie . Em segundo lugar, ela dá uma imagem a história e a biografia é por vezes também reivindicada pelos pró­
demasiado necessária da realidade, com o se o fato o com d o fosse prios biógrafos. Na época imperial, Plutarco demonstra bem pouco

V irg ín ia W o o lf, T h e A rt o f B io g r a p h y ". A tlan tic M o n th ly , 1 9 3 9 . C L X I I I , p 5 0 6 - 5 1 0 . C f. M ax F n x c h , " L ’io n f iu ta to " , U n e a d 'om bra" t 1 9 9 6 , 1 1 9 , p. 2 0 - 2 9 .
ig ualm en te V irg ín ia W o o lf, “ T h e L.ves o f th e O b s c u r e ” . m . D ia l, 1 9 2 5 . L X X V 1 I I . p. 3 8 1 - 3 9 0 ;
A rnaldo M o n u g lu n o , L a N aissance d e la biographie en G rèce anciennt’ ( 1 9 7 1 ) , traduzido d o inglês por
rgm .a W o o lf, T h e N e w B .o g ra p h y ", N r w H e r M T rib„ n e . 3 0 d e o u tu b ro de 1 9 2 7 , reto m a d o
Estelle O u d o t, S trasb ou rg , C ir c é , 1 9 9 1 .
em C ran.tr an d R ain bow , Lon dres. H og arth Press, 1 9 5 8 . p. 1 4 9 - 1 5 5 .
O PEQUENO x - D a b i o g r a f i a à h i s t ó r ia
O LIMIAR BIOGRÁFICO

interesse pelos fatores estruturais e reivindica o primado dos signos legítima de escritura histórica. N o século XV II, Thomas Stanley,
da alma sobre a etiologia política: filólogo inglês conhecido por sua edição crítica das tragédias de
Esquilo, chega ao ponto de definir a biografia dos legisladores, dos
Não escrevemos Histórias, mas Vidas, e não é sempre pelas ações
mais ilustres que se pode trazer à luz uma virtude ou um vício;
condottieri e dos eruditos com o a forma mais elevada de história.53
muitas vezes, um pequeno fato, uma palavra, uma bagatela, Que o destino individual dos homens ilustres permite compreender
revelam melhor um caráter do que os combates mortíferos, os as escolhas de uma nação é um ponto de vista a que adere também
confrontos mais importantes e os cercos das cidades. Os pintores, a maior parte dos pensadores do século seguinte. David Hume
para captar as semelhanças, fundam-se no rosto e nos traços da sustenta, assim, que a espiritualidade pessoal de Carlos I arruinou a
fisionomia e quase não se preocupam com as outras partes do corpo; causa absolutista na Inglaterra. Alguns decénios mais tarde, é a vez
que nos permitam também, da mesma maneira, agarrarmo-nos
de Voltaire. Ainda que não celebre nenhum culto dos heróis, estima,
sobretudo aos signos que provêm da alma e nos apoiarmos neles
todavia, que as grandes almas permitem reconhecer as surpresas da
para retraçar a vida de cada um destes homens, abandonando a
outros os acontecimentos grandiosos e os com bates.50
história, esses acontecimentos imprevisíveis, tão determinantes num
domínio em que o que é verossímil nem sempre advém.54
As proposições dos pensadores da Antiguidade conheceram fortu­
Assim, durante séculos, sucedem-se os mesmos conflitos de
nas diversas junto aos historiadores modernos. A desconfiança em rela­
confins. Depois, quando o pensamento histórico atinge seu apogeu,
ção à biografia é assim reiterada em 1599 por John Hayward, apelidado
a fronteira entre biografia e história se incendeia sob o impulso de
de o "tácito inglês”, que, em seu livro Life and Reigne o/K ing Hetirie III,
três forças dessemelhantes que fazem da totalidade a categoria ex­
exorta a não confundir “o governo das grandes nações” com “a vida e
plicativa do devir histórico.55
os feitos de homens célebres”.31 U m século mais tarde, Thomas Bur-
net, capelão de Guilherme III, atribui um lugar importante à história, A primeira dessas forças é de caráter político. Após a afirmação
mas reconhece apenas um valor secundário, ornamental, à biografia: do povo com o sujeito social, a história biográfica se reveste de uma
tonalidade elitista que se choca contra o desejo de fraternidade e
As vidas dos filósofos, os nascimentos, as mortes, os elogios, igualdade. Na “Introduction à La Philosophie de Vhistoire de Vhumanitè
as viagens, as ações boas ou más e outras coisas do mesmo de Herder”, Edgar Quinet o exprime claramente: “O despotismo
género completam e embelezam a matéria, mas são de pouco
reduzira a história a uma forma degradada de biografia”.56 Contra
peso, pois trata-se aqui de buscar os germes e os progressos do
a versão monárquica da história, Jules Michelet prega o heroísmo
conhecim ento humano e o governo da Providência.52
coletivo: as massas são o verdadeiro sujeito da históna, enquanto
No entanto, a separação proclamada por Políbio entre biografia “que os grandes nomes fazem poucas coisas, que os pretensos deu­
e história nem sempre é aceita. N o século VIII, Beda, o Venerável, ses, os gigantes, os titãs (quase sempre anões) só enganam quanto a
escreve que a biografia nada mais é do que a história observada de
mais perto; e na época moderna, os principais trabalhos de paleo­
u S o b re a h istoriog rafia da Idade M é d ia e da R e n a s c e n ç a , cf. D o n a l R . K e lle y , F ou n d ation s o fM o d e m
grafia, de diplomática e de historiagrafia (de Jean Bodin a Agostino H istorical Scholarship. L atigu age, Ltiw an d H istory in th e Frettíh R enaissattce, N e w Y o rk -L o n d re s , C o -
Mascardi e a Mably) tomam a biografia por uma forma perfeitamente lum bia U n iv ersity Press, 1 9 7 0 , X 1 L - 3 7 0 ; D em s H ay , A nnalists an d H istorians. W estern H istoriography
Jrom the E ight to the E ig h teen th C en tu ries, L o n d res, M e th u e n & C o ., 1 9 7 7 .
* S o b re a h istoriog rafia das Lu zes, cf. F n e d n c h M e in e c k e , D ie E ntstehung des H istonsm u s (1 9 3 6 ),

Plu tarq ue, Vies parallèles, Pans, GaLlimard, 2 0 0 1 , p. 1 2 2 7 . M u n iq u e , R . O ld e n b o u r g , 1 9 6 5 , cap. II, IV e V .

C f. J o h n G arraty, T h e N alu re o f Biography, op. r ir , p. 7 0 . ‘5 C f. Ju d ith S ch la n g er, L es M étap h ores de forg a n ism e, Pan s, V rin , 1 9 7 1 .
Edgar Q u in e t, “ In tro d u c tio n à L a P h ilosop h ie d e r h is t o in de r h tím a n itê de H e r d e r ". in O euvrrs
C f. M a n o L o n g o , H isloria p h ilosop h ia e ph ilosop h ira: teorie e m elo d i d elia sloria delia filosofia Ira Seiceiito
. t S ellecen lo, M ilan , IP L , 19H6, p. 3 9 . com plètes. Paris, P a g n e rre É d ite u r, 1 8 5 7 , p. 3 4 8 .
O PEQUENO x - Da b o g r a f i a à h is t ó r ia O UMJAR BIOGRÁFICO

seu tamanho içando-se por fraude sobre os ombros dóceis do bom entre os indivíduos constitui uma sequência unitária e homogénea
gigante, o Povo” .57 Ainda que em seu Diário se mostre bem mais de acontecimentos na totalidade da espécie: “Os homens, tomados
nuançado, a ponto de escrever, em 30 de março de 1842: “Errei individualmente, e mesmo povos inteiros, nem imaginam que per­
ao ligar demais este princípio (a humanidade é sua própria obra) ao seguindo seus fins particulares em conformidade com seus desejos
aniquilamento das grandes individualidades históricas”,5Mele persiste, pessoais, e muitas vezes em prejuízo de outrem , conspiram, à sua
nas suas obras históricas maiores, reivindicando a natureza coletiva, revelia, com o desígnio da natureza” .61
frequentemente impessoal, do povo: A preponderância de uma visão teleológica da história con ­
tribui ainda mais para reduzir o alcance do aspecto biográfico.
Está aí a primeira missão da história: encontrar, através de
pesquisas conscienciosas, os grandes fatos da tradição nacional. Após ter confirmado a unidade a priori da história, Fichte nega
Esta, nos fatos dominantes, é muito grave, muito segura, de uma o valor autónom o do singular em face do universal: somente o
autoridade superior a todas as outras. [...] Q uem poderia dar o progresso da espécie conta, não a vida dos indivíduos. A contece
mesmo peso a essas vozes individuais, parciais, interessadas, que o mesmo com Hegel para quem a materialidade da existência
à voz da França? [...] Sem negar a influência possante do gênio
deve ser sacrificada em beneficio do W eltplan: os indivíduos for­
individual, não há dúvida de que, na ação destes homens, a parte
mam uma massa supérflua e não devem eclipsar os objetos dignos
pnncipal se deve entretanto à ação geral do povo, do tempo,
do país. [...] T od o estudo individual é acessório e secundário
de história. Quando os acontecim entos do mundo, até os mais
diante desse profundo olhar da França sobre a França, dessa distantes ou aberrantes, são dialeticamente integrados numa pers­
consciência interior que ela tem do que fez.59 pectiva teleológica (o desenvolvimento infinito e necessário do
género humano), os indivíduos (mesmo os grandes personagens
Michelet não está isolado. Durante a Restauração, a intimação de
históricos, que coincidem com o universal superior, com o Cesar
Anacharsis Cloots, “França, tu serás feliz quando estiveres curada
ou Napoleão imortalizado no campo de batalha de Iena) podem
dos indivíduos” , colocada em epígrafe ao Tyran, é retomada por
ser compreendidos com o instrumentos da razão que cumprem
outros historiadores como Auguste Mignet ou Augustin Thierry.*'"
seus desígnios mesmo sem com preendê-los:
A segunda força procede da filosofia. Em seu curto ensaio
sobre a finalidade da história, escrito em 1784, Kant descreve o Aquilo a que os indivíduos que marcam a história tendem
inconscientem ente não é o que querem conscientem ente, mas
homem como um meio pelo qual a natureza realiza seus fins, e
alguma coisa que é-lhes necessário querer sob o efeito de uma
afirma que a história deve se elevar acima do indivíduo e pensar pressão que parece ser cega e que, no entanto, vê mais longe
em grandes proporções, pois o que se revela confuso e irregular que os interesses pessoais conscientes. E a razão pela qual tais
homens realizam aquilo que é almejado através deles, dando
provas de uma com preensão instintiva. Agem de maneira
Ju le s M ic h e le t. H istoire rom aine (1 8 3 3 ). in O eiw res C om p lètes, so b a d ire çã o de Pau l V iallan eix e
histórica, empurrados pela potência e pela “astúcia da razão"
R o b e r t C asanova, Paris, F lam m an o n , 1 9 7 2 . t. II, p. 3 3 5 .
(List der Vemun/t), que é o conceito racional da providência.'’2
Ju le s M ic h e le t, Jou rn a l, sob a d ireção de Paul V ialla n e ix e C la u d e D ig e o n , Paris, G a llim a rd , 1 9 5 9 ,
p ->411 N o p refácio a sua tradução das obras escolh idas d e V ic o , M ic h e le t escrev ia : " A palavra da
S a e " ' a m40v‘>c; * h um anidade é sua próp n a o b ra ... A ciê n cia social data d o dia e m q u e essa grande
deia foi expressa pela prim eira vez. A té en tão a h u m an id ad e acred itava d e v e r seus progressos aos Im m anu e) K a n t, Id ée d ’une histoire u niverselle au poittt de vue cosm opolitiqu e ( 1 7 8 4 ) , in L a P h ilosop h ie

ca os do g én io individual . C f. G iam battista V ic o , Príncipes d e la p h ilo so p h ie d e 1’histoire, Paris, J de I histoire, traduzido d o a lem ã o p o r S te p h a n P io b e tta , Paris, D e n o é l- G o n th ie r , 1 9 4 7 , p. 2 6 - 2 7 .
R e n o u a rd , 1 8 2 7 . Sob re a particularidade d o tin alism o k a n tia n o , ct. Lu d w ig L an d g rebe, P lian om en ologie und G eschichte,

Ju le s M ic h e le t, H ,stoire de la R h o lu tio n Fran(aise (1 8 4 7 ) , P an s. G a llim a rd , 1 9 5 2 , p. 2 8 6 - 2 8 8 . G iiterslo h , G iite rs lo h e r V erlag sh aus G e rd M o h n , 1 9 6 8 , cap. III.
Karl L ò w ith , H istoire et salut. L es présupposés théologiques de la ph ilosop h ie de 1'histoirv ( 1 9 4 9 ) , traduzido
U J y ra"- P « fa c e de 1 8 6 9 , ,n H istoire d e la R èv olu tion F rançaise, op . rir., p 1<><>4.
do alem ão p o r M a n e - C h n s t in e C h a llio l-G iU e t. S y lv ie H orctel e Je a n -F r a n ç o is K e rv ég a n , Pan s,
ce («erard, Le grand h o m m e et la c o n c e p tio n d e 1'h istoire au X I X ' s iè c le ” , R om an tism e.
evue du d ix .n eu v iim e siicle, n u m é ro special " L e grand h o m m e ” , 1 9 9 8 , n. 1 0 0 , p. 3 1 - 4 8 . G allim ard, 2 0 0 2 , p. 8 3 - 8 4 .
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia à h is t ó r ia O UM1AR BIOGRÁFICO

Com o observou Karl Lõwith, o marxismo não constitui uma A última força é aquela da ciência. C om o pressente Johann
ruptura em relação à filosofia clássica alemã quanto a esse ponto: “O Gustav Droysen, “nossa disciplina mal se liberou do enlace fi-
princípio mais geral de Marx é o mesmo de Hegel: a unidade da ra­ losófico-teológico e eis que as ciências da natureza já querem se
zão e da realidade, da essência universal e da existência particular”.63 apropriar dela” .65 Na realidade, mais do que da ciência, o perigo
Nessa concepção teleológica do devir com o trabalho gradual provém, sobretudo, de certas disciplinas sociais nascentes, com o
através do qual a humanidade realiza seus fins superiores, o indivíduo a demografia ou a sociologia, desejosas de adquirir um estatuto
é inteiramente submetido à lei. Uma lei dramática e implacável, pois científico incontestável.
que isenta de elementos acidentais. A omissão da pessoa coincide quase Nos anos 1830, Adolphe Quételet foija a noção de homem
sempre com a negação do acaso ou, pelo menos, com sua marginali- médio, na esperança de elaborar uma mecânica social que estivesse em
zação tendencial: o resultado da batalha de W aterloo foi certamente condições de definir as leis que regem a física, intelectual e moral: “O
condicionado pelas chuvas torrenciais que caíram na noite de 17 para homem que considero aqui é, na sociedade, o análogo do centro de
18 dejunho de 1815, mas essas gotas de água foram enviadas pelo deus gravidade no corpo; é a média ao redor da qual oscilam os elemen­
da História... Victor Hugo exprimiu de maneira poética esse tipo de tos sociais: será, se assim quiserem, um ser fictício para quem todas
expectativa fundada no papel da Providência. Após ter contado que as coisas se passarão em conformidade com os resultados médios
Oliver Cromwell queria ter partido para a Jamaica, e Mirabeau, para obtidos pela sociedade.66 Essa noção de homem médio acarreta o
a Holanda, mas que um veto régio os obrigara a renunciar, comenta: sacrifício oficial de tudo o que é demasiado particular ou anómalo:
Ora, drai Cromwell da revolução da Inglaterra, tirai Mirabeau Devem os, antes de tudo, perder de vista o hom em tomado
da revolução da França, tirais talvez, das duas revoluções, dois isoladamente, e considerá-lo unicamente com o uma fração da
cadafalsos. Quem sabe se a Jamaica não tena salvo Charles I, e a espécie. D espojando-o de sua individualidade, eliminaremos
Batávia Luís XVI? Mas não, é o rei da Inglaterra que quer guardar
tudo o que é apenas acidental; e as particularidades individuais
Cromwell; é o rei da França que quer guardar Mirabeau. Quando
que têm pouca ou nenhuma ação sobre a massa se apagarão por
um rei está condenado à morte, a providência venda seus olhos.
si mesmas e permitirão apreender os resultados gerais.57

Em suma, por trás do acaso, há sempre a mão de Deus:


Ao longo dos decénios seguintes, a ideia de homem médio angana
E! Quem não sente que nesse tumulto e nessa tempestade, no numerosos sufrágios. Convencidos de que os seres humanos não se
meio desse combate de todos os sistemas e de todas as ambições esquivam à lei universal de causalidade, Henry Thomas Buckle, Grant
que faz tanta fumaça e tanta poeira, sob esse véu que esconde Allen, Paul Mougeolle, Louis Bourdeau, Paul Lacombe se debruçam
ainda dos olhos a estátua social e providencial apenas esboçada, sobre a força das pressões exteriores, especialmente de ordem geográfica,
atrás dessa nuvem de teorias, de paixões, de quimeras que se
e apresentam os seres humanos como formigas que tecem anonima­
cruzam, se chocam e se entredevoram na espécie de luz brumosa
mente a trama da vida social (a exemplo das células que reconstituem
que rasgam com seus clarões, através desse barulho da palavra
humana que fala ao mesmo tempo todas as línguas por todas
as bocas, sob esse violento turbilhão de coisas, de homens e
Jo h a n n G ustav D ro y se n , H isto h k . D ie Vorlesungcn von 1 8 5 7, cd . P o r P . L e y h , S tu ttg a rt-B a d C o n sta tt,
de ideias que chamamos o século dezenove, alguma coisa de 1 9 7 7 ; T ex te sur C eschichtstheorie. M it untfedm cktcn X íalen alen zu r " H isío n k , cd . P o r G . U irtsch e J .
grande se cumpre! Deus permanece calmo e executa sua obra.M R iis e n , G õ ttin g e n , 1 9 7 2 , p. 16.
A dolphe Q u é te le t, S u r 1‘h om m e et le d tv elop p em en t d e ses facultés ou E ssai d e p h y siq u e s oaate, P an s,
B a ch e lier. 1 8 3 5 , p. 2 1 .
Ibid., p. 7 7 .
Ibid., p 4. S o b re a n o ç à o d e h o m e m m é d io , cf. M a u ric e H a lb w a ch s, L a T h éorie d e I h om m e m oyen .
E ssai sur Q u ételet et la statistiqu e m orale. Paris, F. A lca n , 1 9 1 3 ; G u illa u m e L e B la n c , L Esprit des
e u b h e p a r 'A n Í ó n ^ R W j" ^ ' 7 ° ' ^ ‘,é ,a ,u ,e e l p h i ^ o p h i e m flées, cd m o n c n t.q u e
r Jam es, t. II, 1 ans, K lin ck sie ck , 1 9 7 6 , p. 2 8 5 , 3 3 1 . Sciences h u m aines, P a n s, V rin , 2 0 0 5 , p. 1 6 4 - 1 7 4 .
O LIMIAR BIO GRÁFICO
O PEQUBMO X - D a BIOGRAFIA à HISTÓRIA

os tecidos orgânicos).68 Segundo Herbert Spencer, o mesmo se dá em capítulo de The Study o f Sociology, Spencer constata que Newton não
relação aos grandes homens: “N o mesmo grau que toda a geração de podena ter nascido numa família de Hotentotes, Milton entre os in­
sulares de Andaman, um Howard ou um Clarclcson nas ilhas Fiji. Até
que forma uma pequena parte —no mesmo grau que as instituições, a
aí, o raciocínio nada tem de surpreendente: como acabo de assinalar, as
língua, a ciência e os costumes - no mesmo grau que a multidão das artes
considerações relativas ao meio estão longe de ser novas. Mas, algumas
e que suas aplicações, [o gênio] não é mais do que uma resultante de
linhas adiante, o meio se reveste das marcas da raça física: “E impossível
um enorme agregado de forças que já agiram juntas durante séculos”.69
que um Anstóteles provenha de um pai e de uma mãe cujo ângulo
Em tal perspectiva, a ciência deve explicar o homem médio de cada
facial meça cinquenta graus, e não há a menor chance de ver surgir um
raça, renunciando às variações morfológicas e às diferenças individuais:
Beethoven numa tnbo de canibais cujos coros, em fàce de um festim
por mais importante que seja uma pessoa, seus pensamentos e suas ações
de carne humana, se assemelham a um grunhido rítmico”.71 E não é
não apresentam nenhum interesse histórico. Por um deslizamento lin­
tudo. A cunosidade biográfica é descrita como um fenómeno tribal,
guístico significativo, os “signos que provêm da alma” de Plutarco, já
típico das pnmeiras raças históricas: os afrescos dos egípcios, a pintura
rebaixados à categona de anedotas por Hegel, tomam-se idiossincrasias
mural dos assírios ou a epopeia grega nos ensinam “incidentalmente
pessoais a nivelar, e mesmo a eliminar. Com o escreve John Fiske, autor
que havia cidades, barcos de guerra, carruagens de guerra, marinheiros,
de numerosos livros de história dos Estados Unidos, será possível assim soldados a comandar e a massacrar; entretanto, a finalidade direta é pôr
realizar uma grande revolução histonográfica: em evidência os triunfos de Aquiles, as proezas de Ajax, a sabedoria
A partir da metade do século X I X , a revolução desencadeada no de Ulisses e outras coisas análogas”.72 Pouco a pouco, a ideia de que
estudo do passado foi tão grande e tão total que se assemelha à o pensamento abstrato, impessoal seria um dos caracteres salientes das
revolução realizada na biologia, sob o com ando do Sr. Darwin. civilizações supenores, toma-se uma convicção coletiva.7'
O intervalo no conhecimento que separa o trabalho de Edward O segundo elemento digno de interesse remete à dupla leitura
Freeman [o historiador dos Normandos] em 1880 daquele de de Darwin. Fiske a mobiliza com fins antibiográficos: tudo o que
Thomas Babington Macaulay em 1850 é tão profundo quanto é individual se reveste, para ele, de um aspecto superficial e apres­
o intervalo que separa John Dalton e H um phry Davy dos ini­ sado. Outros autores, entretanto, remetem-se à teoria da evolução
ciadores do flogístico. Nos trabalhos mais importantes oriundos
para reduzir o alcance do determinismo geográfico. E o caso de
dessa imensa mudança —com o aqueles de Sir Henry Maine e de
William James em dois breves ensaios escritos nos anos 1880 em
William Stubbs, de Fustel de Coulanges e de Maurer —a biografia
que sublinha que, a exemplo justamente da variação espontânea,
ocupa um lugar subordinado ou não desempenha papel algum ."
o gênio é a única e verdadeira causa da mudança social. Sustenta,
No seio desse debate, dois elementos merecem ser evocados. Em por outro lado, que, longe de desempenhar papel determinante
primeiro lugar, o peso da reflexão sobre a raça. O caso mais interes­ na produção das qualidades humanas, as condições ambientes têm
sante l sem dúvida alguma aquele de Spencer que, durante a guerra apenas uma função de seleção: “Afirmo que, de maneira geral, o
anglo-boer, acusa o governo inglês de re-barbarization. N o segundo meio ambiente é exatamente, em relação ao homem de gênio, o
que ele é em relação às ‘variações’ da filosofia darwinista. O meio

" I n " ? rT h ° m “ u UCklC H 'S'0ry ° f B x g lon d . L o n d res, J o h n W . P a rk er & S o n . 1 858,


w ,l i N an o n M a k ln g . G em lem an j M a g azin e, 1 8 7 8 (re to m a d o em P o p u l a r Science H erbert S p e n c e r, íntroduction íJ la science s o a a le , op . rif., p. 3 6 .
■ P 1 2 , ' 1 2 6 ); G ra m A1,en' “ T h e G e n « ls ° f G e n iu s " . A .lan ttc M on .h ly , 12 Ibid ., p. 3 2 .
L o .m r w , 4 c P .'■ '.L '*1 Paul M o U g e o lk U s ‘ ^ l è m e s d e rh is lo ire , P a n s, C . R c in w a ld , 1 886;
E ncontram os esta ideia ig u alm en te em Ed w ard H . C a rr in Q u'est-ce que Chisioire? C otifhertces pw noncés
Paru F AL- " i uut>" t f " ^ *,lslonens
E ssai critique sur 1'hisioire considérée c o m m f science positivt*
á IV n iv ersitê de C am brid g e ( 1 9 6 1 ) trad u zid o d o inglês p o r M a u d Sissun g, Paris, La D é c o u v e rte ,
„ . ............. JU‘ L jc o m b e ' D f 1’h is lo in considérée com m e Science, P a n s, H a c h e tte , 1 8 9 4 .
1 988. S o b re a p retensa su p erio rid a d e d o p e n sa m e n to a bstrato, cf. G e o rg e L. M o sse, T o u w d the
» 1 1 " Sp” “ " ^«roduction d la science s o a a le (1 8 5 3 ) . P an s. b a illie re , 1 8 7 7 , p. 3 6 .
F in al S olution. A H istory o j E u rop ean Rticism , L o n d res, D e n t, 1 9 7 8 .
« ■ e, ‘S o c io lo g y and H e r o -w o rs h ip ", A tlan tic M onthly, ja n e ir o 1 8 8 1 , p. 8 1 .
O LIMIAR BIOGRÁFICO

tem por principal resultado o de adotar ou rejeitar, de preservar ou O político, o individual e o cronológico (denunciados com o os três
destruir, em uma palavra, de escolher o grande hom em ” .74 “ídolos da tnbo dos historiadores”) devem ser substituídos pelos fatos
Embora não apreciando muito o determinismo extremo de de repetição, as regulandades, os fatos típicos: “A regra é aqui, como
Buclde, de Spencer ou de Bourdeau, certos sociólogos se alinham nas outras ciências positivas, seguir as abstrações felizes, isto é, aquelas
com a ideia de afirmar, de uma vez por todas, a impessoalidade como que levam a estabelecer, aquelas que servem para colocar em evidência,
cntério fundamental de cientificidade. Na França, Émile Durkheim regularidades”.™ Para ele também, a causalidade histórica não provém
reconhece aos grandes homens uma função política importante: mais da motivação, e sim da lei: “O estabelecimento de uma ligação
"Um a sociedade em que o gêmo fosse sacrificado à massa e a não causal se faz não entre um agente e um ato, não entre um poder
sei que amor cego por uma igualdade estéril, condenaria a si mes­ e um resultado, mas entre dois fenómenos exatamente de mesma
ma a uma imobilidade que não difere muito da m orte”.73 Mas os ordem; ele implica uma relação estável, uma regularidade, uma
considera como elementos perturbadores para as ciências sociais, lei”.7'1Só existe então relação causal se há regularidade de ligação:
que devem estudar as maneiras de pensar, de sentir e de agir inde­ “O caso único não tem causa, não é cientificamente explicável” .81’
pendentemente dos indivíduos. Dessa convicção procede a famosa A ideia de edificar uma história impessoal seduz igualmente
confrontação entre fato social e estatístico: “C om o cada uma dessas certos historiadores alemães. Em 1896, Karl Lamprecht, fundador do
cifras compreende todos os casos particulares indistintamente, as Instituí fur die Kulturund Univcrsalgcschichtc da Universidade de Leipzig,
circunstâncias individuais que podem ter alguma parte na produção abstrai das ciências naturais um conceito normativo e absoluto de
do fenómeno se neutralizam mutuamente e, por conseguinte, não ciência e o estende a todas as disciplinas sociais. A fim de assegurar à
contribuem a determiná-lo". ' Esse ponto de vista é retomado, al­ história um estatuto científico irrefutável, almeja introduzir nela de
guns anos mais tarde, por François Simiand, portador de um projeto maneira sistemática o princípio de causalidade. Uma vez que a ciência
de unificação das ciências sociais. Embora reconheça a componente tem por tarefa conhecer o encadeamento necessário das causas e dos
interpretativa da história, Simiand sustenta que o historiador deve efeitos, presente uniformemente em todos os processos particulares,
estudar o que é objetivo, destacado da espontaneidade individual:
a história também deve se debruçar principalmente sobre aquilo
Uma regra de direito, um dogma religioso, uma superstição, que é comparável e típico. Essa é uma perspectiva que implica, para
um costume, a fornia da propriedade, a organização social, certa Lamprecht também, o sacrifício das diferenças: podemos, ou antes
visao do trabalho, certo procedim ento de troca, certa maneira devemos, renunciar a apreender no seio das coisas o que as separa,
de morar ou de se vestir, um preceito moral, etc. tudo isso me é para identificar o que as une. Por conseguinte, os indivíduos não de­
■lado, me é fornecido inteiramente constituído, tudo isso existe vem ser considerados com o seres particulares, dotados de um caráter
na minha vida independentemente de minhas espontaneidades
preciso, único, insubstituível, e menos ainda com o seres capazes de
próprias e algumas vezes a despeito delas.77
agir sobre o curso da história, mas antes com o amostras genéricas
equivalentes entre si, exclusivamente dominadas pelas ideias, pelos
w 'n 'I m " íam " ’ ■ ■ ri,"' M e " Jn d th eir E n v lro n m e n t"- A ilantic M o n lh ly . 1 8 8 0 , p. 2 9 5 . C f. tam bém impulsos, pelos sentimentos comuns ao grupo de pertencimento.
u d . in Z " * ! ’ J ' / ln ,p ortan ce individuais", O pfn C ou rt, 189(1. O s d o is te x to s foram reed i-
A diferença dos historiadores marxistas que privilegiam a noção de
T w ( ,8 9 7 ) * tradu" do do « * • p o r Loys M o u lin , P an s, F U m m a n o n . 191 8 .
trands h o n m ie s"'/ ^ , 11/ 0 / . P ° r H en n Ucrr. "L a m éth o d e staostiq ue et la qu estion des
t lasse, a unidade social determinante, capaz de explicar todo o resto,
É m ilr r t v r V h ^ n 1 Z J ’ Í ’ P’ 5 ^ 5 2 7 - ' ’ 5 ^ P ^
e Para Lamprecht a nação, não em seu sentido jurídico e estatal, mas
soeiale P am ÉHin a 5 ()mn,rí I histoire ( 1 8 8 3 ) , in T ex íes 1. É lem en ts d*une théorie
s o a a u , Ham, Edidons de M in u it, 1 9 7 5 , p. 4 (1 9-417.

p U s k ‘ * >n i r U so em ifiq u t ( 1 8 9 5 ) , 1’an s, 1>UF, 1 9 6 3 , p. 10. 11 ftid., p. 9]


rra n ç o u S im u iw l **M#rh.w 4, k. . F
«t . KO f r t r . nu* t . A^ ' ° ' M •P 95.
“ lbi à ; p. 105.
O PEQUENO x - D a b i o g r a f i a a h is t ó r ia O LIMIAR BIOGRÁFICO

na acepção romântica de organismo que evolui de acordo com as neutralizada da política se manifestam no curso dos anos seguintes,
próprias leis. Trata-se de um ponto de divergência interessante: o durante e após a Primeira Guerra Mundial, quando numerosos his-
conceito de nação não constitui mais uma individualidade, como tonadores da política se mostrarão incapazes de interpretar as graves
para muitos historiadores dos primeiros decénios do século X IX ; tensões sociais que abalam a Alemanha e, mais geralmente, a Europa.
ele representa aqui uma dimensão regular da vida histórica.81 É disso que se apercebe Eduard Spranger, um dos inspiradores da
Por certo, ao longo desse período, tampouco faltam diferendos morfologia histórica: após o fracasso da conspiração contra Hitler de
e alguns sentem repugnância em sacrificar o caráter concreto da exis­ 20 de julho de 1944, ele confia a Meinecke que “as ideias de Goethe
tência em nome da ciência. Mas muitos daqueles que defendem a não bastam para compreender o infemo que é o nosso hoje em dia”.85
natureza singular da história continuam a cultivar a retórica da grandeza Ao longo do século X X , o antagonismo, todavia nada evidente,
pessoal. Definitivamente, às forças sociais anónimas, tão exaltadas - em entre a históna social e a história política se endurece e se banaliza:
sentidos diferentes — por Simiand e por Lamprecht, revida-se com a pnmeira continua a cultivar sua vocação impessoal, a segunda a
os grandes homens políticos capazes de modelar os acontecimentos. propor personagens convencionais e monolíticos.86
Mesmo aqueles que não cedem à ideologia heróica sonham com in­
E provavelmente na França que a biografia foi mais vitupe­
divíduos improváveis, plenamente intencionais e livres. O primado do
rada.87 A batalha contra a história historicizante, travada nas páginas
grande homem é tanto mais alarmante na medida em que vai de par
da Reuue de synthèse historique, foi vencida pelos historiadores dos
com a predominância do político: só o Estado e, portanto, um pouco
Atmales, que se dedicam a apreender, para além dos acontecimentos
de história da civilização parecem dignos de consideração histórica.82
particulares, o substrato profundo da história: as estruturas sociais,
Como escreve ironicamente o historiador alemão Eberhard Gothein,
as representações mentais, os fenómenos de longa duração. Assim,
o leitmotw dominante incita a reservar aos historiadores políticos as
em pouco tempo a biografia se torna um dos símbolos da história
ações de envergadura, os feitos do Estado, e aos historiadores da cul­
tura a lixeira e o descarte (das Kchrichtfass tttid die Rumpelkammer).83 tradicional, da crónica de acontecimentos, mais preocupada com a
Numa época marcada por forte crescimento do poder do Estado e cronologia do que com as estruturas, com os grandes homens do
pela ascensão das massas à condição de sujeito político, os artigos do que com as massas. Para Marc Bloch e Lucien Febvre, o objeto da
Historische Zeitschrijt ignoram os problemas sociais (nenhuma alusão história é o homem, ou antes, “digamos melhor: os homens. Mais
à ralé, às fábricas, às famílias, aos subúrbios...) e rebaixam o político, do que o singular, favorável à abstração, o plural, que é o modo
identificando-o à ideologia manifesta e formal das instituições do gramatical da relatividade, convém a uma ciência do diverso”.88
Estado. Os perigos inerentes a uma definição tão idealizada e tão Mas os historiadores da segunda e da terceira geração dos Amtales
absorvem as tensões individuais no seio das estruturas coletivas de

Karl Lam precht. W as ist K u ltu rg esch ich te? b e itra g zu e in e r h is io n s ch e n E m p in k ” , in D eutsche
Z e,tschnf , } ur GeschuhtsuHssermhaft. 1 8 9 6 - 1 8 9 7 , I, p. 7 5 - 1 5 0 . S o b re a relação e n tr e a h istó n a social
Klaus E p stein , " F r i e d n c h M e i n e c k e , A u s g e w à h lte r b r i e f w e c h s e l ” , H isto ry a n d T h e o r y , 1 9 6 5 ,
e o nacionalism o é tn ic o ao lo n g o dos d e cé n io s seg u in tes, cf. Jiirg e n K o c k a , “ Id eo lo g ica l R e p re s - p. 85.
u o n and M eth od olo gicaJ In n o v atio n : H isto n o g rap h y and th e S o c ia l S c ie n c e s in th e 1 9 3 0 s and
Esquecendo a advertência de b ism a rck de 16 d e a b n l de 1 8 6 9 ao R eichstag da A lem an h a d o N o rte:
194Us , H istory an d M em ory, 1 9 9 0 , 2 , p. 1 3 0 -1 3 8 .
Em geral, exageram m u ito n unha in flu ên cia [...], m as, apesar de tu d o, n in gu ém te m na ca b eça exig ir
- u e m , c i l.iro. algumas e x c e ç ò e s im portan tes qu e escapam a essa c o n c e p ç ã o b e m polid a da b io ­
que eu faça a h istóna . Essa d eclaração é relatada p o r G h e o rg h i V . P lek h a n o v , L f de / individu
grafia política, basta m en cio n ar, ao lo n g o dos d e cé n io s seguin tes, o liv ro d e E m s t H K a n to ro w icz ,
ãtu ^ traduzido d o russo p o r L u cia e Je a n C a th ala, Pan s, N o u v ea u b u re a u d éd id o n , 1 9 7 6 .
l- Em pcreur F rédfnc II (1 9 2 7 ), Pans, G allim ard. 1 9 8 7 .
* Josef K onv itz, “ B io g ra p h y : T h e M issin g F o m i in F re n c h H is to n c a l S tu d ies , E u rop ean S tudies
^ Eberhard G o th e in , D ie A ufgaben der Kuhurgesrhichle, Leipzig, D u n k e r & H u m b lo t, 1 8 8 9 .
K ™ ™ , 1 976. 6 , p. 9 - 2 0 .
ntram os esta m esm a o rien tação em H istory an d B iography. Essays in H o n o u r o f D e r e k b e a les,
^ rC ^ o c h ' A p o log ie p o u r T h isto ire o u m é tie r d 'h is to n e n ( 1 9 4 9 ) , P an s, A n n a n d C o lin , 1 9 7 4 , p.
P 1 QQ^° ^ ^ C W B lan n in g e O avid C a n a d in e, C a m b n d g e . C a m b n d g e U n iv ersity
F íh .r e , esp e cia lm en te , foi sem p re m u ito sen sív el à d im e n sã o in d iv id u al, c o m o te stem u n h a m
biografias consagradas a M a r tin h o L u te ro e a R a b e la is .
O PEQUENO X - D a BIOGRAFIA À HISTÓRIA O LIMIAR BIOGRÁFICO

longa duração. Femand Braudel toma os acontecimentos por uma sociais numa miríade de existências particulares que possam ser em
simples “poeira, uma agitação de superfície” , e trata os indivíduos seguida combinadas no seio de conjuntos mais vastos: o objetivo “é
à maneira de um verniz, bnlhante, por certo, mas superficial, da conhecer bem a vida de milhares de indivíduos, um formigueiro em
realidade: fora algumas exceções (o papa Pio V ou Don João da sua totalidade, ver as colunas de formigas se estirarem em diferentes di-
Austna), os seres humanos parecem totalmente impotentes (Carlos reções, compreender suas articulações e suas correlações, observar cada
V se estabelece com o resultado da vontade “nacional”). Donde o formiga e, entretanto, jamais esquecer o formigueiro”.92 Porém, essa
acento posto sobre o que separa a históna biográfica daquela das concepção pontilhista - retomada principalmente pelos historiadores
estruturas e da história dos espaços, fundadas ambas sobre aquilo da Antiguidade romana93 e pelos especialistas na aristocracia inglesa94
que há de mais anonimamente humano.99 - se reveste muitas vezes de um caráter antibiográfico, na medida em
A desconfiança diante da dimensão individual não fica aliás con­ que a variedade do passado é sacrificada em nome das regularidades e
finada unicamente à históna social. Ao longo dos anos 1960 e 1970, em que os indivíduos parecem completamente submetidos às pressões
idade de ouro das grandes investigações da históna serial, historiado­ sociais. Em seu ensaio sobre a revolução americana, Namier declara
res empreendem medir, com a ajuda de indicadores quantitativos, os abruptamente: “Quaisquer teorias que possam elaborar os teólogos e
fenómenos culturais (o que Pierre Chaunu qualifica de terceiro nível). os filósofos concernindo ao indivíduo, não há nenhum livre arbítrio
Emmanuel Le Roy Ladurie aspira a escrever uma “história sem os no pensamento e nas ações das massas, assim com o não há na trans­
homens , e Jaques le Goff (autor, na sequência, de duas importantes lação dos planetas, nas migrações de pássaros e na queda no mar de
biografias históricas) pode afirmar que a história das mentalidades es­ colónias de lemingues” .95 Vários anos mais tarde, Louis Bergeron e
tuda aquilo que escapa aos sujeitos individuais da história por revelar Guy Chaussinand-Nogaret constatam que o objetivo da prosopogra­
o conteúdo impessoal de seu pensamento, aquilo que Cesar e o últi­ fia consiste em uniformizar as singularidades: trata-se de “encontrar
mo soldado de suas legiões, São Luís e o camponês de seus domínios, os homens e, através deles, preparar a definição dos tipos. Para além
Cristovão Colombo e o marinheiro de suas caravelas têm em comum". "' da máscara erudita, encontrar o rosto cotidiano e as singularidades
Por vários decénios, o gosto pelo singular só consegue sobre­ regionais, e das fisionomias múltiplas fazer brotar os traços comuns . *
viver em alguns recônditos da historiografia. Em primeiro lugar,
graças ao sucesso da prosopografia —por vezes designada igualmente
políticas endossam o p rojeto p rosop og ráfico . C f., em particular, M atthias G elzer, D ie der
com a expressão de biografia coletiva” . Cético quanto à filosofia romischen R qju h lik und die N obilitat der K aiserzeit, B e rlin -L e ip z ig , B .G . T e u b n e r, 1 9 1 2 ; C harles Beard,
da história, assim como quanto à h istória das ideias, Lewis N a m ie r An Etonomic Intrrprciation o f the Constitution o f the United States (1 9 1 3 ), N e w Y o rk , M acm illan , 1 9 4 4 ,
Fnednch M iinzer, Rom ische A dchparteieti und A d ebfam ilieti (1 9 2 0 ), Stuttgart, B . G . T e u b n e r, 1 9 8 3 ;
estima que os fatos sociais só podem ser explicados explorando-se
Konald Syme, Lti Réivlution romainv (19 3 9 ), traduzido do inglês por R o g e r Stuveras, Pans, Galhiuard, 1967.
cientificamente as raízes do comportamento individual. Os nobres Sobre as transformações do projeto prosopográfico, cf. Jo h n B ro o k e, "N a m ie r and N am iensm , History and
e os mercadores, os advogados e os funcionários, que compõem T7iei>ry, 1 963-1964, 3, p. 3 3 1 -3 4 7 ; Law rence Sto n c, “ Prosopography’’, Diiedalus, 1971, 10(1, p. 4 6 -7 1 .

a t asse dirigente inglesa da época de Jorge III, revivem um a um Lewis B N am ier, " T h e B io g ra p h y o f O rd in a ry M c n ", in L ew is B . N a m ie r, S/eyííT<Jptrs an d other
(1 9 3 1 ), N e w Y o r k , M a c m illa n , 1 9 6 8 , p. 4 6 - 4 7 . C f . Isaiah B e r lin , P ersonal Imprvssions,
so sua pluma. Seu método m ic r o s c ó p ic o almeja a cisão dos fatos Londres, T h e H og arth Press, 1 9 8 0 , cap . 3.
Cf. C.laude N ic o le t, "P ro s o p o g ra p h ie et h isto ire so c ia le : K o m e e t 1’Ita lie à 1 é p o q u e ré p u b lica i-
n c* •Annates E S C , 1 9 7 0 , 2 5 , p. 1 2 0 9 - 1 2 2 8 ; A n d ré C h a s ta g n o l, " L a p ro so p o g ra p h ie , m é th o d e de
W * * " !h M c d u m m t t rt le 'nonde m id ilm a n ée n a l'époqu e d e P lu h p p e I I ( 1 9 4 9 ) , Pans, rechcrche sur 1’h istoire du B o s -E m p ir e ” , A n n ales E S C , 1 9 7 0 , 2 5 , p. 1 2 2 9 - 1 2 3 5 .
* m u .i d C o lin , 19 9 0 , v ol II n 7 1 S n c m r~c f .
I- ,. . , ... . ' £ J . D li!-b2U . c r os c o m e n ta n o s c n tic o s d e la cq u es R a n c ie re , C f-je a n -P h ih p p e G e n e t e G iin th e r L o tte s (d ir.), L ’É tat m o d en te et les elites. A pports et lim ites de la
' u dt d“ « « » > . Pans, É d m on s du S e m i. I 9 9 2 , p. 2 6 - 2 7 . tnéihode prosopographiqut\ A ctes du c o llo q u e in te m a tio n a l C N R S - P a r i s 1, 1 6 - 1 9 de o u tu b ro de
m m anuel Le R o y L ad u n e, L r T r m to n e de fh u io r ie n , l>ans, C .allim ard, 1 9 7 3 , 4 ‘ p arte; Ja c q u e s Le
1^91, Pans, P u b lica tio n s de la S o r b o n n e , 1 9 9 6 .
1974 t 111 ™ ‘ h<Í J l n -,a cq u " Le G o f f e l>1,!rrc N o ra ( d i r ) , F aire d e 1‘h isloire, P an s, G allim ard , Lewis U. N am ier, E n g lan d in the A g e o f A m erican R ev olu tio n , L o n d re s, M a c m illa n , 1 9 6 3 , p. 4 1 .
Louis B erg eron e G u y C h a u s s in a n d -N o g a re t (d ir.), G ra n d s n otables du p rem ier E m p ire, Paris, É d i-
r l N */ a 77,f S 'n,CIUre ° f Poli,ics « lh e Accession o f C torg t III. Londres, M acm illan & h0ns C N R S , 1 9 7 8 , p. V I. A d ife re n ç a e n tr e a b io g ra fia e a p rosop og rafia é su b lin h ad a p o r
. - o longo dos p n m e.ro , d ecên.os do século X X . outros im portantes h iston ad orw da. elites
Kathanne S. B . K e a ts -R o h a n , " B io g r a p h y and P ro so p o g ra p h y . T e lh n g th e D iffe r e n c e , d u ran te
O PEQUENO x - D a b i o g r a f i a à h is t ó r ia

C A P ÍT U L O II
Do lado da sociologia, destaca-se outra experiência interessan­
te. No fim dos anos 1910, Wilham Thom as e Florian Znaniecki
escrevem uma obra monumental, Le Paysan polonais em Europe et
ett Amérique, realizada com base em testemunhos pessoais de imi­
grantes poloneses nos Estados Unidos (a correspondência privada A vertigem da história
e também o relato autobiográfico de um certo W ladek, consi­
derado como um representante típico “da massa culturalmente
passiva”).'1 Num prefacio m etodológico, os autores explicam a
importância de levar em conta a atividade psíquica do indivíduo,
sua atitude pessoal, no sentido psicossocial, sua maneira de “definir
a situação” e de alterá-la pelo próprio com portam ento. O livro,
que visa a conciliar a pesquisa de regulandades ou de leis de tipo
S im bad, o m arujo, ou não sei que outro personagem das Mil
causal com a pesquisa das significações psíquicas atribuídas pelos
e um a noites, encontrou um dia, à margem de uma cascata,
atores sociais aos acontecimentos, não tem destino fácil. Em parte um velhinho ex ten u ad o que não conseguia passar. Sitnbad
por conta de vicissitudes políticas: militante pacifista, Thomas é em prestou-lhe o socorro de seus om bros, e o h om en zin h o,
condenado por adultério em 1918 e só é reabilitado dez anos mais açarrando-se neles com um vigor diabolico, tom ou -se de
tarde (a propósito do peso dos fatos biográficos...). Em parte por repente o m ais im perioso dos mestres e o mais opinioso dos
razões científicas, pois, logo em seguida, a sociologia americana cavaleiros. E is aí, cm m in ha opinião, o caso de todo hom em
decreta que os testemunhos pessoais não são fiáveis. O golpe de aventuroso que resolve tom ar o tem po p assado sobre suas cos­
misericórdia é dado em 1939, quando Herbert Blum er declara tas para f a z ê - l o atravessar o L etes. Isto é, escrever a história.
que o material biográfico, fundado em procedimentos irremedia­ O im pertinente velhinho traça-lhe, com um a caprichosa m i­
velmente subjetivos, não permite chegar a generalizações válidas núcia, um a rota tortuosa e difícil; se o escravo obedece a todos
e dignas de crédito.98 os seus desvios e n ão tem a fo rça de se abrir um cam inho
m ais reto e m ais curto, afoga-se m aliciosam ente no rio.
V icto r H u g o 1”
. loq u io E x p lo rin g N ew M eth o d s fo r P ro so p o g ra p h y in th e H u m a n itie s and th e Social
Scien ces Uppsala U n iv e n ity , 9 - 1 2 de m aio de 2 0 0 7

p I. Thcin -i c H o m n Z n an ieck i, L e Paysan polon ais eti E u rop e et en A tnerique. R ecit de vit
un migrant (191 S - j o i n , traduzido do u i r !^ por Y v es C au d illat. Pan s, N a th a n , 1 9 9 8 . A lguns anos

'í™ WU r ' ,' au so*5re 3 “ C rn sio d o m o v im e n to nazista - IM i; H itler C arn e in lo P o u ir


I
,an^ ndgC ÍM “ s ) ' H arvard U m v e n ity Press, 1 9 8 6 o s o c io lo g o T h e o d o r e A bel força
rm o e ío c r a m , „ „fcc j n U I n a u tobio g ráfica co n cisa , de form a estandardizada,
esenta a pedido d r p o q u A , 0 l „ , n , |ln ) |ld jl)c * d„ v fU l J > ( j r f c , c m lK . . as te ndéncias. as
Após vinte e três anos de guerra contra a França revolucionária,
atitu es f t n o m i iu i .t o d* uni grupo C t T V n d o r e A M I h r N aivirr and U s e o l . unia longa onda de radicalismo popular se espalha pela Inglaterra.
slmenciitt Jou rn al o f Soriology. 1 9 47, L11I. p 1 1 -1 1 8
Por toda parte, o antigo princípio de deferência parece vergar: “Sc
j, ■ an d Z n an iecki's " T h e P olish P easan l in E u rope and
um Aristocrata cruza um Tecelão na rua e este resolve não tirar o
pessoal na 1 h C o u n cl1’ 1 9 3 9 S o b re o d e scred ito da do cu m en tação

i r t ” ”ã !“ r s ■ ?** « “ "v - *
M orfc \ (t: a A ç í. R M irt || #V l| . ( h i u ^ o . !<«>/., r r r d i U t k i n u
"F reu d P sv ch o an í T r * l W * K ,‘ |N J T ra n sa ctio n B o o k s , 1 9 7 0 ; R o b e r t G old in g. V ic to r H u g o, L in ératu re et p h ilo s o p h ie m flíe s , ed i^ á o t r i t u a e s t a b e le c id a por A n th o n y K W

Individual" British f” ' ” 1 ( S ” nl< O bservacions o n th e S o c io lo g ic a l Analysis o f the J a m e s , Pans, K l i n c k s i e c k , 1 9 7 6 , t. I, J o u r n a l des id ées, des o p im o n s et des lectures d'un iru n t ja c o b it e
individual , Bntish Jou rn a l o f S oàology, 19 8 2 . 4 , p . 5 4 S .5 6 2 d t 181 9 , p. 9 5 .
A VERTIGEM D A HISTÓRIA
O PEQUENO x - D a b i o g r a f i a à h is t ó r ia

de Somerset que iniciam as hostilidades, protestando, em nome do


chapéu, o homem de importância nada pode lhe fazer” .10" O jaco­
capitão Swing, contra o emprego de mão de obra irlandesa barata e
binismo da gentinha de Londres não é novo, mas, no pós-guerra, a
contra a introdução de novas máquinas. Cerca de dois nul ínsurgen-
agitação contamina também as províncias: de Carlisle a Colchester,
tes são levados a julgamento: nove deles serão condenados a morte
de Newcastle a Bristol, o mob se toma uma realidade tangível e
por enforcamento, seiscentos e quarenta à prisão e quatrocentos ao
pressionadora. Suas reivindicações são essencialmente políticas: o
desterro nas colónias australianas. Foi a deportação mais importante
sufrágio universal, o direito de associação e de organização política,
jamais decretada pela Inglaterra.101 Em 1835, é a vez dos fiandeiros
a liberdade de imprensa. Aqui e ali, o tom se faz ameaçador. Se as
de Glasgow que, não satisfeitos com incendiar a manufatura de Ja­
tentativas de levante são ainda raras, o slogan cartista “pacificamente
se possível, pela força se necessário” exprime bem, entretanto, o mes e Francis W ood, surram uma dezena de knobsticks (fura-greves
estado de espírito reinante. contratados pelos patrões). Durante o outono do ano seguinte, os
trabalhadores se espremem nas assembleias notumas que se fazem à
Em 2 de dezembro de 1816, após uma manifestação pacífica
luz de tochas, organizadas pelos cartistas: “Ao longo de toda a fileira
a favor da reforma parlamentar em Spa Fields, alguns marinheiros
brilhava uma torrente de luz que iluminava a abóbada do céu, com o
tentam, sem sucesso, tomar de assalto a Torre de Londres. Seis meses
o reflexo de uma grande cidade numa conflagração geral . Tres
mais tarde, os tecelões, os talhadores de pedra, os metalúrgicos e os
anos mais tarde, são ainda os cartistas que convocam uma conven­
trabalhadores agrícolas das cidadezinhas dos arredores de Pentridge,
ção nacional das classes trabalhadoras de que participam centenas
no Derbyshire, propõem-se a invadir Londres e a derrubar o go­
de milhares de pessoas, até que seja proclamada, quando do ajun­
verno. Em agosto de 1819, em Saint Peter’s Field, Manchester, um
tamento de Birmingham, em 6 de agosto de 1838, a adoção oficial
grande ajuntamento em favor da reforma parlamentar é brutalmente
pelos trabalhadores da carta do povo. A petição, assinada por mais
reprimido pela Manchester Yeomanry, um corpo de cavalaria formado
de um milhão e duzentas mil pessoas, é deixada diante do domicílio
principalmente por filhos de industriais, comerciantes e negociantes,
londrino do deputado John Fielden. Entrementes, a convenção se
deixando onze mortos e cerca de sessenta feridos. Longe de conter o
interroga sobre as medidas a adotar em caso de fracasso no Parla
movimento, o massacre de Peterloo (assim nomeado fazendo eco à ba­
mento e organiza uma séne de ajuntamentos simultâneos através de
talha de Waterloo) levanta a indignação do país. Alertados, os espiões
todo o país, de maneira a desorientar a polícia. Em julho de 1839,
o governo escrevem ao rrúnistro do Interior, Lorde Sidmouth, que
os trabalhadores começaram a se armar de lanças e porretes, enquanto, quando a Câmara dos Comuns rejeita a petição por esmagadora
o fun o das tavernas, os artesãos projetam levantes armados. Mesmo maioria, violentos embates opõem os trabalhadores e a polícia em
rt ur Thistlewood, um dos cérebros da conspiração de Cato Street, Birminghan (Buli Ring Riots). Q uatro meses mais tarde, são os m i­
qut everia ter provocado a morte de diversos membros do governo, neiros de Newport que protestam: o saldo se eleva a catorze mortos,
esta convencido de que Londres está prestes a agir. cinquenta feridos e mais de cento e vinte e cinco detenções. Mas,
uma vez ainda, a repressão não consegue represar o movimento, e,
H r1 ^ a'1° S decorrem aparentemente em toda tranquili-
■i partir de 1842, perturbações explodem novamente...
. ecenio seguinte, que vê os whigs voltarem ao poder (em
seguimento a recusa de Wellington de estender o direito de voto), Essa mescla de radicalismo político, de luddismo e de cartismo,
e, ao contrario, um dos períodos mais difíceis do século X I X inglês, impregnada de antigos princípios religiosos (postos em evidência
ao os tra alhadores agrícolas dos condados de Kent, de N o rfo lk e

G to rg e R u d é , L a F oi,Ir d a m la R M i t i o n F ra n faise ( 1 9 6 4 ) , trad u zid o d o in glês p o r A lb ert Jo r d a n ,


C itad o por Edward P T h n i P in s, M aspero, 1 9 8 2 .
por G t l l c D auve M ir T in T r i F ° m ú " on d r la d asse ou ,’r' ^ an g laise ( 1 9 6 3 ) . traduzido do
K-obcrt G . G a m m a g e, H istory o f lh e C h artisl M o v em en t, 1 8 1 7 - 1X 54 ( 1 8 9 4 ) , L o n d re s, M e rlm P r e « ,
du Seu il, 1 9 88, p 6 0 6 ’ ° aSZew e ^ i n c N o e lle T h ib a u lt, P an s, G a llim a rd -É d itio n s
W 6 , P 9 4 -9 5 .
O PEQUENO x - D a b i o g r a f i a à h is t ó r ia
A VERTIGEM DA HISTÓRIA

pelos trabalhos de Edward P. Thompson. Enc Hobsbawm e George a Ação e a Paixão?”107 Em suma, todos os seres humanos têm uma
ude), impoe a atenção dos britânicos da pnmeira metade do século história: “O talento da história nasceu conosco, com o nossa principal
X IX a questão inglesa. Em que condições vivem as classes populares? herança. Num certo sentido, todos os homens são historiadores” .108
Qua e seu humor? Uma nova guerra civil vai explodir? Thomas
Desta fornia, Carlyle jamais teria aceitado a noção de povos sem história.
Carlyle também se coloca essa questão.103 Fica mesmo obcecado
por ela. No curso de seus primeiros anos de atividade, enquanto Em toda humanidade, não há uma só tribo tão grosseira que
ainda vive na Escócia, traduz o Wilhelm Meister de Goethe (1824), não tenha tentado escrever a história, ainda que várias delas não
tenham aritmética para contar até cin co”: “ A história foi escrita
escreve diversas obras literárias e históricas (sobre Goethe, justamen­
com quipos, com quadros feitos de plumas, com cintos de con ­
te, mas tambem sobre Schiller, Voltaire, Diderot) e se consagra a
chas; mais frequentemente ainda, com tendas ou monumentais
artor esartus (1831), uma espécie de biografia filosófico-poética,
empilhamentos de pedras, pirâmides ou caims; pois o celta e o
^ em ‘maSens de conflagração, de indigestão, de fermen- copta, o pele-vermelha e o branco, vivem entre duas eternidades
açao. o entanto, após sua partida para Londres, em 1834, bem e, na luta com o Esquecimento, gostariam de se agarrar, por uma
no me,o da epoca mais heroica do radicalismo popular, abandona relação clara e consciente, com o já se agarram por uma relação
c r'^ j 010 mu' tos de seus contemporâneos, experimenta o inconsciente e obscura, a todo o Futuro e a todo o Passado.,IM
entimento de viver num mundo convulsionado, abalado, corrom-

Z t f T V ° Vdh0 Impén° r° mano ‘> ando » medida de II


uas iniquidades foi ao cúmulo; os abismos, os dilúvios superiores e
d a H r f T '05 T ° Urand° P °r todos os >«los. e nesse furioso caos de Em 1837, quando Vitória acede ao trono da Inglaterra, Carlyle
en rn \ ^ “ eStrdaS d° céu aPagadas”.'05 E espera publica sua História da Revolução Francesa. A Revolução é aí descrita
n rar uma resposta, e mesmo uma solução, na história.
como o acontecimento por excelência, uma alquimia selvagem que
convenriH° àLSUa mulher, Jane Baillie W elsh, ele está provocou a exterminação de dois milhões de seres humanos. Mais de
vinte anos de convulsões, de precipitações, de atrações e repulsões
conhecimento6 !d '<* N o ^ 6 ° ^ nd* m e m ° de todo verdadeiro
Doral r a rr a ° S Pensamentos têm uma forma tem- súbitas, consequências inelutáveis de uma doença de velha data, bem
anterior, que fora incubada durante o reinado de Luís X V e explodira
— dh, : , r a rdr e de nossas. c° — ^ é
reoresenrar a w ' Assim, como não fazemos nada além de no de Luís XVI em razão “de sua ausência de faculdades” : " É uma
nesse sentido t0na' ° ^ diZem° S é aPenas seu bancarrota espiritual tolerada por muito tempo encaminhando-se
sobre eu pn amp' ° ’ nos» ^ « P '™ a l inteira se edtfica para uma bancarrota económ ica e tomada intolerável” . N o fim,
C° nSldmda' o que é atnda toda C.ència a doença revestiu as formas de um jorro de lava: “ Há levantes
n ^ en c " - ,a ' Um Pr° dut° * ■ »*- que vem das tempestades de cima e do sopro dos ventos. Mas há
Se" C,a,S Sa° en“ ° ° R -io c í„ ,o e a Crença, não menos do que aqueles que vêm de ventos subterrâneos comprimidos, ou mesmo
de decomposições interiores, da corrupção que se transforma em
20 0 0, 70, p . 8 7 -1 1 4 . C arly le, and th e V ic to n a n P u b lic S p h e r e ’*, R ep resen ta-
Tho
' aS ^ ar^ e > S u r I h is to ir e " , in E ssais choisis d e critique et d e m orale ( 1 8 3 0 ) trad u zid o d o inglês
■ngles por m ^ ' * m m ' ( 1 8 3 3 - 1 8 3 4 ) . prefaciado e traduzido do
P m ond B a rth élé m y , Paris, S o c ié té du M e rc u re de F ra n c e , 1 9 0 7 , p. 3 0 2 .
Ibid.
ftij p iij i p H
^ j. ‘ sla c ° n c e p ç à o da m e m ó ria se liga a u m a lo n g a tra d içã o da R e n a s c e n ç a : cf. D o n a ld
L o n d rcs-N e w Y o rk . Jo h n U n e . , l » '" T « ? '' W t b h - Ed p o r A le x a n d e r C arly le,
■ 7 t. 1, p 8 5 - 9 6 , 1 0 2 - 1 I I , 2 3 8 . ey. F oundations o f X íod em H istorical S ch olarsh ip . L an g u ag e, L a w an d H istory in th e French
sancc, N ew Y o r k , C o lu m b ia U n iv e rs ity P ress, 1 9 7 0 , p. 1 -2 , 2 1 5 .
A VERTIGEM D A HISTÓRIA
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia à m istôkia

do homem precipitando-se cegamente para dominar sem freio nem


combustão: como quando, segundo a geologia netuno-plutônica, o
regra; potência selvagem, mas com todos os instrumentos, todas as
mundo decomposto se prostra em seus detritos, para deles emergir
armas da civilização: espetáculo novo na históna” .114 Em face da
com estrondo e se refazer”.110
monarquia, da Igreja, da nobreza e da filosofia, havia o direito das
Diferentemente de Goethe, um de seus heróis, Carlyle não massas. Um direito em toda sua diversidade individual:
lamenta a ordem pré-revolucionána, já que estima que a “velha mo­
São vinte a vinte e cinco milhões que agrupamos junto numa
rada" devia ser abatida.1' 1Em todos os tempos, as insurreições sociais
espécie de unidade com pacta, monstruosa, mas obscura, longín­
foram detonadas pela incapacidade dos governantes. Assim foi com
qua, que chamam os a canalha ou mais humanamente as massas.
a reforma protestante e o mesmo se deu com a Revolução Francesa.
Massas em verdade; e, no entanto, coisa singular a dizer, se por
Quem são os verdadeiros responsáveis pelo massacre? Em primeiro um esforço de imaginação tu os segues, através da vasta França,
lugar, a monarquia. Luís XV se comportou como um fantoche ou um nas suas cabanas de argila, em seus celeiros, em suas choupanas,
marinheiro à deriva, totalmente impotente em controlar as correntes: essas massas se com p õem todas de unidades, e cada uma dessas
unidades tem seu coração e suas dores, se mantém coberta com
O homem assim alimentado e decorado, e nom eado na sequen-
sua própria pele, e se a feres, ela san gra."5
cia régio, é em realidade apenas um ser governado. Por exemplo,
se dizemos, ou mesmo pensamos que ele foi empreender con­ Ao livro sobre a R evolução Francesa seguem diversos ensaios
quistas em Flandres, na verdade ele só foi transportado para lá sobre a questão inglesa, considerada o alfa e o ômega da coisa toda.
com o uma bagagem; bagagem nem um pouco leve, que cobre
"A condição do grande corpo do povo num país representa a
léguas inteiras.112
condição do próprio país” .116 Chartism, publicado em 1839, coloca
A igreja é o segundo culpado: negligenciando seus projetos passados em alerta: 1789 não foi uma turbulência ocasional, um lance de
e suas velhas animosidades, ela praticamente não se opôs à política loucura. E a derrota da França revolucionária não conduziu auto­
rtal. Quanto aos nobres, contentaram-se com um papel ornamental. maticamente a sua cura:
Enfim, os filósofos, um bando de perigosos charlatães, verdadeiros
Um m eio-século se passou desde então; e uma coisa co m o a
trituradores de lógica (logick-chopers), que contaminaram toda a so­ R evolução Francesa não está ainda terminada! Q uem quer que
ciedade com seu hedonismo: “Eis aí um povo sem crenças que vive observe esse enorm e fenóm eno pode nele encontrar numerosas
dc suposições, de hipóteses, de sistemas frívolos sobre a triunfante significações, mas na base de tudo encontrará, em particular,
análise e como única crença isto: o prazer deve aprazer”.113 Voltaire, que se tratou de uma revolta das classes trabalhadoras oprimidas
o patnarca, observava o mundo circundante com um olho antica- contra as classes dominantes tirânicas ou negligentes, não foi
tólico, reduzia a história a um miserável nó de controvérsias entre apenas uma revolta francesa; não, foi uma revolta europeia,
prenhe de severas advertências para todos os países da Europa.
a Enciclopédia e a Sorbonne e exortava seus contemporâneos a um
pífio hedonismo: Os cinco sentidos insaciáveis e um sexto sentido
igualmente insaciável: a vaidade; e sobrará toda a natureza demoníaca ■t I. p. 19 S o b re a figura d e V o lta ir e , cf. ig u a lm e n te “ V o lta ir e ” ( 1 8 2 9 ) , in N o u v e a u x Essais
dt critique et d e m oralc, trad u zid o d o in g lês p o r E d in o n d B a r th é lé m y , P an s, M e rc u re de
l * f l A cegu eira o u a m io p ia das Lu zes fora j á m u itas vezes d e n u n cia d a p o r Jo h a n n G o t -

T h o iftfe C u ly it . i t U K m viu,,.-, Fraiifaise ( 1 8 3 7 ' in d u z id o d o in g lês p o r Elias R<»tniul« tfntd H crder, U ne autre p h ilo so p h ie d e l'ltisloire, in H istoirt’ et ciilturrs, trad u zid o d o a lem ã o p o r M a x

r IM y i lUnw C in v v * r m c t lt« l -r c , 1 8 6 6 - 1 8 6 7 , p. 105 K«uc»ie, 1’ ans, F la m m a n o n , 2 0 0 0 . Esse te m a será e m seguid a re to m a d o p o r F n e d n c h N ie tz s c h e ,


C"nsidêrations inactuelles, op . cit
Sofafr «w uifc d c < « * t h e 1 .L, K rv o lu VJ o h . n i f - , c f G iuliano B a io m , í - v i l * C lassi- 11* 1 » r
y jn u , . « ■ » . . (!■#//, T o m iu . fciu ju d i. i v i h in. ,0mas ^ ar|y 'e ' liu / o ir r de la R év oltition F ra n faise, op . cit, t. I. p. 4 3 - 4 4 .
" J T h o m as C arly le, Histoire de la R évolurion F ranfaise, op. cit., t. 1. p. 7 . Thunias ( jrly le , C hartism ( 1 8 4 0 ) , B o s to n , C h a rle s C . L ittle & Ja m e s U ro w n , 1 8 4 0 . p. 5.
lo iá .. t. I, p 47. ” p. 42.
O PEQUENO X - Da b io g r a f ia a h is t ó r ia A VERTIGEM D A HISTÓRIA

Como se deve reagir? O que é possível fazer para represar o de espírito”.122 Carlyle aí fala da grandeza, de suas diferentes mani­
radicalismo popular? Carlyle descarta as duas proposições políticas festações e da maneira com o é acolhida nesse mundo. Explica que
dominantes. Acusa o laisser-faire económ ico de não oferecer aos po­ a ordem social repousa sobre a identificação dos heróis e que o
bres mais que a liberdade de morrer de fome e rejeita o sufrágio uni­ desígnio de cada época consiste em encontrar o verdadeiro Kònnitig
versal reivindicado pelos cartistas, pois considera a democracia um ou can-nig, o homem capaz, que pode e sabe, e em investi-lo dos
símbolos do poder, elevá-lo à dignidade real, de modo que esteja
tema de discussão académica, desprovido de porvir (“um fenómeno
realmente em condições de governar. N o final das contas, a história
que se autodestrói”). Não tem mais confiança na coerção (“por si
universal se resume à biografia dos grandes homens:
só, não resolverá grande coisa” 118), mas guarda alguma esperança
na instrução universal e na emigração. É sobretudo o problema da Em minha opinião, a História universal, a História do que o
homem realizou nesta Terra, no fundo não é mais que a História
confiança social que ele coloca no coração do debate. O trabalha­
dos grandes homens que obraram aqui embaixo. Foram eles os
dor não está fundamentalmente apegado aos bens materiais: “É
condutores dos homens, seus modelos, suas referências e, numa
pela justiça que luta; por um ‘salário equitativo’, e não apenas em acepção ampla do term o, os iniciadores de tudo o que a grande
dinheiro! .,1‘' O “descontentamento amargo, louco de raiva” tem massa dos humanos se esforçou para realizar ou atingir. Todas as
sua fonte na degeneração das classes dominantes. A situação exige realizações gloriosas que podemos contemplar no mundo são, na
verdade, os resultados materiais e exteriores, a realização prática e
uma verdadeira aristocracia, fundada no mérito: “U m a corporação
a concretização do pensamento e da intelecção geradas no espí­
dos melhores, dos mais corajosos”, com o aquela que existia antes da
rito e no coração dos grandes homens enviados a este m undo.1"'1
instauração do cash-nexus.'2" Pois, exanunando-se bem, os protestos
exprimem sobretudo a necessidade de um guia benévolo e sábio: Eis por que o culto dos heróis é uma

O que são todos os levantes populares e os mugidos mais [...] pedra fundamental eterna a partir da qual poder-se-á co m e­
loucos, de Peterloo à própria place cie G rève? Mugidos, gritos çar a reconstruir tudo. O fato de que o hom em , de uma maneira
inarticulados com o aqueles de uma criatura muda, abalada pela ou de outra, venere os heróis; de que todos nós reverenciemos
e estejamos destinados a sempre reverenciar os grandes homens,
exasperação e pela dor; para o ouvido de um sábio são preces
eis o que é para mini o fundamento vivo que resistirá a todas
inarticuladas: Guie-me, govem e-m e! Estou exasperada e mi­
as destruições, o que nenhum a revolução na história pode
serável, e não sei me guiar sozinha.’ É certo que entre todos
atacar, por mais catastrófica e devastadora que possa ter sido
os direitos do hom em ’ esse direito do ignorante de ser guiado
sob todos os outros aspectos.124
pelo mais sábio, de ser conduzido, com delicadeza ou a força,
pelo caminho certo, é o mais indiscutível.121 O traço mais característico na história de uma época é formado
Nessa convicção inspiram-se as célebres conferências sobre o justamente pela maneira com o honra o herói. A desolação que im­
culto dos heróis, feitas entre 5 e 22 de maio de 1840, diante de um pregna todo o século XVIII remete ao ceticismo que o caracterizou:
auditono de duzentas a trezentas pessoas, “aristocrático de classe e
E nessa única palavra estão contidos tantos infortúnios quanto
na caixa de Pandora. C eticism o não significa apenas dúvida
Ibid., p. 5.
" Ibid.. p. 22.
A nthony F ro u d e , L ife o f C arly le ( 1 8 8 4 ) , C o lu m b u s , O h io S ta te U m v e rsity Press, 1 9 7 8 , sob
retom ada em oT omc^ o ^ ° dln h clro na basc das relações sociais. Scra 1 d‘reí â ° de Jo h n C .lubbe, p. 3 8 9
Enidish CrowH ií J* d 'n exu s- Po r Edw ard I>. T h o m p s o n . " T h e M o ra l E c o n o m y o f the
ui Enghsh C ro w d ,n the X V I .l t h C e n tu ry ", Pasl m J ^ „ 1(, l y 7 ] , 5(). p 7 6 . ] 3 6 TH-mas C arlyle, Les H éros (1H 41), trad u zid o d o in g lês p o r F ra n ço is R o s s o , P an s, M a iso n n e u v e
T h o m as C arlyle, C ham sm , op. cit., p. 52 , fc la ro se. Éd itions des D e u x M o n d e s, 1 9 9 8 . p. 2 3 .
* 'W ., p .
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia a h is t ó r ia A VERTIGEM DA HISTÓRIA

intelectual, mas também dúvida moral; e da dúvida moral pro­ não há mais propriamente nem verdadeiro nem falso. Sao os

cedem todas as formas de infidelidade e de insinceridade, em dias de glória da Impostura, do Falso-semblante tomando-se

suma [...] uma paralisia espiritual. [...] não houve época que fosse por si mesmo e chegando a se fazer tom ar pela Substância.

menos do que o século XVIII uma época de fè, uma época de


Carlyle, no entanto, não se limita a celebrar a grandeza e o
heróis! A própria possibilidade do heroísmo fora formalmente
negada em todos os espíritos. O heroísmo, ao que parece, heroísmo, mas precisa também seus traços salientes. Convencido de
pertencia definitivamente ao passado; o reinado das fórmulas que o mundo pulula de charlatães e de impostores, busca distinguir
feitas, da futilidade e da trivialidade o substituíra finalmente.125 o “falso grande” do “verdadeiro :

A parar de então, a veneração pela grandeza se fez “claudicante, ce­ Toda estrutura social é uma representação, não insuportavel­

gada, paralisada : numa necessidade de tudo apequenar, os partidários mente inexata, de uma veneração hierarquizada dos heróis.
[...] N ão insuportavelmente inexata, eu disse. Pois todas essas
de Jererm Bentham trataram dos ideais e das ideias como de simples
estruturas sociais fundadas na classe são com o cheques: todos,
jogos de interesses. Em vez de saudar e admirar o herói, tentaram
a principio, representam ouro, mas alguns, ai de nós!, são obra
tomar suas medidas até reduzi-lo a uma espécie de homem medíocre.
de falsários.128
Lutero, dizem eles, foi um produto de sua época’; foi sua época que
o chamou, suscitou, foi sua época que, em suma, tudo fez. Ele, nada... Para definir as qualidades e os diferentes graus de grandeza, re­
além do que eu, o cnticozinho, tena podido fàzer também! Acho tal têm Odin, Maomé, Dante, William Shakespeare, Martinho Lutero,
julgamento bem entristecedor e bem pessimista. Sua época o chamou? John Knox, Samueljohnson, Jean-Jacques Rousseau, Robert Burns,
Ai de nós! Sabemos bem demais que todas as épocas chamam seus Oliver Cromwell e Napoleão Bonaparte. Através da reconstrução
grandes homens, mas que muitas vezes não os encontram”.126 Toda a biográfica dessas onze individualidades, identifica seis categorias
Europa parece, aos olhos de Carlyle, presa da maldição do ceticismo
fundamentais da evolução histórica; o herói com o divindade, pro­
Como sublinhará ainda num ensaio de 1850;
feta, poeta, predicador, escritor e soberano. A escolha de figuras tão
Num tempo assim, isso se tom a a crença universal, a única cien- profundamente diferentes umas das outras não é em nada fortuita.
i-i.i -icreditada - enquanto o contrário é visto com o um pueril Procedendo assim, Carlyle estabelece de partida que o heroísmo
entusiasmo, - essa triste crença de que estritamente falando não pode revestir numerosas formas em função das circunstâncias ( he
há nenhuma verdade neste m undo, de que o mundo não foi,
rói, profeta, poeta... São muitos nomes distintos que em tempos e
n.io é e jamais poderá ser conduzido senão pela simulação, a
lugares diferentes damos aos grandes homens ), mas que o caráter
dissimularão e a prática suficientemente hábil dos falsos-sem-
blantes. [...] o sentido do verdadeiro e do falso está perdido,
heroico permanece uno e indivisível e persiste sempre tal com o é,
que os diferentes tipos de herói são todos, intrinsecamente, de uma
, p 226. mesma substância: “ No fundo, o grande homem, tal com o modelado
pela mão da Natureza, é sempre substancialmente o mesmo. Odin,
d ecén io s n u . ** W' a P ° l r m n j so b re o u tilita rism o , c f. ta m b é m C h artism , op. a i Alguns
do ceticism o - " É f ' ° *< m ^ ^ 'd a d e s J f M u sil ex p rim irá a m esm a im ta ç ã o a propósito Lutero, Johnson, Burns... Espero conseguir demonstrar que todos
qu e se acha c o n fr ° Se^un<* ° Pcnsarn e n to , q u a n d o n ã o o p n m e ir o , de to d o homem são originalmente do mesmo estofo e que apenas a acolhida que
beleza é i nmr i r i ° ^" m •*'*um le n ó m e n o im p o n e n te , m esm o q u e seja sim plesm ente p o r su3

reb^ r r r ' : eT ^ ní° ™^ « p ^ - el


sim plesm ente co n h ^ H A UnU ,pcnas Pe n e Ku 'da, m as perseguid ora, n ão pode mais ser
T h o m as C a rly le. Id e ,m iê de la fo rc e el du droil ( 1 8 5 0 ) , in N o u v eau x Essm s. op. d l .. p. 3 2 2 - 3 2 3 .
é bem mais em n " C° m * <l''* " V,á° natural ^ e a vida estab elece en tre o sublim e e o grosseiro,
lhado e m « m o í i l l 0 - ? ' " ' 0 ' ' m ' rK<’ ^ rnaS(Ki ulsm ° . a in ex p rim ív el alegria d e v er o bem humi- ‘ T h o m as C a rly le, L es H éros, op. rii., p. 3 6 .
(1 9 3 0 ) traduzido d I ° - 0 " ’ ^ maravllhosa ^ i l id a d e " C f R o b e n M usi), U H o m m e sans m / M .,p . 115.
^ UZ' d° d° ^ P ° r P h U ip p eJa cco ttet, Pans. É d m on s du S e u * 1 9 8 2 . p. 3 6 ^ 3 6 7 .
O PEQUENO X - D a BIOGRAFIA À HISTÓRIA A VERTIGEM D A HISTÓRIA

encontram no mundo e que determina a expressão de sua grandeza soberano capaz de defender os fracos.133 Não creio, porém, que
os toma tão radicalmente diferentes em aparência”.130 tais ideias possam esclarecer toda a reflexão de Carlyle. Parece-m e
Com as conferências sobre o heroísmo, o “sábio de Chelsea" antes que esse género de leitura corre o risco do anacronismo. “O
ou o “adivinho puritano”, com o é chamado então, está no apogeu que Carlyle entendia por ‘heroísmo’ ou ‘virtude dos chefes’ nada
de seu sucesso. E admirado, sobretudo na Inglaterra e nos Estados tem a ver com o que propõem nossas teorias modernas” , escrevia,
Unidos, por sua integndade. Seu estilo, nutrido de citações bíblicas, pouco antes de sua morte, Emst Cassirer, que sugeria, infelizmente

de neologismos e hipérboles expressionistas, apaixona Matthew Ar­ demasiado brevemente, que Carlyle chegou ao culto dos heróis em

nold, John Ruskin, Ralph Waldo Emerson e mesmo Henry David razão, entre outras, de seu percurso de historiador: “O que Carlyle

Thoreau. Com os anos, a casa de Cheyne R o w , em Chelsea, onde entendeu sob os termos de ‘heroísmo’ e de dirigismo nada tem a
ver com o que encontramos nas teorias modernas do fascismo
Carlyle vive com sua mulher, Jane, toma-se um lugar de peregrina­
ção. Entretanto, com a velhice, a auréola de sabedona com que fora Para um verdadeiro historiador, a história não era, co m o diz
ornado começa a murchar. Alguns de seus amigos o evitam em razão Goethe no Fausto, “eitte Kehrichtfass und eitte R u m pelkam m er".

de suas afirmações, cada vez mais insustentáveis, sobre os negros, os Ele não tinha simplesmente o dom de relatar o passado, mas de
reavivá-lo e tom á-lo presente. O historiador autêntico falava
judeus, a missão do Império britânico, a guerra franco-prussiana.
e agia com o o conjurador de Gulliver. Relatava ‘o passado
Esse é o caso de John Stuart Mill, com quem briga vio len tam en te por glorioso a fim de que o olhar pudesse penetrá-lo e de que se
duas vezes ao menos: quando de suas declarações contra a Abolição o pudesse escrutar à vontade’. M anifestamente, Carlyle não
da Escravatura e quando toma a defesa do governador Edw ardjohn encontrou nenhum suporte para suas próprias ideias em toda a
Eyre que ordena em 1865 a execução de quatrocentos e cinquenta obra de Goethe. C o m o historiador, foi-lhe preciso dotar-se de
um ponto de partida inteiramente novo; foi-lhe preciso abrir e
rebeldes negros jamaicanos. Pouco a pouco, toda sua obra reveste
construir sua própria via — e nesta perspectiva, se não virar de
um valor profético sinistro. Até se tom ar, ao longo dos anos 1920 e cabeça para baixo, ao menos m odificar sua “ Filosofia da vida” .
1930, uma referência para a ideologia fascista e nazista.13' Foi tal modificação que o conduziu à teona do culto do herói
e do heroísmo na história.134
O culto dos heróis antecipa, sem dúvida alguma, certas ideias
fascistas: o temor da desordem, a exaltação das massas (incapazes dc A' está uma sugestão sobre a qual convém refletir: talvez, para além
pensar, mas dotadas de instintos sãos...), a aversão pela dem ocracu
Um Prec°ce delíno carismático, o culto dos heróis provenha,
a confusão entre o direito e a força, a necessidade de um verdadei justamente, do conhecimento histórico? Para melhor testar essa
ese’ e *mportante voltar às primeiras inquietações historio-
graficas de Carlyle.
Ih td . p 72. V icto r H u g o insistirá ta m b é m n o fato d e q u e , in d ep en d en tem en te ^
polinca e moral qu e se lhe p o d e dar, a g ran d eza é s em p re d e n atu reza unitána ( P ° ^ ^ ^ ^ A (
igualitária). Átila, o bárbaro e C e sa r e s tio e m pé de ig u ald ad e, assim c o m o o tun Ju p - '
IM
NuincT-
o arauto im penal da Igreja cn stá, e assim p o r d ia n te . C f . F ra n c k L a u ren t, “ t a i“ , ■ntelectual Z "*'01* 5 c o m ideram o p e n sa m e n to d e C a rly le c o m o p arte in te g ra n te da g en e a lo g ia
h om m c dans lo e u v r e de V ic to r H u g o " , R om an tism e. R e v u e du d ix -n eu m èm e sièik. ' • Htro h ,laclona' ' socla' ,sn l° - C f . e s p e cia lm e n te , B e n ja n u n H . L e h m a n , C a r ly le ‘s T h eo ry o f
spécial “ Le grand h o m m e ", 1 9 9 8 , p. 6 3 - 8 9 . 184(1, Coi tun I d e a ^ l" ' ' H úío ry, a n d In flu en ce on C arly le's W o rk. A S tu d y o f a N in eteen th
' C f., especialm ente, T h o m a s C a rly le , P ast a n d P resen t ( 1 8 4 3 ) , N e w Y o r k , C eorg e P“ ^ ' è|éinv. CimbndKr c )Urham ’ DUke U n iv er5 it>’ Press' , 9 2 8 ; H e r b e rt F .C . G n e r s o n , C a r ly le a n d H itler,
T hom as Carlyle, Pamphlets du d em ierjou r, trad u zid o d o in glês e prefaciad o por Edw Ivtuahté de ( U n lV m ity *>ress’ '9 3 3 ; E m e s t S e illiè re , U n p récu n eu r du n ation al-socialism e:
Pans, M e rcu rc de Fran ce. 1 9 0 6 . Thomas Cari ^ ltlons da la N o u v e lle R e v u e c r itiq u e , 1 9 3 5 ; H u g h T r e v o r - R o p e r ,
■S eg u n d o J. Salw yn S ch ap iro, “ T h o m a s C a rly le . P r o p h e t o f fascism ” , V i e J o u r n a l j t Ern<n C ., V< * ^ l5tonca* 1’ h ilo so p h y ” , T im es L iterary S u p p lem en t, 2 6 de ju n h o d e 1 9 8 1 .
1945. 17. ? P <17 _____ - . - nnvadas com o I_ , - L r M ythe de V État Í1 9 4 M . . j - :__ i i . ___ u ________ i \i_____ i.. u - _ r ~ t
A VERTIGEM DA HISTÓRIA
O peq ueno x - Da b io g r a f ia à h is t ó r ia

Como numerosos místicos, Carlyle detecta em cada coisa dupla


III
significação, propondo uma dicotomia absoluta entre a aparência
Entre as obras menores de Carlyle, há uma, On History, escrita em exterior e a profundidade intema. Existe uma compreensão banal,
1830, pouco antes de ele se tomar um autor célebre e o queridinho que raciocina por fórmulas e receitas, e uma compreensão subli­
da boa sociedade londrina, que tem todos os traços de um verdadeiro me, dirá alguns anos mais tarde em Sartor Resartus: “Aos olhos da
manifesto pela história biográfica: “A vida social — lê-se nela - é o lógica, o que é um homem? U m bípede onívoro que traja calções.
agregado de todas as Vidas individuais que constituem a sociedade”.115 Aos olhos da razão pura, o que ele é? U m a alma, um espírito, uma
Nenhum grande homem, mas uma história que é o fruto da estrati­ aparição divina”.139 Com o em todos os domínios, a esfera da his­
ficação, geração após geração, de inumeráveis biografias. Carlyle se
tória também conta em seu seio com artistas e artesãos, “videntes” ,
interroga sobre os verdadeiros protagonistas da história: “Quem foi o
capazes de perceber o mistério do passado, e “simples basbaques”,
maior inovador, quem foi o mais importante personagem da história
especuladores da causa e do efeito, que leem “o livro inescrutável
do homem, aquele que pela primeira vez fez exércitos atravessarem
da natureza como se fosse um grande livro de contas”: “ Homens
os Alpes e obteve as vitórias de Cannes e do Trasimeno; ou o rústico
que trabalham maquinalmente num setor, sem olhos para o con ­
anónimo que primeiro forjou para si uma enxada de ferro?” .136 Mais de
junto, não sentindo que há um conjunto; e homens que iluminam
cem anos antes de Bertolt Brecht, ele avança que apenas uma ínfima
e enobrecem o mais humilde domínio com uma ideia de conjunto,
parte da história é escrita por seus presumidos autores, sua essência
e costumam saber que é apenas no conjunto que a parte pode ser
sendo o fruto de um número incalculável de vontades individuais,
verdadeiramente discernida” .140
do trabalho infinito de homens sem nome:
A divisão do trabalho e a especialização trazem o risco de au­
Quando o carvalho é abatido, a floresta inteira retumba; mas mentar as fileiras dos artesãos em detrimento daquelas dos artistas.
uma quantidade de glandes é semeada silenciosamente por um
Basta pensar nos historiadores da Igreja:
vento qualquer de passagem a que ninguém prestou atenção.
[...] todo o mobiliário essencial, as invenções e as tradições, e os [Suas] investigações versam antes sobre o m ecanism o exterior,
hábitos coudianos que regulam e sustentam nossa existência, são os simples envelopes e acidentes superficiais do objeto, do que
a obra, não dos Dracons e dos Hampdens, mas de marinheiros
sobre o próprio objeto: co m o se a Igreja estivesse nas salas dos
fenícios, de pedreiros italianos e de metalúrgicos saxões, de
capítulos episcopais [...], e não no coração dos hom ens crentes
filósofos, de alquimistas, de profetas, e de toda a sequência há
[■■■]• A história da Igreja é a história da Igreja invisível tanto
muito tempo esquecida de artistas e artesãos.137
quanto da Igreja visível, a qual, separada da primeira, não é mais
O texto é acompanhado igualmente de um voto: não está longe o do que um edifício vazio, dourado, talvez, e todo recob erto
tempo em que o historiador que persistir em querer compreender de velhos ex-votos, mas inútil, e m esm o de uma imundície
o passado estudando a corte ou os campos de batalha “passará por pestilencial; e de que é menos im portante escrever a história
um gazeteiro mais ou menos instrutivo”, mas não será mais consi­ do que precipitar a queda.141
derado um historiador.138

Resam,s, op Ol , p 75-76, 83, 259.


T h o m as C arly le, “ Su r 1’h is to ire ", op. rii p 304 Sdidlcr em SUJ ^ lst01re ' °P n l . P 3 0 9 . C a rly le re to m a a d istin çã o p ro p o sta p o r F r ie d n c h
' * Ibid. '
^ niaio dr I 7 f(9 » m au^ura* s° b r e a h istória universal p roferid a na U n iv ersid a d e d e Ie n a em
Ibid., p. 3 0 5 . n J n ii». . . ‘ P T ^ Ik -t-o n h istoire u n iv erselle et p o u rq u o i l ’é tu d ie -t-o n ? ” , in M élanves
, x Ibid . p. 3 0 9 -3 1 0 . 1,1 Tk__ ' ' n^ M1 tradim H n Hr* — c ««<----- n — « « ..i . . . ......
O PEQUENO x - D a b io g r a f ia A h is t ó r ia A «trtctM o * h s K m u

Ao longo dos anos 1830, é justamente pela biografia que Carlyle postula que, se uma sociedade é o fruto de todas as vidas individuais,
espera descobrir uma nova abordagem da história, mais artistica e então o processo histórico é um continuum infinito de pensamentos,
menos artesanal, e que dana conta do sentido profundo do passado: de emoções e de ações mais ou menos significativas, um feixe de
“Essa Inglaterra do ano 1200 não era um vazio quimérico, uma terra milhares de energias vitais em estado de movimento perpétuo:
de sonhos, povoada por simples fantasmas vaporosos, pelos Foedera N ão, nada está m orto no universo; o que chamamos morto está
de Rym er, por doutnnas sobre a constituição, mas uma sólida terra apenas m udado, são forças que trabalham em sentido inverso!
verde onde cresciam o trigo e diversas outras coisas” .142 Os homens A folha que apodrece nos ventos úrrudos, disse alguém, possui
que ali viviam “tinham uma alma” : “Não por ouvir dizer apenas, e ainda força; sem isso com o poderia apodrecer? Nosso universo
inteiro é apenas uma junção de forças; de mil forças diversas;
por figura de estilo - mas como uma verdade que sabiam e de acordo
da gravitação ao pensamento e à vontade; a liberdade do ho­
com a qual agiam”.14’ A biografia pode contnbuir para fazer emergir m em rodeada pelas necessidades da natureza: de tudo isso nada
essas emoções secretas. Hippolyte Taine escreverá sobre Carlyle: adorm ece jamais, tudo está sempre desperto e ativo.146

Está aí seu traço próprio, o traço próprio de todo historiador O que significa que não é possível designar nem um prota­
que tem o sentimento do real, o de com preender que os per­ gonista primordial nem um acontecimento-chave. De fato, não
gaminhos, as muralhas, as vestes, os próprios corpos não são
existem elementos distintos:
mais do que envelopes e docum entos; que o fato verdadeiro é
o sentimento interior dos homens que viveram , que o único A coisa que jaz isolada e inativa, jamais a descobrirás; procura
tato importante é o estado e a estrutura de suas almas [...]. É por toda parte, da montanha de granito, que desde a criação
preciso se dizer e se repetir essa palavra: a história é só a histó­ se reduz lentam ente a pó, até a nuvem de vapor fugitiva, ate
ria de coração; temos que buscar os sentimentos das gerações o hom em que vive; até a ação do hom em , até a fala que pro­
nuncia. [...] O que é então essa infinidade de coisas que cha­
passadas, e não devemos buscar nenhum a outra coisa. Eis o
mamos universo, senão uma ação, uma soma total de ações e
que percebe Carlyle; o hom em está diante dele, ressuscitado,
atividades. [...] a coisa que consideras é uma ação, o produto e
e ele penetra até seu interior, o vê sentir, sofrer e querer, da
a expressão de uma ação exercida. [...] as coisas humanas estão
maneira particular e pessoal, absolutamente perdida e extinta,
continuam ente em m ovim ento; são uma série de ações e de
com o sentiu, sofreu e quis.144
reações, um trabalho progressivo.141

Seu modelo é o centauro Quiron que, longe de julgar o passa­ Como Carlyle já indicara em seu ensaio sobre Voltaire, a história
do, desliza em seus personagens para chorar, nr, amar, desprezar
não vive de causas simples:
com eles, porque um coração amoroso é o com eço de todo
Conhecimento”.145 T am pou co deve acontecer que essa sequência, de que gosta­
mos de falar co m o de uma “cadeia de causas , seja figurada
Graças a sua intuição um pouco obsessiva pela essência bio- propriam ente co m o uma “ cadeia” ou uma linha; devemos
gra íca da história, Carlyle se estima capaz de tomar a exata medida representá-la antes co m o um tecido, ou uma superfície de
a idade periférica do passado. Na História da Revolução Francesa inumeráveis linhas, que se estiram em largura e cumprimento,
e numa complexidade que frustrará e extraviará completamente
os cálculos mais assíduos.14*
T h o m as C arlyle, Pasi an d Presenl, op. a t n 43
'" Ib id . p. 47 " P

T h o in as C a rly le , H isloire d e la R év o lu lio n F rancaise, op . d l . , t. II, p. 1 3 8 .


T H o ^ n a lc Ir r ^ C j,l y lc ' K , n ' G e m ie r B a ilh c r e , 1 8 6 4 , p. 4 8 -4 9 .
arlyle. D o ge ne ro b io izrá firn " l ) (iv>\ , k , c , At morai ’ lb,d • i II. p. 1 3 2 - 1 3 3 .
op ril., p. 16 *'• N ouvraux Essais chouis de cntique et de morai,
T h o m a s C a rly le , " V o l t a i r e " , op . d l ., p. 2 4 .
A VERTIGEM D A HISTÓRIA

Esse sentido agudo da vitalidade histórica desemboca numa fatos históricos, de maneira fortuita, independentemente de seu
crítica cerrada da história factual, geralmente demasiado preocupada peso: “Em primeiro lugar, entre as diversas testemunhas, que são
com a ordem cronológica: também partes interessadas, não há mais que uma vaga estupefação,
misturada com tem or ou esperança, e o barulho de mil línguas do
Nosso pêndulo soa quando uma hora sucede a uma hora;
mas nenhum batente no R elógio do T em p o ressoa através boato; até que, após certo tempo, o conflito dos testemunhos se
do universo quando uma Era sucede a uma Era. Os homens tenha apaziguado e fundido em algum resultado geral: e sobre isso
não sabem o que têm entre suas mãos: assim co m o a calma é a é decidido, pela maioria das vozes, que tal “Passagem do R ubi-
característica da força, as causas que têm mais peso podem ser
cão”, tal “Acusação de Strafford”, tal “Convocação dos Notáveis”
as mais silenciosas.149
são épocas da história do mundo, os pontos cardeais entre os quais
Agastado pelo barulho de superfície da cronologia, Carlyle confes­ rolam as revoluções do m undo” .153
sa diversas vezes sua desconfiança diante daqueles que pretendem Em suma, a história não é uma sequência coerente e contínua
compreender o passado enfileirando os fatos com o as pérolas de um de acontecimentos conectados entre si. “O homem mais dotado
colar. Os acontecimentos representam apenas a camada exterior da não pode observar, com mais forte razão não pode relatar mais do
realidade: nos campos de batalha, no Parlamento ou nas Antecâmaras que a série das própnas impressões: sua observação, por conseguinte,
reais, acontecem somente incidentes superficiais; mesmo as leis não deve ser sucessiva, enquanto as coisas feitas foram frequentemente
chegam a exprimir a vida, "mas apenas a casa onde se escoa nossa simultâneas', as coisas feitas foram não uma série, mas um grupo. Não
vida, elas não são mais do que as paredes nuas da casa” .150 Assim, o acontece na história em ação o que acontece na história escrita: os
elemento-chave da época moderna não foi nem a dieta de Worms, acontecimentos efetivos não estão entre si numa relação tão simples
nem a batalha de Austerlitz ou de Wagran, nem qualquer outra data como a de pai e filhos; cada acontecimento particular é o produto,
particular, foi antes
não de um único acontecim ento, mas de todos os outros aconteci­

[...] a ideia que veio a George Fox de se fazer um hábito todo de


mentos anteriores ou contemporâneos, e se combinará por sua vez
couro. Esse homem, o primeiro dos Quakers e sapateiro de pro­ com todos os outros, para dar nascimento a novos acontecimentos,
fissão, era uma daqueles a quem, sob uma forma mais ou menos é um Caos do ser, sempre vivo, sempre em trabalho, em que as
pura, a divina ideia do universo digna se manifestar, brilhando formas, umas após as outras, destacam-se, feitas de inumeráveis
em suas almas, através de todos os envoltórios da ignorância e da elementos” .154 É daí que tomam forma certas considerações inte­
degradação terrestre, numa inexprimível majestade.151
ressantes sobre o relato histórico. Para Carlyle, o historiador está
O que quer que seja, o acontecimento — político, legislativo ou condenado a se m over no seio de uma geometria plana, que não
nu itar l sempre incerto e artificial demais. “Batalhas e tumultos de faz justiça ao volume do passado: “Da mesma forma, todo relato é,
guerra, que no momento ensurdecem todas as orelhas e embriagam por sua natureza, apenas de uma única dimensão; adianta-se apenas
cada coração de alegna ou de terror, passam com o bngas de bar”.152 em direção a um ponto único, ou em direção a pontos sucessivos.
ertos episódios adquirem uma aura sagrada, são apresentados como ° relato é uma linha, a ação é um cubo. Ai de nós! Nossas cadeias,
nossas pequenas cadeias de “causas e efeitos” , que estendemos
T h o n ia s C arly le, " S u r 1 'h isto ire". op. a i . , p 3 0 6
tão assiduamente através de alguns anos ou de alguns quilómetros
Ib id ., p. 3 0 5 .

T h o m as C arly le. Sartor R esartus, op. eit., p. 3 3 3


p. 3 0 6 .
T h o m a s C arly le, " S u r 1'h isto ire", op. rit., p. 3 0 5 .
'** lh“l . p. 3 0 7 .
O PEQUENO * - D a b io g r a f ia à h is t ó r ia A VERTIGEM DA HISTÓRIA

quadrados, enquanto o Todo é uma vasta, profunda imensidão, e ele percebe, no entanto, a fragilidade da natureza humana, inclinada
cada átomo está encadeado e ligado com todos” .155 ao esquecimento. Sabe bem que, além das amnésias, a memória é
Mas, dando a palavra à vitalidade periférica da história, Carlyle infiel, que ela modifica incessantemente a hierarquia dos fatos: pode
exprime, por esse mesmo gesto, um luto. R ecorda que pedaços mesmo amanhã descobrir o alcance daquilo que é hoje escrito em
inteiros do passado estão perdidos para sempre: minúsculas e apagar o que está escrito em caixa alta. Sabe igualmente
que o trabalho de manipulação não concerne unicamente à memória,
Podemos dizer ajusto titulo que, de nossa História, a parte mais
importante está perdida sem volta; [...] e aferrar respeitosamente
mas provém também de nossa maneira de olhar: a percepção que cada
nossos olhares a esses locais sombrios e perdidos do passado um de nós tem dos acontecimentos não é em nada comparável à dos
onde, num oblívio, informe, nossos principais benfeitores, com outros. E se a história fosse impossível, ou mesmo inexistente? Se só
seus esforços diligentes, mas não co m os frutos destes esforços, existisse uma história-para? Encontramo-nos em pleno Rashomon. A
jazem sepultados.156
ideia procede de uma velha anedota, já contada por Goethe em 1806:
Os documentos que acompanham nossas incursões ao coração dos pouco tempo após ter caído em desgraça, durante a detenção que
séculos passados “não são mais que luzeiros duvidosos, esparsos num devia preceder sua decapitação, Sir Walter Raleigh observa da janela
campo imenso que deixam entrever sem o iluminar” .157 De tempos de sua cela uma escaramuça; quando escuta as três outras testemunhas
em tempos, acontece-lhe reconsiderar um episódio e descobrir assim contarem os fatos, cada uma de maneira diferente, o antigo favorito
que, após a batalha de W orcester, em 1651, Carlos II encontrou da rainha Elizabete percebe que nenhum dos testemunhos oculares
refugio junto a um pobre camponês católico. Mas logo a sombra corresponde ao que ele viu. O acontecimento se desintegrou ime­
toma-se novamente espessa: diatamente numa multidão de imagens. N o final das contas, o que se
passa não contém nenhuma verdade em si e só tem sentido quando
C om o pode que apenas ele, de todos os rústicos da Inglaterra
que trabalhavam e viviam ao mesmo tem po que ele, sobre os pensado e contado. O mesmo se passa com os acontecimentos his­
quais o sol abençoado brilhava nesse m esm o “ quinto dia de tóricos (como a travessia do Rubicão ou o impeachment de Strafford)
setembro , tenha chegado até nós; que esse pobre par de sapatos que são portanto insignificantes, inexistentes enquanto história. O
pregados, entre todos os milhões de peles que foram curtidas,
que resta é a epopeia tal com o foi sonhada, imaginada e elaborada
cortadas e gastas, subsista e permaneça, imobilizado, completo,
a nossa vistar Vemos o hom em mesm o que por um instante; por impressões pessoais...
num instante, o véu da N oite se abre, perm itindo-nos constatar
e ver, e logo se refecha sobre ele — para sem pre.158 IV
Se, para Carlyle, o ser humano é antes de tudo um animal memo­ On History coloca em cena um dilema. Para Carlyle, somente
rial, capaz de se lembrar, mais do que um animal racional e politico,
uma reflexão biográfica permite apreender a vida íntima, secreta,
do passado. Ele sabe, no entanto, que se trata de uma tarefa ines­
P ^ 7 A lgun ' decénios m ais tarde, o h istoria d or a lem ã o E d u ard M e y e r partilhará esta gotável: com o se pode almejar abarcar todas as existências humanas
" 30 ° k * crvar <1u c « em b o ra o passado seja sem p re fe ito de cu rv as, com postas
P* <cz r i urvis cada vez m en o res, o h isto n ad o r p o d e apenas traçar algum as linhas: Eduard
que alimentaram os processos históricos?
M eyer, Tm , T hcon e und M elhodik der G rsrhu hte ( 1 9 0 2 ), in K lem c Schriften c „ r G eschichleslheorie u n i zur
Mas se uma só biografia, m esm o nossa própria biografia,
""d C eschichte des A l,er,u m s. H alle. V erlag M a x N ie m e y e r, 1 9 1 0 . p. 1 -6 7 .
T h o m as C arly le, " S u r r h is to ir e " , op. ã t ., p. 3 0 5 . m esm o que a estudemos e recapitulemos com o quisermos,
H ip p o ly te T a in e , L ’ldéalism e anglais, op . ri/., p. 8 3 - 8 4 . p erm an ece-n os em tantos pontos ininteligível, quanto mais o
' “ T h o m a s C arly le, " D u g en re b io g ra p h iq u e ", op. à l „ p. 13. perm anecerão estas milhões de biografias, de que os próprios
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia à h is t ó r ia A VERTIGEM DA HISTÓRIA

fatos, sem falar de seu sentido, nos são desconhecidos e não princípio dualista que escande toda nossa vida e, com uma espécie
nos podem ser co n h ecid os!159 de talento inconsciente, ora rememora, ora esquece. Uma vez que
a terra não pode guardar a lembrança de tudo o que foi feito, em
As impulsões centrífugas da vida social parecem -lhe incoeren­
certo ponto sobrevêm o esquecimento, isto é, “a página escura sobre
tes, frágeis e fragmentadas, suscitando nele o sentimento crescente
a qual a m em óna escreve e tom a legíveis seus caracteres de luz; se
da natureza infinita da história. É justamente porque essa é a soma
tudo fosse luminoso, nada se poderia ler, não mais do que se tudo
da ação humana, e portanto todo um universo, que seus limites se
fosse trevas” . Por mais retumbantes, os acontecimentos vão e vêm,
esquivam. O caos do passado, “sempre vivo, sempre em trabalho, em
balançam e caem um após o outro, “pois tudo que emergiu deve
que as formas, umas após as outras, se destacam, feitas de inumeráveis
elementos , é “sem limite, com o a morada e a duração do homem, um dia soçobrar: o que não pode ser guardado no espírito quer pre­
insondável com o a alma e o destino do hom em ” . Prisioneiro desse cisamente sair do espírito” .163 Por vezes acontece mesmo a Carlyle
dilema, Carlyle acaba por encarar a história com o uma obscura pensar que a sociedade moderna sofre de um exasperante excesso
algaravia profética: “Desse com plexo manuscrito, todo coberto de de memóna, “pois, a bem da verdade, considerando a atividade da
informes caracteres desconhecidos e inextricavelmente encavalados, Pluma e da Imprensa históricas durante este último meio século, e
algumas letras, algumas palavras podem ser decifradas”. 160 a quantidade de história que ela produziu neste único período, e
como é provável que ela cresça doravante em proporção geométrica
Trata-se de uma conclusão um bocado incómoda para um ini­
migo implacável do ceticismo. Pouco a pouco, graças ao exemplo decimal ou vigesimal —poderíamos sentir que o dia não está longe
de Wilhelm Meister, Carlyle percebe que nenhuma reflexão poderá em que, apercebendo-se de que a Terra inteira não conteria mais
distanciar a negação e o desespero: “Não se pode pôr fim à dúvida, de estas relações do que foi feito sobre a Terra, a memória humana
qualquer natureza que seja, senão pela ação”.161 E que agir significa, deveria se abater confundida, e cessar de se lembrar . Ele não
para o historiador, conter as forças do caos. Em 1833, entrevê todavia tem nenhuma intenção de acabar num mundo sobrecarregado de
uma saída. On history agam recorda por certo, uma vez ainda, todo o lembranças, incapaz de pensar:
desespero que o caráter miserável e defeituoso da história engendra:
Se não houvesse nenhuma abreviação da história, não poderíamos
A história é a Carta de Instruções que as velhas gerações escre­ nos lembrar além de uma semana. Bem mais, abordemo-la sem
vem c de que fazem o legado póstum o às novas gerações. [...] essa precaução, excluamos absolutamente as abreviações, não
Da coisa agora silenciosa que se nomeia passado, que foi outrora poderíamos nos lembrar de uma hora, ou de absolutamente nada.
o presente, com bastante barulho, que sabemos? Nossas Cartas pois o tempo, com o o espaço, é infinitamente divisível; e uma hora,
dc Instruções nos chegam no mais triste estado: falsificadas, com seus acontecimentos, com suas sensações e suas emoções,
apagadas, rasgadas, perdidas, restando apenas um fragmento; e poderia se estender de tal maneira que cobriria o campo inteiro
mesmo este tão difícil de ler ou de soletrar.162 da memória, e lançaria todo o resto para além de seus limites.

ctanto, o valor do esquecimento se afirma pouco a pouco: a Mas não podemos nos remeter apenas ao esquecimento. É preciso
* ona, seja ela individual, autobiográfica ou coletiva, segue o fazer mais: desembaraçar-se das escórias, concentrar o espaço e o
tempo numa dimensão exemplar, postular, sem incerteza, um ponto
n * o i u .. < u ly lr . " W I n i . P 3o«
fl»-' . P .Vr7
T h o m a s C « l y l e , Pasl an d Presen ,, o p . c i t „ p. 199. “'ftiJ , p 322.
* ’ T h o m as C arly le " S u r
" ' I h d . p. 3 2 0 - 3 2 1 .
ritulo “ O n H istory ag am " em 1 8 3 .7 P 317 E “ e tc x to fo1 P ^ l i c a d o e m inplês sob o
'“ / W ..p . 3 2 1 .
A VERTIGEM DA HISTÓRIA
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia à h is t ó r ia

nos lançam em direções contrárias. Carlyle parece novamente presa


luminoso. “A história, pois, antes de poder tom ar-se história uni­
da ilusão de poder apreender a realidade histórica em sua íntegra.
versal, precisa acima de tudo ser condensada” .166 E pouco importa
Depois se recupera, graças a uma estratégia narrativa fundada na
se a condensação não é justa, se celebra Cleópatra e Calígula em
metonímia. E eis que desfilam o patnarca Voltaire, o dragão Drouet,
detrimento “dos nobres homens que agem, ousam e aguentam”.167
a bela princesa de Lamballe, o simpático e discreto Bamave, o es­
Progressivamente, Carlyle se convence de que a compreensão
verdeado Robespierre, o rígido Roland de La Platrière, o gigante
histórica permanece essencialmente metafórica e de que é preciso
solitário Mirabeau, esse indolente Luís, esse bravo Bouillé. E assim
abandonar a linguagem realista pela expressão figurada: “Toda lin­
por diante. Tantos nomes, sempre precedidos de um artigo definido
guagem, à exceção daquela que concerne aos objetos sensíveis, é
ou de um pronome demonstrativo: eles não falam, não se apresen­
ou foi uma linguagem figurada. Prodigiosa influência da metáfora!
tam, nada dizem sobre si mesmos. Mais do que seres humanos em
Jamais o percebera até recentemente. U m a obra verdadeiramente
carne e osso, são personagens ou caracteres morais, constantemente
útil e tilosófica seria um bom Ensaio sobre as metáforas. Um dia es­
creverei um”.168 absorvidos pela ação. Sua existência nada tem de pessoal, é uma
expressão da história universal. O mesmo acontece com os lugares.
A História da Revolução Francesa é o fruto de um profundo
O quarto de Luís X V , o “rei indolente” , toma-se o ponto cardeal
conflito intenor: entre o desejo inicial de dar a palavra a todos os
que resume cada história da França pré-revolucionária. O historiador
protagonistas da história e aquele de condensar a essência do fenómeno
entra nessa peça, vê Luís doente, aterrorizado pela morte, rodeado
revolucionário. Carlyle se interroga: onde está a Revolução? No
pelos quinhentos mil fantasmas vergonhosamente massacrados em
palácio real, nos costumes do rei e da rainha, em seus excessos,
Rossbach e no Q uebec, “para que tua prostituta fosse vingada de
em suas cabalas, em sua imbecilidade? N ão: “Ela está neste ho­
um epigrama” . 171 Fazendo seu o olhar de Luís, toma-se o olho
mem aqui, ela está naquele homem lá, com o uma raiva ou como
da históna” : “ Há aqui outra coisa doente além do pobre Luís, não
um terror, está em todos os homens. Invisível, impalpável; e no
somente o rei da França, mas a realeza da França: eis o que, após
entanto nenhum negro Azrael, com as asas abertas sobre a metade
uma longa luta de puxões e rasgões, se parte em frangalhos .
do continente, varrendo tudo com sua espada de um mar a outro,
podena ser uma realidade mais verdadeira” .169 Mas, se é assim, como
V
podemos captar todas as forças em jogo — ainda mais que elas são
in\ÍM\eis. Para resolver esse problema é preciso que a melhor pe- As obras de Carlyle sobre a história lançam uma nova luz so
^ctração busque a luz em toda fonte possível, dirija o olhar a todo bre seu itinerário. Inspiradas por inquietações de ordem política, as
- gir onde seja possível a visão ou uma luminosidade de visão, e conferências sobre a grandeza procedem sem dúvida também da
na! ela pouerá estimar satisfeita se resolve o problema, ainda fragmentação do conhecim ento.171 O herói faz contrapeso às forças
que aproximativamente*’ r Em toda fonte possível, em todo lugar centrífugas da história, às imagens de indigestão, de fermentação, de
P ssive ... cis aí, ainda uma vez, as forças centrífugas da história que obstrução, de conflagração. Sob certos aspectos, mesmo as conferên
cias de 1840 confirmam que o herói está impregnado de inquietações
* ■> P 3 2 1 .
p- 3 2 3 .

1.1 Ibid-, t. ], p. 2 6 .

por C h l ^ H w t T t T r a , ¥ f ' fr° m 2 3 Í ^ 1822 ’ 6* ^ m 2 ’ ^ 1.1 Ibid ., t. I, p. 9


’ T h o m as C a r M . u ’ G ro lie r C lu b , 1 8 9 8 , p. 1 4 1 - 1 4 2 .
" C f . A nn R .g n c y , " T h e U n te n a n te d P laces o f th e Past: T h o m a s C a rly le and th e V a n e t.e s o f H .s-
•« T “ Í , * " * • * «■ .m . P >25 to n ca l Ig n o ra n ce ” , H istory an d T h rory , 1 9 9 6 , 3 5 , p. 3 5 1 .
O PEQUENO X - D a BtOGftAFIA À HISTÓRIA
A VERTIGEM OA HISTÓRIA

epistemologicas. De que estofo os heróis são feitos? Carlyle jamais


A sincendade, para Carlyle, não é uma maneira de se conduzir e
fomece uma definição exaustiva, menos ainda coerente. Ao contrá­
não implica apenas não dizer mentiras. Designa antes a clarividên­
rio, continua a deslizar de uma imagem para outra, num crescendo
cia, aquela que possui Dante que sabe capturar “a melodia que jaz
visionário, tal um predicador puritano presa do medo e da venera­
escondida [no mais secreto do coração das coisas], a harmonia e a
ção. No entanto, se nos atemos aos exemplos concretos e deixamos
coerência interiores” .
de lado o excesso de ênfase estilística, a força carismática do herói
mostra-se drasticamente diminuída. Entre os grandes homens retidos O olhar que dardeja com o o raio no fundo do coração das coisas

por Carlyle, alguns estão certamente em condições de deslanchar a e vê o que é sua verdade, eis o que, para mim, dá ao livro [o
Corão] todo seu valor e atesta que é um dom da própria Natureza:
energia coletiva, mas é difícil imaginar Dante Alighien ou William
um dom que ela outorga a todos os homens, mas que apenas um
a espeare com os traços de chefes capazes de inflamar as massas
em um milhão, talvez, é capaz de não ignorar. E o que chamo
como lenha seca. Samuel Johnson, Jean-Jacques Rousseau ou Robert
a sinceridade da visão, que só se enraíza num coração sincero.nh
Podenam mesmo passar por perdedores:
Que a sinceridade da visão seja o traço saliente do heroísmo fica
Nenhum dos três obteve vitórias com paráveis [àquelas de Goethe]:
ainda mais evidente se consideramos seu texto sobre Goethe. Neste,
com bateram co m coragem , mas caíram n o cam p o de honra do
sublinha duas qualidades acima de tudo. O intelecto emblemático, a
espírito. Não foram c o m o ele h eroicos portadores de luz, mas
eroicos buscadores de luz. É que suas vidas se desenrolaram em saber, a capacidade de dar forma aos sentimentos: “Tudo tem forma,
mbientes cheios de obstáculos e foram c o m o um a luta diante tudo tem existência visual; a imaginação do poeta dá corpo às coisas
uma montanha de obstáculos: de m aneira que suas almas não invisíveis, sua pluma as converte em forma”.1 E a universalidade:
puderam verdadeiram ente se abrir na luz. 174
Em G oethe descobrimos o exemplo de longe o mais impres­

. . ^e' texto dessas seis conferências se destaca um único sionante, em nosso tem po, de um escritor que é, estritamente
falando, o que a Filosofia pode chamar um homem. Ele não é
sui m m l nCer°. onze heróis se distinguem, com efeito, por
nobre nem plebeu, nem liberal nem subordinado, nem infiel
“ su D en ^ .SOlUta SIncendade- Trata-se de uma qualidade
supenor a graça : nem devoto; mas é o que há de mais excelente em todos esses,
fundidos numa pura mistura; “ um H om em claro e universal .
ai]" ' ^0r^em caPaz de realizar o que q uer que seja de grande
en a a^so^ucam ente fé naquilo que faz ou proclama, e é A poesia de Goethe não é uma faculdade separada, uma mecânica
ver C am° Uni ^omem sincero. Essa qualidade não tem nada a mental; mas é a voz de toda a harmoniosa virilidade: bem mais, é a
P<>uca lnceridade que se exp õ e deliberadam ente: esta é bem própria harmonia, a harmonia viva e vivificante dessa rica virilidade
vezr* ui-. ° Ca C va‘^osa justificação calculada, e o mais das que forma sua poesia” .178 Um a harmonia que não é sinónimo de
do w in d í? 1 nian^estaÇào de a m o r p róp rio. Já a sinceridade
paz, mas de ausência de maneirismo. Goethe é descrito sobretudo
f-*Ur c de omem ® um fato de sua natureza de que não pode
vanidom C^uer ® co r>sciente. f...] O grande h o m e m não se
como um lutador. Numa época minada pela incredulidade e pela
y. 0 • . , SCr Slncer° . longe disso, e talvez n em se pergunte vaidade, incessantemente atormentada pela dúvida, sua vida, en­
qui sua sinceridade, de fato, não depende dele.l7< quanto escritor, pensador e homem, foi marcada pela luta contra

’ T h o m as C arly le, L es H éros, op p 2 12 P


quc ° stlno dos verdadr.ro. ' CU tcxto sobre Voltaire, Carlyle afirmara mesmo '"'M-p. 121, 101.
175 OU., p. 74.75. Brand" ens e o de „ào serem «co n h ecido .. T h o m as C a rly le . G o e th e ( 1 8 3 2 ) , in N o u v e a u x E ssais, op. ri»., p. 2 3 6 .
p. 1 % .
A VERTIGEM DA HISTÓRIA
O PEQUENO X - D a B O G R A H A À HISTÓRIA

o ceticismo. W erther interpreta por certo o desespero de todos onginalmente e de maneira inata de uma capacidade flamejante de
aqueles que não renunciaram a pensar: intçlccção [...] que envolve na sua írradiaçao todas as almas . E
apenas nas situações mais felizes que a capacidade de fecundar se
Todo o mundo o sentia [o desespero], só ele soube lhe dar voz. traduz imediatamente em intencionalidade cansmática. O que diz,
E aí jaz o segredo de sua popularidade; em seu coração profundo,
todos os outros homens estavam quase prontos a dizê-lo, aspiravam
e impressionável, sentia mil vezes mais vivamente que cada um
a poder dizê-lo. Os pensamentos de todos, então, se erguem como
sentia, graças ao dom criador que lhe pertencia com o poeta, deu
a isso uma forma visivel, uma localização própria e um nome; se despertassem de um longo e penoso sono causado por algum sor­
tez-se assim o porta-voz de sua geração.17'1Mas Wilhelm Meister, tilégio, e se reúnem em tom o do pensamento do grande visionáno,
expressão de uma extraordinária firmeza intelectual, testemunha mesmo lhe respondem” .183 Por suas runas e suas nmas, Odin exalta
a liberação da dúvida: “G oethe nessa questão foi mais completo nos outros a faculdade de pensar: “Daquilo de que tivera a visão e
que qualquer outro hom em de seu tem p o”. 180
que ensinou por meio de suas runas e de seus versos, todos os povos
E nessa perspectiva que a históna é descrita com o um conjunto do Norte se impregnaram e o transmitiram de geração em geração.
i 1 >J 184
múltiplo e estratificado: Seu modo de pensamento se tomou o modo de pensamento deles .
Maomé brota com o uma fagulha “no meio de mortas extensões
[Cada livro] é o pensamento do h om em , e concentra virtudes de areia cinza” e dissemina uma areia que se revela pólvora que
quase taumatúrgicas uma vez que pode incitar o homem a to­
logo explodiu em chamas subindo até os Céus, de Deli a Granada .
das as mais belas ações. É ao m esmo tem po a materialização e
Quanto a Lutero, ele sabe discernir as necessidades da coletividade,
o vetor do pensamento. A cidade de Londres, com todas suas
casas, seus palácios, suas máquinas a vapor, suas catedrais, com moldá-las para conduzi-las à realização: em 17 de abril de 1521, seu
'eu tumulto e sua animação desmedidos, é outra coisa que o discurso na dieta de W orms expnme as súplicas e as adjurações de
pensamento, que milhões de pensamentos reunidos num todo, todos nós, aquelas do mundo inteiro, quando a alma jaz aprisionada
que um imenso condensado de pensamento materializado no numa golilha de obscuridade, paralisada num negro pesadelo espectral
tijolo, no terro, na fumaça, na poeira, nos palácios, nos ministé­
dominado por uma terrificante Quimera de tiara que se chamava a si
rios e no Parlamento, nos fiacres para H ackney e para as docas
mesma pai da Cristandade, lugar-tenente de Deus e que sei eu. .
de Santa Catanna e todo o resto?.181
Sob certos aspectos, o herói evoca o historiador artista. Graças
E o herói c aquele que, por sua sinceridade, sabe captar a realidade a um imenso esforço visionário (uma espécie de redução ótica), um
m toda sua verdade e profundeza. Ele pode combater, governar, e outro não se limitam a representar o mundo, a reproduzir o que
evcrc\er, pregar, mas o que faz a sua grandeza e a alimenta consis- é visível. R evelam -no: encarnam um ponto de unidade secreto, o
^ ua capacidade de penetrar, para além da aparência exterior, pnncípio organizador que dá uma forma essencial ao caos da vi a
ncia das coisas. O pensamento penetrante faz do herói um - "eingestaltes Leben” , com o dissera Goethe. O herói to m a a u
csp.nto fecundador: “Semelhante a um raio enviado pelo Céu, e só tempo solidárias e complementares as forças vitais peri enc
-omens o esperam, como lenha seca, para poderem por que, anterionnente, puxavam em todos os sentidos, enquanto o
mar se fogo , embora só, está ligado aos outros homens
por uma relaçào divina: verdadeira fonte de luz, é “um ser dotado
Ibid., p 2 4 , 3 6 .

Iw Ibid., p. 4 6 .
” . p. 2 0 6 .
* Ibid., p. 5 4 .
p. 2 3 5 .
Ibid., p 1 8 2 .
T h o m as C.arlylc, U s H éros, op. a , . , p. 2 2 (). C f. Je a n L a co ste, G o e th e. Scietite et p h ilo so p h ie, op . cit., p. W -
A VERTIGEM D A HISTÓRIA

historiador assinala o ponto cardeal, o ponto que reflete o universo As argumentações heróicas parecem, à primeira vista, bastiões
inteiro. Fascinado pelas ilusões de ótica (em 1852 escreverá um tra­ em defesa da biografia. Na verdade, são bastante ambíguas. Os poucos
tado intitulado Spiritual Optics), Carlyle cede aos fáceis artifícios do personagens do passado que gozam de uma dignidade pessoal têm bem
espelho.1(1 Assim, sem se dar conta, trai profundamente seu grande pouco de humano: mais que homens, são almas, verdadeiras aparições
profeta. E verdade que, também para G oethe, a realidade não pode divinas. Mesmo se a vida humana lhe parece uma mistura do divino
ser conhecida diretamente, e que o conhecim ento é sempre uma e do bestial (beast-godhood), Carlyle se convence sempre mais de que
mediação: o verdadeiro, só o vemos em reflexo, em exemplo, em os aspectos corporais podem, ou melhor, devem, ser afastados para
símbolo. Mas isso não significa que se possa encontrar um ponto exaltar o núcleo arquetípico do herói (Napoleão em Santa Helena é
de refração capaz de revelar o todo: “Nenhum a época oferece um representado com o um Prometeu acorrentado). Através dessa cui­
belvedere de onde se possa abarcar com o olhar toda essa época”.188 dadosa operação de limpeza, de eliminação de todo traço corporal,
Ao contrário, a própria ideia lhe parece desviante e superficial: “É ele espera penetrar nessa “região fundamental do espírito em que os
difícil reproduzir qualquer coisa de maneira realmente imparcial. pensamentos e os sentimentos não podem ser confinados na muralha
da personalidade” . Visa a ultrapassar a lei da individualidade, a fazer da
Poder-se-ia alegar que o espelho é uma exceção. Mas nele tampouco
biografia “uma solução para purificar os olhos de todo egotismo .
vemos jamais nossa imagem realmente exata. Mesmo o espelho in-
verte a imagem e faz de nossa mão esquerda nossa mão direita. Que Estamos bem longe das celebrações da singularidade. O culto dos
heróis está fundado na renúncia ao eu, no esquecimento da pessoa,
esteja ai o emblema de todas nossas reflexões sobre nós mesmos”.189
para tender ao universal, ao ponto do espelho que reflete o infinito.
VI O paradoxo, apenas aparente, é lucidamente expresso por Emerson
quando confessa admirar sobretudo o herói capaz de se anular.
O fluxo caótico e imprevisível da vida, desvelado pelas pri­ Impessoal e incorporai assim, o herói não é um verdadeiro
meiras reflexões historiográficas, leva Carlyle a limitar o princípio
antagonista do Espírito da filosofia clássica alemã. É antes uma nova
de necessidade. Está aí provavelmente o que mais afasta seu herói versão. C om o recordará Taine, Carlyle recolhe no heroísmo os frag
do homem providencial dos filósofos. Enquanto o grande homem mentos esparsos que Hegel submetera à lei: Lá onde Hegel colocava
tónco de Hegel realiza sem o saber um objetivo geral, os heróis uma ideia, Carlyle coloca um sentimento heroico. [...] esse ser, tal
e Carlyle se distinguem por uma intensa faculdade de discernimen­ como ele o concebe, é um resumo do resto. Pois, segundo ele, o
to. não são os mensageiros ignorantes de uma ideia universal, mas herói contém e representa a civilização em que está compreendido,
p ctas da realidade, homens conscientes das relações de força e de o herói descobriu, proclamou ou praticou uma concepção origin ,
u pas (como na tragédia de Esquilo). “Q ue compensação para e seu século o seguiu. O conhecimento de um sentimento heroico
uma populaçao de pigmeus!” comentará Ralph W aldo Emerson dá assim o conhecimento de uma época inteira. Por essa via, Car y e
em 1857, quando de sua segunda viagem à Inglaterra.190 saiu das biografias. Encontrou as grandes vistas de seus mestres. Sennu
como eles que uma civilização, por mais vasta e dispersa que se j ^
à KOIU do CIAciho Ctli í'arl L* I _ esteja através do tempo e do espaço, forma um todo indivisíve .
sur la génese de fo eu v r e de / 79Ç á i * i j » C a b a u - T h o m as C a r ly le ou le P r o m it h ie en ch ain i. Essai
“ jo h a n n W o l f ^ K G o J w J ^ ^ P U F ’ ,9 6 7 ' P « - 1 0 6 . 1 4 2 -1 4 3 . 159.
Paris, G allinurd. 1943 n I d ^ l ' trac*UZIC*° d ° aleniào p o r C .en ev iève Bianquis.
1,1 Ibid., p. 15
" Ibid., n. 7 9 5 , p. 3 4 . - •P - * 1
■ "C f. H ippolyte T a .n e , U ld è a lis m e a n d a is , op . « . . . p. 9 3 - 1 1 0 . 1 4 6 - 4 7 . So b re s u * . U p ç õ e . c o m a
‘ JUfJ. *■*<, tmcfv>n ,.Uses of GrMt

£
filosofia alem ã, cf. HU1 S h in e. "C a rly le and the G erm an P h .losop hy P ro b lem d u n n g the Y e a r
M . D cn t, 1 9 0 8 , p k , in R epresen tative M en a n d O th e r E ssay s, Londrc*. J-
1 8 2 6 - 1 8 2 7 " , P M L A , 1 9 3 5 , 5 0 , p. 8 0 7 - 8 2 7 .

.\Và
O PEQUENO * - Da b io g r a f ia à h is t ó r ia

Aí esta, talvez, um destino que se repete na históna. A bio­ CAPÍTULO


grafia hero,ca aspira à totalidade: mesmo quando não está fundada no
pnncipio de necessidade e reconhece o fluxo caótico, inceno, da vida
ela nao pode evitar encarar a civUizaçào com o um todo indivisível'

seresT H ’ " T " ' * ^ P18meUS: “Sem cleS' sem tod“ « * «


res de destino desconhecido, os heróis permanecem prisioneiros de
O drama da liberdade
uma improvável e insuportável unidade de sentido”. 193

T u do o que é fragm en tário restringe m inhas ideias, eis por­


qu e não sou m atem ático e sim historiador. A partir do ele­
m ento residual posso fo rm a r um quadro completo, sei onde
faltam grupos e com o incorporá-los. Imagino que o mesmo se
dá contigo e desejaria que, consagrando como eu tua reflexão
à história, soldasses a figura sobre a tela e que, utilizando
a im aginação, trabalhasses com as cores da história.
Barthold G . Niebuhrw

I
O episódio é célebre: em 2 de outubro de 1808, quando se
encontrava em Erfiirt, em companhia do marechal Louis Alexandre
Berthier, do general Jean-M arie Savary e do príncipe de Talleyrand,
diante de Goethe, o imperador deixara escapar um lacónico “Eis
uni homem” . O que quisera dizer? Tencionava exprimir assim sua
admiração pela extraordinária capacidade de controlar a vida, pró-
pna ao grande homem mais venerado de todos os tempos? E o que
pensava Thomas Carlyle. Mais tarde, Wilhelm Dilthey abunda no

f orn o escreve, alguns


mesmo sentido: para ele, a vida de Goethe é "um crescimento que
cS h í k " P e i r e ' ° h e r o , e r u a Z n “ rvd, n , ! n tUl ^ V ° " W a r t e " b u r g . » p r o p ó s i t o d a tra g é d ia de
obedece a uma lei interior, e com o essa lei é simples, como sua açào è
: U ° S e m p rc P ° r 51 m e s m o . N e g a I o d a ’ C° m ° um P u r° - « n g u e in g lê s até
(« 0 7 H < Urf íW W ilhelm D ,l,h ey u n d d " r w C o P u la - la c e r a n d o ° p n n c íp io
e . V e r la g N ,e m e y e r 1 9 2 3 n g 4 G r< m Púul Y " c k Von W artenhur^, 1877- m O ,e Briefe B arth old G e o y e N ie h u h n , E d . D ie tn c h G erh a rd e W illia n i N o rv in . U ert.m IV 2 ô . I I.
carta de 21 de fe v e re iro d e 1 8 9 0 ).
P 3 1 7 - 3 1 8 (carta de 21 de n o v e m b ro d e 1 8 0 4 ).

n a
O d r a m a d a uberdade
O PEQUENO * - Da b io g r a f ia à h is t ó r ia

regular e constante!”.19’ Ou seria preciso ver aí, com o sugeriu Friedrich “Toda vida humana, mesmo a mais modesta, possui seu próprio
Nietzsche, a expressão do estupor de Napoleão diante da forma alemã valor autónomo não apenas diante de Deus, mas também diante
do ceticismo?1'* O enigma está sem dúvida destinado a permanecer da históna: ainda que não seja mais do que uma onda, ou mesmo
uma gotícula, no fluxo do tem po” .199 Estamos longe do Kõtming ou
sem solução. Mas, seguramente, o episódio ilustra de maneira admirá­
can-nig, o hom em extraordinariamente capaz de controlar o devir
vel o conjunto das questões que apaixonaram a historiografia alemã ao
caótico e imprevisível, que obsedava Carlyle. De agora em diante,
longo de todo o século X IX . O que é um indivíduo? C om o alguém
a vida histórica não é mais encarada com o uma massa informe, mas
se toma umr Qual é sua relação com o mundo histórico?
como um fluxo perpétuo de formas e de figuras firmes e defmíveis,
Essas interrogações não concernem mais, doravante, ao heroís­ resultante de personalidades múltiplas e mesmo infinitas.
mo, nem mesmo à exaltação do eu que, nos decénios precedentes,
Convencidos de que a históna é o produto de individualidades
inspirara o movimento Stumi und Drang. D oravante, é o próprio
únicas e irredutíveis, cada uma gozando da própria estrutura e da
processo de individuação que está em jo g o . Em bora com moda­
própria onginalidade imediata, muitos historiadores alemães estimam
lidades diferentes e a despeito de alguns retrocessos esporádicos
que o mundo histórico não é governado por um destino inelutável
(sobretudo a respeito dos homens de Estado), os historiadores
que exclui toda latitude de pensamento e de ação, “mas uma tarefa
alemães da época vão além dos Menschen die Geschichte machen,
para a realização da qual somos chamados a colaborar . Por certo,
dos homens que fazem a história. C o m o escreve Leopold Von
o ser humano está impregnado de história: nasce no seio de uma
Ranke, toda vida leva em si seu ideal: o impulso mais íntimo família, de um povo, de uma linguagem, de um Estado, e uma
da vida espiritual é um m ovim ento em direção à ideia, em di­ religião, e assim por diante. C om o r e c o r d a Johann Gustav Droysen,
reção a uma mais alta perfeição. Desde a origem , esse impulso “sem se aperceber, ele se apropria e interioriza o que encontrou l-.-J,
é inerente à vida , 19 N o fim do século, assumindo, com o era funde-o a tal ponto com seu próprio ser que o utiliza de maneira
de seu costume, mais de cem anos de reflexão historiográfica, imediata do mesmo modo com o dispõe dos órgãos e niem ros e
Fnednch Meinecke sublinha que em todo hom em liberdade e seu corpo” .202 Mas conhece a liberdade. Está em condiçoes de se
necessidade se entrelaçam uma à outra, e que mesmo o membro colocar questões, de pensar, de tomar decisões, de agir, de insistir.
mais insignificante de um grupo social leva em si um brilho, por Cessa de ser um objeto passivo e se toma sujeito do mundo.
mais ínfimo que seja, do x da liberdade: “Ainda que cada aporte
eja minúsculo e inacessível para o pesquisador, sua soma não é [...1 por pequena e embrionária que seja de início, a torça do espa­

por isso negligenciável, e uma escala de m em bros intermediários nto se afirma nos homens e, com ela, uma p ro g re ssã o fica d a do
poder e do querer, da liberdade e da responsabilidade. [ - ] O
nhnitamente numerosos se ergue do último dos homens da horda
indivíduo [...] não está sempre ligado à p ró p n a cspjecíe mas
Jti. n crói cxtraordináno” .,9K Na sequência, volta a este mote:
é livre; não é simplesmente determinado e modelado de um

Dor G á " l,J l 1 Po i "<lue- ln Éerits d 'esth étiq „ e ( 1 9 0 5 ) , traduzid o do alem ão


" F n ed n ch M e in e c k e , E rleb les, 1 8 6 2 - 1 9 0 1 . in A u tobiographische Schriften. Ed . p o r E b erh a rd Kess ,
Gundoif, crt ,<W5' p 242-cfumbém Fnednch Stuttgart, K o e h le r V e rla g , 1 9 6 9 , 1 9 6 4 . p. 3.
-C f , ° a‘em a° P° r , " n C h u s e v ,lle - G ra sset, 1 9 3 2 .
n F n e d n c h M e in e c k e . K ,a s s iz is mUs. R o w n .iz i s m u s his.orisches D e * k e n
Studies, 2 0 0 4 . >7 D 4 i 0 S ,< n n ir*,rv L u 'h e r . G o e th e , N ie tz s c h e ", T h e J o u m a lo fN ie t z s c h t
(1 9 3 6 ), ,n Z u r U e o r i e , W P h ilo s p b ie der G es M c lu e , E d . p o r E b erh a rd K essel. S tu ttg a rt. K o e h le r
M uller ( 18981 rr-il 2 i ^ u an to aos c ° m e n t in o s de G o e th e , cf. E n tretiem avec le rharuelter de
V erlag, 1 9 5 9 , p . 2 6 4 - 2 7 8 . . . .
P° r A l b m * ° c k . ' « 0 . O e n c o n tr o de Erfur
F n ed n ch M e in e c k e , P ersôn lith keit u n d gfschichtlichen W elt ( 1 9 1 8 ) , m Z u r T h r o n e un
Paris, G illim ard , 1 9 9 0 ’^ " K u n d era - L '""m ortalité, trad u zid o d o tc h e c o p o r E v a B lo ch .

0p- ri' - p - 3 7 - , E d p o r p . L e y h , S tu ttg a rt-B a d


Fnednch M r l R i " klC/ P0,I,UC,ICS GeSpraíh- m W erke, L eip z ig , 1 8 9 0 , t. 4 9 - 5 0 , p. 3 3 7 . Joh a n n G ustav D ro y se n , H islo rik . D ie V orltsungen von , P
C-instart, 1 9 7 7 ; T e l C esch ich ts.h eorie, M il u n g ed n u k,en M a len a len zu r H . t o n k . Ed . p o r .
— - * K ° U r Ía " « " ‘ h ' G esch ich tssch rribun g" ( 1 8 % ) , « G eM *
" E d p o r h berh ard K essel. M u n .q u e , R . O ld e n b o u r g V erla g . 1 9 6 8 . p. 3 2 5 . Birtsch e j . R iis e n , G ò ttin g e n , 1 9 7 2 , p. 14.

00
O DR AM A DA UBERDADE

O PEQUENO X - D a BIOGRAFIA À HISTÓRIA

i An “F k um homem” de Erfurt, um século antes.


vez por todas, mas determina ele próprio e continua a formar; Estamos bem.longe menor mais esténl, talvez não
retroage, pela força de sua livre personalidade, sobre a univer­
-U vez a modernidade tom e o que é certo
salidade, tendo sobre esta um poder que pode se elevar a ponto reste aos contemporâneos senao v / mais difícil.209 De
de a controlar e transformar plenam ente.203 é que o processo de indivi uaçao P“ Guerra Mundial, mais

No plano político, essa sensibilidade à riqueza das originalidades


individuais não é neutra. De início, foi associada ao impulso nacional: fp 0T d e PX , inexoravetaente desdmído pela lôP ca utU.tansta:
as particularidades dos povos permitem descobrir as características
pessoais. Wilhelm Von Humboldt recordava assim que a nação O empreende*,,^moderno, o
é também um indivíduo, e o indivíduo singular um indivíduo do
indivíduo” .'1”4 Chegava ao ponto de falar de biografia da nação, en­
h oje in co m p arav elm en te mais n c o sociedade nobiliána
quanto Ranke exaltava a ação enérgica de certos povos e Estados.
de personalidades, em co m p araçao co ^ W ilhelm M eister
Num momento em que numerosos historiadores estavam engajados
das classes su p en ores tal c o m o esta ap facllm ente
na construção da nação alemã, a defesa das individualidades reveste d e G o e th e . M a s , a o m e s m o te m p o , esse tip o su

um valor essen cial.M ein eck e relata que, após 1806, ano da derrota
o singular e o individual puro.
de Iena, o destino da nação parecia estreitamente ligado ao desenvol­
vimento da personalidade: “Não é que se imaginasse poder criar uma
II
personalidade pelo viés do Estado. Desejava-se apenas criar a possi­
bilidade para cada um de se tomar uma personalidade, liberando-o A batalha travada pelos histona£ * ■ ^
dos entraves de um mundo h i s t ó r i c o antiquado, o f e r e c e n d o - l h e
visava a amalgamar uma plur 1 a , Longa e penosa: o
novas tormas de ação e remetendo-se quanto ao resto ao impulso do
passado tem algo de uma com da e o ora se enganam
espínto ’.^<,7 Em seguida, com o tempo, o atrativo da in d iv id u a lid a d e
terreno está abandonado, ora os corre or ^ confundem com um
sc alimentou sobretudo da nostalgia por esses primeiros decénios tao
de caminho, ora perdem * chega a transpor a linha de
tumultuosos. Após a guerra com a França e o advento do Reich, e m
pedaço de pau qualquer... Nen g s a esses obstáculos,
1871, as relações entre a história e a política se tomam mais complicadas.
chegada. Mas pouco importa, e ju . tempos em
As dúvidas se multiplicam. Na esteira de Nietzsche, M ax Weber se
essas largadas queimadas, esses e d u tj
pergunta em 1919: ainda é possível fazer de sua vida uma obra de
arte?208 Em outros termos, Goethe ainda poderia se tom ar Goethe? tempos nos encontramos diante Herder filósofo
O pnmeiro a se lançar foi Johann ^ « ^ o n a d o r .

“ ífcid .. p. 18.
da linguagem, poeta e pastor luteran° ’ feita em 1769, de Riga
“ W ilh elm V o n H u m b o ld t. C on siJcratíon s sur l'histoire m o n d iale ( 1 8 1 4 ) , in L a íâche dc I Instorien.
No curso de uma longa viagem Pe ° diferenças nacionais,'"
traduzido do alem ão p o r A n n ete D isselkainp e A n d ré Laks, L ille , P resses U m v e n i t a i r c s de LiUe, a Nantes, Herder com eça a refletir sobre as diferenç
1 9 8 5 , p. 53.

“ Leopold V o n R a n k e , Vorlesungseinleitungen. in A m W erk im i N ach lass, E d . p o r V o lk e r tH>“ « v ,o :h


e W alth er P eter Fuchs. M u m q u e -V ie n a , O ld e n b o u r g V erla g , 1 9 7 5 , p. 2 8 0 - 2 9 4 . C í
S o b re o p n n d p i o * no P " 1™ ” 1'
^ B a rth o ld N ieb u h r, R òm ische G eschichte, B e rlim , G . R e im e r , 1 8 3 3 , p. 6 8 . . ilores interiores (in teg rid ad e, a u to co n h e cim e n o , W e in fe ld & N ico lso n , 1 9 6 . <-ap.
" * So b re a ligação en tre reflexão sobre a nação e r e f le x ã o sob re a in d iv id u a lid a d e , cf. M a ree i G a u c h e t, D ahrendorf, Sonffy an d D em ocracy in G erm ™ V - on ' p 49.
Le mal d é m o c r a t iq u e ” , Esprit. 1 9 9 3 . 1 9 5 , p . 6 7 - 8 9 . F n e d n ch M e in e c k e , PersonUcHket, u n i g c s c h M i ^ ^ ,_ o p . ^ cap , # 3 ; o l l v .er
* " F n e d n ch M e in e ck e . Persònlichkeit iin d gescluclutichen W elt, op. cit.. p. 4 5 .
1,1 C f M a u n c e O le n d e r , L e i L an gu es i u p n ra iis. P an s.
nqic>n e d n c h N le tz sch c' C o m ‘i ^ a lions intutuelles, op. à t . : M a x W e b e r , L e S av an t et k D ek en s, H e r ie r. P a n s, Les B e lle s L e ttre s. 201 .
(1 19), traduzido do alem ão p o r C a th e n n e C o ll.o t- T h é lè n e , P a n s. La D é c o u v e r te . 2 0 " *
O DR AM A DA UBERDADE
O PEGUBMO X - D a BIOGRAFIA À HISTÓdlA

E é sem medir suas palavras que exprime, quatro anos mais tarde, O desenvolvimento, o crescimento (Fortgang) de que fàla Herder,
sua contrariedade para com todo excesso de síntese: nada tem a ver com o conceito de progresso (Fortschritt), no sentido de
um processo único, universal, que tendena para a luz, que seria feito de
Ninguém no m undo sente mais do que eu a fraqueza das ca­
momentos mais antigos, mais selvagens, e de momentos mais recentes,
racterísticas gerais. Pinta-se um povo inteiro, um período, toda
mais civis. Trata-se, ao contrário, de um processo mútuo, fundado em
uma região - quem foi pintado? Agrupam -se povos e períodos
que se sucedem opondo-os sem fim co m o as ondas do m a r-o múltiplas fontes de energia, já que o bem está disseminado pelo mundo
que foi pintado? A quem se aplica a pintura das palavras? No e jamais se fixou numa única forma de humanidade, num só país:
fim das contas, apenas se os agrupa num term o genérico que
Aqui tam bém , a boa mãe tudo proveu. C olocou nos corações
não significa nada e sob o qual cada um pensa e sente o que
disposições à diversidade, mas tom ou cada uma destas tão
quer — meio imperfeito de descrição!212
pouco prem ente por si só que, desde que apenas algumas sejam
Vinte anos mais tarde, insistirá nisso de novo: “ O tem or me toma satisfeitas, a alma se cria logo um concerto com a ajuda destes
quando escuto alguém caracterizar em algumas palavras uma nação sons que foram assim despertados e não sente aqueles que não o

inteira ou todo um período; que enorm e soma de diversidades foram a não ser na medida em que, mudos e obscuros, apoiam
o canto que raciocina. Pôs-nos disposições à diversidade no
guardam, com efeito, palavras tais com o ‘nação’ ou os ‘séculos da
coração, e uma parte dessa diversidade à mão ao nosso redor.
Idade Média , ou ainda a época antiga ou m oderna” .213 Apóstolo
da diversidade, Herder acusa o século X V III, tão esclarecido, de Assim com o Justus Mõser, autor das Patriotische Phantasien, Herder
ter atribuído um valor absoluto ao gosto de seu tempo e de tê-lo estima que os homens partilham muitos pensamentos e gestos,
imposto rudemente às épocas precedentes.214 Voltaire e os filósofos
mas o que importa verdadeiramente, o que os toma humanos, é
de oficio mediram o despotismo ou o sentimento religioso que rei­
justamente o que não têm em com um com todos os outros, o que
navam no oriente com a régua dos conceitos do mundo europeu:
os individualiza:
Admitamos que os mensageiros de Deus, se aparecessem agora,
seriam impostores e patifes: não vês que era totalmente diferente o T o d o o cam inho que percorre a civilização e a cultura sobre
espirito daquele tempo, desse estágio da humanidade?” . Até mesmo nossa terra, com seus zigue-zagues, seus ocos irregulares, jamais

Johann Joachim Winckelmann, o grande intérprete da arte antiga, evoca uma corrente tranquila, mas antes uma cascata de mon­
tanha e é a isso que conduzem as paixões dos homens [...] as
a andona-se a uma visão anti-histórica, ao avaliar as obras egípcias
gerações se renovam e, no entanto, a despeito de todos os P11^
segundo ns cânones da arte grega e, “por conseguinte, descreve-as
cípios lineares da tradição, cada cnança escreve a seu modo.
negativamente muito bem, mas tão pouco de acordo com sua na­
tureza e a maneira de ser que lhes é própna”.215 Entretanto, aqui Herder se interessa mais pela individualidade das
grandes forças coletivas (o gênio do povo ou o espírito da civilização
do que pelas personalidades individuais.2IK N o coração da narração,
- j o h a n n C.ottfHed H erd er. r nr a u,re p l„ losoph,r d f f w < p
sempre infinitamente animada em seus menores detalhes, de Uma oirtr
d „ ^ s l o r ú m u ^ ^ ^ n l4uKK" " Utsbr’efF <1 7 9 4 ). cita d o p o r F n e d n c h M e in e c k e . D ie E m tehung
filosofia da história, destaca-se a diversidade dos estilos nacionais.
■C f. r I “ S h w °r H 'n rU V R V « ^ . ,% 5 ' P 4 4 M 4 2 '
T h e re s M o re to T h in t m * n th " ‘l ’o l'~ 7>' 5 R o m a n tic R e b e llio n against th e E n lig h te n m e n t, or
V in e (dir.) fu ltu rr I X , * n E v u V n ‘ <r ‘ ,n A S h w e d e r e R o b e r t A Le
Press, 19 8 4 p 2 7 6 5 ^ sa Ys on ^ elf, an d E m o lio n , C a m b r id g e . C a m b r id g e U niversity Joh a n n G o ttfn e d H e rd e r, U n e au tre p h ilo so p h ie d e I histoire, op. rit., p.
' Joh an n G o ttfrie d H e rd e r, ld íe s p ou r la p h ilo so p h ie de 1'hisioire d e 1’h u m am ié (1 7 8 7 , tra uzi
W hitton. '‘h l c r d e r C r iT r T ' pl" kS0phie J e l op M . p 51, 52, 58. Cf. Brian J. alem ão p o r E d gar Q u in e t, P a n s, F . G . L ev rau lt, 1 8 2 7 -1 H 2 8 , t. U, p- 2

Rationalism ", History 19>m'' 27 ' " T l é i ' 1fiS1' ' 11™ 1 C ° m m U nÍty VCnUS C o s n lo Pol,tan F n ed n ch M e in e c k e , D ie E n tsteh u n q des H b torism u s, op . cit., p 4 0 1 4 0 2
O DRAM A DA UBERDADE
O PEQUENO X - D a BIOGRAFIA À HISTÔftlA

caminhos percomdos pelos povos, depositários de diversas ideias de Vários anos depois, em dois ensaios in“ bad°\ C° ; y ^ ^ St“ as
universal H u m b o l d t reprocha a Fichte, a Schelling, g ,
humanidade, quando muito escandidas uma após a outra: primeiro os
também á Kant. propotem uma imagem abstrata do homem e terem
onentais, os egípcios, os gregos, os romanos... A seguir, quando o sul
mortificado a história, ou, no mímmo, o sentido histonco. E por
não foi mais do que um despojo esgotado que jazia em seu sangue,
essa razão que opõe à filosofia da históna, que tende a reconduzir
veio o homem do Norte... E assim por diante: a unidade individual
. um únlco p0 nto de vista os acontecimentos particulares da histona
distintiva não é em Herder a pessoa, mas o povo, das Volk\ ela exprime
um pertencimento fundado no solo e na língua.21,1 Sabe-se: a atenção mundial que se apresentam de maneira fragmentada e aparentemente
a tudo o que é originário e autóctone alimenta também nele uma
mixofobia- exacerbada. Sempre exaltando as culturas individuais (in­ necessidade” 224 uma física da históna, preocupada com os homen
diana, chinesa, escandinava, judaica), Herder brada contra os grandes t r « ao ^ 0 » Po —
niveladores - Cesar, Carlos Magno, os cruzados, os construtores do a comparação entre o devir histórico e o, fluxos da natureza.
Império britânico, os missionários destruidores das culturas originais. humana seguem em frente com o as
O s destinos da espécie faz
O espectro da contaminação está bem presente: “Orientais, gregos,
romanos existiram apenas uma vez, e deviam tocar a corrente eletnca
estendida pelo destino somente num ponto, num só lugar! E nos,
por conseguinte, se queremos ser ao mesmo tempo orientais, gregos, Sopnm idos,S aniquilam
S e são e x te
S rm in a d a g■* * * S

considerada do ponto de visu do tempo que e^quele e ^ q ^


romanos, estamos certos de não sermos nada” .221
somos tom ados, é um arrastao , r r e s i s ™ ? _ de anos
são intenções ruminadas por a guns p ^ ^ ^ da

e emprestadas a um s' r es,r“ ^ ' j ° ve reconhecer na históna


A riqueza do indivíduo entra verdadeiramente em cena com natureza e da hum anidade 9 U , reconhecido atra-
outro historiador particularmente atento à língua: Wilhelm Von mundial. Entretanto, com o o todo so pod«_«r reco
vés do particular, devemos estudar as naçoes e os m l ,
Humboldt. Desde 1791, ele nota que, no mundo do saber, só o
conhecimento do indivíduo aproxima da verdade. Para apreender
Por certo , Humboldt reconh“ ' “
a verdade do passado, é preciso portanto “identificar-se, por assim ___ Wmr
comuns, evocados por Kantem
em sua
suaobra
o so d ic a
^ ^
di2er, com a natureza de todo ser vivo, representando-o não apenas
históna.22" O ser humano, considerado sobrem ^^ ^
em sua aparência, mas na maneira com o ele se sente em si mesmo ■
como massa, atém-se a certa unifomn a . Qa Se exami-
natureza abarca igualmente o caráter mora f itos _ Como
l u u h llcrliti U Bois lordu de l'hu m am té R om úttlism e, n alw n alism e, totahtarism e ( 1 9 9 0 ) , craduzido
namos em série acontecimentos aparentemen 'timos ou os
d o m eles pi r M a f c t! T h y m W o . I ^ m . A lbm M i ,h e i , 1V>2 Vi<k.i S p e n c e r, " T o w a r d s an O n ío l-
u io <m H o l.m . In ifcv iilu jln m H c i J r r s T h t o r y o í Id e n tity , C u ltu r e and C o m m u r a ty ’'. H istorf os casamentos, os falecimentos, os nascimento explicáveis
o fE u ro p ea n Ideas, 1 9 9 6 .2 2 p 2 4 5 25V
delitos identificamos regulandades surp^ee" ^ existe também
M e d o de se m isturar” . ( N .T )
unicam ente p e lo fato de que, nas ações os ° de acordo
31 Jo h a n n G o ttfh e d H erd er, U ne autre p h ,lo so p h ,c d e 1’histoire, op . a l „ p. 1 3 3 - 1 3 4 .
“ Para u n u ir m o A iç in a o p r tiu iiK n m d< H u m b o ld t. cf. R o b e r t L e ro u x , G u il la u m e d e H u m b o ld t. í »
uma componente natural que se manifesta ciclicamente, de
f o r m a l,o „ d e s a p e n s é c ^ y , n | ' V f |.a n S i l o B cU e s L e ttr e s 1 9 3 2 ; R o b e rt L ero u x , U P h ilo s o p h ie

d e f h is t o i r e <hcz H erder „ C dc H J . Í J , , P an s. M e la n g e s H e n n L ic h te n b e rg e r . 1 9 3 4 ; Jurgen


ra ant, H u m boldt (1 9 9 0 ). tradurKfto tio ilrm ã o p o r M a n a n n e R o c h e r -Ja c q u in . P an s, Édinons W ilh elm V o n H u m b o ld t. C on sid éra tion s sur Vhistoire m on d iale, op. a l . . P
de la M aison des S cie n ces de r H o n im e . 1 9 9 9

W .lh c ln . V o .i H u n itv iliit. ( ív . J ú G e s e u e der der m e m ,h l,c h en K r.ifte ( 1 7 9 1 ) . in G esam -


lm m anuel K a n t, Id ée d 'u n e histoire universelle au p o m t de vm eosm p 4
m e ie Schriften. r d por A lb ert L eu zw an n et a i , B e rlim . B . B e h r, 1 9 0 4 , t. I, p 8 9 - 9 1 .
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia A h is t ó r ia
O DRAM A DA UBERDADE

com leis uniformes: “A espécie humana é uma planta natural, como um cntério totalmente diferente. É esta a parte da históna mundial
a especie dos leões e dos elefantes; suas diferentes etnias e nações são que podemos propriamente chamar bela e entusiasmante, porque
produtos naturais, como as raças de cavalos árabes e islandeses”.227 O é dominada pela força criadora do caráter humano.231
mesmo acontece com certos aspectos importantes da vida histórica:
Basta que um espírito forte, dominado, mais ou menos consciente­
N a m aior parte dos p ovos, o c re scim e n to e a ruína deixam mente, por uma grande ideia, medite sobre um material suscetível
p erceb er um m o v im e n to p raticam en te u n iform e; quando se de tomar forma, para que o resultado seja aparentado à ideia e seja
considera o estado do m u n d o im ed iatam en te após o fim da por conseguinte estranho ao curso habitual das coisas. E, quando
segunda guerra púnica e o ca rá te r dos ro m an o s, a dominação
fala da atividade humana, Humboldt não pensa apenas nas ações
mundial de R o m a se d eixa d edu zir passo a passo com uma
necessidade quase perfeita.228
realizadas por grandes homens: “E inegável que a atividade do gê­
nio e da paixão profunda pertence a uma ordem de coisas diferente
Mas a históna não é apenas um produto da natureza. É igualmente daquela do curso m ecânico da natureza; mas, a rigor, este é o caso
dominada pela potência criadora do caráter humano: o indivíduo, de toda emanação da individualidade humana”.232
insondável e autónomo, está na ongem de sua atividade e Em face da violência da história filosófica, sempre pronta a
[...] não é explicável por nenhuma das influências que sofre
nos recordar o caráter global e necessário do processo histórico,
(pois, antes, determina-as todas por sua reação). Mesmo se a Humboldt introduz dois aspectos importantes. Em primeiro lugar,
matéria da ação é idêntica, a forma individual a tom a diferente, a dimensão ética da história. Ela nada tem de moral: não deve ofe­
de acordo com a facilidade ou o esforço, se a força é apenas recer exemplos a seguir ou recusar, não servindo esses para nada
suficiente ou desbordante, e todas as pequenas d e te rm in a ç õ e s , ou podendo mesmo ter um efeito enganador. Mas é ética, uma vez
impossíveis de nomear, que constituem o selo da in d iv id u a ­
que desvela o drama da liberdade: “O elemento em que se move a
lidade, e que percebemos a cada instante da vida cotidiana.21’
história é o sentido da realidade (das Sitm fur Wirkhchkeit), que inclui
outra forma, a natureza é incessantemente modificada, por o sentimento da fugacidade da existência no tempo, aquele de uma
dependência das causas antecedentes e concomitantes, mas também,
de h mesm°íi^e maneira imprevisível e desconhecida, pela ativida-
ao contrário, a consciência da liberdade espiritual interior e o co­
inHiv'rl 3na/ _x’ste um momento de procriação moral, em que o
D o r çrr ° na^a° °u
Pessoa singular) se torna o que deve ser, não
nhecimento racional de que a realidade, a despeito de sua aparente
contingência, está bem ligada por uma necessidade interior
em S i S T Subltamente e só lance”, escreve H u m b o ld t
em 1814. 3 E quatro anos mais tarde: Ao mesmo tem po, Humboldt nos recorda que o todo do
historiador não corresponde ao conceito de uma totalidade ideal,
Q [a conexão] toca no domínio da liberdade, todo cálculo
não é único nem reconciliado, mas antes múltiplo, cheio de vida,
rrompe, a novidade e o inaudito podem surgir subitamente
^ um grande espírito ou de uma vontade potente, que só podem
conflituoso, feito de diferenças e de contrastes. Com o escrevera em
J ga os num quadro extremamente amplo e de acordo com ^792, a modernidade faz explodir em mil fragmentos a integridade
inicial: a perfeição ingénua, instintiva e irrefletida da Antiguidade de­
sapareceu. Mas tal decomposição não é necessariamente uma perda.
- : : ^ , 4,
lárhr dr I lustanen op cii p 60 m '" r les (am es m oln ces dans r h is lo ir e rnondtdle (1 H18), in L*3
m lb id .. p .6 4 . ’ ' p. 6 3 .

230 Ib id ., p 49 Uí !t"d., p. 6 4 .

W ilh clm V o n H u m b o ld t, L a tâche d e 1’h islorien , op. til., p. 7 1 .


O PEQUENO x - Da b io g r a f ia à h is t ó r ia O DR AM A DA UBERDADE

Ao contrário, diferentemente de muitos de seus contemporâneos, Eis porque nada é tão raro quanto uma narração efetivamente ver­
abalados pelos acontecimentos sociais e políticos que assinalam a pas­ dadeira: “Ainda que a verdade do que se produziu pareça uma coisa
sagem do século XV III ao X I X , Humboldt está convencido de que simples, não se poderia pensar nada de mais alto”.239 Do passado,
a principal aposta da modernidade reside justamente na possibilidade jamais percebemos mais do que alguns fragmentos, destacados, isola­
de passar de uma unidade originária a uma multiplicidade.234 Onze dos: “O que se produziu só é visível em parte no mundo sensível, o
anos mais tarde, numa carta ao diplomata sueco Karl Gustav von resto deve ser sentido, concluído, e mesmo adivinhado .24° Por trás
da ossatura do acontecim ento, por trás do laço exterior e aparente
Bnnckmann, formula essa intuição numa expressão deslumbrante,
que amarra cada um dos elementos, existe um resto e é esse resto
quando diz se sentir “arrastado não para o U m , que seria o todo,
que é verdadeiramente essencial, incontomável, já que é ele que
um novo conceito erróneo, mas para uma unidade no seio da qual
liga todos os fragmentos e dá uma forma ao todo.
se misturam todas as concepções do hom em , todas as oposições
entre a unidade e a pluralidade” .235 Ranke retoma o tema por sua Quando nos encontramos no coração desse labirinto que é o
passado, é preciso tentar dar forma aos acontecimentos e religá-los
vez: para ele, a história se opõe ao conceito, para o qual a variabi­
entre si: “A verdade de todo acontecimento se funda na integração
lidade é dispersiva, enquanto ela se esforça por fazer justiça até às
produzida pela parte invisível de cada fato . Desse ponto de vista,
oposições. Ao que Droysen acrescenta que, no mundo histórico,
além de sua capacidade receptiva, o historiador possui uma ativida­
o que move não são as analogias, mas as anomalias.237
de autónoma, e mesmo criadora, não que produza o que não existe,
Mas como dar conta de toda a pluralidade do passado? Tal é a mas [...] dá forma, com suas próprias forças, àquilo que não pode-
questão mais radical que propõe no célebre discurso sobre a tarefa na perceber tal com o realmente é pela simples receptividade .
do historiador p r o n u n c ia d a em 12 de abril de 1821, na A cad em ia Alguns anos mais tarde, Droysen se expressará, também ele, neste
de Berlim. A exemplo de Carlyle, Humboldt está dividido entre a sentido: “Trata-se de reconhecer, nesses elementos subsistentes,
admiração e o temor diante do caráter inesgotável da história: as totalidades espirituais de que eram a expressão, de projetá-los,
como se se tratasse de curvas, de fragmentos de círculo, sobre seu
Infinito é o formigamento prodigioso do que advém no mundo
e nele se comprime, em parte provocado pela constituição dos centro e vê-los em seu conjunto a partir desse centro que lhes é
solos, a natureza da humanidade, o caráter das nações e dos próprio”.242 Está aí um gesto difícil e arriscado, mas inevitável: se
indivíduos, e em parte surgido co m o do nada, miraculosamente o fazemos, corremos o risco de nos enganar, mas, não o fazendo,
semeado, dependendo das forças de que não temos mais do que estamos certos de nos enganar. Para além da metáfora, a história
uma intuição obscura, e submetido à dom inação de Ideias eter­ é uma atividade morfológica, fundada num duplo movimento,
nas e profundamente enraizadas no peito do hom em : infinito reconstituir de maneira imparcial e crítica dado elemento singular
que o espírito não pode jamais reconduzir a uma forma única."
e, ao mesmo tempo, captar seu encadeamento profundo. Humboldt
compreende, depois de Schleiermacher e antes de Dilthey, a relação
G esam m elte ', f ‘ il,r r t u " u ‘‘» d desgriechschen insbesondere (1793), >■' circular que existe entre as partes e o todo: A inteligência integra
und è.. f °P
,r ‘ 1'P 2Í5_2H1; W ilh e lin v on H u m b o ld t, U b erd c n C tsch leíh tsu n in sd t** do particular supõe sempre o conhecimento do geral sob o qua
U 5W i l h l \; li ^ ‘e (1 7 9 1 1 . m Gejammr/íe IVcrlt, op cil , t I, p 3 1 1 -3 3 4 .

p. 2 4 3 - 2 4 4 ° " J" fln ' ,r Ed P ° r R o s s le . M u n iq u e . C a ri H a n ser V erlag, 1952.

“ W . p . 69.
cn b o u r g ,T % 4 ^ ap ^ 2 3 ^ 2 4 2 * fiC^1 ^ T a X e M m ' E d P o r W a lth e r P e te r F u ch s. M u n iq u e , Old-
^ I k id .. p .6 7 .
J o h a n n G ustav D roy sen. H ision k, op. p 21 Ibid., p. 6 8 .
' V o n H u m b o ld t. U , . U f d , ^ p T<)
Joh an n G ustav D ro y se n , Hííforife, op . cit., p. 2 7 .
O DR AM A D A UBERDADE
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia a h is t ó r ia

está compreendido” .243 Se nos limitamos à análise de cada parte, sua humanidade.248 C o m o o artista, realiza uma obra de imitação e
produzimos imagens deformadas, verdadeiras em aparência, mas busca, ele também, a verdade profunda, obscurecida pela realidade
destituídas de seu sopro vital: “U m historiador digno desse nome fenomenal. Mas seu desígnio é totalmente diferente. Em vez de
deve expor cada acontecim ento com o parte de um todo, ou, o se elevar acima da realidade, mergulha nela: assim subordinada, a
que dá no mesmo, expor através de cada um a forma da história Phantasie “não age com o imaginação pura, e se nomeia portanto
em geral z*4 Sob esse aspecto, o historiador está na mesma posição m ais justamente intuição e talento de coordenação .249
que o pintor. Com uma desvantagem, entretanto, com o recordará No curso desse mergulho no passado, o historiador visa à
Droysen: enquanto o pintor tem sob os olhos o protótipo, o histo­ ideia. Por trás dos fatores estruturais (seja de ordem mecânica, seja
riador se assemelha a um artista que deve pintar um retrato ou uma de ordem biológica), que dessecam a vida histórica, e por trás das
paisagem de memória. Com base nos relatos dos outros.245 paixões humanas, que reduzem a tragédia da história a um drama
da vida cotidiana, há sempre a força imprevisível da ideia. Esta se
Para transformar os fragmentos esparsos numa totalidade, para
exterioriza com o um prodígio (“une ein Wunder ).2i" Estão aí pro­
encontrar a verdade da forma, a observação imediata não basta. É
posições muito complexas que, ao longo dos decénios seguintes,
preciso, para Humboldt, imaginação:
favoreceram uma leitura idealista do célebre discurso de 1821. o
Os acontecimentos da história, ainda mais do que os fenó­ próprio Wilhelm Dilthey falará de visão antiquada, ainda ligada a
menos do mundo sensível, estão longe de se prestarem a uma uma abordagem metafísica. Esse julgamento me parece excessiva­
leitura direta; sua com preensão é o produto de uma unificação mente severo. Não há dúvida de que, para Humboldt, a ideia é a
entre seu m odo de ser e o sentido que o observador traz de
parte mais viva e mais durável da realidade, aquela que se situa fora
acréscimo, e, com o em arte, nem tudo neles se deixa deduzir
do círculo do finito. C o m o escreve desde 1814:
logicamente por uma simples operação do entendimento, ou
se analisar em conceitos. N ão se com preende o que é justo, A humanidade só pode viver e agir no seio de uma natureza
sutil ou dissimilado a não ser que o espírito se encontre numa inteiramente corporal em sua manifestação, e leva em si mesma
justa disposição para o com preender.24'’ uma parte dessa natureza. O espírito, que a domina, sobrevive
ao indivíduo singular, e o mais importante na históna mundial
O que nào significa, de modo algum, que possamos ou devamos
é portanto a observação desse espínto que perdura, toma tormas
inventar o que teve lugar. Isso somente quer dizer - mas é um
diversas, e muitas vezes desaparece novamente.
somente que está longe de ser simples” - que a compreensão
passado requer essa imaginação para a verdade do real”, Sua concepção da ideia é, no entanto, bem menos idealista do que
d '1 ^ a^lreit ^cs Realen, de que falará Goethe quatro anos parece à primeira vista. Ele mesmo o diz, incidentalmente, quando
^fiTT^rí C j 0 historiador deve ampliar o m áxim o possível seu eu, declara que a ideia não provém do exterior, não precede a vi a,
_e sc weixar penetrar pelas realidades passadas: ele se desin- mas que se trata de uma força profundamente enraizada no seio
- tanto mais perfeitamente de sua tarefa quanto mais deixa agir do homem, que se revela no coração dos acontecimentos. E p
isso que o m om ento inicial, no curso do qual se manifesta o novo,

" “ H" n'b° “ ' ' ** * "*— •w »


“ J o h » , G „ ,u „ H i m .t ^ W ilhelm v o n H u m b o ld t, L a lâche d e 1'historicn, op. cit., p. 70-
« * d . v» u ‘" I b id ., p. 6 8 - 6 9
v_,i. G iV f A y j r i ^ . lh'd., p. 8 2 .
mard, 1 9 8 8 d 157 m A a **•> J r t n i o p o r J e a n C h u z e v ille , Pans, Galli-
P 13/ de d e z em b fo d< IK 2S ) W ilhelm v on H u m b o ld t, C o iis id h a tio n s sur l'histoire m on d iale. op. n t.. p. 51.
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia A h is t ó r ia
O DR A M A D A LIBERDADE

reveste uma importância crucial. Porque estima que os grandes Diferentemente da planta e do animal, o ser humano não é simples­
acontecimentos não aparecem gradualmente, e sim sob a forma mente um exemplar de sua espécie, porque está escrita em sua essência
de súbitos impulsos criativos, Humboldt visa sobretudo à ideia em a capacidade de com eçar e de desviar: “Ele não tem apenas uma vida
estado nascente, sua primeira fagulha: “O oficio do historiador con­ marginal na natureza, mas é, por assim dizer, um novo início”.255
siste, em sua determinação última, que é também a mais simples, em Trata-se de uma singularidade, de um “impulso infinito para ser
expor como uma Ideia tende a ganhar existência na realidade”.252 eu”, capaz de cultivar sua diversidade: “Ele constrói seu corpo físico
segundo as leis da natureza, [...] mas a parte mais tênue, seu corpo
IV morfológico, ético, ele o constrói a partir da essência que está nele,
O elemento em que evolui a história é o sentido da realida­ ou melhor, que não está, mas que devém e quer incessantemente
de, diz Humboldt. Johann Gustav Droysen, autor da História de devir”.256 Por um trabalho sustentado e progressivo, ele encontra a
Alexandre, o Grande (1833) e da História do helenismo (1836-1843), força, não sem dor, de escolher: “Todo seu ser evolui no quadro das
retoma a fórmula colocando-a no plural: a história deve reavivar relações éticas” . Esse impulso do querer é comum a todos, concerne
e alimentar o sentido das realidades. Por ocasião do Historik, curso ao eu de um pensador ou de um artista tanto quanto àquele “de um
sobre o método histórico que ficou célebre, proferido dezoito vezes negro inculto ou de um indolente copta (kopthen)”.257
entre 1857 e 1882, diante de seus estudantes de Iena e de Berlim, O que interessa Droysen é justamente esse tipo de forma
Droysen sublinha reiteradas vezes o caráter antropomórfico de sua (.Fonngebung) individual:
reflexão. ^ Para ele, a históna só existe em presença do ser humano,
As cores, o pincel, a tela de que se servia Rafael, eram feitos de
que chega, através de seus tormentos, a escolhas:
matérias que ele próprio não havia criado: aprendera com tal
ou tal pintor, desenhando e pintando, a utilizar esse material; a
Pode-se dizer que cada grão de trigo é [histórico], uma vez que
contém idealmente toda a vida da planta; o mesmo se dá para cada representação da Virgem , dos santos, dos anjos, encontrava-a
pedra, uma vez que resulta de uma multiplicidade de momentos na tradição da Igreja; tal monastério encomendava-lhe uma

físicos, químicos, telúricos, que nela se perfizeram. Não existe im agem em troca de uma justa retribuição; mas, segundo a
ente que não tenha seu devir, sua história. É , consequentemen- fórmula A = a + x , o m érito de que nessa ocasião, a partir destas
te, totalmente normal que se fale de história natural, de história condições materiais e técnicas, sobre a base de tais tradições e
evolutiva do animal, da planta, da doença, etc. Mas uma sensação de tais ideias, tenha vindo à luz a [Madona] Sistina recai sobre
imediata nos diz que não é a história no sentido em que a enten­ o infinitamente pequeno x . E é sempre assim.
demos, que a pedra e o grão de trigo têm é claro uma história,
Embora infinitamente pequeno, o x é fundamental, já que é ele
mas sem memória nem esperança, sem consciência; uma história
que só podemos chamar história metaforicamente, pois se trata rçue dá à história seu movim ento:
de um processo essencialmente marginal, uma simples sucessão
M esm o se as estatísticas indicam que num país dado nascem
de mutações exteriores, desprovidas de um eu.254
numerosos filhos ilegítimos, se na fórmula A - a + x o a com ­
preende todos os m om entos que explicam com o, entre mil
W ilh elm von H u m b o ld t. U tâche de 1’historien, op. cil.. p. 8 7 . moças, vinte, trinta ou mais procriam fora do casamento [...], entre
Para um a apresentação da teoria da históna de D ro y se n , cf. H o rst W a lte r B la n k e . D irk Fleischer estas vinte, trinta culpadas, será difícil que uma só se console com
n sn T *1COry ol H lsto ry ln H isto n cal L ectu res: T h e G e m ia n T ra d itio n o f Historik.
, * 7 ° ’ •'U ,ír' a " d Theory • 1 9 **4. 23, 3, p. 331-356; A lexan d re E scu d ie r. “ R efo n d er lo
D rn v V n ! r n S jU^ i L ° dyssee du m o n d e éth iq u e ch e z D r o y s e n ", in tro d u c tio n à Jo h a n n Gustav
D roysen, de lhéorie de du ( ^ ^ J p. 23 .
31 fà d ., p 27
Jo h a n n G ustav D ro y sen , H istorik, op . a l „ p. 12-13.
ri"J P 365.
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia à h is t ó r ia O DRAMA d a uberdade

a ideia de que a lei estatística “ explica” seu caso; nos remorsos mesmos para um novo impulso vital; se não fosse assim, esgotariam
das noites passadas a chorar, algumas delas convirão em seu mais suas últimas forças na batalha contra o novo”.261 Ademais, o próprio
íntimo que na fórmula A = a + x, o infinitamente pequeno x conceito de origem lhe parece suspeito, especialmente quando se
tem um peso desmesurado, que abarca todo o valor moral da crê encontrar na origem a essência da coisa, o núcleo vital decisivo
pessoa humana, isto é, seu único valor.258
de um povo ou de uma religião. Mas o que é o último e o mais
Atento ao caráter voluntário da vida humana, Droysen recusa intemo? De fato, o com eço não é mais que uma abstração: “Não é
toda conotação objetiva do povo e, especialmente, aquela que se apenas um com eço, mas ao mesmo tempo o fim e a conclusão de
refere à raça: a transferência de critérios exteriores à etnografia e à uma série de mediações” . Na história, assim como na biografia, nada
história foi para ele uma das piores aplicações do método das ciências jamais começa de nada, cada novo nascimento amalgama resíduos
da natureza, e foi particularmente nociva em seus efeitos.259 Droysen e fragmentos precedentes: “Se quiséssemos observar a vida de um
não podia imaginar o que adviria, em nom e do índice cefálico, homem, de Napoleão, de Goethe, sua primeira obra, sua juventude,
alguns decénios mais tarde. Mas observa que repertonar três, cinco, mesmo seu nascimento seria um início muito relativo; ele vive já no
sete raças diferentes, repartindo-as segundo a forma da cabeça (do- ventre matemo sua história embrionária, a saber, uma quantidade
licocéfala, braquicéfala, etc.), não faz sentido algum, já que existem de influxos que são, é claro, inconscientes” .262
mil variantes e formas intermediárias. Sem contar, recorda ainda, Desejoso ele também, com o Humboldt, de defender o direito de
que cada povo se transforma no tempo: sua essência não é um fato cada um a criar, Droysen superpõe os conceitos de ético e de histórico:
natural, originário, mas o produto de mediações sociais e políticas.
A geologia ensina co m o , por imensas convulsões, tudo agiu na
E por isso que “o que veio a ser [e foi produzido] historicamente se
direção de uma individualização da massa planetária inerte do
toma uma natureza inata dos homens” . Assim, os judeus “não são,
corpo terrestre a partir do m ovim ento sideral [...] A história é,
mas apenas se tomam algo de naturalmente unitário” : “O desejo
por assim dizer, a continuação amplificada desse processo, não
da unidade é um resultado histórico e, uma vez presente enquanto
é mais do que uma nova, uma mais intensa oxidação, de certa
resultado histórico, compreende e abarca todos aqueles que dele
torma a ferrugem nobre (aerugo nobilis) da superfície terrestre;
fazem parte com toda a força da determinação natural”.26" Também
recobre essa superfície com um estrato espiritual e ético, grava
nesse caso, a identidade do povo consiste na consciência, no desejo nela a m arca do ser humano consciente.263
de unidade, seja lá de que natureza for. É evidente aos olhos de
todos que um povo tem bem pouco de originário e nada de intan­ Mas superposição não significa coincidência. Sendo um prodigioso
gível, e que se trata de uma estratificação histórica: “O que poderia encavalamento de casos, de situações, de interesses, de conflitos,
convencer os Magiares da Hungria e os habitantes da Venécia a se 0 mundo ético pode ser considerado a partir de vários pontos de
desfazerem de seu caráter popular para ajudar a construir um novo vista diferentes: técnico, prático, moral, etc. A história o apreende
povo imperial austríaco? Eles têm em seu caráter popular certo te­ ern seu devir, em seu impulso, em seu movimento: "Ela concebe os
souro, mesmo se a perspectiva neoaustríaca está à espreita, ansiosa fenómenos do mundo ético seguindo seu ter-se-tomado; propõe-lhes,
para se desdobrar como sempre está o novo. Tanto melhor para amda que presentes hic et nunc, o olhar retrospectivo graças ao qual
eles se o perigo que os ameaça assim tem a força de arrastá-los em si eles aprendem a conhecer a si mesmos” .21,4 Nessa perspectiva, a ideia

J nn Gustav D ro y sen , D ie E rh eb u n g d er G e s c h ic h te zum R a n g e in e r W isstfn sch aft’'. op. cit.. ' ,b,d ; p. 306-307
p 1 3 -1 4 .
^ P- 161.
Jo h a n n G ustav D ro y sen , H isiorik, op. d l ., p. 3 1 1 .
Ibid., p. 1 5
“ “ Ibid., p. 3(15.
“• M - p- m .
O DR AM A DA UBERDADE
O PEQUENO X - D a BOG UAFIA À HISTÓRIA

dão conta de que os fatos não falam a não ser pela voz daqueles
de inevitabilidade histórica não tem sentido algum. Se a história
que os conceberam e compreenderam.2'’''
quisesse verdadeiramente fazer valer que é preciso explicar o que é
a partir do que foi, excluiria então a livre ação ética. Eis porque o Observa igualmente que o caráter original da fonte não é forço­
historiador deve renunciar a explicar (erklàrerí) o passado: samente uma garantia de verdade, a tal ponto que as falsificações
Não explicamos. A interpretação não é a explicação do que é históricas podem se tom ar testemunhos extremamente preciosos:
subsequente a partir do que é antecedente, do que veio a ser como “A crítica [...] tom a em certo sentido novamente autêntico o que
resultado necessário das condições históricas, mas a interpretação foi reconhecido com o inautêntico, o que quer dizer que ela lhe
do que está presente, desatando e decom pondo de certa forma atnbui seu lugar, as relações que lhe cabem e no seio das quais ele
esse material opaco em toda a riqueza de seus momentos, dos
assume toda sua significação” .270
inumeráveis fios que se ligaram num nó que, por assim dizer,
se reaviva e chega à palavra através da arte da interpretação.265 Apesar de sua importância, a crítica das fontes não constitui, por­
tanto, a essência da pesquisa histórica: “É lá que me afasto cientemente
Podem os com p reen d er porque em nós, os sucessores, do método hoje em voga entre meus confiades: eles o qualificam de mé­
encontram-se as mesmas categorias éticas e intelectuais que inspiraram
todo crítico, enquanto eu coloco em primeiro plano a interpretação .*
as condutas humanas no passado.2'’<' Mas não podemos nem explicar
Com efeito, o material histórico é sempre, ao mesmo tempo, rico e
nem mesmo atingir os fàtos puros: “O fato que denominamos bata­
lacunar demais: “Se colocássemos junto todas as memórias que é possível
lha, congresso ou concílio, grande tratado de paz, não é de maneira
encontrar, todos os tratados e as correspondências da época napoleonica,
alguma um fato, mas antes uma abstração pela qual a consideração
não obteríamos nem mesmo uma imagem fotograficamente correta
humana resume uma quantidade de fatos”.267 Persuadidos de que a
da época; o que encontramos nos arquivos não é a história, mas sao
originalidade e a originariedade coincidem, Niebuhr e Ranke haviam
os negócios do Estado e da administração em sua desoladora extensão,
atribuido ao histonador a tarefa de encontrar a experiência primeira —a
objetividade do fato - , dissolvendo os estratos sucessivos acumulados no que estão tão longe de ser história quanto algumas manchas de cores
curso do tempo. Trata-se para Droysen de uma concepção ingénua e numa paleta estão de formar um quadro”.- " Com mais forte razao,
acanhada do fato histórico: “Infatigável na ‘crítica das fontes’, [a escola a ideia de que os fragmentos do passado sobreviveram em virtude de
cntica] acreditava poder chegar até os fatos puros”.26* Ele afasta a ideia seu valor e de sua significação é uma ilusão, uma vez que os próprios
de pesquisa objetiva em que vê apenas uma banalidade extraviadora: processos de conservação são extremamente aleatórios. Desta forma,
não podemos nos contentar em compreender a documentação, e-nos
So o que é destituído de pensamento é efetivamente objetivo.
preciso pensar a partir da documentação."'1
A partir do momento em que o pensamento toca e abarca as
coisas, estas cessam de ser objetivas. [...] Aqueles que veem
- omo tarefa suprema do historiador o fato de nada acrescentar M Ibid., p. 2 1 8 .

de pessoal, mas de dar simplesmente a palavra aos fatos, não se t b i . p. 127.


^ id ., p. 1 1

. p 2 1 . D e fato , em V orwort, in W eltgeschichte, L eip z ig . 1 8 8 8 , t. I X . parte II, p \ H -IX .


°PÒe o e le m en to sin gu lar às abstrações da h lo s o fu da h istó n a . M as co n testa os
,s Ibid., p 163.
consideram a h istó n a c o m o “ u n ia e n o rm e barafun da de fatos e sublinha qu e o h is io n i i

B eh a JL al ^ X IV ^ ' ° r° ySen and th e Id ea o f V erstehen", J o u r n a l o j H istory o f the v' ° 'le n ie n to singu lar para c h e g a r a um a “ visão geral dos a co n te cim e n to s , ao c o n ec
I*eveloD m em n f H ’ ,, ' ’ p 19; M ic h a e l M a c L e a n , " Jo h a n n G u sta v D ro y se n and the c°n ex à o qu e ex iste o b je c iv a n ie n te n este s” .
’ loh nn r n ^ ^ o r y . 2 1 . o u tu b ro d e 1 9 8 2 . p. 3 4 7 -3 6 5 . Hippolyte T a in e , H istoire d e la littérature a n fla is e , P a n s, H a ch e tte . 1 8 8 5 , e x p n m e - « o » « < ™ ‘”
Jo h a n n G ustav D ro y sen , H istorik, op cit p ,, 4
similares qu and o co m p a ra o d o c u m e n to h is tó r ic o a um a co n c h a fóssil, sim pies m e ,o p » re m o n
* Ib id ., p. 1 1
3 unia totalidade viva.
O PEQUENO x - Da b o g b a f ia à h is t ó r ia O DR A M A D A UBERDADE

A esse respeito, Droysen afirma que o elemento singular só da corrente, e não as massas deslocadas em tal ou tal momento, nem
pode ser apreendido no momento em que é ultrapassado: “Nossa niesmo os bancos de areia. Não é portanto tal povo, tal país que
compreensão se endereça inicialmente ao elemento singular. Mas conta [...], mas apenas aqueles que estão inseridos no movimento da
este é a expressão de uma totalidade que se nos torna compreensível história”.278 Trata-se aí de uma virada maior que lhe permite, entre
justamente graças a ele, enquanto exemplo; e nós a compreendemos outras coisas, manter a ilusão da preeminência histórica do mundo
na medida em que conseguimos atingir, a partir destas totalidades ocidental: “N o plano etnográfico, é importante conhecer todos os
marginais, o centro determinante da totalidade” .274 A exemplo povos e suas condições e, se o género humano fosse semelhante a
de um profeta voltado para o passado (com o o via Schelling), o qualquer outra espécie de criaturas, isso poderia bastar. Mas o gé­
historiador usa o fragmento para deixar filtrar um presságio do nero humano tem sua essência no progresso, na história. A história
todo.27í> E por essa razão que deve renunciar aos diferentes eus é o conceito genérico da humanidade. E o movimento ascendente
reais, imediatos, que povoaram o passado. Droysen imagina um contínuo, o summwn que guia o processo, é inerente a esse conceito.
ateliê onde gravadores, cinzeladores, soldadores trabalhariam em
Eis porque - se essa tautologia não nos repugna - reivindicamos a
concerto na criação de uma escultura metálica e comenta que,
históna da civilização unicamente para os povos civis”.279
querendo descrever o que cada um faz exatamente, não se obtém
nenhum conhecimento efetivo da estátua que todos contribuem, V
no entanto, a construir. Isso equivale a postular que o eu empírico
deve ser tratado como forma fenomenal do eu universal: se existe Na virada do século X X , em pleno debate sobre o método
uma história “podendo legitimamente ser definida com o história, histónco, o Methodenstreit, os pensamentos de Humboldt, de Ranke
[...] só pode ser aquela em que o eu universal se manifesta em seu e de Droysen reencontram sua importância. Filósofos, sociólogos,
devir”.276 Como escreve abruptamente em Grundriss der Historik, economistas, historiadores se interrogam sobre o estatuto de suas
a história se situa acima das histórias: “Tal casamento, tal obra de disciplinas. Existe um só tipo de conhecimento? As ciências humanas
arte, tal Estado particular, são — respectivamente — para a ideia da
devem se conformar ao modelo das ciências da natureza? Devem
família, do Belo e da potência o que o eu empírico efémero é para
privilegiar o princípio de causalidade? E se as generalizações não
o eu em cujo elemento o filósofo pensa, o artista cria, o juiz julga,
fossem mais do que lugares-comuns?
e o historiador conduz suas pesquisas. É este eu geral, o eu da hu­
manidade, que é o sujeito da históna”.277 A polémica explode entre os historiadores em 1896, quando
Karl Lamprecht, que acaba de terminar uma monumental Deutsche
Resolvido a defender a história contra as histórias, Droysen
renega, nas últimas páginas do Historik, todas suas reflexões sobre a Geschichte, publica um artigo com plexo em que assimila a história
natureza multiforme do passado. O H om em universal se sobrepõe à psicologia aplicada, que estaria assim em condições de estabe­
aos seres humanos, e a história é recentrada, uma vez ainda, sobre a lecer as leis gerais do devir.280 A intervenção mais notável, por
ideia de progresso: "O que importa, é a corrente das águas, a direção sua riqueza, mas também por sua inoportunidade, é sem dúvida
aquela de Eduard M eyer. Esse historiador é célebre sobretudo

Jo h a n n G ustav D ro y sen . H istorik. op. d t ., p 2 8 .


fora de sua disciplina por ter assinado, assim com o o filólogo
m Ibid., p. 3 8 . ’

P essa optica. D roysen em p rega o te rm o de m icro-história e a d e fin e c o m o " a n u crolo g u


^ C ' m P ' tl u en o ** grandes coisas e em grande as p eq u en as; é o rip o de co n sid e ra çã o própna Johann G ustav D ro y se n , H isto rik , op . d t ., p. 3 7 2 .
c ura, que aceita ap reen d er o q u e a c o n c e r n e sem c o n e x ã o c o m o q u e é elevado c m lbid„ p. 3 8 0 - 3 8 1 .
^ s u p r e m o , e te -lo co m o im p ortan te p elo sim ples fato de a c o n c e r n ir ” . C'f- W as ist K u ltu rg e sch ich te ?” , o p . d t. Q u a n to à reflexão de L am p rech t, c f o cap ítu lo O lim iar
Jo h a n n Gustav D ro y sen , Préds de T héorie de V H istoire, op . d l . , p. 8 6 . biográfico".

102 103
O PEQUENO X - Da b io g r a f ia à HISTORIA O D R A M A DA UBERDADE

Ulrich von Wilamowitz-Moellendorff, o físico M ax Planck e o Para Meyer, a livre vontade {freie Wille) e o acaso (ZUfall)
filósofo Wilhelm Windeband, o M anifesto dos 93 que, em 4 de assumem importância crucial.28’ Apesar do peso das circunstâncias
outubro de 1914, defendia a invasão alemã da Bélgica. Ele foi extenores, os indivíduos estão livres para efetuar escolhas voluntá­
um dos mais ferventes e irredutíveis adoradores do Estado que a rias: “Na vida real imputamos a causa de nossas ações e daquelas de
Alemanha produziu antes da grande catástrofe. Por estimar que outrem a uma vontade que é, por certo, influenciada por reflexões,
o homem singular, postulado pela doutrina do direito natural por disposições psíquicas, pela pressão dos outros, mas que não é
e pelas doutrinas contratuais, é uma construção abstrata, afirma
menos livre em sua decisão” .286 A conquista da Ásia repousa sobre
que a humanidade se constituiu em formas associativas desde a
uma decisão de Alexandre que Felipe ou Parmênio não teriam to­
ongem. Em outros termos, na querela, política por definição,
mado, assim com o a guerra dos Sete Anos e a de 1866 são o fruto da
sobre a ongem do Estado, sustenta que esse não é uma construção
personalidade de Frederico II e de Bismarck: outras personalidades
histórica, mas prolonga uma forma originána e eterna da cole-
teriam procedido diversamente, e o curso da história teria tomado
tividade humana.281 A Primeira Guerra Mundial teria tido assim
o grande ménto de manifestar a centralidade absoluta do Estado uma direção totalmente diferente. Ademais, existem milhares de
e de obngar os seres humanos a finalmente sentirem na pele sua exemplos concretos de incidentes fortuitos que marcaram o curso
insignificância enquanto indivíduos...282 Mas M eyer é igualmente da históna e cujos efeitos ainda são constatados séculos mais tarde.
um grande antiquizante, um profundo admirador de Tucídides e O acaso quis que os atentados contra Guilherme I e Bismarck fa­
o autor de uma obra notável, História da A ntiguidade,283 que, du­ lhassem e que aqueles contra Alexandre, Cesar ou Alexandre II da
rante os decénios precedentes, defendeu vigorosamente o valor Rússia dessem certo; o mesmo sucede com Gustave Adolphe, morto
da autonomia pessoal. Convidado à Universidade de Halle, em no campo de batalha de Lútzen, enquanto outros valentes coman­
14 de junho de 1902, pronuncia uma conferência em que critica dantes escapavam; ou com Rafael e Schiller, mortos tão jovens, ao
Lamprecht por ultrajar a riqueza infinita da história: “As figuras
contráno de Michelangelo ou de Goethe. Em suma,
vivas são suplantadas por pálidos fantasmas e vagas generalidades.
Ainda que as novas fórmulas fossem escolhidas com primor e [...] quem quer expulsar o acaso e o querer da história, ou rebai­
conseguissem evocar imagens mais precisas, ganharíamos bem xá-los à categoria de elementos contingentes, não somente anula
pouco com isso, justamente porque elas devem deter-se naquilo toda sua vitalidade florescente, [...] mas destrói completamente

que é mais geral, jamais podendo assim fazer justiça à infinita sua essência para substituí-la por fórmulas (como individualismo,

multiplicidade da vida” .284 ou econom ia natural e monetária, ou luta pela existência, ou


luta de classes), às quais falta um conteúdo concreto.

Luigi C apogrossi B o lo g n esi, Ed uard M e y e r e le te o r ie suH’o rig in e d e llo S ta to " , Q u a d e m i


Quando fala de acaso ou de liberdade, Meyer não pensa nem
F io ren ttn i p e r la storia d e l p e n s ie r o g iu rid ico , 1 9 8 4 , X I I I . p. 4 5 1 - 4 6 9 . numa força metafísica nem numa substância mítica. Sua óptica e
i-ihi"* |
3 ^ ° SI^ *° P ° * 'Qca de M e y er, cf. L u cian o C a n fo ra , Id eolog ie d el classicism o, T u n n , Einaudi, puramente lógica. A oposição entre liberdade e condicionamento
uciano C anfora, Innlettuali in C erm an ia ira reazion e e rivoluzione, B a n , D e D o n a to , 197 9 . A
p p suo os constantes amálgamas en tre h istóna e p o lítica, F ra n cesco B e rto lin i (“ Ed uard M eyer, causal não está enraizada nas coisas, mas depende dos pontos de vista.
uno sto n co universale", Q n adcm i di storia, 1 9 9 1 , X V I I , 3 4 , p. 1 6 5 - 1 8 2 ) sublinha q u e em 1 9 1 4 M eyer
p ra a nm eira juerra M undial à guerra am baliana. sustentando q u e a A lem a n h a te m o m esm o
pe q o l™ ^sua derrota significaria o advento da suprem acia C ontinental da R ú ssia), enquanto Assim co m o G o e th e , e le cr ê f irm e m e n te q u e "n a d a a c o n te c e de im c io n a l q u e a razao o u o acaso
rirfpnc A “ ! . l 0 n l j 10' descreve a A lem anha c o m o C artago e Paul v o n H in d en b u rg co m o o não possam re co n d u z ir à reg ra. N a d a a c o n te c e de racio n a l q u e a razão o u o acaso n ão possam
o r o p ura ,smo de Estado em face d o po d er m undial, en carn ad o pelos Estados U n idos.
fazer desviar” . C f. J o h a n n W o lg a n g G o e th e , M a x im en im d R eflex io n en , op. cit., n. 7 0 . p. 31

E G e u th le r erÍ9í I ,2 ,0,rf ^ t 1 8 8 4 ' 1 9 0 2 )- " a d u z id o d o a lem ã o p o r M a x im e D a v .d , Pans, Eduard M e y er. Z u r T h e o n e u n d M e th o d ik der G eschichte, op. cit, p. 2 0 - 2 1 . C f. ig u alm en te, Eduard
M eyer, T h e d e v e lo p m e n t o f in d iv id u a lity in A n c ie n t H istory ( 1 9 0 4 ), in K lein e Schriflen, op. a
** Eduard M ey er, Z u, T h e o n e und M eth od ik der C eschichte, op. a t , p. 12.
Eduard M e y er, Z u r T h e o n e utid M e th o d ik der G eschichte, op. cit., p. 2 8 .

105
O PEQUENO X - D* BIOGRAFIA A HISTÓRIA O D R A M A DA UBERDADE

se consideramos o passado com o alguma coisa que aconteceu, que individuais últimos” .291 Nesta perspectiva, a noção de lei histórica fica
se estabilizou, se realizou [das Cewordene], ou, ao contrário, como destituída de sentido. Se a livre vontade e o acaso desempenham papel
um processo movente e em constante devir [werdetid], O historiador fundamental na vida humana, religar os fatores individuais às leis gerais
deve escolher a segunda opção, já que, no mundo do espínto, os não pode então bastar (como o próprio Meyer pensava poder fazer
processos causais nada têm de mecânico, não são o efeito de leis durante certo tempo). Tratar-se-ia de um compromisso hipócrita. É
naturais agindo cegamente, mas forniam um entrelaçamento de
preciso reconhecer que não existem leis históricas, que o conceito de
representações e de motivos que provocam e determinam a decisão
lei histórica é antinômico: “Em verdade, no curso de longos anos de
humana. Assim, o resultado jamais é necessário enquanto não tiver
pesquisa histórica jamais descobri uma lei histórica ou tive conheci­
ocorrido, ele não é mais do que uma das infinitas possibilidades que
mento de uma lei histórica encontrada por quem quer que seja”.292
existem: “Para que se torne realidade, depende da livre vontade
Mesmo no domínio da economia, só existem regras deduzidas por
que avalia as razões, estabelece objetivos e age em vista desses ob-
jetivos. [...] Em toda ação humana, jamais vamos além do eu quero comparação e por analogias. C om o o princípio segundo o qual certas
como causa imediata; assim, quando tentamos compreender um formações políticas estão ligadas a certas fases do desenvolvimento
ato voluntário que teve lugar com o se estivesse em devir, jamais económico; ou a ideia de acordo com a qual um povo incapaz de
podemos afirmar que a decisão não poderia ter sido tomada em assegurar suas necessidades alimentares deveria se consumir em lutas
sentido inverso” . ^ Pela mesma razão, o acaso e a necessidade não intestinas e necessariamente tentar provê-los alhures, através de razias
são propriedades inerentes às coisas, mas categorias lógicas relativas. ou do desenvolvimento do comércio e da indústna; ou ainda o postu­
Se todo acontecimento é a um só tempo causa e efeito, de acordo lado de que o aumento do bem-estar acarretaria uma degenerescência
com o ponto de vista de que se o observa, do mesmo modo ele da força física da população. O conhecimento histórico não confirma
é tão necessário quanto acidental: “Ele nos parece necessário se o nenhum desses princípios:
consideramos no encadeamento de sua própria série causal, enquanto
fim último desta; ele nos parece acidental se o vemos do ponto de Considerados em si mesmos, sob o aspecto histórico, não são

vista de uma série causal exterior, com a qual interfere no tempo e mais do que conceitos vazios: ainda recebem seu conteúdo

no espaço e sobre a qual exerce um efeito” .289 graças à infinita riqueza da multiplicidade, que está contida
nos processos históricos particulares. [...] A necessidade que
Sublinhando a importância da livre vontade e do acaso, Meyer constitui a essência de uma lei natural (segundo a qual quando
corrobora o destino singular da história: “Diferentemente das ciências A se produziu, B deve forçosamente ter lugar) está inteiramente
naturais, a história jamais lida apenas com a água, com o ar e com as leis ausente em todas essas regras; elas assinalam apenas a possibili­
que os regem, mas se refere a este copo d água bem real e ‘singular’ ou dade — e frequentem ente várias possibilidades lado a lado —do
a esta chama Embora fundamentais, as condições gerais nunca são, curso histórico por vir.29'1
em si mesmas, fàtores históricos. Quando muito, constituem uma base
Se nenhuma lei do social é identificável, a culpa não é da in­
que age em negativo e traça os limites no seio dos quais permanecem as
suficiência intelectual dos historiadores, nem das deficiências da do­
possibilidades infinitas do curso da históna: “A mutação de uma dessas
cumentação. A ausência de leis é a própria essência da história: Em
possibilidades em realidade, ou em fato histórico, procede dos fatores
todo momento concorre uma massa de fatores, e cada um é por sua

“ iw.p i9-au
81'W . p . 55.
•' . p, ^
1,2 Ibid., p. 32.

" l h li • P- 33.

106
107
O d r a m a d a uberdade
O pcq u & j o x - Da b o g h a fia à história

Todas as nações presentes na Europa são produtos históricos


vez o efeito de um grande número de outros fatores; as séries causais
e x tr e m a m e n te tardios, constituídos sob a influência dos aconteci­
se ramificam a contrapelo em cada um deles até o infinito, à imagem
m entos mais disparatados” . C om palavras muito próximas daquelas
da árvore genealógica de cada homem” .294 Dito de outro modo, no
mundo histórico a causa não é um fator, mas um processo no qual se que usam à mesma época os inimigos Emest Renan e Fustel de
entrecruzam incessantemente uma multidão de elementos. Como já C o u lan g es, Meyer acrescenta que a

escrevera Wilhelm von Humboldt em 1791, cada ação humana é o [...] nacionalidade não repousa necessariamente sobre a unida­
produto de inumeráveis forças agentes e o mesmo se dá, mas de ma­ de do grupo étnico, sobre os laços de parentesco estreitos de
neira exponencial, com os acontecimentos coletivos.295 Sem dúvida, um ou de vários grupos humanos, ou sobre a homogeneidade
seria possível estabelecer certas regularidades no caso de um homem da língua, dos costumes, da religião, etc.; ela não é de modo
que vivesse isolado num meio constante, ou de gerações sucessivas algum [...] a expressão destas manifestações, em que a unidade
originariamente inconsciente se teria tomado consciente com
sem contato com o exterior. Mas esses casos não existem: na realidade
a evolução histórica; ao contrário, a maior parte das nações
histórica, não são mais do que abstrações, construções ideais inadequa­
com preende grupos étnicos muito diferentes.298
das à compreensão do passado. E por isso que o historiador procede
de maneira retrospectiva, ascendente: ele só pode indicar a posteriori Certamente não é a etnia que faz a nação: existem no Reino Unido
as razões do que adveio e nunca estará em condições de predizer os ao menos seis diferentes grupos étnicos (ingleses, escoceses, galeses,
acontecimentos por vir, nem mesmo aqueles do dia seguinte.296 celtas, judeus, irlandeses de língua inglesa e de língua celta). Não
O acento posto sobre o querer permite a Meyer escapar, por é tampouco a língua: os suíços e os alemães pertencem ao mesmo
um tnz, a uma concepção naturalista, objetiva, da nação. Durante os grupo étnico, falam a mesma língua, mas não querem ser confundi­
anos difíceis que seguiram a guerra tranco-prussiana de 1870, nume­ dos. E também não é o Estado: os italianos e os alemães perceberam
rosos historiadores alemães (a começar pelo Prémio Nobel Theodor seu pertencimento nacional com um , mesmo provindo de vários
Mommsen) recusam o princípio de autodeterminação dos povos, Estados diferentes. Em suma,
sustentando a teoria da nacionalidade inconsciente, segundo a qual o
A nacionalidade repousa sobre o querer, a saber, uma ideia. Uma
pertencimento nacional tem valor superior e antecedente a toda vontade
nacionalidade é ahrmada por esses grupos humanos que, sobre a
singular e coletiva."' O que significa dizer cruamente que a Alsácia e
base de uma tendência qualquer, querem formar uma unidade e
a Lorena devem fazer parte do novo Reich, pois são alemãs no plano
querem se engajar ativamente nesse sentido: a atividade faz parte
linguístico, cultural, religioso e racial. Ora, a despeito de sua adoração
disso; graças a ela distingue-se a nacionalidade do grupo étnico. A
pela Prússia, Meyer não partilha essa ideia. Seguro do fato de que os unidade política e a independência constituem a atividade suprema
valores são tais graças à livre vontade do homem, afirma que as nações e geralmente o objetivo a que tende hoje a nacionalidade, mas não
nada têm de dado, de necessário ou de originário. São, ao contrário, estão necessariamente incluídas em seu conceito.- ”
produções históricas extremamente complexas e estratificadas:
Essa defesa vibrante do querer individual suscita duas questões
bastante delicadas. A primeira concem e à fronteira entre o social e o
i* c B ^ * ^ el" n c *1 ^-lc^ertt D ir G ren xen der n atu nn ssen schaftlichen Begriffsbildung. Tiibingen,
' l 1* ** P- 2 5 1 - 2 5 7 ; G e o rg S im m cl, L es Problèm es d e la p h ilo s o p h ie d e 1'histoire. Une
individual, e a segunda, à seleção do passado. Assim como Droysen,
n u J r d tp u tim o lo y c (1 K‘J2 ) , traduzido d o alem ão p o r R a y m o n d B o u d o n , P U F , 1 9 8 4 , cap. 2.

VV*lhelm von H u m b old t, U ber die G e s e u e der En tw icklu n g der m enschlichen K r à fte , op. cit.
K u « d e u .ir tilh a d a por W ilh elm D ilth ey , é criticada p o r M a x W e b e r q u e insiste na previsibilidade Eduard M ey er, Z u r T h e o n e u n d M e th o d ik der G eschichte, op . cit-, p. 3 8 .

| Htamenio hum ano. Ètudes critiques pou r servir à la logique des seierues d e la culture (1 9 0 6 ), in “ p. 4 0 . C f. E m e s t R e n a n , Q u 'est-ce q u 'u ne n ation? ( 1 8 8 2 ) , in O euvres com plttes d 'E m est R en an .
^ fc-.ii. sur la ihíorie de la science, traduzido do alem ão p o r Ju lie n F reu n d , P an s, P lo n , 1 9 6 5 , p. 2 1 5 -3 2 4 . pans, C a lm a n n -L é v y , 1 9 4 7 ; N u m a F u stel d e C o u la n g e s, L 'A lsace est-elle allem an d e ou fia n fa ise ?

( £ T heod or M om m sen, “ Lettere agb italiani (1 8 7 0 )". Quadenu d, s tona, 187 6 , II. n. 4 , p. 1 9 7 -2 4 7 . A ideia Repouse à M onsieu r M o m m sen ( 1 8 7 0 ) , in F ra n ço is H a rto g . L e X I X siM e et 1'histoire. L e cas d e Fustel
orulidade inconsciente sera retomada a seguir na Itália pelo p n m eiro-m in istro Francesco Cnspi. * Coulanges, Pan s, É d m o n s du S e u il, 1 9 8 8 , p. 3 9 8 - 4 0 4 .

109
O PEQUENO x — Da b io g r a f ia à h is t ó r ia O DR AM A DA UBERDADE

Meyer pensa que o ser humano é formado de duas partes diferentes a outra numa relação de tensão. Assim, um limiar íntimo e fugidio
contíguas mas distintas: reveste os traços de uma fronteira física clara e definitiva. Essa con­
cep çãodicotômica se abre sobre um abismo.302 Insiste na necessidade
Aos fatores que influem sobre o querer do indivíduo, sejam eles
de estudar o elemento singular, único capaz de expressar a tonalidade
processos naturais ou as ideias de outrem , é preciso acrescentar
dramática da história, ao mesmo tempo, porém, em que decreta a
com o fator decisivo o caráter espiritual deste indivíduo; sobre
esse caráter repousa com efeito a essência da decisão, tanto o im possibilid ad e de compreendê-lo historicamente: fechado, autó­

sentido que toma quanto a energia com que é tomada, firme­ n o m o , in a c e s s ív e l, mostra-se estranho ao tempo. Enquanto animal
mente mantida, executada - ou tam bém , ao contrário, a falta sociável, o ser humano está pnvado de sua capacidade de agir, e como
de uma decisão firme, donde para aquele que é posto em causa individualidade, o está de sua historicidade. No entanto, em 1877,
o abandono sem vontade aos acon tecim en tos.300 R a n k e já alertara contra tal oposição, pois o conflito se encontra não
fora do homem, mas em seu seio: “ Mesmo na história, liberdade e
Em outros termos, existe uma substância externa, que tem os traços
necessidade lutam e se condicionam reciprocamente. A liberdade
da uniformidade e que representa a necessidade: aí está tudo o que
aparece mais na personalidade e a necessidade sobretudo na vida da
Napoleão ou Bismarck tinham em com um com os outros homens.
comunidade. Mas a primeira é, portanto, um inteiro definido e a
E há uma substância interna, fechada, associai, impermeável ao
mundo, que se desenvolve em plena e absoluta autonomia: ela varia segunda um absoluto incondicionado? .303
de uma pessoa a outra, é única e representa a liberdade. A atividade O abismo revela toda sua profundidade na segunda parte dessa
ética é o produto desse fechamento e está, por conseguinte, ligada mesma conferência de Halle, quando Meyer volta à questão, susci­
à natureza transcendente, não empírica, do indivíduo: tada em 1894 pelo filósofo neokantiano Wilhelm Windelband, dos
criténos que convém adotar na seleção do passado.3 O primeiro
Infinitas impressões e ideias chegam incessantemente a cada
é bastante simples: circunscrever a história apenas e essencialmente
um, pelos sentidos, pela educação, através da relação com os
àquela do homem. O segundo não depende de nós, mas da even­
outros, o divertimento e a instrução, a leitura: mas em todas
as epocas culturais, das mais primitivas às mais evoluídas, cada
tualidade de que alguma coisa tenha sido conservada . E depois?
homem se distingue dos outros pela maneira co m o as absorve Mesmo que uma parte da documentação tenha sido destruída, o
e ainda mais pelo que aí põe de si m esm o. Q ue ele traga novas número de testemunhos que subsistem estará sempre acima de
ideias criativas, no domínio da arte, do valor ou do pensamento nossas possibilidades. C om o fazer a triagem? O que se deve excluir
reflexivo e científico, depende exclusivamente de sua individua­ e o que salvaguardar? Em acordo com Friedrich Schiller, Meyer
lidade. essas novas ideias se manifestam espontaneamente nele.'"1
propõe, com o terceiro critério, a eficácia histórica dos fenómenos
, ç ^ soc,al e o individual são apresentados com o duas substâncias (,historiche Wirksamkeit): o que foi não interessa porque foi mas porque
erentes, que podem se influenciar reciprocamente, mas que perma- continua a agir.305 Em termos mais simples, trata-se de reter apenas
ecem sempre, o que quer que aconteça, separadas e profundamente
tran as uma à outra, cada uma por sua conta, e mesmo uma contra
Sobre o p e n sa m e n to d ic o tô m ic o , cf. N o tb e r t Elias, L a S ociété des m dividus ( 1 9 8 7 ) . traduzido do

alcm âo p o r J e a n n e É to r é , Paris, F ayard , 1 9 9 1 .


Leopold von R a n k e , p re fá cio a H istorisch -B iog rafisch e S tudien, in Sámmr/if/ie W erke, p .
essa Id tia ^ M e'h o d lk àer G eschichte, op. cit., p. 1 7 - 1 8 . N esses m esm o s anos, 41. P- V - V l , cita d o p o r F u lv io T e s s i.o r e , T eoria d el V en tehen e tdea delia W el,geschichte ,n R a n k e .
introdução a L e o p o ld v o n R a n k e , ( Jb e r d ie E p och en der n eu em i G eschichte, M u n iq u e ien a,
partilhada por ° r f T " 1 d “ “ COn* iín c ia s - u m a '"d iv id u a l e a o u tra co len v a, é
W illiam S Pi , , , , „* " ran^o ls_A n dré Isa m b ert, " D u r k h e im e t 1’in d iv id u a lité” , O ld en bo u g V erla g , trad. I t ., L e ep och e delta storia m odern a, N ápoles, B ib lip o lis, 1 i P

mian Tradition O f* u "i” ^ M lllc r ‘ ' ,lf h d iv id u a lis m a n d H u m a n R ig h ts tn th e D urkhei- W ilhelm W in d e lb a n d , " H is to ir e et S cie n ces de la n atu re. D isco u rs p ro n o n cé au r^c
- E t ' Sh C c n tr c D - k h e i m . a n S tu d .es, 1 9 9 3 , p. 5 - 3 1 . boug (1 8 9 4 ). trad u zid o d o a lem ã o p o r S ilv ia M a n c im , L ts études p h ilosop h iqu es. 2 , p. - ■
V ' ' p ,M
Fn edn ch S ch ille r, “ Q u 'a p p e lle - t - o n h isto ire u n iv e rse lle ? '’, o p . cit.

110
111
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia A HISTÓRIA O D R A M A DA UBERDADE

o que engendrou efeitos marcantes. A seleção não visa à qualidade "A obra histórica mais significativa do passado [...] jamais pode
dos objetos, mas sua potência causal: o historiador não estuda Platão satisfazer inteiramente o presente: todo presente coloca problemas
ou a Capela Sistina em sua totalidade, mas se concentra apenas nos diferentes daqueles das gerações precedentes, pois considera outros
aspectos que lhe parecem historicamente eficazes. Está aí a razão da fatores como determinantes” .309
preeminência dos povos civis: eles foram e são os mais operantes... Os mesmos critérios de seleção se aplicam à biografia. Meyer se
Alguns anos mais tarde, o historiador romeno Alexandru Xenopol,
interessa apenas pelas personalidades historicamente determinantes,
leitor atento da conferência de Halle, proporá algumas ilustrações
aquelas de que se pode dizer que, se houvesse outra pessoa em seu
surpreendentes desta regra histonográfica: por exemplo, a migração
lugar, o acontecimento teria tomado outra forma. Todas as outras
dos fenícios para a estreita língua de terra encostada nas montanhas
lhe são indiferentes. A distinção entre determinante e indiferente nada
do Líbano representa certamente um fato histórico importante em
tem a ver com a grandeza ou o valor espiritual da pessoa. Alguns
razão das consequências intelectuais de que foi portadora, mas não se
pode dizer o mesmo das migrações dos árabes da península arábica e grandes homens - é este, segundo ele, o caso de Cesar - não
daquelas dos beduínos do Saara. Mesmo raciocínio quanto à peste: a deixaram sua marca, à diferença de espíritos inferiores, por vezes
peste negra que devastou a Inglaterra, no meio do século XIV , teve mesmo desprezíveis, com o Luís X V ou Carlos II da Inglaterra, que
repercussões sociais e políticas consideráveis, enquanto as epidemias influenciaram profundamente o porvir de uma nação:
que afligiram o Onente desde tempos imemoriais produziram apenas
C om o se pode constatar, não se trata da significação ou do valor
inumeráveis mortos, e são, portanto, historicamente negligenciáveis.30,1 da personalidade em si, mas do fato de que tal ou tal perso­
Com o quer que seja, não basta limitar o terreno ao que foi nalidade — em razão de sua personalidade, ou pelo fato de seu
historicamente eficaz. É preciso em seguida introduzir um último nascim ento, ou ainda em virtude do voto e assim por diante
pnncípio de seleção, em nome da atualidade: “A escolha repousa —se encontrou em face dos acontecimentos numa posição que
sobre o interesse histórico que todo efeito reveste para o presen­ a viu se tornar um fator determinante do processo histórico.
te . Para Meyer, assim com o para Droysen, o passado não é um
Sobre a seleção do passado não pesa mais o princípio de grandeza,
património perdido que deve ser recuperado, mas uma herança
viva, uma força, uma energia geradora de sentido. Cada fenómeno mas aquele de operatividade ou de eficácia. Alguns anos antes, o
pode ser digno da história, tudo depende de sua vitalidade e de sua tilósofo Heinnch R ickert escrevera que o fato de Frederico Gui-
repercussão. O objeto [de interesse histórico] pode tanto ser um lhenne IV ter renunciado à coroa imperial era um acontecimento
homem particular quanto uma totalidade, um povo, um Estado, histórico, mas que era perfeitamente indiferente saber que alfaiate
uma cultura, mas nenhum objeto interessa por si mesmo, pois de confeccionara seu uniforme.311 Embora partilhando a distinção en­
agora em diante ele é ou foi no mundo, mas importa unicamente tre homens determinantes e indiferentes, Meyer não exclui a pnori
em razão do efeito que produziu e produz ainda” .307 Isso significa a possibilidade de que um alfaiate pertença à primeira categoria,
que a históna não é um saber independente das paixões do mo­ considera óbvio que sua presença é absolutamente insignificante no
mento, como pensava Ranke,3"" mas uma forma de pensamento plano político, mas concebe que ele possa influir na história da moda
erto, que modifica incessantemente a hierarquia dos fenómenos: ou da indústria da costura ou naquela dos preços. Essa perspectiva

xandrn D . X e n o p o l. L a T h eon e d e VH istoire, Pan s, E m s t L e ro u x , 1 9 0 8 Eduard M ey er, Z u r T h e o n e u n d M e th o d ik der G esch ich te, op. cit., p. 4 8 . C f. ta m b e m Jo h a n n G ustav
^ uard M ey er. Z ur T h e o n e u nd M eth od ik der G eschichte, op. o t . , p 1 1 0 -1 1 1 Droysen, H istorik, op . cit., p. 1 0 sq.
L eopold von R a n k e . " O b je k t.v e C e s c h ic h ^ c h r n b u n g " ( , 8 4 5 ) . ,n VorlesunXsein,eitung t n, op. ri,.. Eduard M e y er. Z u r T h e o n e u n d M e th o d ik d er G eschichte, op . cit., p. 6 2 .
H einnch R ic k e r t, D ie G r e n z m der n atu ru issenschaftlichen Begriffsbildim g, op. a t ., p 3 2 5 .

112
1 13
O PEQUENO X - Da b io g r a f ia à HISTORIA O DR A M A DA UBERDADE

supõe ao mesmo tempo um trabalho interminável de demarcação críticos para com esse “fanático, destruidor e devastador de tudo o que
entre o geral e o singular: o historiador deve inicialmente selecio- é a verdadeira história” que era a seus olhos Karl Lamprecht:314 Otto
nar a realidade, distinguir o indivíduo determinante daquele que Hintze, que subtraiu a história constitucional do domínio estritamente

é indiferente, para depreender em seguida das profundidades do jurídico para lhe dar sua dimensão humana, e Friedrich Meinecke, autor
indivíduo o elemento particular, único, de sua personalidade. Como de um ensaio fundamental sobre as origens do historicismo.
escrevera o ministro da Guerra Albrecht R o o n , em 27 de julho de
1864, pouco antes da assinatura do tratado de paz entre a Prússia e a
VI
Dinamarca, o gênio histórico é aquele que sabe “ traçar exatamente
Hintze intervém no Methodenstreit em 1897 com dois textos con­
o paralelogramo das forças, e deduzir da diagonal, isto é, do que
cisos publicados na Historische Zeitschrifi e no SchmollersJahrbuch. Neles,
teve lugar - que é a única coisa que se conhece verdadeiramente - a
reconhece a pnmazia da componente psicológica na vida histórica:
natureza e a classe das pessoas que agiram” .312
“A abordagem psicossociológica é talvez a aquisição mais importante
Será mesmo essa a tarefa do historiador? C om o escreve Max desde o fim do século precedente no domínio das ciências humanas.
Weber em seu denso texto consagrado justamente às reflexões de Suas raízes se encontram já em nossa época idealista: quando Hegel
Meyer, o projeto que consistia em distinguir o eficaz do insignifi­ falava do espírito objetivo e Jacob Grimm da alma do povo ( Volkseelé),
cante, o determinante do indiferente, e o individual do social, estava ambos evocavam forças mentais coletivas que são o produto de um
destinado a permanecer inacabado:
processo relacionado à psicologia das massas”.315 E por essa razão que
Percebe-se [...] que seria impossível levar a term o, mesmo no o historiador deve estudar, além dos aspectos mais visíveis da política
futuro longínquo, esse exercício de subtração, e que após ter (“as cadeias e os cumes”), o nível sociopsíquico de uma época ( a
feito abstração de toda uma infinidade de “caracteres comuns” base das montanhas, a massa continental em seu conjunto”).31h Sua
[Gemeinsamkeiten], subsistiria sempre uma infinidade de elemen­ definição da psicologia difere, entretanto, da de Lamprecht.
tos, de maneira que, mesmo que perseguíssemos com zelo durante
Para ele também, a génese dos fenómenos históricos reside nos
toda uma eternidade esse esforço de abstração, não teríamos
atos psíquicos coletivos: “ N ão há outras forças motrizes na históna
nos aproximado sequer um passo da questão: o que no fundo
além daquelas de que o hom em é o vetor, não só o homem, claro
e essencial para a históna nessa massa de particularidades.313
está, em sua existência individual, mas sobretudo em seus laços so­
Mas consideremos por um instante que o impossível seja possível: ciais, no seio dos quais são engendradas essas forças mentais coletivas
queremos verdadeiramente nos desfazer de tudo o que não teve que são o núcleo vivo de todas as instituições . No entanto, com
consequências práticas particulares sobre nós? E se isso pudesse meias palavras, Hintze estende a iniciativa pessoal a toda vida social.
nos ajudar a melhor captar a diversidade do passado? E se isso nos
O m om en to individual intervém também no acontecimento
permitisse lançar luz sobre pensamentos, imagens e ações férteis
coletivo, desem penhando, na transformação da língua e da
em termos de significação humana? E se isso, justamente graças ao
recuo, abrisse o caminho de uma crítica do presente?
"* A definição é de F rie d rich M e in e c k e , D ie deutsche G eschichtsuissetischaft und die m od em en Bedurfm sse
Sem dúvida, Meyer poderia ter tomado outra via. É o que fizeram,
" '» 1 6 ). in Zur T h coric „ „ d P h ilo s o p h ie der G esch ich te, op. C it ..p. 1 7 3 - 1 7 4 . D e sua parte, M a x W e b e r
em seu lugar, dois outros grandes historiadores, eles também muito chegou m esm o a q u a lific á -lo d e “ ch a rla tã o d e so n esto da p io r esp écie
^ tto H in tze, C on cep tioti in d iv td u aliste et coticcplton colletiviste d e l H istoire ( 1 8 9 7 ) , in F eo d alitt, capi
túiisme et É tat m o d en ie, tra d u z id o d o a le m ã o p o r F ra n ço ise L a ro ch e , Pan s, É d itio n s de la M aiso n
Eduard M evcr. Zur T h eon e Ul,d M eth od ik d e , G eschichte, op. cit.. p. 6 4 .
des S ciences de r H o m m e , 1 9 9 1 , p. 2 8 .
M íX W e t e r ' É ‘udeS P °ur ím "> ‘ I w q u e des saen ces d e la culture, op . a t . . p. 2 4 1 . 116 Ifcirf.. p . 3 2 .

1 14 115
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia à h ist ó r ia
O DRAMA DA UBERDADE

ética, da econom ia e do direito, um papel comparável àquele


aparecem aí mais co m o grandes individualidades coletivas do
que desempenha na fundação dos Estados e nas lutas de poder
que co m o representantes idênticos de uma mesma espécie.3’9
no seio dos povos, de maneira sem dúvida mais discreta, menos
visível, mas não menos significativa.Sl' Por certo, pode-se falar em determ inados casos de desenvolvim en­
to paralelo (p or exem p lo , no seio da família dos povos rom ano-
T o d o fato coletivo, até o mais institucional, emana, portanto dos
germânicos); entretanto, c o m o já com preendera bem Ranke, não
impulsos individuais. As personalidades singulares não se exprimem
se trata de uma bagagem natural, mas de uma conquista da história.
somente por ações políticas extraordinárias; em geral, manifestam-se,
ao contrário, por pequenos gestos ordinános, em aparência insigni­ Todavia, e aí está o pon to essencial, a fronteira entre o individual

ficantes (considerados individualmente, significam bem pouco, mas e o social é traçada em term os profundam ente diferentes daqueles
reunidos, podem ter consequências históricas decisivas). propostos por M ey e r. Sob certos aspectos, H intze reencontra a via
esboçada por W ilh e lm v o n H u m b o ld t que, setenta e cinco anos
Por outro lado, sempre prestando grande atenção às sugestões
antes, escrevera que o in d ivíd u o é um Eu que fala a um Tu. Aspira
das outras ciências sociais (diferentemente de M eyer, ele não encara o
a um Tu quando age, quando fala e mesmo quando pensa:
i eralismo moderno e a sociologia com o os inimigos a abater), Hintze
tambem se ergue contra toda forma de naturalização da história: C o m o o h om em é um animal sociável - é esse seu caráter distinti­
v o - porque tem necessidade de um outro, não para a procriação,
Parece que as formas sociais de existência são condicionadas
ou uma vida que repouse sobre o hábito (como certas espécies
e modificadas pela vida histórica de maneira realmente dife­
animais), mas porque se eleva até a consciência do Eu, e o Eu sem
rente daquela com o as formas biológicas o sào pela influência
o T u nào é para seu entendimento e sua sensibilidade mais do que
da consciência. N à o é apenas a vida orgânica da sociedade
um absurdo, em sua individualidade (em seu Eu) arranca-se ao
que condiciona a vida consciente do Estado, mas também o
mesmo tempo aquela de sua sociedade (de seu T u ).,2n
inverso, de maneira que muitas vezes essa tendência natural de
desenvolvim ento sofre desvios.31" Não contente em buscar o reconhecim ento do outro, espera também
se reconhecer no outro: “ M es m o quando tem o espírito alhures,
íção objetiva da nação proposta p or Lam precht não tem,
portanto, lugar aí: fala unicamente ao ou tro ou a si m esm o com o se falasse a outrem,
e traça assim os círculos de sua afinidade espiritual, distinguindo
ações concernidas pela história não são de m o d o algum aqueles que falam c o m o ele daqueles que falam diferentem ente” .321
^ çoes puramente naturais, são o produto de dados da his- Assim, a consciência de si, a possibilidade de tomar-se sujeito, de
niversai, isso se aplica particularmente às nações inglesa, usar da própria vontade, não se form a apesar da experiência social,
esa eamericana. Na história, nação e Estado não podem ser
como pensa M e y e r, mas graças a ela: “ C o m o a força pura precisa
gui os um do outro |...J: a nação constitui o Estado, mas
de um objeto sobre o qual possa se exercer, e a forma simples,
o também constitui a nação e influencia sua civilização
o pensamento puro, precisa de uma matéria em que possa durar
eira ” lais Pr° f unda. Vejam -se os resultados económ icos
ercann ismo. E nas oposições e nas interdependências das marcando-a com sua impressão, da mesma forma o hom em precisa
Ç e os Estados que progride a históna universal; e estes de um m undo fora de si m esm o” .322 Definitivamente, as relações

317 Ibid., p. 30.


° " o Hintze, C onception individualiste et conception collective de l ’histoire, op. cil., p. 33.

Wilhelm von H u m b oldt, Considérations sur l'histoire mondiale, op. d t., p. 53.
V enuahung u n d V o lh u ir ts ú a ft, 1 897 En^ 1C*clungstheHn<; • ln '‘ ■Amoítrn J t h ú u t k fiir G eseU gebung,
1 Wilhelm von H u m b oldt. U ber d en D u a lis (1827), in G ts a m m e lte Scliriften, op. a l„ t. V I, p. 25.
C.uida, 197-1 p 8 7 ‘ • citado p or Pierangelo Schicra, O lio H in tz e , Nápoles,
Wilhelm von H u m b oldt, T lieorie der B ild u n ii des M en sd ie n (1793), in G esúm m eltc Schriften, op. d t..
' 1. p. 283.

1 17
O DRAMA DA UBERDADE
O PEQUENO X - Da BIOGRAFIA Â HISTÓRIA

entre eu e eu quase não diferem em qualidade daquelas que existem identificação do essencial com o eficaz.327 Segundo ele, o essencial
entre eu e tu.323 co m p reen d e, além de tu do o que foi e permanece ainda eficaz, os
pensamentos e as ações que enriquecem nossa vida:
Infelizmente, essas reflexões essenciais guardam alguma coisa de
vago e mesmo de inacabado. T a lv e z H in tze desejasse voltar a elas Suponhamos que se descubra a obra de um autor desconhecido
ulteriormente ou mesmo voltou no curso dos anos que seguiram. do passado que se revela de uma força espiritual e de uma pro­

Jamais o saberemos. Em 1933, após a recusa da H istorische Zeitschrift fundidade elevadas, em bora tendo permanecido desconhecida
de seus contem porâneos e, por conseguinte, completamente
de publicar um artigo de sua mulher, a jiid isc h e r M isc h lin g 32* H edw ig
in eficaz de um p o n to de vista causal, deveríamos por isso
Guggenheim er, demite-se da Academ ia das Ciências e decide não
considerá-la historicamente inessencial e ineficaz?’ 2"
publicar mais nada. Sete anos mais tarde, em conform idade com
suas disposições testamentárias, todos seus papéis serão destruídos.325 Os fenómenos culturais, especialm ente, jamais devem ser avaliados
pelo seu grau de eficácia, já que são sempre dignos de interesse:
VII sua significação não reside no que decorre deles, mas na própria
existência. N ã o deixam de evo car “ o que o poeta diz dessa antiga
Já Fnednch M ein eck e continuará a escrever até sua morte, em
lâmpada doravante inútil e que no entanto o exalta: mas o que é
1954, quando seu sonho de conciliar a herança de G o eth e e aquela , » r i ■ • 329
belo aparece feliz em si m esm o .
de Bismarck se terá esvanecido.'26 Suas intervenções no M ethodens-
A históna é assim considerada co m o conhecim ento semântico,
treit se estendem por mais de cinquenta anos: de 1887, ano em que
pesquisa de valores vitais produzidos pelo passado.3 Naturalmente,
começa a trabalhar nos Arquivos secretos d o Estado de Berlim ao
quando M einecke fala de valores, refere-se, com o todos os pensado­
lado de Heinrich von Sybel, a 1939, quando publica uma coletânea
res de sua época, sobretudo às grandes obras culturais e espirituais,
de textos sobre o sentido histórico e a significação da história. A o
mas é preciso não exagerar essa preferência: ‘ Essas produções e esses
longo de todos esses anos, não cessou de se interrogar sobre a ca­
valores culturais são extrem am ente numerosos no seio da história,
pacidade do historicismo de se curar de seu ceticism o: terá a força
já que todo espínto hum ano é capaz de produzir valores culturais .
de remediar as fendas que ele m esm o se infligiu? E é justamente
Além do mais, c o m o esclarece algumas páginas adiante, não se deve
nessa perspectiva que, em 1928, na H istorische Z eitschrift, volta por
entender por espírito “ sim plesm ente o psíquico, mas antes, numa
sua vez à questão da seleção do passado.
acepção antiga, a vida psíquica superiormente desenvolvida, ou, dito
A seus olhos está fora de dúvida que o historiador deve esco- de outra fonna, aquela que ‘ distingue, escolhe e avalia , e da qual
er o essencial na massa ilimitada do passado. Mas no que consiste emana a cultura. A cultura é portanto a manifestação, a irrupção
o essencial. Simplesmente naquilo que ainda é eficaz, naquilo de um elem ento espiritual no seio da conexão causal universal
que preparou nossa vida presente e continua a alimentá-la, com o
Se não nos contentam os com a grandeza e com a eficácia, a
p sava M eyer. A exem plo de M ax W eb e r, M ein e ck e contesta a
questão da seleção do passado se apresenta em toda sua intensidade

’i T r r f J' BUn! an<" t3rdC Paul Valér^ C a lh n w d , 1974. «. II. p. 240:


tstar só, e estar consoo, e sempre ser D o is". ( I Max W eber, É tu d es critiques p o u r servir á la logique des sciences de la culture, op. ci , p
' “ M estiçajudia". (N .T .). Fnednch M einecke, K au sa lità len u n d W e n e (1925-1928). in Z » r Theorie u n d Philosophie der Geschichte.

°P- cit-, trad. it., p. 67.


“ Ibid.. p. 77.

Cf. também Emst Cassirer, E ssa i su r I Iw n w ie (1944), traduzido do inglês por N orb ert ,
- » ' • P- 3I M ,.. p » .»
Editions de M in uit, 1991, cap. 1 0 .
H istory o f Ideas, 1956. 17, 4 .' p . 5 1 í _ 52? * M c ,n e ck e <1862-1954)“ / * n w / o f <he
Fnednch M einecke, K a u sa litá ten u n d W e n e , op. o t . , p. 75.

119
O PEQUENO X - D a BIOGRAFIA A HISTÔSIA

CAPÍTULO IV
dramática. É preciso talvez que nos resolvam os a aceitar o fato de
que há no estudo do passado um m o m en to arbitrário inicial, ligado à
sensibilidade pessoal do historiador. É o que pensa M ein eck e quan­
do evoca o caráter m ó vel das fronteiras que separam o importante
daquilo que não o é. Mas essa tomada de consciência não abala A pluralidade do passado
sua confiança no con h ecim en to histórico. A questão é apenas um
preâmbulo; em seguida, vem a escavação. E é justamente quando
se encontra numa posição incóm oda, sob a superfície, que o histo­
riador tem a possibilidade de verificar a pertinência da questão que
colocou, de c o m g i-la e - por que não? - de encontrar outra coisa,
que não esperava. Nesse ponto, M ein e ck e reencontra Droysen:

Tínhamos isto e aquilo; hoje, é co m o se não possuíssemos mais A dizer a verdade, toda coisa movente leva em si
nada, é preciso recomeçar do zero, é preciso retomar tudo desde
a medida de seu tempo; e este permaneceria mesmo
o inicio. Procurando material, verifica n d o-o , interpretando-o,
se não houvesse nada de outro; não há duas coisas
reelabora-se o pensamento e, à medida que este se desenvolve
no m undo que tenham a mesma medida de tempo [...].
afinando-se cada vez mais, precisa-se em toda a sua riqueza e
E xiste portanto (pode-se afirtná-lo ousadamente)
se transforma; corre-se mesmo o risco de o perder [...]. Mui­
no universo, num só tempo, uma multidão de tempos.
tos se esgotam com a tarefa, perdem -se em vias transversais,
Johann Gottfried Herder133
lançam-se a novos possíveis, prospectam em extensão mais que
em profundidade.

Sob essa luz, é o trabalho que o historiador efetua sobre si mesmo


I
que verdadeiramente importa. Lo n ge de apagar sua subjetividade,
com o queria Ranke, ele deve aprender a recon h ecê-la e a fazer dela Desde Anstóteles, encontram-se de maneira recorrente filósofos
uma fonte de conhecim ento;
para recordar com to m grave o caráter singular do conhecim ento

O conteúdo de nosso eu é algo de recebido (Empfangenes), que histórico. “ A história nos diz o que é uma coisa, a ciência e a fi­
chegou a nós, que é nosso e não o é. Assim, não estamos ainda losofia porque é assim; aquela considera o que é singular, estas o
livres em relação a nosso saber; ele nos possui mais do que o pos­ universal; a prim eira se funda sobre o sentido, as duas outras sobre
suímos. Só tomando consciência de que somos de certa forma a razão; uma precede, as outras seguem ” , escrevia Johannes Jonsius
mediatizados ( vennitteltes), é que o separamos de nós mesmos.
na metade do século X V I I . Essa disjunção simples, não obstante
A partir de então, começam os a ser livres em nós mesmos e a
discutível, entre a históna c o m o con h ecim en to do singular, do quod
dispor do que era imediatamente nosso conteúdo. Está aí um
grande resultado de nosso desenvolvim ento interior.332
e a ciência (ou a filosofia) c o m o conhecim ento do geral, do ti<r

SIÍ’ nào tem apenas valor descritivo. Ela dá a entender que a históna
é impotente para produ zir enunciados de ordem geral. Essa suspeita

J° m G r f U«I Dh ° y“ n ' H 'S‘0 n k ’ °P ' P , 0 6 ' 1 0 7 S° bre a hlstóna c o m o form a dc autoconhe- Johann G ottfned H erd er, V ersta n d u n d E rfa h n m g . E in e M e la k r in k z u r K n li k der rem en 1 11
« * * 0 . cf. cambem as cons.deraçôcs de Emst Cau.rer, E ssa, sur r h o m m e , op. cap. 10.
partc' 1 7 g 9|, in Sám tlich e W e rk e . 1881, t. X X I . p. 59.

120
121
A PLURALIDADE DO PASSADO
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia à h is t ó r ia

historiadores defen d em o valor d o fato ou do fen óm eno singular.


cheia de malignidade desponta claramente sob as proposições de
Sem dúvida, não se trata de um tema n ovo. A o lon go do século
André-François Boureau-Deslandes, discípu lo de Malebranche,
X IX no entanto, as declarações antifilosóficas se radicalizam. Ranke
qualificado por Voltaire, que não gostava nem um pou co dele, de
-mais uma vez - acusa a filosofia da história de querer subordinar a
“ velho ginasiano precioso” : os historiadores, lê-se em seu tratado
históna da mesma maneira que o tentara antes a teologia, e vanglona-se
de historiografia, relataram os pensamentos dos outros e não se preo­
de estar do lado d o particular histórico contra o geral filosófico: “ O
cuparam em pensar por si mesm os.334 Essa im putação de preguiça
ponto de vista h istón eo con tém um princípio ativo que se opõe
conceituai, que não se dá ao trabalho de tom ar qualquer precaução,
sem trégua ao p on to de vista filo s ó fic o [...] Enquanto o filósofo [...]
é retomada ao lon go de tod o o século X I X , n o m om ento mes­
busca o infinito unicam ente no progresso, no desenvolvim ento, na
m o em que o pensamento histórico é valorizado em todas as suas
totalidade, a históna recon h ece em toda existência alguma coisa de
expressões (a históna, a filosofia da históna, o rom ance histórico)
infinito; em toda circunstância, em todo ser, um quid eterno que
com o jamais o fora. É talvez p or essa razão, aliás, que o tom se faz
emana de Deus; e aí está seu p n n cíp io vital” .337
mais zom beteiro. H egel, de sua parte, declara que os historiadores
puros (com o os nomeia com desdém, especialm ente Leopold von Mas, felizm ente, nesse intenso turbilhão de ideias que agita o

Ranke) contam os acontecimentos “ de maneira contingente, exa- século, algumas vozes discordantes se fazem ouvir. Em pnmeiro lugar,

tamente com o se apresentam a eles, em sua particulandade, sem aquela de W ilh elm D ilth ey, que se dedica a dar uma envergadura

relação e sem pensamento” , e que semelhante história “ não seria filosófica à reflexão da histonografia alemã do século X I X . 31" Em sua

mais que a representação de um fraco de espírito, nem mesmo um longa existência, situada sob o signo de uma incansável vocação, e por

conto de fadas para crianças” .335 Alguns decénios mais tarde, Bene- isso não isenta de algumas retratações dolorosas, ele jamais se afastou

detto C roce fala abertamente de uma historiografia sem problema de um ponto firm e: o m undo históneo é produtivo, e essa qualidade

histórico: após ter deixado escapar, en pa ssa n t, que R an k e tem “ um não é fruto de um prin cípio absoluto, transcendente ou imanente à

ntm o pouco rápido de vida in terior” , regozija-se de que a figura atividade humana, mas da ação recíproca dos indivíduos. Em 1883,

do “ histonador desprovido de filosofia cede o passo àquela, bem escreve que “ essa totalidade maravilhosamente entrelaçada que é a

diferente, do filósofo” .336 históna é constituída pelos indivíduos, unidades psicofísicas, cada um
diferente de todos outros e capaz de formar um mundo. A queda
C o m o é muitas vezes o caso, a antipatia entre os dois campos
d água se com põe de partículas homogéneas que se entrechocam, mas
é recíproca. Desconfiados das generalizações abstratas, numerosos
uma simples frase, que, no entanto, não é mais que um sopro saído
de nossa boca, abala, graças ao jo g o dos motivos que suscita em uni
Os textos de Jonsius e de Deslandes são citados p o r M a n o L o n g o , in H isto ria e philosophiae philoso-
dades profundamente individuais, toda a alma de uma sociedade em
phica, op cii , p 75-94 A propósito da polém ica sobre a históna no fim d o século X V I I , cf. Paul
Hazard, La crise de la consam cc européenne, 1680-1715 (1935), Paris, Fayard, 1961, cap. II. qualquer parte do m u n d o” .339 V in te e sete anos mais tarde, durante
G eo rg W ilhelm Fnednch H egel, Encyclopódie des sciences p h ilo so p h iq u es en abrêgí (!830), traduzido uma sessão plenána da Academ ia das Ciências de Berlim, volta, uma
do alemao por M aunce de Gondillac, Pans, Gallimard, 1970, § 5 4 9 , p. 467.
Benedetto C roce, L ’H istoire com m t pensêe et com m e action (1938), traduzido d o italiano por Jules
< h íix R u y, Genebra. D roz, 1968, p 102. A preguiça conceituai da história foi por muito tempo
Leopold von R anke, “ M anuscnt des années 1830” publicado por Eberhard Kessel
'! r .u p i.* , disciplinas sociais mais jovens. M esm o adm irando a obra de Fustel de Coulanges,
Zeilschrift, 1954, 178, p. 292-293. .
A lírtJ R R adcliffe-B row n (Stm cture et fo n ctio n d a m la sociète p rim itive, traduzido do inglês por
- Cf. Giuseppe C acciatore, -‘D ilth e y e la stonograf.a tedesca d e lT O tto cen to’ . S tu d , s to n a . 1 . .
Françoise e Louis Mann. Pans. Édinons de M inuit, 1968) afirma o prim ado da sociologia, que «n a
■ *p ^ J c enunciar proposições gerais, sobre a história e a etnografia, as quais só podenam formular p. 55-89. . .

aíinnaçoes particulares ou fatuais. Alguns anos mais u rd e, C lau de Lévi-Strauss (L a Pensée sauvage, Wilhelm D ilthey, Intro d u ctio n a u x sciences de 1'esprit (1883), dans Critique^ de /a m s ^ ^

, lio n , 1 p 3 4 2 ) estima que o có d igo da históna consiste numa cron ologia: ‘ Toda sua introduction aux sàences de 1’esprit et autres te x te s , traduzido d o alemao por Sy vi

u iig ir u t d j ik c sua especificidade estão na apreensão da relação do antes e d o depois” . Edicions du C eri, 1992, p. 186 e 195.
O PEQUENO X - Da b io g r a f ia A HISTORIA A PLURALIDADE d o p a s s a d o

vez ainda, à significação e à tarefa das ciências históricas. Especifica, tempo após seu casamento com Kãte Piittmann, a consciência não é
assim, que a demarcação entre as ciências do espírito ( Geistesunssens- a única realidade, pois no mais profundo dos homens existe intensa
chaften) e as ciências da natureza (N aturuH ssenschaften) não é de ordem riqueza subterrânea: “ Discernim os em nós mesmos uma vivacidade
ontológica, mas sim transcendental: trata-se de uma distinção que não psíquica extremamente variada [...], à imagem das plantas, cujas raízes
concerne aos objetos, mas à experiência, que deriva de um fato de se estendem em profundidade no solo, enquanto apenas algumas folhas
consciência, desse sentimento íntim o pelo qual nos sentimos diferentes despontam” .344 Alguns anos mais tarde, desenvolve seu pensamento
da natureza.340 Em apoio de suas convicções, afirma: evocando a irracionalidade do caráter humano, manifesta em todo
herói, em toda verdadeira tragédia, em numerosos criminosos, mas
A vida histórica é criadora. A g e constantemente produzindo
bens e valores, e todos os conceitos desses bens e desses valores
também presente na vida de todos os dias:
não são mais do que reflexos de sua atividade. Os suportes dessa
N ã o há nada a fazer, não somos um aparelho que busca produzir
criação constante de valores e de bens no m undo espiritual são
prazer regularmente e impedir o desprazer, avaliando valores
indivíduos, comunidades, sistemas culturais em que os parti­
de prazeres uns em relação aos outros, e conduzindo assim as
culares colaboram.341
volições para a soma acessível do prazer. Para um aparelho deste

Para exprimir a relação vital que liga os seres humanos entre si e os tipo, a vida seria evidentem ente racional, mesmo um exercício
de cálculo. Mas não é assim. [...] não buscamos evitar o desprazer,
leva a deixar sua marca no mundo, D ilth ey elabora o conceito de
mas o exploramos até o fundo, meditamo-lo sombriamente, com
W irkungszusam m enhatig, termo com plexo em alemão e dificilmente
misantropia; arrastados por obscuras pulsòes, colocamos em jo g o
traduzível em outra língua (dynam ic u n ity , ensem ble interactif, connessione
nossa felicidade, nossa saúde e nossa vida para satisfazer nossas
ditiamica).34_ Diferentemente da conexão causal, que rege o mundo
antipatias, sem levar em conta o ganho de prazer.145
da natureza, a conexão dinâmica está ligada à vida psíquica e procura
significações, produz valores, enfim , realiza objetivos: “ A célula pn- Essa convicção absoluta deslanchará a controvérsia com os filósofos
mitiva do mundo histórico é a experiência vivida (Erlebttis), na qual que intelectualizam os fatos de sentimento e de desejo: “ Nas veias do
o sujeito tem por m eio o conjunto interativo da vida. Esse m eio age sujeito cognoscente tal c o m o L ock e, H um e e Kant o construíram,
sobre o sujeito que, por sua vez, age sobre ele” .343 não é sangue de verdade que corre, mas uma seiva diluída de razão,
concebida co m o única atividade do pensamento” .34,1 A expressão
II “ciências do espírito” , que escande alguns dos textos mais célebres de
Dilthey, pode evocar, sobretudo no leitor de hoje em dia, imagens
Quando Ddthey fala do indivíduo, não se trata de uma entidade
incorporais e cerebrais da existência. Mas certamente não era essa
espiritual nem de um ser racional. C o m o escreve nos anos 1870, pouco
sua intenção. D ilth ey em prega o term o “ espírito” (G eist) para exaltar
3 capacidade criadora d o ser humano. C o m o recorda numa nota
i ma in trod u ção geral à filo so fia de D ilth e y , cf. e s p ecia lm en te B e m a r d G ro e th u y s e n , “ D ilthey bastante tardia, trata-se de uma noção imperfeita, já que os fatos da
et son e c o le " , in La Philosophie allem ande au X I X e siècle, Pan s, A lc a n , 1912, p. 1-23; H erb ert A.
o d g e i, Hi, 1’hilosophy o f D ilth ey, L o n d res, R o u t le d g e & K e g a n Pa u l, 1952; P ie t r o R ossi, Lo
*> ii*nlem poranio , T u n n , E in audi, 1957; R a y m o n d A r o n , L a P h ilo so p h ie critique de 1’hisloirr.
“ W ilhelm D ilth e y , E rken n tn isth eo retisch e F ragm ente (1 8 7 4 -7 9 ), in G esam m elte S clm fien . Stuttgart/
•SOI sur une lheone allem ande de 1'histoire. Pans, V n n , 1964; S y lv ie M e s u r e , D ilth e y et la fondatw n

dfs sa e ttta hisionques, Pans. P U F , 1990 Gõttingen, T e u b n e r / V a n d e n b o e c k & R u m p r e c h t , v o l. X V I I I , p. 189.

W ilhelm D ilth e y , L 'Im a g in a tio n d u p o ite . É lé m e n ts d ’u n e p o ítiq u e (1 8 8 7 ), in É cnts d esthétique,


W ilh e lm D ilth e y , L édifuation du m onde Instorique dans les sciences de 1'esprit (1 9 1 0 ), tradu zido do
traduzido d o a le m ã o p o r D a m è le C o h n e E v e ly n e L a fo n , Pans, É d itio n s du C e r f, 1995, t. V I I ,
^ alem ão p o r S y lv .e M esu re. Pans, É d m o n . du C e r f. 1988, t. II I, p. 106.
P '2 4 . Em 1769. J o h a n n G o t t ín e d H e r d e r esc reve ra a M o s e s M en d els soh n q u e era q u im e n c o
U n id a d e d m im ic a . c o n ju n to in te ra tivo , c o n e x ã o d in â m ica (N T )
Ibid.. p . 113. supor a existência d e u m a a lm a in c o r p o r a i, d e u m a natureza hum ana n ão sensual.

W ilhelm D ilth e y , In tro d u ctio n a u x sciences de Vesprit, op. cit., p. 148-149.

V'
i
124
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia A h is t ó r ia A PLURALIDADE d o p a s s a d o

vida espiritual não estão destacados da unidade viva ( Lebenseinheit) como uma condição áspera e inelutável da experiência humana: “ A
psicofisica da natureza humana, resistência tom a-se pressão, a realidade parece nos cercar por todos
os lados com muros que não podem os transpor. E que muros ela
[...] mas qualquer outra designação aplicada a este grupo de ciências
não opõe diretam ente a nossos desejos! C o m o pesam sobre nós!
suscita reticências consideráveis. Assim acontece igualmente com
Veja-se Schiller quando aluno da Academ ia militar” .351 E, quando
a designação das “ ciências da cultura” [...]. Exprime-se aí uma
concepção demasiado benevolente e otimista da realidade humana, reprova a H e im H e lm h o ltz e Eduard Z e ller o fato de definirem a
na qual os obscuros instintos que levam a opnnur-se e destruir-se realidade com o uma simples projeção do pensamento, observa que
reciprocamente desempenham um papel muito importante.547 o primeiro germ e da distinção entre o eu e o mundo se inscreve na
experiência da pulsão e da resistência:
Ele que, na qualidade de historiador e p sicólogo, teve que
levar em conta o h om em em sua íntegra (m it ciem g a n z e n Mens- A realidade (R ca lità t) do mundo exterior não é tirada dos dados
cheri), considera esse ser co m o uma totalidade psicofisica, feita de da consciência, ou seja, deduzida por operações puramente
representação ( Vorstellen), de sentim ento ( G e fiih l), de vontade ( W il- intelectuais. Penso antes que os processos conscientes anterior­

le), as três formas essenciais do v iv e r ( L e b e n ), intim am ente ligadas m ente indicados transm item -nos uma experiência da vontade - a
/reagem da intenção - que está implicada na consciência de uma
entre si.,4K Assim, a consciência da distinção entre o eu e o mundo
resistência e que, só ela, nos revela a realidade robusta e viva
exterior não procede somente de um ato do pensamento, mas da
do que não depende de nós.352
própria vida: a realidade perm anece sempre um fen óm en o para a
simples representação, mas aparece c o m o um dado estabelecido e O indivíduo, esse ser sensível, é também fundamentalmente
incontom ável no todo de nosso ser que quer, sente e representa.349 social e sociável: não é a existência singular e isolada que é com ­
D ito de outro m odo, o eu só percebe a presença de uma realidade
preendida no co n c eito de e g o , não é uma substância impermeável,
bem distinta, autónoma, quando se depara com algo que resiste a
mas trata-se de “ um con ju n to que encerra em si, a cada vez, os
ele. Por vontade’ não entendo o ato de querer enquanto situação
sentimentos vitais dos outros indivíduos, da sociedade e, mesmo,
de consciência, mas antes a atividade de que posso ter consciência e,
da natureza” .353 A e x e m p lo de W ilh e lm von H um boldt e de O tto
precisamente, em suas diferentes posições em relação àquilo de que
Hintze, D ilth ey sublinha a dependência essencial do ser humano
ela se distingue. Sinto-m e ora condicionado, ora tom ado de assalto,
que não está jamais em condições de ser autossuficiente. E um
ora sujeito a, ora numa atitude de aspiração e de c on tro le” , como
escreve num ensaio sobre a psicologia descritiva em 1880.35(1 Nos ponto quase m ístico” . M ergu lh ad o desde sempre num universo de

anos seguintes, D ilthey não parou de apresentar o exterior, o fora, relações, ligado à mãe b em antes do nascimento, vive na necessidade
incessante do outro: “ [E le] se m antém numa contínua relação de
trocas espirituais e assim com pleta sua vida própria graças à vida de
V II ' ^ u s à ,: c "rMm A u jb a u der geschichtlichen W e h , in G e sa m m e lte Schriften, o p . cit., vol.
outrem” .’ 34 Sua existência só se realiza na coexistência - nas relações
r - - - h c t r o R o ssi, Lo storicismo contem porâneo, op cit.. p. 6 3 - 6 6 , o b serva q u e , para D ilthey,
I n cim en to d o h o m e m ao m u n d o h istó ric o -s o c ia l n ã o e x c lu i a re la ç ã o c o m o m u n do da
* |uc %u.i rtiu s:i d e aplicar os crité rio s das ciên cia s naturais às ciên cia s d o espírito não
^ im p lica necessariam ente uma esp in tu alização da h u m a n id a d e. W ilhelm D ilth e y , Bcitràge z u r L o su n g der Frage rom U rsprung unsercs G laubens u n d der R e a h ta t der

W ilh e lm Dilihc-y, Inim ductw n a u x sciences de l'esprit, op. r ir , p. 9- 1 0 , Cf. certas p r o p o s i ç õ e s análogas A iusenuvti u n d seitieti R c c h l, op. cif., p. 110.

m, 3m Jam" r A r e w e autom ata?” , M in d , 1879, p 1 -2 2 ). para q u e m a e n e rg ia da psique não p. 109-110. H m Intro d u ctio n a u x sciences de Vesprit, op. cit., D ilth e y faz um a distinção
. P d.i ip cn a j n o n ív e l c o g n it iv o , p o is c o m p o r ta fa tores in c o m e n s u rá v e is , tais c o m o as realidade qu e nos é in a c essíve l { W M i c h k e i t ) e a realid ad e q u e possuím os {R eahtat).
v o l , ç o « . as e m o ç õ e s corpora.s e as p ercep ç õ es sublim inares.
W ilh elm D ilth e y , A u s a r b e itu n g der d eskrip tiven Psychologie, op. cit ., p. 177.
iBrelm D ilth e y , Croyance à la vérité du m o n d e extérieur (1 8 9 0 ), in L e M o n d e de fe s p n t , traduzido ' Wilhelm D ilth e y , V É d ific a tio n d u m o n d e historique. op. cit., p. 107. S o b re a p erc e p ç ã o d o m u n d o
d o alem ao p o r M . R é m y , Pans, A u b ie r. 1947. p. 101 -102.
extenor n o c im o da v id a e m b n o n á n a , cf. W ilh e lm D ilt h e y . C royance d la rén té du m onde e x >h ' e'1' ’

x v i n * p " ) " r * d n d<’SÍ" ' P" W " (p o r vo lta d e 188 0), in G esa m m elte Schriften.
°P- ní-, p. 2 3 6 -2 3 7 . Esse p o n t o será ig u a lm e n te re to m a d o p o r N o r b e r t Elias, L a S o a ité des tn m us,

°p • d l., que sustenta n ã o e x is tir u m p o n t o z e r o da v id a social.

127
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia à h is t ó r ia
A PLURALIDADE d o p a s s a d o

entre pais e filhos, homens e mulheres, soberano e súditos. Mas está incluído de form a alguma que, em todas as modificações,
essa coexistência, ou essa com unidade ( G eselschaft), não é formada perdure algo de semelhante a si mesmo.

apenas por esses mortais de carne e osso - parentes, vizinhos, co­


O eu não perm anece rigorosam ente idêntico a si mesmo, não cessa
legas de trabalho - que o jargão s o c io ló g ic o denominará 05 outros
de mudar, e, no entanto, sente-se sempre ele mesmo e se reconhece
situacionais e que povoam h oje tantos com entários sobre o network.
em seu passado: “ A q u e le que neste m o m en to porta um julgam ento
Ela se alimenta igualmente de figuras ideais, ou m esm o imaginárias,
sobre si mesmo é totalm ente diferente daquele que agia e, no entan­
com o o são Prometeu, A nrígona, H am let, Fausto e Sancho Pança,
to, sabe-se c o m o sendo o m esm o ” .358 N e le os processos psíquicos
Tartufo ou M r. P ickw ick. D e figuras históricas também:
se seguem, “ mas não c o m o uma fila de carros em que cada um está
A realidade de Lutero, de Frederico, o Grande ou de Goethe separado do precedente, nem c o m o as fileiras espaçadas de um regi­
recebe uma intensidade e um v ig o r maiores pelo fato de que mento de soldados” . Se fosse assim, a consciência seria intermitente:
eles agem constantemente sobre nosso próprio eu, isto é, pelo
Bem pelo contrário, encontro uma continuidade em minha vida
fato de que esse eu é determ inado pela vontade desses poderosos
desperta. Os processos estão imbricados de tal forma que há sem­
personagens cuja influência persiste e aumenta. Eles são para
pre algo de presente à minha consciência. Assim, um viajante que
nós realidades porque sua poderosa personalidade age energi­
avança a bom passo vê desaparecer atrás dele objetos que, pouco
camente sobre nós.355
antes, estavam diante dele, ao lado dele; outros surgem a seus
Nessa perspectiva, o in divíduo é principalm ente considerado como olhos, mas a continuidade da paisagem não deixa de subsistir.359

uma relação do eu com a históna: “ Assim c o m o sou natureza, sou


Uma totalidade aberta, sociável, que não está isolada e se ali­
também história e é nesse sentido radical que é preciso compreender
menta de relações. Entretanto, o in divíd u o é também um mundo
a expressão de G oethe quando dizia ter v iv id o ao menos três mil
em si, único, singular, inteiram ente diferente de todos os outros:
anos” , com o escreve a D ilth ey seu grande am igo Paul Yorck von
Wartenbourg em 4 de jan eiro de 1888.356 A uniformidade da natureza humana se manifesta no fàto de que se
encontram as mesmas determinações qualitativas e as mesmas formas
E justamente por estar tão intim am ente im pregnado de relações
de ligações em todos os homens [...]. Mas as condições quantitativas
que o eu não é uma entidade, uma essência, um dado originário, nas quais elas se apresentam são muito diferentes umas das outras:
mas antes vida, energia, m o v im e n to — T o ls to i diria uma substância essas diferenças formam incessantemente novas combinações sobre
fluida, sempre em m o v im en to .35 D o n d e a distinção que Dilthey as quais repousa [...] a diversidade das individualidades.
opera entre a noção de identidade ( Id e n tità t), que evoca uma esta­
Embora estando profundam ente, intimamente, impregnado pelos
bilidade de conteúdos, e aquela de “ m esm idade” (Selbigkeit):
outros e pelo m u ndo natural que o cerca, o ser humano não vive
A mesmidade é a experiência mais íntima que o homem pode
fazer de si mesmo. Dessa m esm idade decorre o fato de que
W ilhelm D ilth e y , Lebeit u n d E rke n n en . E in E n tu w rfzu rerken n tn isth eo rietisch en Logik u n d Kategorienlehre
nos sentimos pessoas, de que podem os ter um caráter, de que
(1892-1993 a p ro x im a d a m e n te ), in G e sa m m e lte Schriften, o p . cit., v o l. X I X , p. 363.
pensamos e agimos co m coerência. Em compensação, nela nao
W ilh elm D ilth e y , Psychologie descriptive et a n a ly tiq u e (1 8 9 4 ), in L e M o n d e de 1’esprit. op. cit.. p. 206.
A esse respeito. Pau l R ic o e u r , L e S o i-m é m e com m e u n autre. Paris, É d itio n s du S eu il, 1990, p. 13,
distingue o Si e n q u a n to ipse, S elb st, seif, d o Si c o m o idem , sam e, gleich. Essa percpecriva fo i re to ­
W ilh e lm D ilth e y, Croyance à la vírité du m o n d e extérieu r, op. til., p. 119. ^ mada p o r Françoise D astu r, “ L ’ ip s é ité : so n ím p o r ta n c e e m p s y c h o p a th o lo g ie , Psychiatrie, sciences

^ Briefweiltsel zwischen W ilhelm D ilth e y u n d dem G ra fen P a u l Y orck von W a rten b o u g , o p ■ cit-, P ' humaines et neurosciences, 2 0 0 5 , 12, p. 8 8 -9 5 : “ D e fin ir o h o m e m c o m o ípseidade e n ão mais c o m o

N ik o la ie v itc h T o ls to i, J o u m a u x et cam ets , tr a d u z id o d o russo p o r G u sta ve A u c o u t u r i e r , sujeito im p lica a passagem da n o ç ã o d e eu à q u ela, re fle x iv a , d e si .

illin u rd , 1980, t. 2 (1 8 9 0 -1 9 0 4 ), 19 d e fe v e r e ir o d e 189 8, p. 644 . W ilh elm D ilth e y , Psychologie descriptive et a n a ly tiq u e , op. cit., p. 234.

129
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia à h is tô o ia
A PLURALIDADE DO PASSADO

em virtude das estimulações exteriores. A o contrário, é “ uma in­ a verdade, o mais importante, desta realização. Um a alma assim
teligência que pressente e que pesquisa” . E le faz de si mesmo seu formada aparece co m o o que há de maior entre as realidades
centro, e além disso se interroga, pensa e escolhe. A medida que sua terrestres, e e nesse espirito que G oethe designou a personali­
vida psíquica se intensifica, vê-se capaz de con trolar as energias, de dade c o m o o bem supremo dos homens.363

canalizá-las, a partir de seus próprios valores e dos ideais pessoais:


D efinitivam ente, em bora m últiplo, o indivíduo não forma um
Pouco a pou co [a unidade viva] não está mais entregue ao agregado fortuito. A g e c o m o um todo, é uma unidade viva, que
jo g o das excitações. Ela freia e controla as reações, escolhe, tem uma significação:
quando pode adaptar a realidade a suas necessidades; e, o mais
importante de todos os fatos, quando não pode determinar essa Os m om entos da vida dos indivíduos, tais com o são reunidos
realidade, adapta a ela seus próprios processos vitais e controla em to m o de uma atividade que os constitui num conjunto, não
pela atividade in ten or da vontade as paixões desencadeadas e procedem exclusivam ente deste mesmo conjunto, mas é o ho­
o jo g o das representações. E isso a vida.361 m em inteiro que está em obra em cada uma de suas atividades,
e é assim que ele lhes comunica também sua marca própna.364
O télos da personalidade é a con d içã o essencial para que se
tenha o sentimento da própria história.362 D e natureza subjetiva Está aí, sem dúvida, a fon te m aior de dissensão entre as concepções
e imanente, uma vez que não repousa sobre nenhuma finalidade de Dilthey e aquelas da psicologia contemporânea (em particular
extenor, ele se manifesta sob duas formas. E m prim eiro lugar, en­ o associacionismo e o paralelismo psicofisico), habituada a racio­
quanto capacidade de v iv e r plenam ente as diferentes idades da vida: cinar em termos de estímulos, de reações, de fatores fisiológicos.
O desenvolvim ento [da vida humana] se com põe exclusiva­ Como escreve em 1894, em suas Ideias concernentes a um a psicologia
mente de estados cujo valor vital particular cada um se esforça descritiva e analítica, à força de d ecom p or os fenóm enos psíquicos,
por adquinr e conservar. M iserável é a infância que é sacrificada de reconduzi-los a unidades atómicas, regidas por leis mecânicas,
aos anos de maturidade. Insensata é essa maneira de calculara ‘essa doutrina da alma sem alma” suscitou uma imagem excessi­
vida que empurra incessantemente o h om em adiante e faz do
vamente desagregada d o com portam en to humano: “ É impossível
que precede o m eio daquilo que o segue.
compor a vida mental c o m elem entos dados, impossível construí-la
Em seguida, enquanto força umficante: “ [Esses estados] estão unidos por uma espécie de assem blage, e as zombarias de Fausto a propósito
uns aos outros por uma ligação teleológica tal que o curso do tempo do homonculus fabricado quim icam ente por W agn er visam também
permite um desabrochar mais am plo e mais n co dos valores vitais . toda tentativa deste g é n e ro ” .365 A respeito de psicólogos associa-
Cada idade da vida tem seu valor, mas, c o m o tem po, a forma in­ cionistas, tais c o m o Johann Friedrich Herbart, Herbert Spencer ou
terna da vida se faz mais densa e mais sólida. Rousseau, Herder e Hippolyte T ain e, e m esm o de encontro a eles, D ilthey faz valer o
Schleiermacher elaboraram teoricam ente esse duplo movimento, caráter holístico da psique. C o lo c a o acento não mais sobre estados
Goethe o experienciou. O encanto de sua vida deriva ju s ta m e n te psicofisicos particulares, mas sobre a personalidade individual em
dessa excepcional unidade interior: sua íntegra e p ro p õ e , assim c o m o W illia m James, que não se leve

Tal era o sentido da palavra de N apoleão a propósito de Goethe.


"Eis um h om em ” . O caráter é apenas um aspecto, mas, a dizer W ilh elm D ilth e y , Psychologie descriptive et a n a ly tiq u e , op. cit., p. 224 -2 2 5 . S em d ú vid a . D ilth e y se
refere .íqui à d istin çã o e n tre ta le n to e caráter esta belecida p o r G o e t h e e m uma d e suas célebres
m aximas. U m ta len to se fo r m a na ca lm a e n o silên cio , u m caráter n o rio d o m u n d o (Johann

Ib id -.p 217. W °lfg a n g G o e t h e , M a x im e s et p ensées. Paris, É d itio n s A n d r é S ilva in e, 1961, p. 40).

" C f . Jacques K o m b e r g , “ W ilh e lm D ilt h e y o n th e S e l f a n d H is t o r y : S o m e T h e o re tic a l R ° ° B * ^ W ilh elm D ilth e y , L 'É d ific a tw n d u m o n d e historique, op. cit.y p. 1 22 .
Getstesgeschichle", Central European H isto ry. 5. 1972, p. 295-317. W ilh elm D ilth e y , Psychologie descriptive et a n a ly tiq u e , op. cit., p. 181.

130 131
O PEQUENO X - D* BIOGRAFIA À HISTÓRIA A PlURAUDADE DO PASSADO

em conta uma sensação, mas um eu que sente: “ A vida psíquica é o temor de que os fatos possam ir-se daqui e de lá, cada um de seu
originalmente e em toda parte, de suas form as mais elementares às lado, sem direção precisa. O m undo está sob pressão há tempo demais:
mais elevadas, uma unidade. N ã o é feita de partes; não se compõe após a R evolu ção, o capitalismo demonstrou sua potência ilimitada,
de elementos; não é um com posto, não é um resultado da colabo­ as massas atulham cada vez mais o mundo sem por isso tomarem-se
ração de átomos sensíveis ou afetivos: é uma unidade primitiva e mais decifráveis, a história vai sempre mais rápido... N os anos 1890,
fundamental” .366 Em 1910, ainda, precisa: escreve com acentos proféticos que “ a decadência dos grandes povos
civilizados da Europa” com eçou .369 T reze anos mais tarde, a flutuação
N o curso da vida, cada experiência vivid a particular é remetida
cultura] faz eco à incerteza social: a metafísica não é mais possível,
a uma totalidade. Esse conju n to vital não é uma soma ou uma
a filosofia é incapaz de p ropor qualquer afirmação, a estética vive
adição de m om entos sucessivos, mas é uma unidade consti­
em plena anarquia, a arte figurativa não conhece mais o código da
tuída por relações que religam todos os elementos. A partir
do presente, percorrem os de maneira regressiva uma série de beleza ideal, a poesia perdeu sua aura. Resta a consciência histórica,
lembranças até o ponto em que nosso pequeno eu ainda não sem dúvida alguma o resultado essencial das transformações dos dois
fixado e form ado se perde nos lim bos, e a partir desse presente séculos precedentes, que conduziram à beira do abismo do relativismo:
lançamo-nos em direção a possíveis inscritos nele e que tomam
U m a contradição aparentemente insolúvel surge quando o
dimensões vagas e longínquas.’ 67
sentimento da história é levado a suas últimas consequências.
A finitude de tod o fenóm eno histórico, seja uma religião, um
III ideal ou um sistema filosófico, e, por conseguinte, a relatividade
de toda interpretação humana da relação das coisas é a última
A faculdade teleológica não é nem um p ou co excepcional, ela palavra da concepção histórica deste mundo, onde tudo flui,
denva da experiência com um . Mas, de acordo c o m Dilthey, só se onde nada é estável. Em face disso erguem-se a necessidade que

revela plenamente no grande h om em . P od e-se mesmo dizer, sob o pensamento tem de um conhecimento universalmente válido
e os esforços que a filosofia faz para chegar a ele. A concepção
certos aspectos, que está aí o segredo da grandeza: “ Cada vida, por
do m undo ( Weltanschauung) histórica libera o espírito humano
sua estrutura intema, é formada, já sobre o plano físico, de contrastes.
da última cadeia que as ciências da natureza e a filosofia não
E cada vida é um processo de recom posição. O s contrastes históricos
quebraram, mas onde encontrar os meios para superar a anarquia
[...] requerem uma força sintética, dina m esm o sobrenatural, que só
das convicções que ameaça se difundir?37"
os heróis possuem".36" C on ven cid o de que o ser humano é esponta­
neamente inclinado a dar uma significação, um valor à vida, Dilthey Nos m om en tos de desencorajamento, quando a sensação de
é otimista: não receia soçobrar incessantemente na confusão e na desfiamento o tom a, D ilth e y busca, ele também, o antídoto no
dispersão. Acontece-lhe, porém , p or vezes anotar com tonalidades grande hom em , aquele que está disposto a partilhar seu eu com
mais dramáticas as discordâncias da história. Assom bra-o a dúvida e seus contem porâneos. R e s o lv id o a defender a todo custo a pos­
sibilidade de dar uma form a ordenada à vida histórica, admira os

Ibid., p. 216
estoicos, Santo A g ostin h o , Petrarca, Lutero ou Goethe, figuras de
W ilhelm Dilthey, U É d ific a tw n du m o n d e historique, op. d t„ p. 94-95. Algum as considerações dc seres íntegros, plenam ente mestres de sua existência. Mas é atraído
Dilthey sobre o caráter holístico da psique serão partilhadas pela psicanálise freudiana, mas também sobretudo p or sua força sintética, sua aptidão a prestar atenção nos
pela psicologia analícica de Cari G u stavju n g e pela psicopatologia fen om en ológica de Karl Jaspe*1
cf. Picter Com elius Kuiper, “ Diltheys Psychologie und íhre B ezieh u n g zur Psychoanalyse', ’■
1965. 1 i, 5. Sobre esse ponto, ver igualm ente Jiirgen Habennas, C o n naissance et intèfêt (1
Wilhelm D ilthey, Leben u n d E r k e n n e n , op. d t ., p. 379.
^ traduzido do alemão por Gérard C lém en çon , Pans, G allim ard, 1976.
^ ilhelm Dilthey, Discours d u so ixa n te-d ixièm e annivenaire (1903), in Lr M onde de l esprit, op. cit., p 15.
Bnefwechsel zw iscben W ilhelm D ilth e y u n d d em G ra fen P a u l Y orck vo n W a rten b o u ig , op. d l-, P- 61

133
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia A h is t ò b a A PlURAUDADE DO PASSADO

diferentes pensamentos vitais, sua capacidade de recom pô-los e entre si, im pregnam o in d ivíd u o de ideias, de em oções, de imagens
aliá-los num conjunto harm onioso: heterogéneas. N o fundo, não há contradição entre dependência e
autonomia. A o contrário, poderíam os dizer, sob certos aspectos,
O gênio próprio ao soberano ou ao h om em de Estado faz
que a autonomia está fundada na dependência. C o m o escreve num
mesmo os fatos refratários entrarem numa unidade teleológica
ensaio de 1890, experim entam os, a cada m om ento de nossa vida,
permitida por sua coordenação. [...] Assim, é necessária a ação
do gênio para construir, a partir do que é originalmente divereo, "que o ‘ eu qu eren te’ se revela au tónom o sem deixar de estar entra­
ou seja, a partir de elem entos e de suas relações particulares, a vado em suas volições, o que lhe confere um caráter condicional e
unidade que chamamos o espírito de uma época.’ 71 dependente” .374 O in d ivíd u o é tanto mais capaz de se afirmar com o
sujeito e de sentir, p o r conseguinte, prazeres e dores, quanto mais
Infelizmente, o desejo de salvaguardar o sentido unitário do mundo
é alimentado p elo m undo: tom a-se um sujeito psíquico ativo, in­
engendra imagens um p ou co afetadas demais. Especialmente em
dependente, capaz de elaborar as solicitações da realidade exterior,
seus ensaios históricos, reina c o m o que alguma coisa de irreal. Ele
graças à sua relação c o m os outros. Nessa perspectiva, a socialização
peca talvez por excesso de sagacidade, de vontade, de saúde psíqui­
não tem apenas esse e fe ito de h om ologação e de homogeneização,
ca, sobretudo para um filósofo capaz de apreender, desde os anos
tantas vezes dramatizado no século X X (de Erving Goffinan a M ichel
1870, as sombrias turbulências do inconsciente. Pode-se certamente
Foucault), mas é em p rim eiro lugar um processo de diferenciação:
reprovar-lhe alguns passos estilísticos em falso e uma profusão de
adjetivos: “ U m coração in trépido” , “ im b u íd o do sentim ento de sua os indivíduos se distinguem uns dos outros justamente ao interio­

própria força” , “ nascido para agir e d om in ar” e assim p or diante.1'2 rizarem as normas sociais e as regras institucionais.375

A esse respeito, toda a reflexão de D ilth ey sublinha o quanto o


IV mundo histórico não é com preensível em termos de pertencimento,
e ainda menos em term os de propriedade ou de assimilação. U m
Mas de onde procede a autonom ia individual? Se o peque­
indivíduo não p od e explicar um grupo, uma comunidade ou uma
no x não é uma parte im perm eável ao exterior, c o m o o pensam
instituição, e, inversam ente, um grupo, uma comunidade ou uma
Johannes Gustav Droysen e Eduard M ey e r, se m esm o a vida íntima
instituição não p erm item explicar um indivíduo. Entre esses dois
não é livre, mas penetrada pela presença do outro, a que se deve a
poios, existe sempre um resíduo, e esse resíduo é inesgotável. As
diferença humana, o fato de que os hom ens diferem uns dos outros?
cnações da vida coletiva são atormentadas, vividas e realizadas por
Para retomar as palavras de Johann G o ttfried H erder, p or que “ não
há na natureza duas folhas de árvore perfeitam ente semelhantes uma cada indivíduo, mas escapam a seu controle, abarcando um espaço

à outra, e menos ainda duas figuras de hom ens?” .373 humano mais am plo que o simples espaço biográfico. Elas existiam

^ Para Dilthey, a possibilidade de “ perm anecer para si m esm o" antes de nós e continuarão após nós:

não é inata. Ela é fruto da coexistência, n o espaço e no tempo, [Elas] agem c o m o costumes, condutas, e, através de sua apli
e diferentes conjuntos interativos: os grupos, as comunidades, cação ao in divídu o, enquanto opinião pública, em virtude da
as instituições, frequentem ente em com p etiçã o ou em conflito

"‘ Wilhelm D ilthey, C ro ya n ce à la v írilé d u m o n d e ex tén eu r, op. cit., p. 141.


371 W 'lheln’ D il,h c>. L lm agina lw n du p o i u , op. cit. , p. 163. Nos mesmos anos, E m ile D u rk h eim sublinha que o individualismo, longe de o de agr ga ,

r h n lo J lr * j CèmrT ~ ll,n sld crjÇÕes cndcas nesse sentido em " T h e R e la tio n betw een Psy- tensifica o laço social: cf. " L ’ individualism e et les intellectuels" (1898), dans L a en te soaa e e

1940 V n " p 430* 443 ^ ^ o f W llh e lm U llth e y ". S tu d ie s in P h iio so p h y a n d Social Science. l aciion, Pans, P U F . 1987, p. 274. O laço entre individualização e socializaçao sera em segui
retomado por N o rb e rt Elias, La S o a é té des in d ivid u s, op. à t . , p. 37-56. para quem a sou e e nao
|o±unn C . x t f r v j Herder, Id íts p our la philosophie de 1'histoire de 1 'h u m a n ité, op. cit., t. II. p. 1 tem somente a função de igualar e norm alizar, mas tam bém de individualizar.

134 135
O PEQUENO X - D a BIOGRAFIA À HISTÓRIA
A PlURAUDADE DO PASSADO

superioridade do núm ero e p elo fato de que a comunidade


imediatamente ou realizar no seio de nosso eu” . O que equivale a
dura mais tem po do que a vida individual, exercem um poder
dizer que o presente nunca é apenas presente, um estado temporal
sobre o indivíduo, sobre sua experiência e sua potência vitais376
fechado em si m esm o, mas que ele é de uma natureza mais flexível
Basta pensar na Igreja católica: quantas gerações de homens ela e não cessa de solicitar o passado e o porvir: “ O presente não é
viu nascer e desaparecer “ desde os tem p os em que escravos se jamais; o que vive m o s n o im ediato com o presente encerra sempre
esgueiravam ao lado de seus senhores ru m o às tumbas subterrâneas em si a lembrança do que era justamente presente” .379 A exem plo
dos mártires [...] até hoje, quando essa hierarquia com plexa desapa­ de Friedrich N ietzsch e, D ilth e y pensa que o hom em é uma cria­
receu quase totalmente no Estado m o d e rn o !” .377 P o r outro lado, o tura do tem po, inelu tavelm ente ligada à cadeia do passado e que é
indivíduo é sempre um ser bastardo, no cruzam ento (Kreuzungspurtkt) precisamente essa que faz nascer nele a necessidade de se exprimir
de diferentes grupos históricos. E m bora seja m odelado, até a moela, de maneira durável: “ O animal v iv e tudo no presente. [...] Nada
por suas experiências sociais, jamais é redu tível a uma só dessas: sabe do nascimento e da m orte. Assim, sofre bem menos do que
jamais se dá com pletam ente, nem m esm o à sua família, a matriz de o homem. Em bora se observe p or toda parte, no reino animal,
todas as outras formas de vida social. T o m e m o s o caso de um juiz. crueldades, m utilações ferozes, a luta pela vida e pela morte, a
Ele pode pertencer ao m esm o tem p o a uma família, a um partido vida do h om em está exposta a uma dor bem maior e mais perma­
político, a uma Igreja, etc.: além d o fato de que satisfaz nente” . Nossa vida se estende atrás de nós, rumo ao passado, pelo
viés da lembrança, e adiante, numa expectativa, cheia de tem or
[...] a função que ocupa no espaço jurídico, ele é fruto de diversos
ou esperança, voltada para o porvir: “ Dos dois lados ela se perde
outros conjuntos interativos; age no interesse de sua família, deve
na obscuridade” .380 C on trariam en te ao que dirão, nos decénios
cumpnr uma atividade económ ica, exerce suas funções políticas, e
talvez, de quebra, componha versos. Assim, os indivíduos não estão seguintes, numerosos sociólogos (especialmente alguns defensores
inteiramente ligados a tal conjunto interativo, mas, na diversidade do interacionismo s im b ó lico 381), o eu não é um produto h ic e t nunc,
das relações de causa e efeito, só são postos em relação uns com determinado p or uma situação contingente. Suas ações são fundadas
outros os processos que derivam de um sistema determinado, e o na duração e se alim entam de imagens do passado e de antecipações
indivíduo está imbricado em conjuntos interativos diferentes.™ do porvir: “ D iferen ça entre a alma e as menores partes do corpo” ,
escreve D ilth ey no fim dos anos 1870,
Por sorte, mesmo quando não é possível, c o m o nas situações
extremas, habitar simultaneamente diversos espaços, resta-nos ainda [...] estas tendem , na flutuação de condições que aparecem
a possibilidade de haurir recursos atrás de nós e à nossa frente, em e desaparecem, a voltar a seu estado primeiro. A alma, ao

outros tempos: "N um erosas são em nós as possibilidades da vida contrário, guarda nela as consequências dos influxos recebidos,
m esm o após a chegada de influxos de sentido oposto: segundo
em relação à m em óna e ao querer p rojetad o para o porvir, [...] àe
tal forma que nossa imaginação vai além do que podemos viver
Wilhelm D ilthey, P lan der F o r ts e tzu n g z u n i A u jb a u der geschichtliclien W elt in den G eistwissenschaften
(1907-1910), in G e sa m m e lte S c h n fte n , op. cit., t. V II, p. 194, 259. Sobre o tem po real, cf. igual­
W ilhelm Dilthey, L É d ifu a tio n du m onde historique, op. cit., p. 8 8 . mente W ilhelm D ilthey, S tu d ie n z u r G ru n d leg u n g der G eistw issenschaften (1905-1910). in G esam m elte
^ W ilhelm Dilthey, Introduction a u x sciences de l ’esprit, op. cit., p . 2 2 4 . Schnften, op. cit, vo l. V II, p. 70-75.

dh elm D ilth ey , L Édification du m onde historique, op. cit., p. 118. O gru p o a que Dilthey atribui a Wilhelm D ilthey, L eb en u n d E r k e n n e n , op. cit., p. 357.
nw.- ^ n e capacidade de unificar a experiência é, sem dúvida alguma, a geração, entendida como Segundo Herbert Blurner, " A ação específica tem lugar no seio de uma situação e se refere a
restnto de indivíduos que, no curso de seus anos de form ação, foram confrontados a c csta l- -]: qualquer que seja a unidade — um indivídu o, unia família, uma escola, uma igreja* uma
inl 1,05 niesmos acontecim entos. Ela e x p n m e uma relação de con te m p ora n eid a d e do» empresa, um sindicato, etc. - cada ação específica se forma com base na situação no seio da qual
, UOS Essc Ponto serí retom ado por Sigfried Kracauer, V H is to ir e : des a n m t-d e m iè n s clioírs * desenrola": H erbert Blum er, S ociety as Sym bolic Interacton, in A m o ld M . R o se (dir.), H u m a n
* ra^ ,IZ1^0 do inglês por Claude O rsom , Paris, Stock, 2006, cap. 1. Beliavior a n d social Processes: A n Interaction A pp ro a ch , Boston, H ou ghton M ifflin, 196-, p. 187

136
O PCQUENO X - Da BIOGRAFIA k HISTÓRIA
A PLURAUDADE DO PASSADO

a bela frase de Schleierm acher que diz que nela nada perece. É E co m o a organização política contém em si uma diversidade
por esta razão que ela pode se desdobrar.'82 de comunidades que descem até a família, a vasta esfera da vida
nacional com preen de, ademais, comunidades, conjuntos mais
Enquanto isso, mesmo a relação que existe entre uma comunidade restritos que têm em si seu m ovim ento próprio. [...] Cada um
ou uma instituição e uma época ou uma civilização não é definível em desses conjuntos interativos está centrado sobre si mesmo de
termos de pertencimento. Sem dúvida, toda época exprime uma figura uma maneira particular e é aí que se encontra fundada a regra
dominante. É unilateral e, em certos m om entos, a consonância entre interna de sua evo lu çã o.,86

os diferentes domínios da vida é particularmente forte: por exemplo,


Profundamente insensível à magia da cronologia, D ilthey não
o espírito racional e mecanicista do século X V I I influenciou a poesia,
deixa de conceitualizar a pluralidade fundamental do mundo histó­
a ação política e a estratégia de guerra. Mas trata-se de exceções, já
neo em sua dimensão tem poral. N a esteira de Herder, que afirmava
que os diferentes campos gozam de certa autonomia: “ Cada conjunto
que todo fen ó m en o é o p róp rio relógio, escreve, em 1910, que o
particular contido [no mundo histórico] possui, através da posição de
tempo histórico não é n em um m o vim en to retilíneo nem um fluxo
valores e da realização de fins, seu próprio centro” .383 C o m o Wilhelm homogéneo.387 Assim, o século X V I I I é habitado, ao mesmo tempo,
von Humboldt escrevia já em 1791, há sempre fragmentos de história pelas Luzes, p or Bach e p elo pietism o:
que resistem ou recusam conformar-se ao m o vim en to geral.384 Disso
Esse conju nto h om ogén eo, em que se expnme, em diferentes
resultam irregularidades, diferenças, discordâncias:
dom ínios da vida, a orientação dominante das Luzes alemãs,
Esse conteúdo [histórico] se apresenta c o m o uma unidade. não determ ina p or isso todos os homens que pertencem a
E o que pôde fazer nascer a ideia de que era possível expor esse século, e, m esm o lá onde sua influência se exerce, outras

o conjunto da história sob a form a de relações lógicas entre forças agem muitas vezes a seu lado. As resistências do século

pontos de vista hom ogéneos. Assim, os hegelianos estragaram precedente se fazem sentir. As forças ligadas às situações e às

a inteligência da filosofia m oderna pela ficção segundo a qual ideias anteriores são particularmente ativas, mesmo se buscam
dar-lhes uma form a n ova.388
os pontos de vista decorreriam logicam ente uns dos outros.
Em realidade, uma situação histórica con tém inicialmente uma
De certa maneira, D ilth e y desenha o tod o histórico com o um
diversidade de fatos particulares. Refratános, estes são simples-
385
conjunto maleável, con flitu oso, no seio do qual coexistem forças
mentejustapostos e não se deixam recondu zir uns aos outros.
discordantes que se rebelam contra a unidade forçada do Zeitgeist:
Uma civilização não constitui, portanto, uma entidade compacta e Não se trata de uma unidade que seria exprim ível por uma ideia
não é feita de uma única substância, redu tível a um princípio pri­ fundamental, mas antes de um conjunto que se edifica entre as
mordial. D eve antes ser com preendida c o m o um entrelaçamento tendências da própria v id a ” .389 D efinitivam ente, as considerações

ou uma mistura instável de aspirações diferentes e de atividades que de Dilthey sobre a natureza heterogénea e descontínua do tem po

se contradizem. Acolhe diversos conjuntos interativos em perpétuo Histórico propõem uma im agem musical da relação entre as partes

movimento (a economia, a religião, o direito, a educação, a política,


o sindicato, a família, etc.):
Wilhelm D ilthey, L ’É d ifica tio n d u m o n d e historique, op. a t ., p. 122-124.
1‘rovavelmente, c o m o o dirá S ie gfn ed Kracauer (L 'H is to ir e , op. d t., p. 216), seria m elhor substituir
J expressão a marcha d o te m p o ” p o r “ a marcha dos tem pos". C f. igualmente W alter Benjaniin,
' W IiT l" ^ ErkennUns,heonschf F n g m en le, op. cit., p. 63. OnjJÍHf du drame barroque a iiem a n d (1925), traduzido do alemao por Sibyle M uller, Paris, Flamma-

4W á h V U Cy L E J 'tUal,0n du m onJe historique, op. cif., p. 92. t non- 1985, p. 38-39.


WilhcWn\on H n m iv jj. .
S d iriftm op C11 ^ 'r (^ ese,ze drr E n tw ick lu n g der m enschlichen K r afie, in C esttmm tllt Wilhelm Dilthey, L ’Édifica tio n d u m o n d e historique, op. cit., p. 132.
fà d „ p. ] 3 3 j j ni ano m ajs e ]e voltará a esse ponto, in D ie T y p e n der tV eltanschauung u n d
W ilhelm Dilthey, V ^ m tw n du p0>,r o p . „ , p
irt A^sbildung in deu m eta p h ysieh en S y s te m e n , in O esa m m elte Schriften, vo l V III, p. 89-90.

139
O PEQUENO x - Da b io g k a fia A h is t ó r ia A PLURALIDADE DO PASSADO

e o todo, num jo g o in fin ito de harmonias e de dissonâncias não compreender um ed ifício observando cada um dos tijolos que o
previsíveis: não existe um núcleo ún ico, que seria ao mesmo tem­ compõem, exam inando o cim en to e identificando a mão de obra
po a melodia e o acom panham ento (o século das Luzes), mas uma que o construiu, pois o que im porta verdadeiramente é a orde­

alternância de temas que se encadeiam e se entrecruzam.390 nação arquitetural. O m esm o se dá com a vida. N ã o podemos
decompô-la em m il pedaços, precisamos apreender sua conexão
V psíquica dom inante: “ T o d a vida tem seu sentido próprio: ele reside
na conexão significativa n o seio da qual cada m om ento evocado
Desejoso sobretudo de descobrir as diferentes maneiras como a possui seu p róp rio va lo r e tem também [...] uma relação com o
humanidade realiza sua liberdade interior, D ilth e y volta muitas vezes sentido da totalidade” .393 Infelizm ente, não se trata mais aí de um
à biografia, a forma de historiografia mais filosófica segundo ele: edifício, e a tarefa é b em mais árdua. A conexão psíquica dominante
se exprime plenam ente na duração, já que é uma “ forma gravada
É a vontade de um h om em , em seu desdobramento e em seu
destino, que é aqui apreendida em sua dignidade como fim em que se desenvolve v iv e n d o ” ; p or conseguinte, não podemos com ­
si, e o biógrafo deve perceber o h om em sub speàe aetemi, tal preender plenam ente o in divíd u o, p or mais próxim o que esteja,
com o ele mesmo se sente nos m om en tos em que, entre ele ea senão observando c o m o ele se tornou o que é. É por essa razão que
divindade, tudo é tão som ente transparência quase não velada, Dilthey se pergunta, repetidam ente, se a biografia não assume todo
signos e intermediários, e em que se sente tão próximo do céu seu sentido som ente na idade adulta, quando o processo de indivi­
estrelado quanto de qualquer parte da terra.391 duação é com pletado. Considera m esm o a necessidade de esperar
o fim do curso da vida: talvez som ente na hora da morte pode-se
Desse ponto de vista, a biografia p rivilegia o grande homem na
contemplar a totalidade de uma vida. Em todo caso, cada elemento
medida em que esse é capaz de am algam ar experiências duráveis.
particular da existência adquire uma significação essencialmente
Mas tal propensão não é nem um p o u co exclusiva. E possível contar
por sua con exão c o m a totalidade. Nessa perspectiva, que será
qualquer vida, da mais insignificante à mais notável, da cotidianidade
mais tarde retom ada p or Hannah Arendt, a verdade e a significação
aos mais altos feitos: “ A família guarda suas lembranças, a justiça
(.Bedeutung) não coin cid em : a primeira descreve um pensamento,
criminal e suas teorias nos fazem con h ecer a vida de um malfeitor,
uma sensação ou uma ação, enquanto a segunda indica a relação
a patologia psíquica a de um anormal. Cada elem en to humano se desse pensamento, dessa sensação ou dessa ação com uma vida em
toma para nós um docum en to que nos apresenta algumas das pos­ seu conjunto (pessoal ou histórica). E, na biografia, assim com o na
sibilidades infinitas de nossa existência” .392 história, é a significação que d eve predominar, uma vez que uma
A dizer a verdade, no que con cern e à biografia, Dilthey coloca miríade de fatos verdadeiros não basta para nos revelar uma vida:
uma única condição: considerar o ser hum ano em sua íntegra. Se como escrevera, uma v e z ainda, G oeth e, “ um fato de nossa vida
o eu é holístico, a biografia tam bém d eve sê-lo. N ã o chegam os a não vale por ser verdadeiro, mas porque significava alguma coisa’ .394

Dilthey não se contenta em defender a natureza holística da


biografia; ele sublinha igualmente o laço vital profundo que exis­
Jorge Luís Borges perguntará: co m o se po d e im aginar que C ervantes era contemporâneo
quisiçàor O . Jorge Luis Borges, In M e m o r y o f Borges, c o m p reen d en d o textos de Borges, G te entre a obra de arte, a biografia e a história. Em suas obras de
Green. Vargas Llosa, 1988. C f. igualm ente os protestos de A lb e r to Savm io, F ine dei tnodelli (1 1
in Opere, p. 479, contra a indiferença de C ro n o s que lançou G ioa cch m o Rossini num ^
que lhe é estranho. Sobre o valor do anacronism o, cf. igualm ente Hans Magnus EnzensbH^
Ibid., p . 1 9 9
Feuilletagt Essais (1997), traduzido do alem ão p o r B em a rd Lortholary, Paris, Gallimard, I
Coiwcrsatiom de G o eth e avec E clterm a n n , op. cit., 30 m arço de 1831, p. 413. Sobre a distinção entre
^ W ilhelm Dilthey, Introduction a u x sciences de 1’esprit, op. cit.. p. 191.
'erdade e significação, v e r igualm ente Hannah A rendt, L a l'ie de 1’esprit (1978), traduzido do
W ilhelm Dilthey, P h n der F ortsetzung z u m A u fb a u d erg esch ich tlich en W e lt in den G eistw sstns
'"glêsp or Lucienne L o tn n g er, Paris, P U F , 1981, p. 30.
in Gesamm elte Schnften, op. cit., p. 247.

140
O PEQUENO X - Da BIOGRAflA À HISTÓRIA A PLURALIDADE DO PASSADO

estética, toma por alvo de suas críticas “ todas as finezas artificiosas que invoca não é mais G oeth e ( T u d o se liga a isto: para fazer alguma
que gostariam de separar o belo da experiência da vida” . Para ele, o coisa, é preciso ser alguma coisa” ), mas Shakespeare, que, pela voz
poeta é uma alma impregnada de vida: “ E preciso procurar antes de de Hamlet, recorda que o fim do drama sempre foi “ tanto na ongem
mais nada o fundamento dos efeitos específicos do poeta no ambiente, quanto agora apresentar de certa forma o espelho à natureza; mostrar
na riqueza e na energia de suas experiências” .3yi Essas estão inten­ à virtude seus próprios traços, à vergonha sua própria imagem, ao
samente vivas tanto na matéria quanto n o estilo, já que existe uma século e ao corpo do tem p o a impressão de sua forma” .4u0
relação estreita entre o estado psíquico que engendra a obra poética A relação entre a obra de arte, a biografia e a história, porém,
e a forma que lhe é própna: “ As imagens e suas relações ultrapassam, está longe de ser simples: cada uma das linhas das A finidades eletivas
por essa razão, a experiência vivida ordinária; mas o que nasce dessa foi vivida, mas nenhuma delas é tal com o foi vivida.401 Nesse senti­
forma representa, entretanto, essas experiências, ensina a captar suas do, toda catalogação biográfica é inadequada. N ã o basta repertoriar
significações e a aproximá-las de nosso coração” .391’ Contrariamente os hábitos do poeta, reconstruir suas frequentações ou escutar as
ao que afirma M areei Proust, exatam ente na mesma época, a obra declarações de seus am igos, c o m o pensava Sainte-Beuve. É mesmo
de arte não é para D ilthey o fruto de ou tro eu, mais profundo, que inútil interrogá-lo sobre o que pensa de tal ou tal coisa, porque a
escaparia, e mesmo se recusaria à experiência de vida.39 Para ele, inteligência artística é inconsciente, muitas vezes incapaz mesmo
nenhum abismo separa o poeta do h om em . M ais ainda, Hyperion é de se explicar: “ O trabalho criador do poeta repousa em toda parte
Hòlderlin, Empédocles é H õlderlin: m esm o distanciamento da agi­ sobre a energia c o m que v iv e as coisas. Em sua organização, que
tação do mundo, mesmo peso do passado... “ Se essa fórmula é um oferece poderosa ressonância aos sons da vida, a noticiazinha sem
pouco estreita, temos mesmo assim o d ireito de dizer: é somente na alma de um jorn al, na rubrica “ O m undo do crim e” , o seco relato
medida em que um elem ento psíquico, ou uma combinação de tais de um cronista ou a lenda grotesca se transformam em experiência
elementos, está em relação com um acontecim ento vivido, e com vivida” .402 M o za rt abandonava-se às impressões suscitadas pela vida,
a representação deste, que ele p od e ser elem en to constitutivo da como um peregrin o em terra estrangeira, com um prazer profundo
poesia” .3'1" Mas há mais. Porque o poeta não v iv e nas nuvens, sua e em toda liberdade. O mesmo poderia ser dito de Lessing, de Goethe,
obra tem igualmente sua historicidade e, em certos casos, exprime de Novalis e de H õ ld erlin , os elos do m ovim en to espiritual alemão.
as inquietudes de toda uma geração: “ A arte pinta o céu e o infemo, Ei-los, in d e fec tiv elm e n te im pregnados das vivências mais dispa­
os deuses e os fantasmas com cores emprestadas à realidade. Ela se ratadas, “ pois a vida de um h o m em está tão entrelaçada com os
contenta em intensificar os elementos desta” .399 Dessa vez a referência destinos de m uitos outros que um dia ele os vê subitamente com
uma força visionária em face dele para, em geral, voltar a perdê-los
no tumulto do m u n d o, ou senão é tocado de maneira mais efém e­
W ilhelm Dilthey, L 'Im a g itia tio n d u p o è te , op. cit., p. 115.
Ibid., p. 94 e 164. A esse propósito, C f tam bém Hans G e o r g G adam er, Vèritè et méthode. Lb
ra, talvez som ente pela expressão de um indiferente ou a notícia
grandes lignes d une herm éneunque p h iloso p h iq u e (19 60 ), tradu zido d o alem ão por Pierre Fruchon,
Jean Grendin e Gilbert M erKo, Pans. Édm ons du Seuil, 1996, p. 325-329.

Mareei Proust, C ontre S a in te-B eu v e, op. a t . , p. 121-147. Wilhelm D ilthey, U lm a g in a tio n d u po ete, op. n t . , p. 163. C f. W illiam Shakespeare, H a m le t, ato
Hl, cena II, linhas 19-23. N o curso d o discurso p rofen d o em Viena, em 1936, por ocasião dos
W ilhelm Dilthey, L Im agm ation du poète, op. cit., p. 104. C f. igualm ente as proposições sobre i
cinquenta anos de H erm ann B roch , Elias C anetti definiu o escritor co m o um fin o cão de caça,
filosofia considerada com o uma essência viva, “ um organ ism o alim entado pelo sangue de um
filósoto": W ilhelm Dilthey, D asgeschichtliclie B e w u sstsein u n d d ie W cltanscliauungen. in C esa m m * tendo o vício de m eter o nariz nos recônditos de sua época.

Schrifien, op. cit . vol. V III, p . 30 sq. Sobre a ligação entre experiên cia vivida e visão filosohu, Recentem ente, A m o s O z declarou: "Q u a l é a parte da autobiografia e da invenção em minhas

W ilhelm Dilthey, L H istoire de la je u n esse de H eg el in L e ib n iz et H eg el. traduzido do alemao p » histórias? T u d o é autobiografia: se um dia escrevesse uma história de amor entre M adre Teresa c

^Jean-C nstophe M erle. t. V , Pans. Édm ons du C erf, 2002. Abba Eban, sena certam ente uma históna biográfica - em bora nào confessada. Todas as histónas

” * W ilhelm Dilthey, C ontributions à 1’étude d e fin d iv id u a lité (1 8 95 -189 6), in L c m onde de 1'tspM. °P que escrevi sào autobiografias. N en h u m a é uma confissão".
à t. p. 278. Wilhelm D ilthey, L 'h n a g in a tio n d u p o ete, op. d t, p. 60.

142
O PEQUENO X - Da b io g r a f ia A h is t ó r ia A PLURALIDADE DO PASSADO

de u m jornal empanturrado de fatos” .4" ’ Estranho à mentalidade maiores preocupações, fragm entos de imagens incoerentes, o poeta
aritmética do dois e dois são quatro, D ilth e y sabe m u ito bem que negligencia inten cion alm en te os traços contraditórios. Em seguida,
a obra de arte não é uma representação direta e fiel da experiência a intensificação de cada elem en to, a exem plo do que acontece num
vivida, nem mesmo a im itação de uma realidade efetiva, dotada de palco de teatro quando um personagem particular é iluminado por
uma existência independente, mas antes um m o m en to de criação de um refletor (em Shakespeare e Dickens, há “ uma espécie de luz ar­
que surge algo de im previsível, que perm anecera até então latente. tificial: as imagens são colocadas sob a iluminação elétrica e crescem
Embora penetrada de vida, a poesia transcende a realidade e se sob a lupa” ).4U6 E nfim , a integração: “ U m a imaginação que apenas
serve da experiência para en n qu ecê-la c o m n ovos temas: “ As ima­ eliminasse, reforçasse ou diminuísse, aumentasse ou reduzisse, seria
gens e suas com binações se desdobram livrem en te [no poeta] para fraca e não produziria mais do que uma idealidade sem relevo ou
além das fronteiras do re<j/” .404 T u d o se passa c o m o no sonho ou no uma caricatura da realidade. P o r toda parte onde se constitui uma
delíno, dois estados psíquicos em que se realiza “ a livre modelagem obra de arte verdadeira, produz-se um desdobramento substancial
das imagens” . Essa afinidade entre a poesia, a fantasia onínca e a das imagens que receb em um com plem ento positivo” .407
loucura é evidente em Rousseau e em B yron , os mais eminentes
VI
poetas subjetivos dos dois últim os séculos: “ Se lem os a história de
Rousseau a partir desse 9 de abril de 1756, data de sua instalação no Por m uito tem po, D ilth e y acariciou a esperança de apreender
eremitério do parque de L a C h evrette, em que ele ‘ com eçou a viver’, a significação - ou as significações - da vida graças à psicologia: é
até sua morte, que só ela pôs fim a seus sonhos, a suas decepções, e nessa ciência fundamental, entendida com o conhecim ento da ex­
mesmo à sua mama de perseguição, é im possível separar seus fan­ periência vivida (Erlebnis*™) e não co m o ciência experimental, que
tasmas de seu destino” . B yron tam bém “ am plificou fantasticamente devem se fundar a biografia e a história, com o afirma seu ensaio

todos os acontecimentos de sua v id a ” . M as esses não são casos ex­ Uber vergleichende Psychologie. Beitràge z u m S tu d iu m der Individualitàt,

cepcionais: todas as produções poéticas, m esm o as mais sãs, revelam escrito entre 1895 e 1896 em resposta às críticas de W ilh elm W in -

afinidade com os “ estados psíquicos que se afastam da norma da vida delband e de H ein n ch Ebbinghaus.409 Nesse texto, com o em outros

desperta".4"’ C o m uma diferença, entretanto. Enquanto no sonho, que datam dos anos 1890, a com preensão ( Verstehen) é encarada

na loucura ou no estado de hipnose, a coerên cia da vida psíquica é como um processo de reconstrução psicológica graças ao qual o

diminuída, ela se encontra, ao contrário, aguçada na arte: o poeta intérprete é transposto ao h orizon te de outro. E somente por esse

transcende a realidade para percebê-la de maneira mais potente e movimento im agin ativo — ultrapassando os limites da Erlebnis indi­

profunda. Para D ilthey, a transformação poética da realidade se vidual e reencontrando o p róp rio eu no tu - que é possível reviver

funda sobre três operações estéticas (qu e p o d em nos parecer, hoje (nacherleben) e reprodu zir analogicam ente o ato criador de outro

em dia, ligadas demais ao cânone d o classicismo). Em primeiro ser humano (quer se trate do autor de um texto ou do protagonista
lugar, a omissão: diferentem ente d o delirante, que mistura, sem de um fato): “ A preen dem os a vida interior [de outras pessoas]. Isso

W ilhelm Dilthcv, G oethe e t r im a g in a tio n po étiq u e, op. cit , p. 286. Sobre Sainte-Beuve, cf. o capitulo Wilhelm D ilthey, L ’Im a g in a tio n d u p o ète, op. cit, p. 102.

O limiar biográfico” . ‘ " I M ; p. 103. Sobre a poética de D ilth ey, cf. Kurt M iille r V ollm er, Towards a Phenomenological
Theory o f U terature. A S tu d y o f W ilh e lm D ill h e y ’s P oetik, La H aye, M ou ton. 1963.
W ilhelm Dilthey, U lm a g m a tio n du poèle, op. cit., p. 67.
•"Sobre a noção de E rlebnis na reflexã o de D ilth ey, ve r especialmente O tto Fnednch B ollnow ,
Ibid., p 9S A analogia entre a criação artística e o sonho é proposta igualmente por Norbeit
Dilthey. E ine E in fu h n w g m seine P h ilo so p h ie (1936), Schaffhausen, Novalis Verlag, 1980, p. H4 sq.
Elias, M o za rt Soaologie d un génie. traduzido d o alem ão p o r Jeanne Étoré e Bemard Lortholarv.
I‘ins. Édmons du Seuil, 1991; e por A ndré G reen . L a lettre et la m ort. P rom enade d ’u n psychúnahílt " Wilhelm W indelband. “ H istoire et sciences de la nature". op. cit.; H einrich Ebbinghaus. “ Ú b er

à tr a n n l.i littérature: Proust, Shakespeare, C o n ra d , B o r v e s ... entretiens avec D om iniqu e Eddé, Pam' erklarende und beschreibende PsycholoRie” , Zeitschrift fitr Psychologie u n d Physiologie der Smnesorgane.
Denoel, 2004, p. 142 sq. >8% , IX , p. 161-205.

144 145
O PEQUENO X - D a BIOGRAFIA À HISTÓRIA A PLURALIDADE DO PASSADO

ocorre por uma operação espintual que equivale a um raciocínio Em 1910, um ano antes de sua m orte, termina por abandonar
analógico. Os defeitos dessa operação v ê m d o fato de que só a definitivamente toda form a de intuição psicológica. Reitera, uma
realizamos transportando nossa própria vida psíquica a outrem ” .410 vez ainda, que o c o n h e cim e n to é uma expressão vital: “ N ã o é uma
Eis-nos aqui bem longe do preceito distante prescrito (mas talvez áémarche conceituai que constitui o fundamento das ciências do es-

bem pouco posto em prática) p or R an k e, que recomendava ao pínto, mas a apreensão de um estado psíquico em sua totalidade e

histonador apagar o p róp n o eu, de maneira a deixar falar apenas a capacidade de reen con trá-lo reviven d o -o . E a vida que apreende
aqui a vida” .414 Mas revela-se cada vez mais pessimista quanto à
as coisas. D ilthey não o estima possível, n em desejável. Pensa, ao
possibilidade de participar de maneira imediata da experiência de
contrário, que só a extensão do eu tom a possível a compreensão do
outrem pela simpatia (N a c h fu h lu n g ). Ele que, em seus escritos de
mundo históneo: o ato de reproduzir e de reviver, essa passagem
juventude, se definia c o m o a um só tem po historiador e psicólogo,
do eu ao tu, é para ele c o m o o solo alim entador, “ on de mesmo as
descobre partilhar doravante a desconfiança de G oethe em relação à
operações mais abstratas das ciências morais d evem haunr sua força.
introspecção: o h o m em só se con h ece na medida em que conhece
A compreensão não pode jamais ter aqui um caráter puramente
o mundo, só con h ece o m u ndo em si e só se conhece no mundo.
racional. E vão querer fazer com preen d er o herói ou o gênio acu­
Mas, então, c o m o nos é possível com preender o outro? C o m o
mulando as circunstâncias de todas as espécies. A via de acesso que
podemos nos recon h ecer nele, sentir seus estados de alma? E com o
m elhor lhe con vém é a mais subjetiva” .411
podemos nos fundar no ato de compreensão, ainda mais quando essa
Entretanto, sua confiança na psicologia não fo i inabalável.
sobrevêm a posteriori? “ E m face da intrusão constante do arbitrário
Desde 1894, escreve que não são as experiências psicológicas, mas romântico e da subjetividade cética no dom ínio da história” , Dilthey
a história que perm ite ao in divídu o apreender o que ele é.412 Treze enfrenta essas questões, durante os dez últimos anos de sua vida,
anos mais tarde, alerta contra a ideia de re viv e r diretamente um na esperança de “ fundar teoricam ente o valor universal da inter­
estado psíquico:
pretação, sobre o qual repousa toda certeza histórica” .4’3 Reatando

Se quiséssemos [...] viver agora imediatamente, aplicando-nos a


com a tradição herm enêutica que abordara nos anos 1860 com uma
isso de qualquer maneira que seja, o fluxo da própria vida, (...) grande biografia de Friedrich Schleiermacher, escreve que a obra
recairíamos sob a lei da vida, segundo a qual todo mom ento ob­ de arte é com preensível graças à afinidade que existe entre aquele
servado, ainda que reforcemos em nós a consciência desse fluxo, é que exprime e aquele que escuta.416 A individualidade do intérprete
o momento que se tom ou lembrança, mas não o fluxo; pois está e a de seu autor não são estranhas ou incomparáveis entre si: bem
hxado pela atenção que petrifica então o que em si é corrente.
pelo contráno, “ são constituídas tanto uma com o a outra sobre os
Não podemos, por conseguinte, penetrar a essência desta vida:
elementos fundamentais da natureza humana em geral, o que toma
o que o jo vem de Sais desvenda é uma forma e não a vida.413
possível a com unidade entre os homens no discurso e na com pre­
ensão” . Os seres humanos d iferem uns dos outros, e a compreensão
W ilhelm D ilthey Psydiologic descriptive et analytique, op. cit., p. 203-204. A ideia da dilatação do eu.
mútua é-lhes uma tarefa árdua. T u d o bem considerado, não se
^ - *ii num m ovim ento condnuo entre estraneidade e reconstrução, procede de G oethe, que, mais
^H * ninguém, parece possuir uma faculdade quase fem inina de simpatia com a existência trata, no entanto, de diversidades qualitativas entre as pessoas, mas
suas tormas, uma im aginação que a aumenta reconstruindo-a” (G o e th e et 1’imaginalion
analytique, op. cit., p. 259).

W ilhelm Dilthey, C ontribui,on à 1’élude de fin d iv id u a lité , op. cit., p. 282. A crítica de Dilthey a o véu da deusa, em Sais - Mas o que viu? V iu - maravilha das maravilhas - a si m esm o’ , sobre o
41 k' tol " ,‘“ i Iarde ret°m ada por G eo rg Sim m el: cf. Pietro Rossi, L o sloricismo contemporâneo, qual Dilthey reflete em G o e th e et l ’im<igination p o étiq u e, op. cit.
op- a t., p. 235.
Wilhelm Dilthey, L 'É d ific a lio n d u m o n d e historique, op. cit., p 90.
^ W ilhelm Dilthey, Psychologie descriptive et analytiq u e, op. cit., p. 389.
’ ( Wllhe|m Dilthey, N a issa n ce de 1 'h en n én eu tiq u e (1900), in Écrits d'esthétique, op. cit., p. 307.
i» m ^ a" <
*lT ^ onset* un8 z u m A u fb a u dergeschichtlichen W e ll in d eu Geistesunssenschafien, Sobre sua leitura de Schleierm acher, cf. Franco Bianco, Sloricismo ed em ieneutica, R om a . Bulzom ,
™ •P rata-se de um dístico de Fnednch N ovalis: “ A lgu ém o conseguiu - que retirou
1^74, cap. 3; G eorges G u sdorf, L es origines de 1’h erm in eu tiq u e, Paris, Payot, 1988, cap. 4

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147
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia a h is t ó r ia A PLURAUDADE DO PASSADO

“ das diferenças de intensidade em seus processos psíquicos” .417 Essa a totalid ad e em u m a única de suas expressões.422 Felizmente, o ser
leitura otimista vale igualm ente para o passado, um m undo que lhe humano tem constante necessidade de expressar seus estados de alma.
é familiar, no qual evolui com desenvoltura: E diferen tem en te d o animal, não se limita a manifestações corporais.
Graças à linguagem , p o d e escapar à solidão de sua vida interior
Da distribuição das árvores num parque, da ordenação das casas
para contar-se, cantar, pintar, dançar, etc.423 E são essas realizações
numa rua, da ferramenta bem adaptada do trabalhador até o jul­
extenores que to m a m possível a compreensão: “ Esta compreensão
gamento pronunciado no tribunal, há incessantemente à nossa
vai da apreensão d o balbucio da criança até a de Ham let ou da
volta produtos da históna. [...] Já que o tem po avança, estamos
Crítica da razão p u ra . O m esm o espírito humano nos fala na pedra,
cercados por ruínas romanas, catedrais, pelos castelos da monar­
no mármore, nos sons musicais, nos gestos, nas falas e nos escritos,
quia. A história não é algo que esteja separado da vida, nada que
esteja cortado do presente por seu distanciamento no tempo.418 nas ações, na o rd em eco n ó m ica e nas constituições, e requer uma
interpretação” .424 E nquanto o processo criativo vai da experiência
Q u e o material seja in evitavelm ente lacunar e obscuro, de certa vivida (Erleben) à expressão (A u sd ru c k ), o processo da compreensão
forma uma não evidência, não constitui um obstáculo insuperável. segue o caminho inverso: só penetramos a interioridade do outro
Por certo, o historiador é con dicion ado p o r sua época, mas, como por seus efeitos, p o r causa das manifestações pelas quais, com o diria
qualquer outro intérprete, pode dilatar sua experiência e se abrir Hegel, a consciência humana se objetiva.425
a outra vida: P o r cima de todas as barreiras de sua própria época,
Estes “ produtos objetais” , c o m o os chama Dilthey, são mui­
ele olha para fora em direção às civilizações d o passado; ímpregna-
to numerosos: a linguagem , o m ito, a arte, a religião, o direito, a
se de sua força e re-expenm enta sua magia: e tira daí um grande organização política (poderíam os m esm o acrescentar o sonho, a
aumento de felicidade” .419
cozinha, a moda, o sintoma, etc.). Alguns entre eles apresentam a
Em relação a seus escritos precedentes, é sobretudo a imedia- vantagem de produ zir figuras firmes e estáveis, enquanto tudo o
tez que é abandonada: a com preensão se tom a um ato refletido.420 que se passa em nós, nossa interioridade, é dramaticamente precário
D ilthey estima que, ainda que não tenhamos acesso direto à signi­ e fugidio, até para nós mesmos: “ V erídica em si, [a obra de arte] se
ficação profunda de uma existência, p od em os ao m enos apreender ergue firme, visível, durável, tom an do possível uma compreensão
alguns fragmentos seus mediante suas manifestações exteriores: “ A segura e regular. Assim, nos confins do saber e do fazer se desenha
existência de outrem só nos é inicialm ente acessível do exterior um círculo em que a vida se abre a uma profundidade que não é
através dos dados sensíveis, gestos, sons e ações” .421 C o m o Droysen acessível nem à observação nem à reflexão nem à teoria . A seus
dissera e repetira durante os decénios anteriores, só compreendemos olhos, não resta dúvida de que a literatura constitui o produto mais
eminente, aquele que, mais d o que qualquer outro, permite que nos

W ,lhelm Dilthey, Naissance de V h erm fneuliqu e, op. cit., p. 305.

^ W ilh elm Dilthey, L É d ifia iiw n du m onde historique, op. cit., p. 101.
Johann Gustav D roysen, H is to r ik , op. a í., p. 112.
41 W ilhelm Dilthey, N a is s a n u de V hennéneunqu e. op. cit., p. 291.
Alguns decénios niais tarde. Alfred Schvitz sublinhará a capacidade humana de se manifes
tions du C r f í w n t Saenas ia n 'l ,ure 11942], traduzido d o alem ão por Jean Carro, Pans, Edi- atividades acessíveis, tanto aos cnadores quanto aos destmatános, com o elementos de um mun '
0 .. - ’ . 2 unia ^Ktinção entre o ato da criação e aquele da com preensão, sublinhando
Wilhelm D ilthey, N a issa n ce de V h crm én eu tiq u e, op. cif., p. 293.
H i tariral l i â ° ^ erTos cnt,COs falaram de virada herm enêutica: cf. T h e o d o r e Plantinga,
Sobre a relação e n tre a c o n c e p ç ã o h e g e lia n a d o e sp írito o b je tiv o e a objetivação d
Edwin M II r I)d" <fle ° f W ilh elm D ilth e y , Lew inston -Q u eenston -Lam petter, The
>hey, cf. Karl L ó w ith , D ilth e y s u n d H eideggers S te llu n g z u r M e ta p h y stk (1966), in a m t ic e .
-I H istor. C T r i ” *’ i 92; ,,Se N : Bulh° t' W ilh e lm D ilth e y A H erm en ein ica l A pproach to lhe S tu d y Stuttgart, M etzler, 1981-1988, v o l V III. Sobre o caráter m ediado da relaçao entre vi ’
fo r m u la r ta n ' * *"*aVe ' N ijh o ff, 1980. Algumas considerações críticas a esse respeito foram
«pressão (A u s d m c k ) e com p reen são (V e rste h en ), cf. H . D iw ald, W ilh elm D ilth ey. r cn n <
‘* M a k k red ' D ," h r r Pn nceton , Pnnceton "nd Philosophie der G eschichte, Cròttingen, 1963, p. 153 s<j

' W ilhelm Dilthey, N a,isa n ct de V herm éneuúque, op. p. 292. Wilhelm Dilthey, P lan der F o r ts e tzu n g z u m A u jb a u dergeschichtlichen W ell w den G eistesuissensc i . ,

°P nt„ p. 207.

148
149
A HUtAlDADf DO PASSADO
O PtQUENO x- Da b io g r a f ia à h ist ú « ia

e n r a iz a m e n to d o saber na vida (o “é a vida que apreende aqui a


insiramos no outro histórico. D ilthey a define, aliás, com o um verda­
vida” ) que representa o lim iar ínstransponível: a possibilidade de
deiro monumento históneo: a importância capital da literatura para
dilatar o própn o eu, de acolh er outras expenências de vida, não é
nossa compreensão do passado “ se d eve a que som ente na língua a
infinita. Mas essa constatação não im plica necessariamente que seja
intenoridade do hom em chega a uma expressão com pleta, exaustiva
p r e c is o renunciar: p o r mais cruel que seja, esse limiar comporta
e objetivam ente com preensível. E p or isso que a arte de com preen­
também algo de p ositivo.
der tem seu centro na interpretação dos traços de existência humana
O ponto mais d o lo ro s o con cern e indubitavelm ente à relação
contidos no esento” Tratando-se de um produ to com pleto, ele é
entre as partes e o to d o . D ilth e y não atnbui ao dilema biográfico
também necessanamente verdadeiro e, p o r conseguinte, provido
0 caráter quantitativo que sublinhamos em Carlyle. N ã o aspira a
de objetividade. Podem os nos enganar sobre as razões dessa ou
conhecer todos os elem en tos que alimentaram a evolução histónea.
daquela ação, pois muitas vezes os hom ens se dedicam a apresentar
Coloca o problem a num plano mais qualitativo. Afirm a que nào
sua conduta sob uma falsa luz.
podemos apreender diretam ente a totalidade histónea, uma vez
Mas a obra de um grande poeta, de um grande inventor, de um que cada parte é um con ju n to interativo que tem seu centro em
fundador de religião ou de um autêntico filósofo jamais será si mesmo e em si m esm o encontra sua significação. Mas diz-nos
outra coisa senão a expressão verdadeira de sua vida psíquica; também que a d ecom posição da totalidade não tem sentido algum.
nesta sociedade humana, cheia de mentiras, uma obra deste
As partes não p od em ser com preendidas singularmente, ja que nao
género é sempre verdadeira e, diferen tem en te de qualquer
estão fechadas em si mesmas; ao contráno, cada uma delas esta li­
outra expressão fixada, é suscetível em si de uma interpretação
gada às outras numa unidade que não é uma s im p le s justaposiçao.
completa e objetiva.427
A análise deve. se quer compreender o particular, se esforçar por
apreender suas relações com o geral. Quero descrever os k w u ? -
VII
listas de D iire r sou então obrigado a me servir dos conceitos gerais
que oferece a teona da arte pictónca; devo falar, além Asso, ios
Sem dúvida, a fé no con h ecim en to tem limites. O desejo de
temperamentos e da maneira com o eram concebidos na epocu de
apreender de uma vez por todas a significação dos acontecim en­ Diirer. Se quero analisar essa obra-pnma, devo me lem rar «.os
tos históricos parece a D ilth ey “ ao menos tão aventurosa quanto recursos de que a pintura dispõe para representar grani is tigura
o sonho do filósofo da natureza que pensava, graças à alquimia, da históna universal co m o São João ou São Pedro |...|. ie v o 111
arrancar à natureza sua última palavra. Assim c o m o a natureza, a tegrar em seguida em todas essas relações gerais de tatos a

históna não pode entregar sua última palavra, uma palavra simples pertencentes à teona da pintura a particulandade concreta que
reside na maneira com o a Renascença trata tais temas, . •
em que se enunciaria seu sentido verdadeiro” .428 O m esm o ocorre
deve ser situada, no fim das contas, a onginalidade da obra-pnma
com os acontecimentos biográficos, pois toda com preensão perma­
de Diirer. São, portanto, em toda a parte, relações entre tatos gerais
nece sempre relativa. “ In d iv id u u m est ineffabile" , repete várias vezes.
e o individual que permitem uma análise deste úl
C o m o muitos de seus contemporâneos, D ilth ey viu, ele também, a
natureza trágica do conhecimento. Sob certos aspectos, é justamente Donde algumas dúvidas im tantes sobre o valor cientíhci
grafia: se cada in d ivíd u o é o p o n to de encontro de ditere njM
juntos interativos, c o m o p od em os proceder a partir dele, aj *
W ilhelm Dilthey, N aissance de 1’herm éneutique, op. r il., p 294. A dependência da históna para
com a literatura será igualmente sublinhada por Hans Magnus Enzensberger. "Letteratura come
stonografia", op d l.

W ilhelm Dilthey, Introduction a u x sciences de 1'espril, op. cit, p. 250. " ' ‘ Íhelm Dilthey. Psychologie d e s c n p liv t el a n a ly tiq u e , op. cit.. p 233-2.14

151
O PEQUENO X - D a BOGRAflA A HISTÓRIA A PLURALIDADE DO PASSADO

o conteúdo da natureza humana através dele? D o n d e também uma inacabada da história, e parar de tentar concluir o que é inesgotá­
necessidade infinita de históna: “ O d esen vo lvim en to da essência vel, está longe de ser uma dém arche fácil. Isso significa reconhecer
humana se encontra na históna, é aí que se p od e ler em letras que toda interpretação im plica uma arte hermenêutica e, portanto,
maiúsculas os impulsos, os destinos íntim os, as relações vitais da aceitar a importância da im aginação histórica: “ Considerem os um
natureza humana” .430 D on de, enfim , a con vicçã o de que na históna homem que não tenha nenhuma lembrança de seu passado, mas que
não reina nem o individual nem o geral, mas “ a combinação do pense e aja som ente em função do que esse passado p ro vo cou nele
geral e do individual” .431
sem ser consciente de nenhum a de suas partes: tal seria também a
Profundam ente sensível à vitalid ad e periférica da históna, situação das nações, das com unidades, da própria humanidade, se
Dilthey enfrenta a sensação de v ertigem que atravessa todo projeto esta não conseguisse com pletar os vestígios” .434
de história biográfica. Mas, fiel ao e x e m p lo d o ju iz que, de quebra,
com põe versos, não se deixa abusar pela ilusão de poder descobnr VIII
um ponto miraculoso em que se refletiria a totalidade histórica. Com
Humboldt, sugere outra via: aceitar o caráter circular do conheci­ Contranam ente ao que afirmam os historiadores que preten­

mento. Para apreender o tod o, d evem os com preen d er suas partes, dem encontrar os fatos puros, para D ilth ey, a vida exige ser guiada
mas, para apreender as partes, é-nos preciso com preender o todo. pelo pensamento: “ Nossa faculdade limitada de reprodução teria
Existe entre as duas operações uma dependência recíproca, uma se muita dificuldade de se encontrar através das com plicações e dos
alimentando da outra: se “ a visão histórico-universal da totalidade enigmas do particular se as linhas do conjunto v iv o não fossem
pressupõe a compreensão das partes que estão reunidas nela” , inver­ deduzidas” .43' É p o r isso que lhe parece necessário reagrupar as
samente, a compreensão de uma parte do curso da históna só atinge expenências históneas em to m o de tipos.436 Esse projeto faz lo go
sua perfeição graças à relação da parte c o m o to d o ” .432 Assim como pensar naquele de M a x W e b e r que, quase ao mesmo tempo, funda a
a significação de uma frase não reside nas palavras que a compõem, conceitualização da realidade no tipo ideal.43 Para W eb er, o tipo não
mas na ligação que as une, um fato singular só tem significação em é definido nem p or caracteres comuns a todos os indivíduos, nem
relação com a vida em seu conju nto: “ A cada instante de nossa por caracteres m édios; ele deriva de uma construção formalizada,
vida, no pensamento mais tolo ou na rotina mais insignificante, há uma utopia que, em sua pureza, jamais encontra correspondente
uma conexão com aquilo que, enquanto significação da vida, religa na realidade em pírica. Mais do que de uma reprodução da reali­
todos seus momentos num to d o ” .433 dade ou de uma categoria no seio de uma classificação, trata-se de
Em vez de buscar ven cer a sensação de vertigem , Dilthey uma tentativa de colocar ordem , pela distinção e pela acentuação
aceita-a e se dedica a tirar p ro ve ito dela. Q u e m sabe? O fato de que
cada espaço, cada tempo, rem ete a ou tro espaço e a outro tempo W ilhelm D ilthey. Pia,i der F o rtsetzu n g z u m A u jb a u dergeschichtlichen W e lt in den G eisteswissenschaften,
(fazendo assim da contextualização uma empresa interminável) não op- cit.. p. 279.

é talvez um entrave, e menos ainda uma maldição. T a lv ez se trate ao *' W ilh elm D ilthey, C o n trib u tio n s á l ’étu d e de 1’in d ivid u a lité, op. cit., p. 284.
Sobre as diferentes fases de elaboração d o co n ceito de tipo em Dilthey. cf. L u dw ig Landgreb ,
contráno de uma sorte e de um recurso. Resta que aceitar a natureza W ilhelm D ilth ey T h e o n e der Geisteswissenschaften. Analse ihrer G r a n d b e g n ff e 'Jahrbuch fur
Philosophie u n d p h ã n o m enologische Forschung, Ed. por Edmund Husserl, 19_8, 9, p. 237 366.
identificação entre " t ip o " e "expressão” , proposta por Langrebe, é rejeitada por A n to n io gn,
W ilhebn Dilthey. A usarheitung de, deskriptw en Psychologie. op. cit., p. 183. Saggi sullo storicismo tedesco. M ilã o, 1959, assim c o m o por Giuliano M arini. D ilth e y e la com prm sione

ik '!™ C o n ln k " " ° ™ à 1'élude de fin d iu id u a lité . op. cit., p. 263. det m ando u m a n o , M ilã o, G iuffré, 1965.

* D llthey' L É diJvat,on du m onde h isto n q u e , op. cit., p. 105. " < I A m o ld Uergstraesser, " W ilh e lm D ilthey and M a x W eber: An Empincal Approach to Histoncal

W ilhelm Dilthey. Leben u n d E rke n n en , op. cit., p. 382. Synthesis", E thics. 1947, 57, p. 92-110.

152
O PfQUENO x - Da b io g r a f ia à h is t ó r ia A p lu ra lid a d e d o p a s s a d o

unilateral de certas características típicas.43" O m esm o ocorre com certos personagens; n o S o n h o de u m a noite de verão, as ilusões e os
Dilthey que considera o tipo c o m o fator de inteligibilidade sem extravios do am or são con cen trados em algumas relações típicas,
relação com a ideia de representatividade: “ A conceitualização não
[...] c o m o uma brincadeira com que a consciência soberana
é, portanto, aqui uma simples generalização que extrai o elemento
se deleita precisam ente porqu e ela toca na grave questão da
comum valendo-se da série dos casos particulares. O conceito ex­
conservação da vida [...]. E é na maneira com o um artista cria
prime um tipo. Procede do m é to d o c om p a ra tivo ” .43'' Assim como
uma atmosfera, um mundo, na maneira com o seus personagens
desconfia, ele também, de toda solução naturalista: se m o v e m e são ligados entre si, que toda sua mentalidade
[encontra sua] expressão mais profunda.443
O original era um indivídu o; tod o retrato autêntico é um tipo,
com mais forte razão, todo personagem de um quadro. A poesia
Fortalecido pela co n v icç ã o de que a arte representa um
tampouco pode copiar pura e sim plesm ente as coisas. Se um
modelo apropriado para a história, D ilth ey imagina em certos
dramaturgo resolvesse transcrever um diálogo real, com tudo o
momentos o b en eficio heurístico que uma verdadeira roteirização
que este pode ter de acidental, de ín correto, de tolo, de difuso,
acabaria por entediar o leitor. [...] Mas tal tentativa de copiar do passado proporcionaria: “ Q u a n d o revivem os um passado graças
fielmente o objeto estará sempre condicionada, ela também, à arte com que o historiador n o -lo tom a presente, extraímos um
pela subjetividade daquele que escuta, lembra, reproduz.44'1 ensinamento, c o m o acon tece c o m a própria vida; sentimos que
nosso ser se dilata e que forças psíquicas mais poderosas do que as
Entretanto, à diferença talvez de W e b e r , quando Dilthey
nossas intensificam nossa existência” .444 Acaricia a esperança de que
considera o trabalho de condensação, é sobretu do na arte, tida por
o trabalho de condensação perm ita revivificar o passado, dar uma
fundamento de todo con h ecim en to, que ele se inspira. “ Não pos­
segunda vida a suas sombras exangues, e exprim ir sua diversidade: o
suiríamos mais do que uma m ed ío cre parte de nossa inteligência
tipo contém “ um aum ento da experiência vivida, não no sentido de
atual da condição humana se não estivéssemos habituados a olhar
uma idealidade vazia, mas, ao contrário, no de uma representação
pelos olhos do poeta e a ver nos hom ens que nos cercam Hamlets
da diversidade sob uma form a imagética, cuja estrutura forte e clara
e Margaridas, Ricardos e Cordélias, marqueses Posa e Felipes
toma compreensível a significação de experiências vividas de m enor
Para extrair o essencial de uma realidade, frequentem ente bastante
interesse, ainda não distintas” .445
confusa, o poeta condensa as experiências. Insere inicialmente um
grupo humano num tipo; estiliza a seguir as relações entre as per­
sonagens: a vida “jo ga os homens todos misturados; mas, por mais
realista que seja u m artista, sua grandeza im plica n e c e ssa ria m en te que
coloque em relevo seus traços essenciais” .442 R afael e Shakespeare
não se limitam a imitar a vida, dão ao geral uma form a singular. A
escola de A ten a s e A disputa representam culturas inteiras através de
^ ’ P 284-285. Essa pa rtilh a da v ita lid a d e e n tre as d ife ren tes figuras e os d iic r w n jc o n t c c m ic n -
•°s, que se alim en ta in e v it a v e lm e n t e da s u b je tiv id a d e d o a u tor, n ão é um a característica da arte.
Ainda que trazen do fru to s b e m m e n o s n otá v e is , ela escarule nossa v i i i i de tod os os dias. S egu n d o
Max W ebcr, L*Objectiiftté de la connaissance dans les sd e tu e s et la p o litiq u e sodales (1904), in Essau
Ajfted Schiitz ( " O n M u lt ip le R e a lin e s ” , in C olected Papers. U e P n+ lem ■{S o a a l R e a lity. La H a y e ,
la thíorie de la snence, op. d t., p. 11 sq
artinus N y h o ff, 1962), o eu perceb e sem pre o ou tro através ite uma « n c de estandartizaçòes,
Wilhelm Dilthey, L'É diJication du m o n d e historique, op. d l . , p. 136. mas caas se n iu ltip lit j m * se c o m a m cada v e z m ais in ó n m u * i m c d id i qwc n o* ifastam os d o cara

W ilh e lm D ilth e y , Contribution à 1‘itu d e de r in d w id u a ltté , op. d t . , p. 286. CJra c que cresce a distân cia (u m a m ig o se t o m a u m in glês r *«in« po»
Ibid., p. 278. ilhelm D ilth e y, Intro d u ctio n a u x sáeiices de 1'esprit, op. d t . , p. 251
441 lb,d., p. 284. helm D ilth e y, L 'Itn a g in a tio n d u po ète, op. a t . , p. 116

154 155
CAPÍTULO V

O homem patológico

C o m o u m a ap a ix o n a d a , que, à beira do mar, olha, com


os olhos cheios de lágrim as, o ser am ado que se afasta, sem
esperança de ja m a is revê-lo, crê perceber ainda sua im agem
na vela que desaparece, não tem os m ais, como ela, do que
a som bra de nossos desejos; m as ela desperta um a nostalgia
ta n to m ais fo r te p e lo qu e perdem os, e contem plam os as
cópias das fo r m a s originais com um a atenção bem m aior do
q u e teríam os fe ito se delas tivéssem os a posse plena.
Johann Joachim Winckelmann446

O tem po, lê-se em L e Spleen de Paris, "retom ou sua brutal


ditadura” .447 Charles Baudelaire certamente não é o único a pen­
sar nesses termos, no coração de um século que deve encarar um
n ovo tipo de tem po. O antigo tem po local, lento e variegado,
que reconhecia a cada cidade sua hora, é, com efeito, progressiva­
mente afastado, p or exigência das companhias ferroviárias que não
conseguem gerir as dezenas de horários particulares em vigo r no
continente europeu .448 N o início, ele pôde coexistir com o tempo

Johann Joachim W m ckelm an, Geschichte der K u n s t d esA ltertu m s (1764), Parmstadc, 1982, p 393-394.
Charles Baudelaire. L c S p le en d e Paris, petits poèm es em prvse, Ed. estabelecnU por R .oN m K o p jv
Paris, G allim ard, 2006, “ La cham bre double” , p. 112.
'" C f . D avid S. Landes. L ’Europe te r h m a n m r R é v o lu tw n teclm ique et litw o v ? m J m tttr l rm F.uropt
ocadentale de 1 7 5 0 à nos jo u rs (1969), traduzido d o inglês por Louis Evranl, lfârw. (ralliiruni. 1975.

157
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia A h is t ó r ia
O HOMEM PATOtÒGICO

ferroviário, depois é relegado aos celeiros da história para ser enfim


II
suplantado pelo tem p o mundial. E o que ocorreu em 1884, quando
os representantes de vin te e cin co países, reunidos em Washington Burckhardt com eçou m uito cedo a se sentir em profundo
para a C onferência Internacional do M e rid ia n o , estabelecem o compri desacordo c o m seu tem p o. Desde 1846, aos vinte e o ito anos de
m ento padrão do dia e d ivid em o g lo b o em vinte e quatro fusos idade, revelava ao m é d ic o H erm ann Schauenburg sua vontade
horários, 15° de lon gitu de distantes entre si, a partir do observatório de cortar as pontes c o m sua época: “ E p or isso que me fundo na
de G reen w ich . Esse n o v o tem p o p ú b lico, desejado pelas estradas am enidade d o Sul [...], mas que deverá, admirável e silencioso
de ferro, não é apenas mais h o m o g é n e o que o antigo. É também m on u m en to fúnebre, m e resserenar, com seu frém ito de antigui­
mais rápido e invasor: segue o ritm o d o telégrafo, que anula todo dade, tão cansado que estou da m odernidade” . Deseja liberar-se
intervalo de tem p o entre dois lugares bastante distantes e escande de todos (“ radicais, comunistas, industriais, sábios, ambiciosos,
a vida de m ilhões de pessoas graças à extraordinária difusão do m editativos, abstratos, absolutos, filósofos, sofistas, fanáticos pelo
relógio de bolso.449 Estado, idealistas, -istas e -icos de toda espécie!” 452), pretende
afastar-se dos com bates do presente. N a esteira de G oethe, de
A decisão de im p o r um tem p o p ú b lico neutro e uniforme
Chateaubriand, de M adam e de Staél e de Stendhal, o historiador
não é uma questão de som enos im portância. E tampouco foi fruto
suíço atravessa os Alpes. Sabe que sua decisão deve suscitar a re­
de um em preen dim en to p acífico. D e z anos após a conferência de
provação de num erosos amigos que escolheram o engajamento
W ashington, um certo M artial B ou rdin , sem dúvida um agente
p olítico: “ C re io ler no olhar de vocês todos uma reprovação muda
p rovocador infiltrado num gru po anarquista, decide colocar uma
v e n d o -m e ced er com tanta leviandade aos prazeres do Sul, à arte
bomba no observatório de G reen w ich . O atentado fracassa: Bourdin
e à antiguidade, enquanto no m undo reina o sofrim ento” . Mas,
é m orto pelo p róp rio en gen h o e passará a história com o o protago­
antes que a barbárie geral se deflagre (é esse seu diagnóstico),
nista do G reem inch B o m b O u tra g e, que inspira ajo sep h Conraduma deseja fazer “ um b o m e nobre empanturramento de cultura .45'
reflexão acerba sobre a filosofia d o terrorism o.450 A lém do mais, T rês anos mais tarde, confirm a ter a impressão de se encontrar
a hostilidade em relação ao tem p o m undial persiste muito tempo “ pessoalmente num estado de m otus cotitrarius em relação à marcha
ainda, m esm o naqueles que nenhum a aspiração revolucionária do te m p o ” .454 R e p e t e - o em 1855:
anima. N a virada do século X X , a literatura acusa o novo tempo,
Q u e sensação desagradável de constrangimento experimentamos
aquele do quadrante (tim e on th e clock), de ser superficial, arbitráno e quando nos encontramos presos nas grandes engrenagens do
terrificante, e reivindica a realidade irredutível do tem po subjetivo m undo atual [...]. Outros séculos aparentam-se a nos, tempes­
( tim e in the m in d ).45' Mas, b em antes de M a reei Proust, Franz Kafka tades, chamas; mas, quando se fala do século em curso, o X IX ,

e James Joyce, um historiador tom a a palavra: Jakob Burckhardt. são sempre estas malditas máquinas que me vêm ao espírito.

Em m om en tos bastante raros, espera poder se reconciliar com seu


G eo rg Sim m el, D ic G r o frlà d lc u n d das G eislesleb en (19 03 ), in M ich a el Landman e Margarete tem p o, mas, o mais das vezes, prefere manter-se afastado desse
Susman (dir.), Briicke u n d T u r, Stuttgart. K F K o eh le r. 1957, p. 227-242.

C f. Joseph Conrad, L A gent s e m i (1907), traduzido do inglês porS ylvène M onod, Pans, Gallimard, 1995.

E Virgínia W o o li que introduz a oposição entre lim e in lh e clock e lim e in lhe m in d em Orlando, op <s:Jacob Burckhardt, B n eje, Basileia, Benno Schwabe & C o ., 1949-1986, t. II. p. 208, carta a H er-
à t., p. 103. U m a hora no o c o de nossos loucos cérebros, po d e se estender cinquenta ou cem mann Schauenburg, 28 de fevereiro de 1846.
vezes mais do que sua duração de relógio; inversam ente, por vezes não é mais do que um segun*k\ ,u Ib id ., t. II, p. 210, carta a Herm ann Schauenburg, 5 de março de 1846.
exacamente, no quadrante de nosso espirito” . Sobre os desvios temporais, cf. Paul Ricoeur, tem p
Ib id ., t. III. p. 109, carta a Emanuel G eibel, 21 de abril de 1849.
« rérit. Pans, Édmons du Seuil, 1984, t. II. cap. IV ; Stephen K e m , T h e C u ltu r t o f T im e and Span.
Ib id .. t. III, p. 225, carta a Albert Brenner, 17 de outubro de 1855.
1 8 8 0 1 9 1 8 . C am b n dge (Mass.), H arvard U m v ersity Press, 1983, cap. I e V.

159
158
° HOmem ^ tológico

r u riOGRAFIA À HISTÓRIA
O PEQUENO X - D A B K * * *

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século em loucura, que vive j ^ ô m o das gerações futuras...456 desta posição. |...| Q uero a<> mn,os escolh(,r , d" n«ll« m o
que dilapida antecipadament p
nela cultura da velha Europa (die Bildum A , quc morrer e é
- ~ia*~,s -a Itália, aue inspiram O Gcero,,e (um extraor-
viagens ..a IQi . , Antiguidade grega a Claude com paixão diante de seus estudantes da Uni Repete-o
dinário euia da arte da Peninsuia, ua &
gu Cenuss) infimto: Eu podena “A história do m undo antigo, ao menos a dos^ ^ ^ ^ as^eia:
Lorrain457) suscitam nele um gozo (oer* ' ^
Lorrdin ) olhos finalmente se abn- prolonga na nossa, é com o um acorde fundamental0* ^ X
indicar no Vaticano, o ponto em que ..ívi»
’ rnmprei a com preender algum a coisa da A n tig u id a d e , in c e s s a n t e m e n t e ressoar ainda através da ma«a A , escutam
ram em que com ecei a o
, . Ar, rlpns N ilo deitado. A Italia me forneceu humanos” .-1'" Nossa dívida para com o passado °° ecimentos
Foi diante da estatua do deus inuo u . „
uma nova escala de valores para uma rrnnade de coisas . Mas tam­ quc estamos ligados aos egípcios, aos babilónicos já
bém um grande sofrimento pelas perdas imensas do passado: onde aos gregos p o r um a continuidade íntima e profunda^Tud1'010* *
que
foram pois, parar os materiais do Circus Maximus de R o m a r E o pode servir, m esm o de longe, para aumentar nossos conhecime
ntos
que foi feito dos revestimentos de mármore da vila de A dnano em deve ser reunido, custe o esforço e o sacrificio que custar até aue
Tívoli? Poderemos algum dia nos representar exatamente o célebre cheguemos a reconstruir inteiramente os horizontes espirituais‘dl
grupo das Nióbides? Além da devastação causada pela natureza (é outrora” . P o r essa razão, podemos, ou melhor, devemos procurar
o caso das fachadas pintadas das igrejas de Verona), há os abusos da proteger o continuum espintual da civilização: “Mas, se na infelici­
história: os mármores da Antiguidade, reutilizados pelos primeiros dade deve haver ainda um a felicidade, ela só pode ser de natureza
cristãos para construir suas basílicas, alimentaram os fom os de cal espiritual, voltada para trás, para a salvaguarda da cultura do passado,
da Idade Média, foram recobertos de decorações em estuque para virada para frente, para um a defesa serena e incansável do espírito”.463
satisfazer as exigências da arquitetura barroca, sofreram numerosas
Assim com o Nietzsche, e antes de Nietzsche, Burckhardt está * 9

restaurações anacrónicas... A força destruidora do ser humano é tal


firmemente convencido de que, para sermos independentes, é-nos
que a Roma modema “ é tanto menos capaz de dar uma ideia [do
preciso igualm ente ser inatuais: somente nos abstendo de nossa época
que foi] por obstinar-se em acusar os ‘bárbaros do N o r t e ’ de todas
” 459
podemos “guardar —com o um não polites (Nicth-Polites) mantendo-se
estas horríveis devastações
à parte —o sentido histórico de nosso próprio tempo, contra este .
A partir de então, o “ saltimbanco” , com o gostava de assinar
Mas, contrariam ente a Nietzsche, sua inatualidade não lança nenhum
por vezes, que, aos doze anos, tivera uma intuição clara e indelével
descrédito sobre a consciência histórica. Sem dúvida, ele conhece
da ‘caducidade fferal das roisíK tprrpçfrfK” nrpfpnrlp travar uma
também a im portância do esquecimento. Sabe muito bem que existe

Na esteira de Emil Diirt, Lionel Gossman (Base! in the Age ojBurckhardt, A S tu d y in Unseasonablc
Ideas, Chicago-Londres, The University o f Chicago Press, 2000) aprofunda a ligação existence
“ J « 0b Burckhardt. Bnef,. e. U. p. 210. « t t . Hermann c h T * t! G«-
entre a inatuahdade de Burckhardt e a sua cidade natal.
457 Jacob Burckhardt, Fragments historiques (1857), traduzido do e foram classificados
Jacob Burckhardt, Le Cicerone, guide de Van antique et de Yart modeme en Italie (1855). traduzido do
flebra, Droz, 1965, p. 2. Esses fragmentos foram escritos entre .
aiemao por August Gérard, Pans, Firmin-Didot, 1892-1894. Sobre as viagens de Burckhardt, cf.
Lionel Gossman, Basel in the Age of Burckhardt, op. cit. w ordem cronológica por Emil Durr em 1929. akm5o por Sven StelUng-
-♦ S B

jacob Burckhardt, Briefe, op. cit., t. IH, p. 63, carta a Eduard Schauenburg, 25 de março de 1847.
Jacob Burckhardt, Considémtiom sur 1’histoire du monde, traduzi o direçâo deJacob Oeri,
• Michaud, Paris, Alcan, 1938, p. 39. O texto foi publicado em • ^ h w n g e n : de acordo
rkhl^Hr T T ^ Conservadâ no muse“ de Ch.aramonti no Vaticano, cf. Jacob Bur-
T ' a l' ’ l' *’ P' 461' Nessa °*3ra- na página 269, ele esclarece que o verdadeiro
f exccutor único do legado de Burckhardt, sob o título lV d « * Marc Sieber, “Le opere
f « « « t t m a , v o m J l de Burckhard, ele 1997.1. p. * M *
” ° Cm COmemPlar f0rmaS Perfeitas- sobretudo em v.ver em m eio à
459 j C°^ ®Urckhardt: la storia singolare delia loro edizi°n »
Ibid., 1.1, p. 20.
^ b burckhardt, Fraçmcnts historiques, op- P* ^ /iq^ Stuttgart» Metder>1984,p-*1 -

160
1Ó1
O PEQUENO X - Da BIOGRAFIA k HISTÓRIA O HOMEM PATOLÓGICO

uma justa medida do passado: que nos é preciso bastante Antiguidade, modéstia um tanto agressivas: "M in h a pobre cabeça jamais esteve
para estimular, mas não demais, para não oprim ir.465 Adm ite que, minimamente à altura de bem refletir com o você sobre as razões
por vezes, a desaparição de obras sublimes p ôd e dar à arte um novo últimas, sobre os fins derradeiros, e sobre o que é desejável para
impulso criativo: o extraordinário florescim ento da poesia alemã do a ciência histónea” , escreve-lh e em 1874. C in c o anos mais tarde,
século X V III teria sido possível se as obras líricas gregas tivessem esclarece, na mesma óptica: “ C o m o todos sabem, jamais penetrei
sido conservadas? Mas a própria ideia de que o sentido do passado no templo do verd ad eiro pensamento, mas passei toda minha vida
possa ser nocivo (no plano pessoal assim c o m o no plano coletivo) a divertir-me no corred or e nas salas do peribolos, onde reina o figu­
é-lhe totalmente estranha: para ele, a civilização só aparece quando rado no sentido mais am plo do term o ” . N o entanto, em 1882, toma
cessa o simples presente sem história.466 Paradoxalmente, a consci­ distância abruptamente. A p ós ter-se comparado a um velho cocheiro
ência histónea é a única dimensão da m odernidade que ele defende que persiste em frequentar sempre os mesmos caminhos, levanta duas
contra tudo e contra todos: um p rivilégio a que só renunciam os questões cruciais: a definição da grandeza (dada por Nietzsche no
bárbaros que vivem na inconsciência, e os americanos a quem o § 325 da G aia C iência: “ Q u e m poderá jamais atingir a grandeza se
passado do V elho M u n do “ atulha, m esm o que não queiram, como não sentir em si m esm o a força e a vontade de causar grandes dores?” )
um bncabraque inútil” .467 É justamente porque desfaz a tradição e não contena uma pengosa propensão à tirania?469 E o que aconte-
impede por isso mesmo de ter uma percepção imediata do passado, cena se Nietzsche ensinasse a história? A o lon go dos anos seguintes,
que a modernidade atribui a esse um valor c o g n itivo fundamental: ele defenderá ainda algumas vezes a perspectiva terrestre da história,
por enquanto, a cultura europeia ainda não se acostumou à ideia de que aborda - c o m o dirá Siegfried Kracauer - as coisas penúltimas, as
deixar o passado entregue a si mesmo, escreve em 1885, mas haure últimas coisas antes das definitivas, the last things before the last, até que
na contemplação do tem po a m aior parte de seu conhecimento. O decide, enfim, se abster de qualquer comentário:
sentido histórico da modernidade é favorecido p or uma série de con­
dições: hoje em dia, é mais facil viajar, as fontes estão mais acessíveis, Para mim é um gozo muito particular - escreve em resposta ao
os governos quase não testemunham mais interesse pela pesquisa (e recebimento de Assim falava Zaratustra - escutar alguém procla­

está aí uma vantagem!), as religiões se tom aram impotentes... Mas são mar em alta voz, do alto de um observatório que me domina, os
horizontes e as profundezas que percebe. Dou-me conta assim
sobretudo as convulsões políticas, iniciadas pela R e v o lu ç ã o Francesa
do quanto vivi superficialmente até agora e de que, por conta
que alimentaram nossa necessidade de com preender o passado: Se
de minha natureza pouco diligente, permanecerei certamente
não queremos perder o entendim ento” , o contrapeso da históna e
como sou: pois na minha idade não se muda, a gente se toma
primordial. Foram eles que provocaram uma revisão geral do passado
no máximo velho e mais fraco.470
inteiro numa perspectiva historicista. “ Sabemos nos posicionar em
pontos de vista variados para julgar todas as coisas e procuramos ser
equânimes para com os fenómenos mais estranhos e mais terríveis . Cf. Fnednch N ietzsche, L e C a i S a v o ir (1881-1882). traduzido do alemão por Pierre Klossowski,
1ins. Gallimard, 1982, p. 217. Burckhardt exprim e mais amplamente seu ponto de vista numa
A virtude da consciência histórica é ainda recordada em certas
célebre carta a L u d w ig Pastor: “Jamais túi um adorador do hom em sem escrúpulo e dos oul-law s da
cartas bastante lacónicas endereçadas a N ietzsch e. Q uando muito, história e sempre os considerei antes c o m o flagella D e i [...]. Segui e principalmente procurei o que
dá felicidade e cria, o que v iv ific a , e acredito ter reconhecido tudo isso em coisas bem diferentes
Burckhardt tenta esconder sua p erp lexid ad e c o m profissões de
C 1 Jac°b Burckhardt, Briefe, op. cit., t. X , p. 263, carta a L u d w ig Pastor, 13 de janeiro de 1896.

w . carta a Fnednch Nietzsche, 10 de setem bro de 1883. Sobre a relação complexa entre Burckhardt
e Nietzsche, ambos “ sismógrafos m u ito sensíveis cujas bases trem em quando recebem e transmitem
Jacob Burckhardt, Considéraíions sur 1’histoire d u m o n d e, op. cit., p. 95.
ondas , cf, além do livro de L õ w ith , o pequ en o texto de A b y W arburg, ' T e x te de clòture du
Jacob Burckhardt, Fragments histonques, op. cit., p. 3-5,
“ minaire Jacob B urckhardt" (1927), traduzido d o alemão por D iane M eu r, Les C ahiers <iu M u s ie
Jacob Burckhardt, C onsidéraíions sur Vhistoire d u m o n d e, op. cit., p. 39. im ionald'art m odem e, 1999, 6 8 , p. 21-25. C f. G eorges D idi-H uberm an, L 'im a g esu rviva n te. H isto ired e
* * Ib id ., p. 238
*** * i temps fantóm es selon A b y IVuriturç, Paris, Éditions de M inuit, 2001, p. 117-141. Em L H istoire,

162 163
O PfOUENO X - D* BIOGRAFIA À HICTÔHIA O HOMEM PAIOÍÔGICO

De fato, Burckhardt não pensa que a história tenha um valor gosto de fazê-lo; meu desejo era que essas pessoas aprendessem
a colh er os frutos graças a suas próprias forças. [...] Quis apenas
exemplar - a fortiori numa época em que o valor paradigmático
que cada ou vin te foijasse em si mesmo a convicção e o desejo
da tradição é com pletam ente n egligen ciado. N ã o aspira a que ela
de que cada um tem a possibilidade e o direito de apreender
possa servir de instrumento para o c o n h e cim e n to do porvir, pois
de maneira independente o passado que é particularmente de
esse só toma forma quando tem lugar (aliás, é b em pou co desejável
seu gosto, e que aí esteja a fonte de uma certa felicidade.474
conhecer o porvir, visto que a von tade só p od e se desenvolver
quando vive e age espontaneamente). N o fiando, nem sequer é certo III
que o estudo do passado contribua para com p reen d er o presente
- em todo caso, ele recusa reduzir a reflexão histórica a essa única O sentim ento de inatualidade de Burckhardt se alimenta de
tarefa. Mas considera que a contem plação histórica constitui uma uma análise política extrem am ente precisa.475 Ainda muito jo vem ,
forma de conhecim ento pessoal que ajuda a v ive r: “ Ela representa tinha partilhado a con vicçã o de Leop o ld von Ranke de que a paz
nossa liberdade de espírito em m e io à imensa obrigação das coisas de 1815 devia garantir um equilíbrio internacional duradouro: A
e ao imenso im pério das necessidades” .411 A in d a que não penetre revolução fora declarada terminada, e a monarquia constitucional
a essência das coisas, ela perm ite que nos to m em o s mais sábios parecia-lhe uma boa mediação entre o antigo e o porvir.476 Mas, após
(donde a evocação do R e i Lear: “ Só a maturidade conta” .472 De a guerra do S on d erb u rd , que pôs a Suíça a fog o e sangue em 1845,
que maneira? Transformando a m em ória em saber: “ Nosso espínto e após os tumultos que abalaram tantas capitais europeias três anos
deve incorporar as lembranças que deixa em nós sua experiência mais tarde, essa certeza c om eço u a claudicar: os pequenos Estados
do passado. O que foi outrora alegria ou d o r d eve se transformar
“ não são os únicos a se sentirem menos seguros do que nunca; ao
em conhecimento, com o na vida de cada um de nós” .4 3 E por essa
longo de quarenta e quatro anos de paz, mesmo os grandes jamais
razão, com o escreve justamente a N ietzsch e, que a história é
depuseram as armas e devoraram antecipadamente o dinheiro das
[...] uma maténa propedêutica: eu devia fornecer às pessoas a gerações futuras, c o m o único fim de se impedirem reciprocamente
ossatura particular de que não podem os prescindir se queremos de crescer".4 Segundo toda probabilidade, os três decénios, em
que as coisas fiquem de pé. Fiz tudo o que estava em meu poder
para tormá-las de algum m o d o num aprendizado do passado de
"J a c o b Burckhardt, B n e fe , op. a t t. V , p. 223, carta a Fnednch Nietzsche, 25 de fevereiro de
qualquer natureza que seja ou pelo menos para d e sp e r ta r nelas o
1874. Considerações análogas sào propostas por Ralph W a ldo Emerson, H istoire (1841), in Essais
choisis, traduzido d o inglês p o r H e n n e tte M iraband-Thorens, Pans, F. Alcan, 1912, p. 126: Qual
e a razão do interesse que experim en tam os estudando a históna grega, suas letras, suas artes, sua
poesia, e isso em todas as épocas, desde a idade heróica de H om ero até a época que viu florescer
op à t., Kracauer levanu rrês caracteres do universo h istón eo. Em p rim eiro lugar, ele é formado
as cidades de Atenas e de Esparta, quatro ou cin co séculos mais tarde? A razão é que nós mesmos
por fatos intrinsecamente contingentes, o que im pede toda previsão; está, portanto, excluída a
somos gregos. Ser g reg o é um estado p elo qual tod o hom em passa num m om ento dado .
possibilidade de associá-lo ao princípio determinista. Em segundo lugar, ele é potencialmente
ínhnito esteve em gestação numa obscuridade longínqu a e dá para um p o rvir ilimitado. Enfim, Cf. Jòm Riisen, "Jacob Burckhardt: Pohtical Standpoint and Historical Insight on the Border

cie não contém mentido determinado. Suas características se assemelham à natureza dos matenai o f Post-M od ernism ", H is to r y a n d T h eo ry, 1985, 24, p. 235-246; Richard F. Sigurdson, "Jacob

que o tecem. Em outros termos, o conteúdo d o m u n do h istón eo rem ete à vida em sua plemnidf, Burckhardt; T h e Cultural H istonan as Political T h in k e r” , T h e R e vieu * o f Politics, 1990, 52, 3, p.

com o a vivem os comumente, dia após dia. Para afirm ar seus direitos, a história deve aceitar estar 417-440; R oberta G a m er, "Jacob Burckhardt as a Theorist o f M odem ity: R ead ing T h e C iv iliza -

suspendida a uma altura muito m enor que aquela das ciências da natureza, da filosofia da histona íwn o f the Renaissance in I ta l y ”, Sociological T h e o ry , 1990, V III, 1, p. 48-57; John R . H inde, " T h e

ou da arte. Ela ocupa um lugar m éd io, híb n do, que toca a vida cotidiana, marcado pelo Developm ent o f ja c o b B urckhardt’s Early Polirical T h o u g h t" J o u r n a l o f H istory o fld ea s, 1992, 53,

precário, indeterminado e cambiante. 3- P 425-436; L ion el Gossman, “Jacob Burckhardt: C o ld W a r Liberal?” . T h e Jo u rn a l o f M o d em


History, 2002, 74, 3 , p. 538-572.
Jacob Burckhardt, Considéraíions sur 1'histoire d u m o n d e, op. cit., p. 40-41.
' Ibid . p. 296. Cf. L eopold v o n R a n k e , U b er dte R e sta u ra tio n in Frankreich, in Sam m tliche W erke, op. cit., vol. 49­
50, Leipzig, 1887, p. 9 .
Ibid.. p 4(1. Sobre o trabalho da M em ória, cf. Paul R ic o e u r , L a M ém o ire, l'histoire, 1'oubh. P»ns.
Edinons du Seuil. 2000. Jacob B u rc k h ard t, F ra g m en ts h isio riq u es, p. 59.
O PEQUENO X - D* HOGUAflA A HISTÓRIA O HOMEM PATCXÒGtCO

aparência pacíficos, que vão de 1 8 1 5 a 1848, não foram mais que C o m o tudo isso terminará? O que será, no porvir, do progresso
um “ intermédio no grande drama” : “ Sabem os que é uma única e de 1830? Q u e arte e que literatura poderão resistir numa época tão
mesma tempestade que tom ou a humanidade a partir de 1789 e que agitada e precária? “ A decisão final só pode surgir das profundezas da
continua a nos arrebatar” .478 A inquietude cresce nos anos 1860. alma humana. Q uanto tem po o otimismo, marcado hoje pelo sentido
Em razão, primeiramente, do con flito austro-prussiano: do ganho e do poder, conseguirá se manter ainda? O u, com o poderia
fazê-lo crer a filosofia otimista atual, produzir-se-á uma mudança
N o céu da metade da Europa juntam-se sombrias nuvens, pressá­
gios das violências por vir. O filisteu se sente isolado e está apavo­ geral de nossa maneira de pensar, semelhante àquela que se realizou
rado quando não pertence a um Estado de certa envergadura que nos séculos III e IV de nossa era?” 41*2 C o m o tempo, um pessimis­
possa lhe prometer, além da segurança, um serviço notumo de trens mo lúcido tom a conta dele: “ E possível que advenham tempos de
e todo o conforto imaginável. Seus filhos, provavelmente, podem terror e de profunda m iséria” 4" ’ U m pessimismo que permite a
mesmo morrer num lazareto militar, sem que ele se indigne.479
Burckhardt - ele que nega c o m todas suas forças que o historiador

Depois vem a guerra franco-prussiana e a fundação do R eich ale­ esteja em condições de pressentir o porvir - formular certas profecias

mão. N o fim de 1870, escreve: estupeficantes. C o m p reen d e que a expansão colonial provocará uma
guerra das raças: “ Q u an to mais rapidamente a terra for ocupada pela
Repensarei durante toda minha vida nesse fim de ano! E minhas
raça branca, mais rápido explodirá em seguida a luta entre os diferen­
vicissitudes pessoais não terão aí mais que um papel menor. Os
tes povos que a c o m p õ e m ” .484 Profundamente hostil ao Groflstaat ou
dois grandes povos, emblemas da civilização atual da Europa
continental, estão colocando sistematicamente em pedaços toda Machtstaat (G oeth e e Schiller não teriam sido possíveis na Alemanha
sua cultura, e o que suscitava no indivíduo prazer e interesse, antes de Bismarck), prevê uma violenta onda autoritária:
de julho de 1870, não surtirá, na m aior parte dos casos, nenhum
efeito sobre ele em 1871 - mas será um form idável espetáculo se O s povos imaginam que, se toda a potência do Estado estivesse

em seguida, entre tantas dores, alguma coisa de n ovo vir a luz.4*" em suas mãos, poderiam empregá-la em instaurar uma vida nova.
Mas, no intervalo, há lugar para uma longa servidão voluntária
E a Comuna de Pans que acaba de arrebatar suas ilusões, varrendo sob a condução de tal ou tal chefe ou usurpador; não se crê mais

todo conceito de autoridade: nos princípios, mas sim, de tempos em tempos, num salvador.
Incessantemente apresentam-se novas possibilidades de despo­
Sim, o petróleo nos subterrâneos do Louvre e as chamas dos outros tismo que se exercem muito tempo sobre povos extenuados.4"5
edifícios incendiados são também a expressão do que o filósofo
[Arthur Schopenhauer] chama o qucrer-viuer, querer assim causar Enfim, ele capta a lógica particular do terror m oderno que, sob o
tanta impressão no mundo é a última vontade dos demónios loucos pretexto da ameaça exterior, transforma o adversário em inim igo
funosos; [...] aqueles que encenaram estes acontecimentos sabiam c visa a seu aniquilam ento ( “ não d evem sobreviver nem filhos
todos ler e escrever, e mesmo redigir artigos de jornal e outros
nem herdeiros: colla biscia m uore II veleno*Sb") com base em critérios
géneros de escritos. E aqueles que na Alemanha poderiam ter em
mente coisas semelhantes certamente não são menos “ instruídos .
1947-1992, vol. V I I , p. 6-7. Sobre a influência de Schopenhauer, v e r a análise (bastante severa) de Hayden
White, Metahistory, Balomore-Londres, John Hopkins Uraversity Press, 1973, parte II, cap. 6 .

' ' Ibid., p 198. C L M au nzio Ghelardi. "Jacob Burckhardt: 'L ep oca delia R iv o lu z io n e '” , m Sludi Jacob B u rc k h ard t, C o n sid éra íio n s su r l*histoire d u m o n d e, op. cit., p. 233-234.
storia, 1997, X X X V I I I , p. 5-46. Jacob B u rc k h ard t, F ragm ents historiques, op. rir., p. 197.
^ Jacob Burckhardt. Bnefe, op. u , t. I V , p . 2 3 8 , carta a F m drich T h to d o r Visclier, 17 de fevereiro de 1867. “ * I M - , p. 62. Ele se refere a Eduard v o n Hartm ann. Philosophie de l inconscient (1871). traduzido do

^ btd., t. V, p 118-119, carta a Fnednch vo n Preen, 31 de d e ze m b ro d e 1870. alemão por Desiré N o le n , Paris. G . Ballière. 1877.

Ib id . t V, p. 129-130, cana a Fnednch von Preen, 2 de julho de 1871. Sobre a importância do penodo Jacob B u rc k h ard t, F ragm ents historiques, op. cit., p. 194.
c 1867 e 1872, d . W e m e r K aegi.Jacob Burckhardt, E in e Biographie. Basileia-Sttutgait, Schwabe. " Com 3 cobra, m orre o ve n en o . ( N . T . ) .
O PEQUENO * - D* BIOGRAFIA à HISTORIA O HOMEM PATOLÓGICO

objetivos: “ Exterminam-se os adversários p o r categorias escolhidas exalta as obras de D elia R o b ia , de B en ozzo G ozzoli, Ghirlandaio e
em virtude de princípios gerais; com parados a essas execuções pe­ Rubens. É a seus olhos sobretudo a arte de Rafael, qualificada de
riódicas e que se repetirão in definidam en te, os maiores massacres pintura da existência, que desvela as expressões etemas (Ewigungen)
em massa, anónimos e às cegas, têm pouca importância, porque mais do que as manifestações temporárias (Z eitu n g en ): “ Em suas
sào excepcionais” .487 Madonas e seus M en in o s Jesus, é a mulher e o menino que R afa­
Essas apreciações políticas im plicam todas uma crítica intran­ el revela, pois sabe d epreen der do acidental o característico e do
sigente do Estado m o d em o : a violên cia “ é sem dúvida sempre o efémero o etern o ” .489 N o plano histórico, afirma que a verdadeira
seu princípio inicial. [...] Muitas vezes m esm o, o Estado não foi atividade não reside nos acontecim entos, mas nas intuições e nos
mais que uma simples sistematização da força ” . Burckhardt recusa pensamentos que estão em obra nos acontecimentos. Explicita-o
radicalmente a ideia, proposta p or H e g e l e esposada p or numerosos numa longa carta endereçada a Friedrich von Preen no último
historiadores alemães que con cebiam o Estado c o m o a mais alta dia de 1870: “ O que sobreviverá d eve ter em si uma boa dose de
expressão ética: conteúdo válido para todos os tempos. [...] Enquanto professor de

O desejo do Estado de realizar ele p ró p n o a moralidade, o que históna, d ei-m e conta de um fen óm en o bastante estranho: a perda
nào pode e não deve ser senão da alçada da sociedade, é uma súbita de valor de todos os ‘ acontecim entos’ puros e simples do
anomalia ou uma presunção filosófico-bu rocrática [...]. O do­ passado” .490 E o declarará ainda p or ocasião de seu curso sobre a
mínio da moral é essencialmente diferente daquele do Estado. civilização grega: “ O que é desejado e pressuposto tem portanto
[...] O Estado conservará tanto m elh o r sua integridade na me­ tanta importância quanto o que acontece, a maneira de ver, tanta
dida em que permanecer c o n v en c id o de que, por sua natureza,
importância quanto um ato qualquer” .491 N o lugar de partir em
e talvez mesmo em razão de suas origens essenciais, é antes de
busca de milhares de ações, frequentem ente incoerentes, o histo-
tudo uma instituição nascida sob o im p én o da necessidade.48"
nador deve fazer em ergir os pensamentos que testemunham a con­
tinuidade e a persistência d o espírito humano. Isso vale tanto mais
IV a pena visto que o pensam ento encerra bem mais verdade do que
a ação: “ A história da civilização tem o p rim u m gradum certitudinis,
Quase todas as escolhas histonográficas de Burckhardt podem ser
pois ela vê numa m edida bastante ampla aquilo que as fontes e os
compreendidas à luz de suas reflexões inatuais. Assim, em primeiro
monumentos nos ensinam de maneira fortuita e desinteressada, senão
lugar, o privilégio que atnbui à históna cultural. N u m a época caracte­
involuntána, inconsciente e p or vezes mesmo através de ficções .4 ■
rizada pelo provisório e em que triunfam os aggiom am entos, Burckhardt
E daí que procede a sensibilidade particular de Burckhardt aos mitos
sublinha mais de uma vez seu fraco interesse pelos acontecimentos. No
que alimentaram o passado: em bora desprovidos de realidade, não
plano artístico, cndca os excessos dramáticos de Bem ini e de Tintoreto,
são menos autênticos e representam extraordinária possibilidade de
apreender a vida espiritual d o passado.
Jacob Burckhardt, Considéraíions sur 1'histoire d u m o n d e, op. n t . , p. 207.
Ibid.. p. 58, 65. A m aldo M o m iglia n o p rop õe interessantes observações sobre a autude cnQC
“ “ Karl Lõw ith, Jafoí) B u rck h a rd t, op. d t . , p. 9 9 .
de Burckhardt para com a tendência despótica e d em agógica da m odernidade in C ontributia
“ Jacob B u rc k h ard t, Briefe. op d t . t V p 119-120, carta a Friednch von Preen. 31 de d e ze m b ro
dizionano storico.J. Burckhardt e la parola "cesarism o" (19 62 ), h o je in S u i fo n d a m en ti delia stona
de 1870.
Tonno. 1984. p 389-392; W e m e r Kaegi, “Jacob B urckhardt e gli in m dei cesansmo modemo
R in sta storua aahana, 1964, L X X V I . p 150-171. N o que co n cern e ao dissenso de Burckhardi " Jacob B u rc k h ard t, H isto ire d e la d v ilis a tio n grecque (1929-1934), trad u zid o do alem ão p o r Fredenc

com a historiografia alemã, cf. Hugh T r e v o r - R o p e r , “Jacob Burckhardt” , P ro cetd m p ofth e B n t* Mugler, V ev ey , Hditions de 1’ A ire , 2002, vo l. I, p. 13.

icadem y, 1985. 711, p. 359-378 (Master M in d Lecture, 11 d e d e ze m b ro de 1984). 1,2 Ibid.. p. 13.

169
O PEQUENO X - D* NOGdAFIA À HISTÓRIA
O HOMEM PATOIÓGICO

Sua polemica contra a noção de progresso, a ilusão dos anos Seja co m o for, o aperfeiçoam ento técnico não tem nada a ver
1830-1848, é também alimentada p o r suas reflexões inatuais. Quào com o progresso intelectual: “ U m a vez que a divisão do trabalho
ridícula e pretensiosa é a teona da perfectibilid ad e crescente do es- traz o nsco de estreitar cada v ez mais o campo do conhecim ento
pínto, que reputa o presente supenor ao passado! Burckhardt ataca, individual; [...] b em poderia acontecer que a cultura se estatelasse
especialmente, a filosofia da históna que ele julga doente de egonsmo um dia por ter dado uma rasteira em si mesma” .497 E bem menos
(ela considera nossa época c o m o a conclusão de todos os tempos) e ainda com o progresso moral:
de cinismo (ela ignora o dilaceram ento m u d o daqueles que foram
Pois o espínto não esperou os anos para conhecer a plenitude!
quebrados). E, entre os histonadores, ataca Em est R en an , que avalia
Quanto à enquete sobre os moral progresses, deixamo-la de bom
a Idade Média a partir da h u m a n id a d e e d o progresso da civilização:
grado a Buckle que se espanta com ingenuidade de não constatá-

Mas é preciso admitir ao m enos que na Idade Média vivia-se los. uma vez que o progresso moral não poderia se aplicar a um

sem guerras nacionais constantes ou constantemente ameaça­ período, mas somente à vida de um indivíduo. Já na Antiguidade,

doras, sem indústria escravizando as massas e acarretando uma acontecia de um hom em sacrificar sua vida por outrem; não

concorrência mortal, sem ó d io contra a pobreza de maneira conseguimos fazer m elhor do que isso hoje em dia.498

inevitável (se se tivesse explorado então o carvão com o se faz


Diferentemente de H e g e l, ou contra ele, Burckhardt considera que
agora, onde estaríamos nós?).41'3
o êxito históneo não encerra em si nada de louvável nem de neces­
Sem dúvida, não existiríamos mais. T o d a s as periodizações fun­ sário: “ O h om em mais forte não é necessariamente o m elhor” .499
dadas em conceitos tais c o m o o de a p e rfe iç o a m e n to ou de atraso Por vezes, p or razões b em mistenosas, o mal é compensado por
lhe parecem absurdas: “ H á espíritos im pacien tes para os quais a alguma coisa de vital (p o r exem p lo, uma epidemia pode resultar
história não anda suficientem ente rá p id o ” .494 As lentidões da Ida­ num crescimento da população). Mas não é verdadeiro de m odo
de Média não foram, no fim das contas, salutares? A exem plo de algum que o ato da destruição p rovoqu e necessanamente um re­
Ranke, Burckhardt estima que cada ép oca existiu, ao menos no juvenescimento, “ e os grandes destruidores da vida permanecem
início, principalmente para si mesm a, “ mais d o que em relação para nós um en igm a” :500 em face de Átila, de Gengis Khan ou de
a nós” .41''' D on de a necessidade de aceitar, c o m o recomendava Tamerlão, ficam os sem palavras. D e qualquer maneira, ainda que o
Herder, o caráter relativo d o ju lg a m e n to h istórico: mal fosse com pensado p o r um bem , a compensação jamais poderia
ser uma reparação pelos sofrim entos infinitos que foram infligidos:
Para muitas pessoas, os gregos são bárbaros porque tinham
Toda vida in d ivid u al verdadeira destruída prematuramente é
escravos e exterm inavam seus adversários políticos. Os roma­
absolutamente insubstituível, m esm o por outra existência igual­
nos têm a mesma reputação, se mais não fosse por causa das
vidas humanas que sacrificavam no circo e nos anfiteatros. A mente bem -sucedida” .501 O s hircanianos, os arianos, os sogdianos,
Idade Média, por sua vez, é bárbara tam bém , mas por razoes os gedrosianos e todos os outros povos vencidos por Alexandre, o
diferentes, que são as perseguições religiosas e os massacres de Grande, em guerras sanguinárias m erecem nossa compaixão. Mas
hereges. O em prego dessa palavra é finalm ente uma questão de
sentimento pessoal: considero, de minha parte, barbárie colocar
os pássaros em gaiolas.496 Jacob B u rck h ard t, C o n sid éra íio n s su r 1'histoirc d u m onde, op. d l., p. 93.
*" W - . p. 282-283
" ® W . p . 288.

Jacob Burckhardt, Fragments histonques, op. a t p 30-31 Jacob B u rck h ard t, F ragm ents h isto riq u es, op. d t . , p. 27. _
"“ Ibid., p . 148. Jacob B u rck h ard t, C o n sid éra íio n s su r 1'hisloirr d u m o n d e, op. d t ., p. 293. A c ríbca da divinização
u / 3-? co n su m a d o a p a re c e t a m b é m e m F n e d n c h N ie tz s c h e . C onsidéraíions inactuelles, op. a t., p.
Ibid., p . 61
^ a d m ira çã o p ela ‘ p o t ê n c ia da h is tó n a ' p ratica m en te se transform a a cada instante num a
** Ibid.. p . 4 .
Pura adm iração p e lo sucesso e c o n d u z à id o la tn a d o re a l".

170 171
O HOMEM PATOIÔGICO
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia K h is t ó r ia

V
uma compaixão bem distante da idealização: “ P o d e ser também
que, se tivesse subsistido mais tem p o, a parte perdedora não nos
Professor extraordin ário p o r sua paixão e sua generosidade na
parecesse mais m erecer simpatia: um p o v o aniquilado muito cedo
cátedra que ocupava na U n iversidade de Basileia, Burckhardt não
[...] produz o mesmo efeito que hom ens de va lo r m ortos jovens” .502
fornece, entretanto, nenhum a indicação precisa de natureza m e­
À históna do espírito, reivin d icada pela filosofia da história, todológica.506 A razão é simples: não acredita nisso. N ã o acredita
que propõe uma representação geral da e v o lu ç ã o do mundo im­ que exista um m é to d o histórico universal válido e é com orgulho
pregnada de otim ism o, Burckhardt o p õ e a história do homem, que assume sua incredulidade. Para ele, a história é, ou deveria ser,
uma históna concreta, enraizada na existência, carregada de con­ uma expenência pessoal:
tradições, de aporias, de paradoxos: “ Nossa própria vida” . Para
O que é importante a nossos olhos, somos os únicos a considerá-lo
ele, assim com o para Sõren K ierk egaa rd , o cen tro permanente
co m o tal. N en h u m a obra de referência no mundo, com suas
da história não é o h om em p ro vid en c ia l da filosofia da história, citações, pode substituir o laço orgânico que uma afirmação
nem mesmo essa impostura rom ântica qu e é o h erói, mas antes encontrada p or nós mesmos estabelece com nossa intuição e
o hom em m ortal, que sofre n o rm a lm e n te , o in d ivíd u o “ in­ nossa atenção, de maneira que se forma uma verdadeira riqueza
dependente” , livre ainda que c o a g id o , qu e sabe e reconhece sua para nosso espírito.507

dependência para com os aco n tecim en to s gerais do mundo: “ O


A esse título, é im portante, c o m o escreve a Bemhard Kluger (o
homem com seus sofrimentos, suas am bições e suas obras, tal como
filho de seu mestre Franz, a qu em dedicou O cicerone), escolher um
foi, é e será sempre. Desta form a, nossas considerações terão, até
tema que tenha “ uma relação de afinidade e de familiandade com
certo ponto, um caráter p a to ló g ic o ” .503 E m m arço de 1856, numa
a parte mais ín tim a” de si m esm o. Nessa carta de 30 de março de
carta endereçada ao jo v e m A lb e rt B ren n er, e vo ca a conotação
1870, com o em diversas outras, Burckhardt volta com insistência
ética da históna patológica. A p ó s ter q u alifica d o a filosofia hege-
a certas recom endações. A prim eira delas concerne à definição da
liana de ponta de estoque, esclarece: “ Se v o c ê qu er permanecer
históna com o fornia de contem plação liberada de todo e qualquer
poeta, deve conseguir amar de m aneira realm en te pessoal: I o os
desígnio. Hostil à ideia de um con h ecim en to ligado a uma vontade
seres humanos, 2o os fen óm en os singulares fe in z e ln e Erscheinung]
de potência, Burckhardt exalta a gratuidade da história que não deve
da natureza, da vida e da história” .504 D o is meses mais tarde, afi­
ser útil à ação ou, mais exatam ente, que, para ser verdadeiramente
nará seu conselho. Para se aproxim ar d o passado, é preciso repetir útil, não deve colocar-se a questão de sua utilidade: somente sob
mentalmente três frases: ‘“ E eu n o fu n d o não sou mais que uma essa condição é possível abnr uma brecha no presente. Em outros
simples gota d ’água em relação à p otên cia d o m u ndo exterior , e termos, o histonador não d eve perder o contato com a vida e se
tudo isso não tem de m o d o algum o m esm o peso que um grama encerrar em sua torre de m arfim , mas tampouco deve ceder às exi­
de sensibilidade e de con tem plação au tên tica’ , ‘ e a personalidade gências do presente e escrever uma Tendenzgeschichte:
entim é de qualquer form a o que existe de mais alto’ ” .505
D ivergim os bastante, v o c ê e eu, sobre uma coisa: você procura
um tema que g o ze tanto quanto possível do favor da época e
Jacob Burckhardt, C onsidéraíions sur 1'histoire d u m o n d e, op. cit., p. 292.
Ibid . p. 35. Burckhardt emprega o term o p a thologisch, d istin gu in d o-o daquele de pathetisth, p
sublinhar a distância que o separa de H egel.
” Cf. KarlJ. Wemtiaub, Visions o fC u l tu n , Chicago-Londres, Chicago Uraveraty Press, 1966, p. 115-160.
Jacob B urckhardt, B neje, op. a t .. t. III, p. 248, c arta a A lb ert B renner, 16 d e m arço de l ^ 6
Jacob B u rc k h ard t, H isto ire de la civilisation grecque, op. cit-, p. 2 1 .
Ibid , t III, P 250. carta a A lb en B re n n e r, 24 d e m a io d e 1856.
O PEQUENO X - D* BIOGRAFIA A HISTÓRIA O HOMEM PATOLÓGICO

que ande no mesmo passo que os hum ores do momento. Em do que restos inform es, e a alegria que causam pura loucura.
sua idade também eu pensava da mesma maneira, depois nào D eve , à vista de um fragm ento, adivinhar o conjunto, aprender
foi mais assim, felizm ente para minha salvação. Antes de tudo, a reconstituir, e não ex igir uma impressão imediata sobre restos
no caminho de semelhantes temas encontra-se sempre uma cuja beleza só se com pleta pela reflexão.510
quantidade de pessoas superficiais e prontas a tudo, que chegam
antes de nós, exploram o m o m en to e tiram ao que fazemos o A constatação é ainda mais verdadeira quando não buscamos apenas os
ar e a luz; ou então pode acontecer que cheguem os de qual­ fàtos, mas também os pensamentos do passado. C o m o escreve em 1887,
quer m odo tarde demais, quando a aprovação e os humores do
mom ento já se voltaram para outra coisa. P o d e acontecer, pelo [...] em históna da arte, minha tarefa pessoal, parece-me, consiste
contrário, que recebamos im previsíveis aplausos por um tema em dar conta da imaginação de épocas passadas, de dizer que
que ninguém cogitara e que tem a capacidade de transportar o tipo de visão d o m undo tiveram este ou aquele mestre e seus
leitor para uma região diferente daquela que ele já conhecia.508 alunos. C ertos pesquisadores ilustram mais os meios emprega­
dos na arte d o passado, enquanto eu me inclino mais para as
Da contemplação e pela con tem plação nasce a imaginação. intenções que estavam na origem dessa arte.511
Trata-se de um ponto fundamental. Assim c o m o W ilh elm von
Humboldt, Burckhardt também sublinha a im portância da imagi­ Em vez de se con ten tar em descrever o passado, Burckhardt se
nação (Phantasie) histónea: propõe, então, a to m a r visível (anschaulich) a história em curso de se
fazer, a colocar em im agens o passado ou, mais exatamente, a vida
Durante toda minha vida - escreve já em 1842 - jamais pensei
espiritual do passado, de m o d o a estimular a imaginação do leitor
filosoficamente e jamais tive pensam ento que não estivesse
ligado a alguma coisa de exterior. Q u a n d o minha reflexão nào -qu e poderá, em seguida, prosseguir em sua elaboração do passado
é engatada pela intuição (A nschauung), perm aneço improdutivo. no presente. C o m o isso? Graças a um labor em o tivo bastante c o m ­
Por intuição, entendo igualm ente a intuição espiritual, como plexo, feito de im pregnação, de estupefação (a natureza misteriosa
por exem plo a intuição histórica que deriva da impressão sus­
da viagem ao passado não cessa de ser recordada) e de afastamento.
citada pelas fontes. O que reconstruo historicamente não é o
Esse labor acompanha o histonador ao lon go de todo seu percurso: da
fruto da crítica e da especulação, mas antes da imaginação que
aspira a preencher as lacunas pela intuição. A históna é para mim reconstrução (pois as fontes não são um lugar de descoberta de fatos,
ainda, em grande parte, poesia; é para m im uma sequência das mas um testemunho) à narração, passando pela interpretação. D on de
mais belas composições pictóricas. N ã o posso, por conseguinte, a metáfora da viagem , p o r ocasião da qual aprendemos a abarcar a
crer num ponto de observação a priori; este procede do espírito do paisagem num só olhar e a perceber nas formas em m ovim en to o
mundo e não do hom em da história.509
instante em que o espínto humano se fez etemo. U m vaivém contínuo

O que vale para os m onum entos vale igualm ente para as fontes que nos permite sair d o presente, bordejar emotivam ente o passado,
históricas. N u m e noutro caso, tem os sem pre que lidar com ruínas, mas também respeitar sua irredutível estranheza.
com o fragmentário e o relativo, cuja form a originária podemos
apenas imaginar; VI

O observador deve desenvolver em si m esm o essa faculdade de A imaginação aproxim a o historiador do artista. N u m a longa
restauração sem a qual as ruínas antigas não lhe parecem mais carta a Karl Fresenius (um dos m em bros do círculo p oético dos

Jacob B urckhardt, Bnefe. op. à t„ t. V , p. 74-75, c arta a B e m a r d K lu g e r. 30 d e m arço de 1870. Jacob B u rck h ard t, L e cicerone, op. cit., t. I, p. 13 .
• 1, p. 204, carta a W illib ald B eyschlag, 14 d e j u n h o d e 1842. Jacob B u rc k h ard t, Briefe, op. a t ., t. V I, p. 165, carta a R o b e rt G riininger, 10 de agosto d e 1877.

174 175
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia A h is t ó r ia O HOMEM PATOIÓGICO

M aikàifer), de 19 de ju n h o de 1842, Burckhardt evoca a históna O trabalho intelectual não deve querer ser um simples gozo.
com o um processo de m etam orfose pictórica: To d a tradição autêntica parece à primeira vista aborrecida por­
que e na m edida em que nos é estranha. Filha de certa época,
Considera-m e co m o um artista que aprende, que aspira - já reflete seus pontos de vista e seus interesses sem nenhuma consi­
que enquanto isso também eu v iv o de imagens e de intuição deração para conosco, enquanto os falsos produtos modernos são
- e pensa na tristeza que por vezes oprim e durante longos feitos à nossa m edida, vale dizer, embelezados e complacentes
momentos os pintores, apenas porqu e estes não conseguem dar co m o as pseudoantiguidades costumam ser.513
uma forma àquilo que se eleva de suas almas - poderás assim te
explicar por que também eu fic o triste de tempos em tempos,
VII
a despeito de minha natureza, de resto tão alegre.

Convencido de que só a im aginação p od e lançar uma ponte


Mas a imaginação de que fala Burckhardt não p roced e em nada da
ficção poética: entre o presente e o passado, Burckhardt atnbui um papel de pri­
meiro plano à escritura histónea:
A história é e permanece para num poesia no mais alto grau;
bem entendido, não a considero de maneira, digamos, român- Fiz um vo to: escrever durante toda minha vida num estilo legível

tico-fantástica, o que não levaria a nada, mas co m o um mara­ e perseguir sobretudo o interessante, mais do que o acabamento

vilhoso processo de m etam orfose ( V crpuppungen) e de inédito, árido dos fatos. [...] Fala-se sempre de uma arte da historiografia e

um desvelamento do espírito eternamente n ovo. Paro na soleira alguns creem terem feito o bastante quando substituem a inextri­

do mundo e estendo os braços para a o rigem de todas as coisas, cável frase schlosseriana por uma rebarbativajustaposição dosJacta.

e nisso a história é para num poesia pura de que podemos nos N ão, boa gente, trata-se de uma seleção dos jacta, de escolher o
apoderar pela contem plação.512 que pode interessar o hom em . [...] Eu, com meu trabalho, cai no
m om ento certo; m esm o o público se dirige de n ovo bem mais
R econh ecer as afinidades qu e existem entre a história e a do que antes à história e jamais teria posto seu olhar fora dela se
literatura não significa que seja preciso confundir ou assimilar os dois nossos historiadores não tivessem perdido a confiança em seus
géneros. Longe disso, as trocas entre um e outro só podem ter lugar objetivos, e sobretudo nos maiores deles.514

a partir de uma delimitação bem precisa, pois, c o m o é recordado em


Eis porque não gosta m u ito dos filó lo g o s .515 E aprecia certos histo­
O cicerone, cada género deve viver de acordo c o m as próprias neces­
riadores franceses (Augustin T h ie rry e François G uizot, entre outros)
sidades essenciais. Incansável partidário (tam bém no plano estético)
e admira os historiadores floren tin os da Idade M éd ia (especialmente
da autohmitação voluntária, Burckhardt estabelece duas distinções
Giovanni Villani), verdadeiros mestres da linguagem falada, direta,
precisas em relação ao romance. Em prim eiro lugar, a história está
ligada à verdade factual: o historiador lança sobre a realidade um olhar
apenas arbitráno, já que efetua uma seleção subjetiva do material e Jicob Burckhardt, C o n sid éra íio n s su r 1’hisíoire d u m o n d e, op. cit., p. 48. H ip p oly te Ta in e também
1 wpnm c nesse sentido em L ’h isto ire de la liííérature anglaise, op. ríf, t. IV , p. 302, a propósito de
tenta imaginar as razões que inspiram as ações do hom em . Além disso, ^aàter Scott: Ele para no lim iar da alma e n o vestíbu lo da história, só escolhe, na Renascença
ela não busca domesticar o passado (c o m o o fàz o romance histórico na Média, o co n ve n ien te e o agradável, apaga a linguagem ingénua, a sensualidade de-
freada, t ferocidade bestial. N o fim de tudo, seus personagens, qualquer que seja o século a que os
oferecendo uma imagem falsamente familiar e atrativa do passado).
traflsporta, sào seus vizinhos, taíendeiros finórios, cavalheiros enluvados, senhontas casadoiras, todos
Conserva dele, ao contrário, toda alteridade: * * * ou menos burgueses, vale dizer, posicionados, situados por sua educação e seu caráter a cem léguas
^ loucos voluptuosos da Renascença ou dos brutos heroicos e das bestas ferozes da Idade M édia .

Burckhardt, Briefe, op. cit., t. I, p. 197, carta a G o ttfh e d K in kel, 21 de março de 1842.

' K jrlJ°achim W eintraub. "Jacob Burckhardt: T h e H istonan am ong the Ph ilologist". Am erican
. t- I. p. 208, carta a Karl Fresenius. 19 de ju n h o de 1842.
' , l " primavera de 1988, p. 273-282.

177
O PEQUENO X - D* BIOGRAFIA A HISTÔ81A O HOMEM PATOLÓGICO

desprovida de ênfase, da vida prática. Suas crónicas são “ esplêndi imperadores, reis, bispos, dinastias inteiras (os Aragões, os Médicis, os
das, tão ncas de vida e de r e le v o ” ; em com paração, “ com o tudo Viscontis, os Sforzas, os Estes, aí compreendidas suas descendências
que escrevem os humanistas [...] parece afetado e convenciona] ao ilegítimas, etc.), uma m ultidão de condottieri (dos Malatestas de R im ini
lado destes belos trabalhos! Q u e abismo entre Leon ardo Aretino e aos Baglionis de Perúgia), comerciantes, humanistas, doges, cardeais,
P oggio e esses ilustres cronistas de Floren ça !” 516 pintores, escultores, arquitetos, artistas e conspiradores. Nenhum deles
Sua atenção para com o individual p ro ced e igualmente dessas tem direito a uma biografia desenvolvida, mas todos recebem uma
anotações estilísticas. Está aí um p o n to extrem am en te complexo conotação histónea e humana: de Júlio II, o homem que salvou o
pois, em se tratando de Burckhardt, a distinção entre ética e esté­ papado, ao usurpador E zzelin o da R om an o, autor de crimes mais
tica não tem sentido. Basta pensar em seus com entários artísticos atrozes do que os de César Borgia; de Savonarola, que esteve na ori­
A principal qualidade de R afael “ não era de natureza estética e sim gem de uma mudança radical que só pode ser comparada à convulsão
moral: quero dizer o sentim ento de honra e a firm e vontade de sobrevinda após ele com Lutero, ao tiraninho Pandolfo Petrucci,
atingir aquilo que considerava o ideal suprem o da beleza” .517 Quanto cujo passatempo favorito consistia em fazer rolar blocos de pedra do
ao Laocoonte, “ o pon to mais elevad o é a luta contra a dor [...]. A alto do monte Amiata. U m a após outra, essas figuras singulares dão
moderação na dor não tem apenas uma base estética, mas uma razão à narração uma extraodinária tensão dramática, que contnbui para
moral” .518 O mesmo acontece com o h o m em patológico: para além expnmir a contradição mais íntima e profunda da experiência vivida
do sentido ético, de que já falei, ele tem um evid en te valor estético, do Renascimento: a descoberta das faculdades individuais, que, por
pois permite oferecer mais vivacidade e m o v im e n to à cena histónea. certo, deu lugar ao florescim ento artístico e literário do Renascimento,
mas que também encorajou formas desenfreadas de egotismo amoral,
Essas exigências se encontram novam en te em A civilização do
engendrando uma cultura decadente e corrompida. Sob certos as­
Renascimento italiano, uma das poucas obras de Burckhardt publica-
pectos, está aí uma escritura própria aos medalhões. Mas medalhões
em vida. Seu projeto é con h ecido e foi muitas vezes debatido,
sui generis, visto que cada um deles tem uma dimensão particular e
nuto me, por conseguinte, a recordar que, para além do tema (o
porque, em vez de procurar o elogio, visam a revelar a variedade e a
enascimento), o livro apresenta duas novidades importantes. Em
ambiguidade de uma época. Aliás, Burckhardt diz claramente que o
primeiro lugar, a abordagem que p ro p õ e: p o u co inclinado, desde
importante reside na proporção das figuras em relação ao conjunto.
mpre, a conceber a história da arte c o m o uma análise estilístico-
Longe de querer privilegiar os monumentos individuais, para ele
rma . Burckhardt pretende aliar a história da arte ( Kunstgeschichte) e
tela de fundo perm anece a parte principal da composição.
st°n a da cultura (K ulturgeschichté). A segunda inovação concerne
Certas avaliações artísticas, especialmente em O cicerone e e
a de um estilo narrativo: é difícil encontrar outra obra de
algumas conferências, perm item compreender melhor o sc ^
a da arte que pulule tanto de figuras individuais. Só na primeira
dessa escolha. C o m o já sublinhei, Burckhardt vota uma admiraçao
^ ^ Estado considerado c o m o criação de arte” , de cerca de
sem reserva a R afael, justam ente por sua destreza na arte e in iv i -
cem paginas), vemos desfilar mais de duzentas personagens: papas,
duahzar os temas históricos tradicionais. Desconfia, entretan ,
tQda forma de culto da personalidade. E é daí que ecorr
Jacob Burckhardt L u P ' 7■ • • reticências (éticas e estéticas) em relação a Michelangc o
Schm itt, Paru, G o n t h j c r í ç s r " ^ ReW llSSan“ en li a llt (1 8 6 0 >* tra d u z ,d o d o a ,c m io Po r LoU1S

Jacob Burckhardt L r n Esse mestre tem um lugar extraordmino nos desnnos da


Johan W oltsane C r , °P a t ' P P ‘ 69 7‘ C o n s id eraçõcs análogas são porpostas por
lacoh R l i , M a X ' mes el W ^ o n s , op. a t . . p. 69. O car t o do, t r * últimos
Jacob Burckhardt, L r cicerone, op d t.
aqui sob a forma de uma potência

178 179
O PEQUENO * - D* BIOGRAFIA A HISTÓRIA

aqui nào de uma potência involuntária e inconsciente, como


C A P ÍT U L O VI
acontece muitas vezes nos grandes esforços intelectuais do século
X VI. mas, ao contráno, de uma enérgica premednaçào. Parece
que Michelangelo teve da arte que cna o mundo e o postula
uma ideia tão sistemática quanto aquela que certos filósofos
tiveram do Eu que, segundo Fichte, cna o universo.519
A história infinita 522
Por subjetividade, Burckhardt entende essencialmente o arbitrário
(as figuras simbólicas não são mais do que uni p retexto para os tor­
mentos subjetivos) e a om potência (o artista pretende ser o cnador
do mundo). A fim de aumentar a massa e o v o lu m e espacial de cada
figura, os princípios de proporcionalidade (entre a parte e o todo)
do classicismo arquitetural e escultural do R en ascim en to não são
respeitados. E, paradoxalmente, é o sentido da individualidade que
A dúvida verdadeira tem certamente seu lugar
acaba sendo anulado, pois rema uma contradição espantosa entre num m undo de que ignoramos o inicio e o fim
o indivíduo, im ponente não apenas em term os de tamanho, e sua e cujo meio está em perpétuo movimento.
existência esmagada: “ A q u ele que o contem pla procura em vão a Jacob Burckhardt52’
linha simples, natural, das naturezas gregas, um traço que nenhuma
virtuosidade pode substituir” .520 U m dos exem p los mais contun­
dentes, que ilustra o quanto um excesso de subjetividade pode ser I
contraproducente, concerne às duas estátuas de escravos, hoje con­
servadas no Louvre, que deveriam ter feito parte da tumba de Júlio O requisitório mais veem ente contra esses “ animais particulares

• O torm ento apoplético de toda uma série de homens simples, chamados heróis” , en con tra m o-lo sem dúvida alguma em Guerra

eroicos, musculosos que apenas se con torcem , sem poderem se e p a z : “ P o r mais estranha que pareça tal asserção, a dignidade hu­

mexer, que não estão livres para avançar u m passo, é, em todo caso, mana m e diz que cada um de nós, se não é mais, certamente não
uma ideia tirânica” .52' é menos um h om em do que o grande N apoleão . Impregnadas
de uma raiva que parece p or vezes não querer se extinguir, nume
rosas páginas insistem na im oralidade da figura do grande hom em ,
demasiado frequentem ente explorada para excluir a possibilidade da
medida do bem e do mal: aos grandes perdoa-se tudo, mesmo sua
tuga, abrigados numa pele, abandonando seus companheiros entre
as mãos do in im igo... Mas T o lsto i não se contenta em exprim ir
seu desgosto m oral pela dupla contabilidade humana, tão com um

s' ” Ibid., t. II, p. 459


- U m a versão reduz.da deste capítulo foi publ.cada sob o titulo T olsto, dam le sceptic.sme de
por M a u ™ c t c l l r d ^ / J 0 ' R m a is s ‘“ ,ee S elm l,en w d e , A u l a des .\fu s c u m s (1858-1859). ciudo 1 histoirc" na revista E sprit, ju n h o de 2005, p. 6-25.
Einaudi. 1 9 9 1 , p ' p V ^ R ' n ú s d m e " t0 ’ "L 'e t i d ' R a f a e b " d iJ a co b Burckhardt. Tonno.
"'Jacob Burckhardt, C o n sidéraíions sur l'histoire d u m onde, op. cit., p. 40.
511 Ibid.. p. 180. L éon T o lsto i, L a X u e n e e, la p a ix . traduz,do do russo por Bons de Schloezer, Pans, Galhmard.

1972, livro III. t. II, p. 224.

180
181
A HISTÓRIA INFINITA
O PEQUENO * - Da BIOGRAFIA A HISTÓOIA

Quando as tropas napoleônicas entraram em M oscou , poderiam


nos livros de história, que distribui os hom ens em heróis e seres
facilmente ter m antido sua brilhante posição e im pedir o saque da
ordinários. T od a sua obra recoloca em questão a adequação de tal
cidade, de maneira a reunir os víveres e as forças necessárias para
critério para a com preensão do passado: “ O s antigos nos deixaram
enfrentar o in vern o. Mas as disposições do im perador nao foram
modelos de poemas épicos cujos heróis concentram em si todo
observadas, perm aneceram suspensas no vazio: co m o os ponteiros
interesse, e não chegamos ainda a com p reen d er que, para nosso
de um mostrador de re ló g io separados do mecanismo, elas giravam
tempo, uma históna desse gén ero é destituída de sentido” , lê-se na
arbitrariamente e inutilm ente, sem m o ver outras engrenagens. E
segunda parte do terceiro liv ro .525
os franceses se suicidaram assim, pisoteando, “ com o um rebanho
Aos heróis oficiais de 1812 (Barclay de T o lly , Raievsky, Er- sem vigilância” , o alim ento que poderia tê-los salvado da m orte:
m olov, Flatov, M ilorad ovitch ), sempre exaltados em verso e em
D izer que N a p oleã o perdeu seu exército porque quis ou por­
prosa, opõem -se homens c o m o o p acífico D o k tu ro v ou o modesto
que era m uito tolo. seria tão falso quanto dizer que Napoleão
Konovnitsine, que suportam o peso da guerra sem vacilarem. Mas
conduziu suas tropas a M oscou porque quis ou era muito in­
os pivôs invisíveis da guerra são os sargentos: E eviden te que só
teligente e genial. N u m caso com o no outro, sua ação pessoal,
nos será possível apreender as ditas leis passando p o r esta via e que que não tinha mais importância do que a ação pessoal de cada
ainda não realizamos na direção que ela nos indica a milionésima um de seus soldados, coincidiu simplesmente com as leis que
parte dos esforços que envidaram os historiadores para descrever regiam os acontecim entos.527
os atos dos reis, chefes de guerra e ministros, e ex p o r as conside­
Fazendo entrar na cena da históna as unidades mínimas, T olstoi
rações que lhes inspiraram seus atos” .526 Bonaparte, símbolo por
afirma que a ação p rocede da periferia, e não do centro.
excelência da insolente pretensão de fazer história, não é mais que
um puro epifenóm eno no seio de um processo que teria, de qual­ Enquanto o oceano da históna permanece calmo, compreende-
quer jeito , seguido seu curso. C o m seu olhar lim itado e feliz com se que o admim strador-piloto, que, em seu frágil esquife, apoia

o infortúnio dos outros, ele não é mais a prodigiosa expressão da seu gancho no enorm e barco do Estado e se m ove com ele,
possa crer que o barco avança graças a seus esforços. Mas basta
vontade individual capaz de transformar o m u ndo, mas antes um
que o ven to aumente, que o oceano fique agitado, arrastando
hom enzinho, de sobretudo cinza, im p o ten te e caprichoso, cuja
o barco, e já não é possível enganar-se: o barco prossegue sua
única grandeza é a de crer que nada é mal para sua pessoa. Quem co m d a im ponente, independente, o gancho nao mais o atinge,
saber A guerra não teria talvez eclo d id o se ele tivesse aceitado re­ e o p iloto passa subitamente da situação de chefe, fonte de toda
tirar suas tropas de trás do Vistula e se não tivesse ordenado a suas energia, àquela de um pobre hom em fraco e inutil.
tropas continuar adiante, mas ela certam ente não teria ocorrido se
L o n ge de govern ar os acontecimentos, Alexandre e N apoleão
todos os sargentos franceses se tivessem recusado a prolongar seu
são escravos da históna: seus atos, “ dos quais dependia, aparente­
serviço. N ã o há nada, mas verdadeiram ente nada — nem a vitória de
mente, que os acontecim entos tivessem lugar ou não, e
Austerlitz, nem o sacrifício de 80.000 hom ens em B orod in o —que
pouco livres quanto o ato de qualquer soldado que parti p
seja exclusivamente imputável a N a p o leão , tudo é o produto da
- A * ” S29
ati\ idade de centenas de milhares de hom ens que tomaram parte guerra designado pela sorte ou recrutado .

na ação comum. A derrota final do exército francês é a prova disso.


527 Ibid., liv r o I V , t. II, p. 479.

Ibid., liv r o I I I , t. II , p. 346.


* * Ibid., liv r o II I, t. II, p. 189.
Ibid., liv r o I I I , t. II, p. 9.
Ibid., liv r o III, t. II, p. 271.

183
182
O PEQUENO X - Da b io g r a f ia à HISTOdlA
A MISTÔdIA INFINITA

Assim, a guerra, que os dois im peradores creem governar, vai


tentavam fazer o mesmo, pressionavam-na, por vezes a destruíam, por
adiante independentem ente de seus projetos, de suas ordens, sem
vezes se uniam a ela” .532
jamais coincidir com o que tinham planejado, m ovida essencialmen­
C o m a verdadeira história da campanha na Rússia, T olstoi re­
te pela iniciativa das massas. D o n d e o paralelo entre a ação militar
verte certos lugares com uns sobre o poder. N ã o o caracteriza pela
e o mecanismo do relógio:
força física ou m oral e não lhe atnbui qualidades intrínsecas, mas
Como no relógio em que o resultado do movimento das inu­ descreve-o c o m o uma relação de dependência entre aqueles que
meráveis engrenagens nào é mais do que o movimento lento e comandam e aqueles que obedecem . É uma das significações da
regular dos ponteiros que indicam a hora, assim, o resultado das narrativa do massacre dos quarenta ulanos. Estamos em 1812: N a ­
centenas de ações complexas desses cento e sessenta mil homens, poleão acaba de transpor uma das pontes do N iem en , “ ensurdecido
russos e franceses, das paixões, dos desejos, dos remorsos, das pelas aclamações incessantes que evidentem ente suportava apenas
humilhações, dos sofrimentos, dos elàs de orgulho, dos temores,
porque era im possível p roibir esses homens de exprim irem seu
dos entusiasmos de todos esses homens, foi unicamente a batalha
amor” . C h egad o às margens do Vilija, dá a ordem de reconhecê-lo.
de Austerlitz, a batalha dos três imperadores como a chamam,
Embora haja um vau à meia légua dali, os ulanos poloneses se lançam
vale dizer, um ligeiro avanço do ponteiro da história universal
imediatamente na água do rio, cuja corrente é profunda e rápida:
no quadrante do destino da humanidade.530
"Mas o frio era grande, a rapidez da corrente apavorante: os homens
Propondo a metáfora do relógio, T o lsto i não pretende sugerir se agarravam uns aos outros e caiam de suas montarias. Cavalos se
que os indivíduos formam simples elem entos intercambiáveis, ou afogaram, hom ens também. O s outros nadavam segurando-se seja
que a sociedade procede de um mecanismo impessoal, autománco, em suas selas, seja na crina de seus cavalos” .533

que e h fu n cio n a por si mesma; quer simplesmente dizer que a his­ C o m o repartir as responsabilidades desse massacre inútil? Deve-se
tória é uma obra com um , uma trama densa e inextricável de forças imputá-lo ao coronel polonês cheio de zelo que, o rosto feliz e os
múltiplas em perpétuo m ovim en to: “ O m o v im en to dos povos não olhos flamejantes, ordenou a seus ulanos que o seguissem? A N a p o ­

resulta nem do poder, nem da atividade intelectual, nem mesmo da leão, que continuava a fazer os cem passos em companhia de Berthier,

conjunção dos dois, com o pensam os historiadores, mas da atividade ‘‘ao longo do rio e a lhe dar instruções, lançando de tempos em tempos
olhares descontentes aos ulanos que se afogavam, perturbando o curso
de todos os homens que tomam parte no acon tecim en to” .531 A vida
de seus pensamentos” ? O u ao devotam ento dos ulanos “ orgulhosos
histórica é uma esfera m óvel, sem dimensões, que nasce dos choques
de nadar e de se afogar nesse rio sob os olhos do hom em sentado
inumeráveis entre diferentes vontades: multidões de seres humanos,
num tronco e que sequer olhava o que eles faziam” ?534
unidos e separados por laços vitais e dolorosos, ativam-se, suas ações
Nesse ep isó d io , T o ls to i não descreve apenas a crueldade
se confundem e acabam por produzir alguma coisa de único, de
distraída de Bonaparte. D iz-n o s igualm ente que o poder, tom ado
imprevisível, de irreparável e, muitas vezes, incompreensível. Algo
em seu sentido verdadeiro, nada mais é que a expressão da pesada
que se assemelha a um jato d água: “ E todas essas gotas se moviam,
dependência em que nos encontram os para com os outros. Sob
e deslocavam e ora várias se confundiam para form ar uma só, ora
certos aspectos, aqueles que o detêm podem contar ainda menos
ma delas se di\ idindo dava nascimento a outras. Cada gota tendia com a própria von tade do que aqueles que o aceitam; suas ações
e espalhar, a ocupar o m áxim o de lugar possível, mas as outras

Ibid., liv r o IV , t. II. p. 558.


530 Ibid., livro I, t. I, p. 3 4 4
Ibid.. liv r o II I, t. II, p. 13-14.
531 Ib id ., livro IV . t. II, p. 728.
S3< Ib id., l,v r o 111, t II, p. 13-1 4.

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O PEQUENO x - Da b io g r a f ia a h is t ó r ia
A HISTÓRIA INFINITA

parecem intencionais e livres, mas são na verdade involuntárias e não tem o estofo de A n a to le K uraguine), T olsto i vai bem além de
determinadas p or to d o o curso da história passada: “ Quanto mais uma refutação da grandeza individual: ele a separa da vontade de
alto o hom em está situado na escala social, mais a rede de suas rela­
potência. Dá a palavra, a vida m esm o, a essa máxima de G oeth e
ções com os outros homens é extensa, mais autoridade possui sobre segundo a qual “ nada de mais triste do que a aspiração ao absoluto
os outros e mais parece que cada um de seus atos é predeterminado nesse mundo tão essencialmente lim itado” .538
e inevitável” .535 A ordem , o ato de com andar, nada mais é que uma
Na realidade, há um grande h om em no campo de batalha: é
simples etiqueta, uma espécie de título atribuído ao acontecimento
Kutuzov, velh in h o distraído, que despreza o saber e a inteligência,
que tem apenas, com o todas as etiquetas, uma relação longínqua
que adormece durante os conselhos de guerra, que detesta mesmo
com o acontecim ento em si m esm o. E, aliás, uma das primeiras
montar a cavalo. Sua indolência é tal que a atividade dos outros lhe
coisas que o príncipe A n d ré percebe, ele que conjuga no mais alto
parece ser uma censura pessoal. Contrariamente a Napoleão ou, pior
grau todas as qualidades que se p od em e x p n m ir p elo conceito de
ainda, ao com andante austríaco W eiroth er, chefe de guerra presun­
força de vontade. Em certo sentido, é um segredo de Polichinelo:
çoso e obstinadamente agarrado à ilusão de dirigir e comandar seus
ninguém quer recon h ecê-lo, mas to d o o m u n d o sabe que as ordens
soldados, o velh o general russo sabe que durante o combate - com o
praticamente não são observadas, e que, muitas vezes, nenhuma
na vida - alguma coisa de mais forte e de mais importante do que
ordem vem do alto. O simpático capitão T u ch in e, que só decide
a vontade d eve ser considerada, é a incógnita x , o sentimento dos
onde e com o atirar após ter falado c o m o sargento Zakartchenko,
homens, aquilo em que creem:
por quem nutre profundo respeito, sabe-o bem , assim com o o sabe
o príncipe Bagration, ele que, c o m grande tato, se contenta em U m a longa experiência militar lhe tinha ensinado, e sua inte­

secundar os acontecimentos: sua presença é extrem am ente eficaz, ligência de velh o lhe fizera compreender, que nào estava no
poder de um só dirigir centenas de milhares de homens que
pois ele dá a ilusão de que aquilo que se faz p or necessidade, por
lutavam contra a m orte, e sabia que o que decide o resultado
acaso ou por vontade dos comandantes é executado “ se não por
das batalhas não são as disposições que toma o general em chefe,
suas ordens, ao menos em con form id ad e c o m suas intenções” .536
não é a posição que as tropas ocupam, o número dos canhões e
Desse ponto de vista, o p od er deriva daquilo em que se crê. dos mortos, mas essa força mapreensível que chamam o moral
C o m o escreveu N ic o la C h iarom on te, “ na ação, não temos outro do exército; e vigiava essa força e agia sobre ela tanto quanto

guia além daquilo em que crem os uns dos outros e do mundo onde estava em seu poder.539

vivemos. N apoleão, K utu zov, o ú ltim o de seus soldados, o homem


K u tu zov é lento, hostil a toda ação decisiva, indiferente às pa­
mais genial assim co m o o mais m ed íocre, o mais lúcido e o mais
lavras, que lhe parecem incapazes de exprimir as verdadeiras razões
racional, assim com o o mais tolo, ninguém p od e ultrapassar o limite
dos homens, intolerante para com as declarações de patriotismo, que
que, em última instância, faz de to d o saber uma simples crença” .53
não pode escutar sem fazer caretas. N ã o pretende ser um condutor de
homens, sequer vem -lh e ao espírito poder dirigir os acontecimentos,
II
não intima ordem alguma e se limita a dizer sim ou não às propo­
Q uando consegue m oderar sua raiva p olém ica e esquecer sições que lhe são feitas, a constatar os fatos consumados. Pressente,
suas frágeis convicções igualitárias (o p rín cipe A n d ré certamente entretanto, a significação do acontecimento (compreende que a ba­
talha de Austerlitz está perdida antes mesmo que ela comece, depois

^ I b i d . livro III. t. II. p. 10.

sv Ibid., livro I, t. I, p . 252.


Johan W o lfg a n g G o eth e, M a x im e s et R é fle x io n s , op. cit., m. 961, p. 256.

hiaromonte, T h e Paradox o f H isto ry, Londres, W cin d e n fe ls & N icolson , 1970, p- 30. " Léon T o lstoi. L a G uerre et la P a ix, op. cit.. livro III. t. II, p. 250.

187
O pe q u en o * - Da b io g r a f ia A h ist ó r ia
A HISTÓRIA INFINITA

sustenta, contra todos, que B orod in o é uma vitória) porque é parte sobre o qual se mantinha, enfiara o outro pé e afundara ainda mais.
do nós, verdadeiro ser coletivo. A fonte de sua capacidade reside no Completamente atolado, avançava agora com a lama até os joelhos” .543
espínto nacional russo que o amma e sua luta contra Napoleão, o
Só a prisão o salvará dessa moral, poderosa unicamente em apa­
herói m od em o europeu, é também, e sobretudo, a luta de um povo rência: “ O m u ndo que desabara com eçava a se reedificar nele com
que reconhece sua dependência (em relação a Deus) contra um povo uma beleza nova, sobre fundamentos renovados, inabaláveis” .544 E,
demiúrgico, que crê viver da vida que ele próprio irradia.540 N o fundo, pouco a pou co, a frou xidão de outrora, que se expnrrua até mesmo
Kutuzov se vê e age com o um receptáculo, c o m o uma simples forma. no olhar, dá lugar a uma retomada de energia:
Sua força deriva do fato de que nele nada há de pessoal: “ Ele não fará
Procurara toda sua vida em diferentes direções essa paz, esse
nada que venha de sua própria iniciativa. N ã o inventará nem empre­
acordo consigo mesmo que tanto o impressionaram nos solda­
enderá nada, dizia a si mesmo o príncipe André, mas escutará tudo, dos em B orodin o. Procurara-os na filantropia, na maçonaria,
se lembrará de tudo, colocará tudo em seu lugar, deixará que façam nas distrações da vida mundana, no vinho, no sacrifício, em
o que pode ser útil e impedirá o que é n o c iv o ” .541 P or momentos, seu am or rom ântico por Natacha; procurara-os pelas vias do
pensamento e todas essas procuras e tentativas o enganaram.
ele lembra um pouco o herói de Carlyle: possui a mesma propensão
E eis que, sem pensar, recebia esse apaziguamento e o acordo
à renúncia que esse admirava em G oethe.
consigo mesmo, mas somente passando pelo terror da morte,
O mesmo se dá no que concerne à vida privada. Inicialmente pelas privações e pelo que Karataiev o fizera compreender.''4''
desprovido de caráter, Pedro B ezu kov só chega à g randeza quando
Nas mãos dos franceses, Pedro pode repensar - ou pensar pela
compreende e aceita que não lhe é possível prever os acontecimen­
pnmeira vez —certas noções chave da moral demiúrgica. Compreende,
tos, menos ainda modelá-los segundo sua vontade ou suas intenções.
então, não pelo raciocínio, mas em todo o seu ser, que existe um limite
Enquanto desejava ardentemente, com toda sua alma, ser Napoleão,
para a vontade: no fundo, ao esposar a bela Helena, acreditara seguir
tomar-se filósofo, vencer N apoleão, enquanto pretendia transformar
a própna vontade, quando na verdade só se decidira, num estado de
o género humano fundando escolas e hospitais e alforriando seus mu- extrema confusão, porque todo mundo esperava isso dele e não tinha a
jiques de K iev, ele permanecia o m arido rico de uma mulher infiel, coragem de decepcionar. Com preende, então, que há igualmente um
um camareiro aposentado que gostava de beber e com er e, em seus limite para a responsabilidade: para a sua, quando no clube inglês pro­
momentos de expansão, não desdenhava falar mal p or vezes do go­ vocou D o lo k o v para um duelo, ainda que se desse conta perfeitamente
verno: o que quer que fizesse, continuava a ser o que seria qualquer de que as noções de honra e de ofensa não eram mais do que besteiras,
um em sua posição. Seu m om en to de m aior im potência coincide, tolas convenções; assim com o é limitada a responsabilidade do velho co­
e não por acaso, com sua adesão à maçonaria, expressão máxima merciante, injustamente acusado de assassinato, a quem não resta senão
da moral demiúrgica segundo a qual faber est suae quisque fortunae:542 amar a vida em seus sofrimentos inocentes. Por outro lado, mesmo a

Quando entrou na franco-maçonaria era c o m o um homem que grandeza nada tem de voluntário, de prometeico: quando muito, deve
ser compreendida com o um signo de dependência. Se Kutuzov conse­
põe com confiança seu pé sobre a superfície unida de um pântano;
gue escapar, graças à sua ligação com o espírito russo, à sedutora moral
tendo apoiado o pé, afundara; para se certificar da solidez do solo
demiúrgica que contamina tantos membros do estado-maior, Pedro só

' Sobre a atitude demiúrgica. ver A lberto Savinio, “ Fine dei m o d e lli" (1947), in O p m . S n illi iItsprrsi
T r a g u e n ú e dopoguenú < 1 9 4 3 -1 9 5 2 ). M ilã o, B om piam , 1989, p. 501 sq. 1 Ib id ., livro II, t. 1, p. 556.
141 Leon Tolstoi, L a G u e n e ei h P M X. op cit.. livro III, t. II, p. 178. ’ Ib id .. livro IV , t. II, p. 442.
Cada um é artífice da própria sorre. (N .T .). 'I b id .. livro IV , t. II, p. 492.

189
O PEQUENO X - Da NOGRAFIA à HISTÓNA A HISTÓaiA INFINITA

se transforma graças aos outros prisioneiros que apreciam sua força, flanco para além de Krasnaia Pakra, que conduz os franceses a sua
sua indiferença para com as com odidades da vida, sua simplicidade, perda, poderia ter sido fatal para o exército russo. Teriam bastado
em suma, todas as qualidades que haviam sido anteriormente uma algumas coincidências a menos. Se M oscou não tivesse sido incen­
fonte de embaraço na alta sociedade de São Petersburgo: e Pedro se diada? Se M urat não tivesse perdido os russos de vista? Se o ataque
sentia constrangido pela opinião que faziam dele.
tivesse sido lançado im ediatam ente co m o o sugeria Benningsen, “ o
Para Tolstoi, as noções de von tade e de responsabilidade são homem das longas abas” ? Se os franceses tivessem marchado sobre
inadequadas, uma vez que supõem a existência de um sujeito com­ São Petersburgo? É p rovável que, se apenas uma dessas suposições
pletamente autónom o (um Eu sem N ó s ). N a prisão, embalado pelo se tivesse verificad o, “ a marcha de flanco teria se transformado em
ronco regular de Platão Karataiev, Pedro descobre, enfim , que a vida desastre” .547 O que é verdadeiro para o últim o episódio da ofensiva
do hom em só tem sentido enquanto partícula de um todo: reconhe­
napoleônica vale para a campanha da Rússia inteira:
cer os limites da vontade e da responsabilidade perm itiu-lhe perceber
a ligação, a conexão das coisas, dos hom ens e das circunstâncias, E-nos incom preensível que milhões de homens, cristãos, te­
nham podido passar por tais sofrimentos e se matarem uns aos
tomar consciência da própria dependência. U m a dependência que
outros porque N apoleão amava o poder, Alexandre era firme,
não é submissão, mas predisposição à ação e à resistência: é somente
a Inglaterra intriguista e o duque de O ldenbou rg estava ofendi­
aceitando não ser um dem iurgo, um sujeito soberano, que toma
do. [...] A nós, que não somos historiadores, a quem o próprio
consciência de não ser um simples peão nas mãos de um demiurgo.
processo da pesquisa não obnubila e que, consequentemente,
D e maneira mais simples, abandonando-se aos sentimentos que contem plam os o acontecim ento mantendo intacto nosso bom
experimenta pela pnncesa Maria, N ic o la u R o s to v chega à mesma senso, faz-se manifesto que o número das causas ultrapassa o
conclusão: decidindo submeter-se às circunstâncias, não apenas nada cálculo. À medida que avançamos em sua pesquisa, descobri­
faz de mal, mas, pela primeira vez, realiza “ uma coisa extremamente mos sempre novas, e qualquer que seja a causa ou a série de

importante, a mais im portante que jam ais fe z ” .346 causas visadas, todas parecem igualmente exatas consideradas
em si mesmas e igualmente falsas vista sua insignificância em

III relação à enorm idade do acontecim ento que seriam incapazes


de produzir (fora de sua coincidência com todas as outras).

E é precisamente esse sentido agudo da dependência - entre


É a lei do acúmulo de causas, uma lei que lembra muito o volum e
os seres humanos e entre os seres humanos e as circunstâncias - que
de Carlyle. A história humana não é determinada pela ação de grandes
conduz Tolstoi a analisar o passado num n ível m olecular. Integran­
causas necessárias, exclusivas e previsíveis, nem sequer é dirigida pela
do as unidades mínimas, vai além da evocação das significações
Razão, por um desígnio racional, mas é coberta por nul pequenos
afetivas do drama histórico. É no plano exp lica tivo que quer levar
fardos concomitantes: cada indivíduo se encontra sempre no coração
em conta os fatores locais, os fatos minúsculos, infinitesimais. Para
ele, não existe apenas uma m ultiplicidade de experiências vividas, de uma série m ó vel de fatos. D ito de outro m odo, Tolstoi descreve a

com o nos conta Stendhal na cena famosa da batalha de Waterloo, natureza temporal da causa: diz-nos que não se trata de um fator ou de

mas uma multiplicidade de causas: não há uma causa, nem mesmo um acontecim ento exterior, mas de um conjunto de circunstâncias,

duas ou três causas, mas uma cadeia infinita de causas minúsculas, expressão da trama de dependências em que se afundam os homens.

das quais nenhuma é em si mesma a verdadeira causa. A marcha de

'* Ibid., liv r o I V , t. II, p. 463.

Ibid , livro IV , t. II, p. 4 1 9 . Ibid., liv r o I I I , t. II , p. 8.

191
190
O PEQUENO X - D a BIOGRAFIA A HISTÓRIA
A HISTÓRIA INFINITA

Ele, que em seu diáno se pergunta “ quando pois com ecei?” , narra intenção dos protagonistas, é impossível discernir precisamente o
em Guerra e p a z a absoluta continuidade do m ovim en to: não existe que se passa. Assim, o príncipe An dré com preende, alguns dias antes
não pode existir condição inicial para um fen óm en o, um fato denva de sua chegada ao cam po p ró x im o de Drissa, que os planos mais
sempre de outro, insensivelmente e sem interrupções.549 N ã o é por meditados não valem nada, que tudo depende da maneira com o se
acaso que Kutuzov não consegue datar o abandono de Moscou. Por reage às manobras inesperadas e imprevisíveis do inim igo. E o que
mais que procure, não encontra e não pode encontrar resposta, pois agita K u tu zov ao lo n g o da noite de 12 de outubro de 1812. Ele
a cadeia das causas e dos efeitos não tem in icio e não pode ter fim: passa uma n oite sem d orm ir perguntando-se se N apoleão se dirige
“ Adrrutir unidades separadas umas das outras, que um acontecimento a São Petersburgo ou se espera em M oscou , depois imagina mil
tem um com eço [...] é com pletam ente falso” .550 outras suposições; mas, a despeito de sua experiência, tampouco
ele é capaz de considerar todas as com binações possíveis: “ A única
IV que não p ôd e p rever fo i precisamente aquela que ocorreu: esses
absurdos saltos espasmódicos do exército napoleônico de um lado
N ã o apenas as motivações que alimentam um acontecimento são
para o outro ao lo n g o dos on ze dias que seguiram sua partida de
numerosas, muito numerosas, em núm ero infinito, mas são também
M oscou e que tom aram possível sua total destruição, com a qual
muito pouco lógicas ou previsíveis. Para T olstoi, o ser humano não
Kutuzov não tinha ainda ousado sonhar” .554
é um animal pensante, mas um animal dramático, que praticamente
O que quer que se diga, a guerra, no curso da qual um batalhão
não reflete sobre o que faz, que age antes de avaliar, de calcular, de
pode derrotar uma divisão ou ser aniquilado por uma companhia,
saber. Sua capacidade de ação tem algo de involuntário e de irrefletido:
nada tem a ver com o xadrez, jo g o fora do tempo, em que o cavalo
Só a atividade inconsciente é fecunda e o h om em que desempenha
é sempre mais forte do que o peão e dois peões mais fortes do que
um papel nos acontecimentos históricos jamais com preende sua sig­
um só peão. A im agem do duelo com arma branca, frequentemente
nificação. Se tenta com preendê-los, é atingido pela esterilidade” .551
empregada c o m o metáfora da guerra (e da vida social) tampouco
O campo de batalha é um exem p lo disso: ninguém se desloca convém. A vitóna de B orodino não permite aos franceses conquistar a
aí segundo um plano preestabelecido, mas num estado próxim o Rússia; ela marca ao contrário o início de sua derrota, já que os russos
do d elín o da febre ou da em briaguez, sob a inspiração do mo­ decidem em certo ponto lançar fora a espada e empunhar o porrete,
mento, livrem ente, pois o h om em nunca é mais livre do que no em outros termos, os camponeses de Karp e de Vias, desprovidos de
campo de batalha onde o que está em j o g o é a vida e a m orte” . " ’ qualquer sentim ento patriótico, param de levar o feno a M oscou e o
As ordens, raramente ouvidas, são sistematicamente deformadas: queimam. O exército napoleônico atinge, então, as condições quí­
O comandante da terceira com panhia ao general” se toma “ a micas da dissolução: transforma-se numa turba de homens transidos
terceira companhia ao com andante” e depois “ o general à terceira
companhia Porque as coisas p rocedem independentem ente da
amplificação dos erros na transmissão das ordens à época do serviço militar assim, se a ordem era
de início: " O cabo m arche ã frente da coluna", acaba-se transmitindo atrás. A o ca o am ^
façam fila indiana!” ou algo de equivalente - para insistir sobre as dificuldades implícitas na noçao

rtas considerações de Tolstoi sobre a natureza ininterrupta d o m o vim e n to precedem aquelas de causalidade histórica: “ O cam inho da história não é pois o de uma bola de b ar que,

de Bergson sobre o caráter indivisível do tem po. tocada, segue determ in ado curso, mas assemelha-se ao trajeto das nuvens, ao caminho de alguem

Leon Tolstoi. L a G u m e e, h p a ix _ op n ( |1VTO m t „ p 269 que vagabundeia pelas ruelas, distraindo-se aqui com outra sombra, ali com um grup p
OU o co n to rn o diferente de uma fachada, por fim chegando a um ponto que nao c o n h e ™ J ie i"
Ib id ., livro IV . t. II, p. 408.
quena atingir". * U t.l.zo -m e aqu, da tradução brasileira de Lya Luft e C a r lo s Abbenseth (Musil,
Ib id ., livro IV , t. II, p. 4 7 7 .
R o b e r, O h o m em sem qualidades. R . o de jane.ro: N o v a Fronteira, 1989, 259.). Nesta, o capitulo
n>id . livro I, t. I, p. 172. N o célebre capítulo 83 de O h o m em sem q u alidades. "Sem pre a mesma 83 é intitulado " A c o n te c e a mesma coisa, ou: por que nao se inventa a iston
. ou. o r que nào se inventa a H istóna?", M usil se serve, tam bém ele, da experiência da ' Léon T o lsto i, L a G uerre et h P ú ix, op. eit., livro IV , t. II, p 508.

193
i
O PEQUENO * - D* BIOGRAFIA A HISTÓRIA A HISTÓRIA INFINITA

de frio e esfomeados, sem calçados, que erram sem meta na neve e dizer a verdade a seus auditores [...], não teriam acreditado nele,
no frio. Um a tragédia inexorável, bem diferente da retirada compacta ou, o que é ainda pior, teriam pensado que era unicamente
e digna da M arselhesa na A bertura solene “ 1 8 1 2 ” de Tchaikovsky.555 culpa sua se não lhe acontecera o que acontece normalmente
às testem unhas de um ataque de cavalaria. Ele não podia
V contar-lh es simplesmente que tinham partido todos a trote
e que ele tinha corrido feito um louco para se refugiar num
Reconstituir a origem e a evolução de um acontecim ento é im­
bosque e escapar aos franceses. E depois, para contar tudo o
possível. Assim, nos relatos que a seguem, seja oficiais, seja privados,
que se tinha passado e unicamente o que se tinha passado, era
sempre impregnados de bons sentimentos e de grandes palavras, a preciso fazer um esforço sobre si m esm o.557
realidade da guerra é forçosam ente deform ada até se tom ar algo de
razoável, de consequente, de previsível. Jerkov, o porta-estandarte T od o s m entem . M es m o os generais contam a batalha com o
dos hussardos, que, quando da batalha de Austerlitz, presa de um gostariam que ela tivesse sido ou com o a ouviram contar por outros
terror insuperável, foi incapaz de enfrentar o in im igo , sabe algo narradores, ou ainda enfeitando-a pelo prazer do relato, mas de
disso. U m a vez o perigo passado, contará: modo algum c o m o ela decorreu. Alguns deles mentem por vaidade,
mas muitos outros m en tem simplesmente porque não podem fazer
“ Assisti, vossa alteza, ao ataque d o regim en to de Pavlogrado” ,
de outra form a, pois “ contar a verdade é m uito d ifícil” .” " Existe
in terveiojerk ov lançando a seu redor olhares inquietos. Ele não
tinha visto os hussardos o dia inteiro, mas apenas ouvido um
uma diferença dramática entre realidade e narração histórica (sem
oficial de infantaria falar deles. “ Eles devastaram dois quadrados, mesmo falar de explicação):
alteza." Alguns somram q u a n d o jerk o v se pôs a falar, esperando
D izen d o que o ataque fora repelido, [o comandante] preten­
uma de suas costumeiras piadinhas, mas dando-se conta de que
dia qualificar com um term o militar o que se passara, mas na
o que ele dizia glorificava a ação de nossas tropas e o sucesso
verdade ignorava o que se passara 110 curso dessa meia hora no
desse dia, tomaram um ar sério. M uitos, entretanto, sabiam
claramente que não era mais do que uma mentira infundada.55* regim ento que lhe estava confiado, e não podia dizer de ciência
certa se o ataque fora repelido ou se seu regimento fora posto
O caos d e s p r o v id o d e s ig n ific a ç ã o q u e re in a n o c a m p o de ba­ em fuga pela cavalaria. T u d o o que sabia é que no inicio da
talha e n c o n tra u m a o r d e m p e r fe ita m e s m o na b o c a d e u m jo v e m ação balas de canhão e granadas abateram-se sobre seus homens

c o m o N ic o la u R o s t o v , q u e “ n ã o teria m e n t id o c o n s c ie n te m e n te dizim ando um bom número deles e que em seguida alguém

p o r nada n o m u n d o ” : gritara: “ A cavalaria!” Os nossos começaram a atirar. [...] O


príncipe Bagration fez um sinal com a cabeça com o para dizer
Ele tinha a intenção, ao com eçar seu relato, de dizer as coisas que tudo se passava exatamente com o ele desejava e previra.
tais com o se tinham passado, mas involuntariamente, imper-
ceptivelmente, acabou na mentira. Se tivesse se contentado em Enfim , é a v ez dos historiadores, eles também incapazes de
preencher o hiato entre realidade e narração. D e qualquer es­
cola” que sejam, estão convencidos de possuírem uma ciência,
N o que concerne à descrição do cam po dc batalha e, em particular, ao relevo dado ao imponderável
e ao incalculável. Paul B oyer ( C h e z T o b to i. E n tretien s à la sn à ia P o h a n a , Hans, Institut d Études mas não com preen d em na realidade mais que uma parte ínfima
S lava, 1950) recordou a dívida de To lstoi para co m Stendhal, enqu anto A lbert Sorel ( “ Tolstoi
dos fatos fundamentais do passado dos povos (0,01% em média,
- histonen” . 1888. in Lectures historiques, Pans. Plon, 1894) e A d o lfo O m o d e o (U n reazioiurio: il
conte Joseph de M aistrc, Ban. Laterza, 1939) sublinharam a influência das célebres Soiries de Sainl-
Petenboun; de Joseph de Maistre. Para uma análise aprofundada das raízes intelectuais da visão
to lito u iij da históna. cf. Isaiah Berlin, Les Pcnseurs russes (1953), traduzido d o inglês por Dana J M .b v r o l.1 . I.p .1 2 5 .

O livie r, Pans, A lbin M ich el. 1984. /fcij


Léon Tolstoi, L a Citerre et la P a ix, op. cit., livro 1, t. I, p. 272. ll»TO I. I I. p 2S4

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O PEQUENO X - D* BIOGRAFIA A HISTÓRIA A HISTÓRIA INFINITA

ironiza T o ls to i).560 P o r um lado, porque se contentam em estudaras “ a vida de alguns personagens não abarca a vida dos povos, pois o
manifestações do poder, negligenciando os verdadeiros problemas laço entre esses personagens e os povos não foi encontrado” .562 E
aqueles que con cem em à causalidade histórica (qual é a causa dos conta-o, ainda uma vez, através da expenência de Pedro B ezu kov.
acontecimentos, qual é a força que m o v e os exércitos, qual é aquela Pedro é um espectador excepcional: deseja verdadeiramente c o m ­
que decide a sorte de uma batalha, etc.?). P o r outro, porque acabam preender o que se passa e sua alta estatura lhe perm ite perceber sem
sempre por confinar a nqueza da vida social atrás de similitudes vagas esforço, durante a retirada dos franceses, o co m b o io de mulheres
e indefinidas. R em etem -se a um único p on to de vista, co m o Berg maquiladas, c o m vestidos coloridos, que suscita a curiosidade dos
e sua mulher que v ive m na vã ilusão de que seu lar é representativo outros prisioneiros. P orém , ao chegar a B oron din o, é em vão que
de todos os outros: ele, “ju lgan do todas as mulheres a partir da sua, busca um lugar de on de pudesse abarcar com o olhar toda a ba­
estava con ven cido de que eram todas fracas e tolas. Vera, julgando talha. Escala até um lugar alto que deveria lhe garantir uma visão
a partir de seu m ando e generalizando sua experiência, considerava excepcional, mas não adianta:
que todos os homens acreditavam-se os únicos razoáveis quando em
T u d o o que Pedro via, tanto à direita quanto à esquerda, era
verdade não com preendiam nada e eram egoístas e orgulhosos” .561
tão vago que sua imaginação permanecia insatisfeita. Em lugar
do cam po de batalha que esperava ver, estavam campos, pra­
VI
darias, tropas, florestas, fumaças de bivaques, aldeias, mamilòes,
riachos e, por mais que se aplicasse, não chegava a ver onde
Mas os historiadores não são os únicos culpados. N o relato do se encontrava, nessa paisagem viva, a posição e sequer podia
campo de batalha, T olstoi não conta apenas a infidelidade da m em ó­ distinguir nosso exército do do in im igo.553
ria — inevitável, pois o espírito tende a racionalizar e a formalizar as
lembranças. Evocando o núm ero in fin ito de causas que alimentam Sob o fo g o incessante dos fuzis e dos canhões, jamais se vê
e regulam a história, ele se choca c o m os limites do conhecim ento. mais do que um fragm ento restrito, ora apenas os russos, ora apenas
Partilha, ele também, o dilema b iográfico que atormentava Carlyle: os franceses, ora os soldados da infantaria, ora os da cavalaria que
se a vida social é uma obra com um , o produ to de uma multidão “ surgiam, caíam, atiravam, se empurravam, sem saber ao certo o
de ações humanas, deveríamos, então, para com preendê-la em sua que deviam fazer, gritavam e refluíam ” .564 Pedro com preende que
íntegra, poder ver, escutar, gravar, m em orizar um núm ero inima­ lhe é im possível reunir todos os cacos da realidade e ainda mais
ginável de gestos e de pensamentos. O que equivale a dizer que se recom por a significação de cada um deles, porque o acontecimento
trata de uma empresa vã: o passado perm anecerá sempre inacessível, deriva dos fatos, dos momentos, de uma infinidade de condições di­
ninguém jamais poderá descrever cada um de seus ingredientes em ferentes: “ Ela [a batalha] só apareceu em sua unidade quando, estando
sua essência específica e em todas as suas dimensões. terminada, pertencia ao passado” .565 O príncipe André, que pudera
C o m o vim os mais acima, C arlyle conseguia escapar a esse pe­ ver o h orizon te ilim itado de Austerlitz, chega a mesma conclusão
noso sentimento de impotência graças à figura do herói, considerado no m o m en to exato de m orrer: m esm o no artigo da morte, resta
com o o foco irradiador miraculoso em que se cristaliza toda uma sempre algo de unilateral, de pessoal, de abstrato, uma impotência
época. T olstoi não partilha dessa ilusão. N o e p ílo g o , escreve que de perceber a realidade em sua totalidade.

Tolstoi ataca especialmente o positivism o m etafisico de C o m te e de H en ry Buckle, as concepções Ib id ., livro IV , t. II, p. 719.
materialistas de N ik ola i T c h cm ych evski e de D in u tn Pisarev, e o positivism o evoiucionista de 563 Ib id ., livro III, t. II, p. 197.
Herbert Spencer.
164 Ib id ., livro III, t. II, p. 243.
Léon Tolstoi, L a G uerre el la P a ix, op. cit., livro II, t. I, p. 559.
565 Ib id ., livro IV , t. II, p. 463.

197
O PEQUENO X - D* BIOGRAFIA A HISTÓRIA
A HISTÓRIA INFINITA

Da mesma forma que nenhum h om em é capaz de determinar o


Esse ceticismo se tinge, aqui e ali, de fatalismo: “ Quanto mais nos
sentimento do p o v o ninguém pod e interpretar a sign ifica çã o geral
esforçamos para explicar racionalmente esses fenómenos históricos,
de uma epoca. Pela boa razão de que não há significação geral É
mais eles nos aparecem desprovidos de sentido e incompreensíveis” .569
uma abstraçao „ n|izada e fo ,a d a justam ente p o r aqueles que 3f
Então, o h om em parece subordinado a uma força que o ultrapassa e
escravos de seu .nteresse paracular. P o r homens vis e pouco c o „ S
que ele não poderá jamais conhecer nem controlar: a Necessidade.
ve,s co m o o conde R ostoptch ine. que, após ter ordenado injusta
Abandonando seus bens para fugir da cidade consumida pelas chamas,
e inutilm ente a execução d o filh o d o m ercador Veres,chagu.ne *
justifica alegando o m o n vo , p ou co original, d o bem público: ’ os moscovitas partem cada um para seu lado, preocupados com seus
interesses pessoais, e no entanto, com o um único homem, concorrem
Desde que o mundo «este e que os homens se emremaom para produzir um único e form idável resultado: esse “ acontecimento
jamais alguem com eteu um cn m c contra seu semelhante sem
grandioso que permanecerá para sempre a mais alta glória do p ovo
recorrer pensamento tranquihzante { } Q
russo ,57t) Pode-se dizer o m esm o da campanha da Rússia inteira. Os
esta tom ado pela paixão .gnora sempre o bem dos outros mas
homens de 1812, cerca de 800.000 franceses, comandados pelo melhor
o hom em que com ete um cn m e sabe sempre com certeza em
capitão do m undo, diante de 400.000 russos sem experiência - são
que consiste esse bem. E Rostoptchine também o sabia agora.5*
apresentados c o m o os instrumentos involuntários da História, cum­
prindo uma tarefa da qual tudo ignoram, mas necessária à realização
a™ ^ 3^ her° ÍCa’ ParCCe n5° s u b s i s t i r do que
a via do ceticismo, aquele mesmo que aperta o príncipe Bolkonski de fins históricos da humanidade em geral:
durante o conselho de guena de Dnssa, quando se pergunta
Todas essas causas, mil milhões delas, coincidiram para culminar
Q u e teona e que ciência pode haver quando se trata de uma naquilo que se produziu. Consequentemente, o acontecimento
nvidade cujas condições e circunstâncias são desconhecidas não se deveu a tal ou tal causa, mas se produziu unicamente
ao podem ser determinadas de antemão, nào mais do que as porque devia se produzir. Renegando seus sentimentos hu­
manos e sua razão humana, esses milhões de homens deviam
num! T T a eSt5° eng3JadaS? [- ] QUC Clênda P °de haver se dirigir de leste a oeste e matar seus semelhantes, exatamente
numa atividade em que, co m o em toda atividade de ordem
pratica, nada pode ser definido, pois tudo depende de inúmeras co m o , vários séculos antes, milhões de homens iam de leste a

condições cuja .mportância e significação serão descobertas oeste matando seus semelhantes.* 1

g u é m ? a b " - ente’ maS ^ m ° m ent0 Prec' samente. nin- N ã o h ou ve plano, nenhum programa, somente “ um jo g o , dos
mais com plicados, de intrigas, de projetos, de desejos dos homens
engajados na guerra que não desconfiavam do que ia acontecer e de
está ao a J c a n c e ^ 3 ^ a COrrelaçao das causas dos fenóm enos não
que ela, a guerra, era a única chance de salvação para a Rússia .i72
aos racionah sr hUmana: CO" tr™ t e aos positivistas e
ninesen no ' ^ p reten dem ’ c o m o os generais Pfull e Ben- O fato de o curso dos acontecim entos ser predeterm inado de
cima não engendra, entretanto, efeito tranquilizador. A o contrá-
n a d f d e ’tudSSUlr ^ ~ “ nada’ nada há de d°
no, parece que T o ls to i experim enta certo prazer punitivo — para
m c o m te e n ^ ° C° m preendo e a « « " d e z a de alguma coisa de
incom preensível mas essencial!” .568 consigo m esm o mais do que para com o leitor — em rebaixar a

'“ Ibid., lavro III, t. II, p . 3 5 2 .


169 Ibid., livro III, t. II. p . 9-10.
* I M . , liv r o III, t, II, p 5 4
570 Ibid., livro III, t. II, p. 282.
“ * ffod., liv r o I . t . 1, p . 387
' Ibid., livro III, t. II, p. 9.

11 Ibid., livro III, t. II, p. 105.

198
199
O PEQUENO X - Da BIOGRAFIA A HISTÓRIA A HISTÓRIA INFINITA

liberdade da vontade humana, em não v e r nela nada além de um as convicções de Stephen Dedalus - retomadas por tantos roman­
resíduo de nossa ignorância, ou de uma ilusão, necessária para cistas e poetas de nossa época (de M ilan Kundera a Izail M etter, de
resistir, para se preservar dessa “ terrível v id a ” .573 E é precisamente Bruce Chatwm a C zeslaw M ilosz) - que vê na história um pesadelo
esse sentim ento raivoso que lhe inspira o fam oso paralelo entre o
a esquecer: para ele, o que se passou nada tem de absurdo, e a odis­
grande h om em e a ovelha engordada para o abatedouro:
seia pessoal de seus personagens é inseparável do drama histórico de
Para um rebanho de ovelhas, a ovelha que o pastor encerra 1812. Ele jamais pretende se livrar do “ catarro do passado” , mas crê,
cada noite num recinto especial - onde ela com e à parte e se ao contrário, que só a história pode ajudar a compreender por que
toma duas vezes mais gorda que as outras - deve parecer um o que acontece se passa de certa maneira e não de outra: “ Só a soma
gênio. E o fato de que, todas as noites, essa mesma ovelha nào
dos acontecimentos concretos no tem po e no espaço - a totalidade
volte ao cercado com um , mas seja alimentada com aveia num
da experiência real de hom ens e mulheres reais em suas relações uns
recinto especial, e de que essa mesma ovelha, precisamente esta
com os outros, e com um m eio físico real, tridimensional, conhecido
ovelha, cheia de gordura, seja morta para ser comida, esse fato
deve aparecer ao rebanho co m o uma surpreendente conjunção empiricamente —apenas isso conteria a verdade .5l A única coisa que
do gênio com toda uma série de acasos extraordinários. Mas ele receia e que o im ta é a generalidade da maior parte das reconsti­
bastaria que as ovelhas cessassem de acreditar que tudo o que tuições históricas: a história lhe parece insuficientemente precisa.3
lhes acontece nào tem outra razào além da de lhes fazer atin­
Dois com entários, ambos notáveis, aprofundaram essa dolorosa
girem sua meta de ovelhas, [...] e veriam imediatamente que
particularidade de T o ls to i. Para o prim eiro, proposto por Isaiah
tudo o que acontece à ovelha engordada é coerente e lógico.574
Berlin em 1953, o ceticism o de Guerra e P a z consiste essencialmente
numa forma extrem a, sem apelo, de determinismo histórico.
VII
A tese principal é a seguinte: existe uma lei natural que deter­
O ceticismo de Tolstoi, resultado de sua arte “ de colocar questões mina a vida dos seres humanos não menos do que aquela da
exageradamente simples, mas fundamentais” ,575 tem uma incidência natureza; mas os homens, incapazes de enfrentar esse processo
fulgurante. Mas apresenta uma particularidade essencial: é proporcio­ inexorável, procuram representá-lo com o uma sucessão de livres
nal a seu apego à história. P or certo, acontece ao escritor de exprimir escolhas, e fixar a responsabilidade por aquilo que ocorTe sobre

um sentimento de distância em relação aos acontecimentos históricos, personagens a quem atribuem virtudes ou vícios heroicos, e a

e pensar que a vida, entretanto, com suas preocupações essenciais que chamam “ grandes homens .579

ga à saúde, à doença, ao trabalho, ao repouso, com tudo o que


O ceticismo ético, que considera que tudo é igual e nega a existência
ela comporta - pensamento, ciência, poesia, música, amor, amizade, de fatos insignificantes e de fatos importantes, vai de par com a im
o o, paixão em suma, a verdadeira vida humana transcorria com o possibilidade de se contentar com respostas fáceis ou escapatórias,
sempre alheia e independentemente das reformas políticas e das rela­ uma im possibilidade que faz de T o ls to i uma espécie de nii ista
ções, mais ou menos amigáveis, com N apoleão Bonaparte” .57'’ Mas
esse nao é mais do que um pensamento lateral. T olstoi não partilha
Isaiah Berlin, O í Pensadores russos, op. cit., p. 64.
" C om mais de um século de distância, Izrail M etter - L i C w h f w ir m r C o m ' Rn1' ^ d s

5,3 Ibid., livro II, t. I. p. 687. do russo por D em s Auch.er, Pans, Liana Lev,. 1*92. P- 15 " « « v c » ‘ E« ude'
5 * Ibtd., livro IV . t. II, p. 641-642. manuais todos os elem entos que constituíam minJw vicb. i v l * os histona ores ten
fatos da realidade c o m uma rede de malhas grandes dema.s; |...| toda imnha v «ia passa através,
Isaiah Berlin, L es Penseurs russes, op cit., p. 298.
sempre m e en con tro em m e io à peixarada miúda, sem interesse para
L ío n Tolstoi, L a G uerre et la P a ix, op. ar., livro II. t. I, p. 536.
Isaiah Berlin, L es Penseurs russes, op. cit., p. 77-

200 201
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia A h is tó r ia
A HISTÓRIA INFINITA

rabugento: “ O único grupo de que ele poderia fazer parte seria o Mas T o ls to i explica, p or outro lado, que não existem circuns­
grupo subversivo dos questionadores, a quem nenhuma resposta foi tâncias materiais capazes de garantir ou im pedir a liberdade inata
dada, pelo menos nenhuma que eles mesmos, ou aqueles que os com­ do indivíduo. Para ele, a liberdade não é uma condição, mas uma
preendem, poderiam cogitar aceitar” .58" Prestando atenção sobretudo experiência interior. É o que P ed ro com preende ao lo n go de suas
a seus acentos impiedosamente destruidores, Berlin vê em Tolstoi três últimas semanas de prisão, quando descobre “ que não há no
“ o mais trágico de todos os grandes autores, um velh o desesperado mundo nada de apavorante” :
fora do alcance de todo o socorro humano, errando, cegado por si
Ele aprendera que, assim co m o não existe no mundo situação
mesmo, em C o lo n o ” .581 Reencontram os a figura de Édipo em Nicola
em que o h om em seja feliz e inteiramente livre, tampouco existe
Chiaromonte, o autor do segundo ensaio, servindo para sublinhar a
situação em que ele seja totalmente infeliz e privado de liber­
redescoberta, em Tolstoi, do destino e da Nêm esis: “ Quanto mais
dade. Aprendera que existe um limite para os sofrimentos e um
o homem se engaja no tem po e no turbilhão das ações históricas, lim ite para a liberdade e que esse lim ite está muito p róxim o.584
mais, do própno fundo de sua liberdade, em erge sua dependência
em relação ao acaso e a uma necessidade incalculável” .582 E essa descoberta é tão poderosa que, uma vez libertado pelo bando
de Denissov, P ed ro sente a liberdade exterior co m o alguma coisa
Trata-se, já o dissemos, de dois com entários fundamentais.
Parece-me, no entanto, que o ceticism o de G u etrã e p a z deve ser re­ de supérfluo, c o m o um lu x o .585

conduzido a proporções mais justas. E m realidade, T o ls to i não nega Seja com o for, o ceticismo está bem presente e aparece claramen­
a liberdade. Ele diz duas coisas mais simples, e que são parcialmente te sobretudo nos m om entos do romance em que o autor se exprime
contraditórias. D e um lado, afirma que a liberdade não é um estado diretamente (o segundo epílogo e os capítulos mais teóricos). Mas,
absoluto e total, o produto de um in d ivíd u o au tón om o e separado atribuindo-lhe o valor de uma mensagem final, conclusiva, corre-
dos outros, mas que se trata de um estado relativo, a expressão da se o risco de desnaturar o pensamento disseminado que alimenta o
dependência recíproca sobre a qual repousa toda experiência social: conjunto do poem a tolstoiano. M esm o estando intimamente ligados
Se consideramos o h om em fora de suas relações com tudo o que um ao outro, acontece frequentemente que o homem, o autor e o
o cerca, então cada um de seus atos nos aparecerá c o m o livre. Mas romancista vivam uma relação conflituosa ou pouco coerente. Isso e
se percebemos uma só que seja de suas relações com aquilo que o talvez particularmente verdadeiro para Tolstoi, que certamente tem
circunda, se percebemos o m en or de seus laços com o que quer pensamentos de que sente m edo” .586 Ademais, com o sugeriu Berlin,
que seja - o hom em que lhe fala, o liv ro que lê, o trabalho que faz,
mesmo o ar que o en volve, m esm o a luz que cai sobre os objetos à
esgotada por ter aleitado seu filho, que rouba comida, ou o hom em form ado na disciplina, que nia
sua volta - vemos que cada uma dessas circunstâncias tem influência cum prindo ordens) nos aparece menos culpado, isto é, menos livre e mais sujeito à necessi

sobre ele e dirige uma parte de sua atividade. E nos damos conta de Esse elem en to de reflexão será igualm ente retom ado e aprofundado por Musil em O H o m e n

qualidades através d o personagem M oosbru gger.


que, quanto maior o núm ero dessas influências, m en or sua liberdade
M lb id .t livro IV , t. 11, p. 552.
e mais forte a ação que sobre ele exerce a necessidade.583 A única circunstancia externa a que T o lstoi atnbui uma importância em si, que tenha, iire ga
vehnente, uma incidência enquanto tal sobre os seres humanos, é a oposição entre a
cam po: esse é um d o m ín io onde a substância se sobrepõe, encarnada pela figura e
enquanto a cidade, cegada pelos "olh os azuis pálidos da vida social produ~ inevitave me
Ibid . p. 298.
príncipe Vassilitch, que esconde “ uma em oção que é sempre a mesma , e a con
p. 118.
que pronuncia a palavra “ amante” c o m o qualquer outra palavra. Sobre esse dualismo pnm ano.
N ,C 0 b Ch,ar°m o m e . T h e P aradox o f H isto ry, op. a t .. p. 31. representativo da distinção entre bem e mal, cf. G eo rg e Steiner. T o b to y or D ostoevs y n y

Leon Tolstoi, L a G uerre et la P a tx. op d t . , livro IV , t. II, p. 736. Nessa perspectiva, Tolstoi in lhe O ld C riticism , N e w Y o rk , K n opf, 1959, cap. 2.

d d j . Uma VCZ SUas P crP lex|dades em face da noção de c ulpabilidade e de responsabili- M axim e G orki, Rfmíntffrrurs o fT o ts to Y , C h e k h o v a n d A n d reev, Londres, Hogarth I res.,
uai. quando conhecem os as condições d e um delito, o culpado (a mãe esfomeada, por G eo rg e Steiner, T o lsto y or D o sto eu sky, op. cit., p. 251.

202 203
O pequeno x - Da b io g r a f ia A h ist ô s ia A HISTÓRIA INFINITA

ainda que tenha querido a todo preço ser um ouriço, ele não conseguiu sem fazer o mal, sem se atormentar e sem nada desejar” .591 Mas não
se desfazer de seu temperamento de raposa, sempre pronta a capturar consegue: graças à sua tenacidade prática, no espaço de dois anos,
“ a essência de uma vasta gama de experiências e de objetos por aquilo ele distribui um de seus dom ínios de trezentas almas a camponeses
que eles são em si mesmos, sem buscar, nem conscientemente, nem libertos, dim inui os encargos e organiza cursos de alfabetização
inconscientemente, insen-los numa visão interior unitária, imutável para os filhos dos camponeses e de seus empregados. Sua quietude
total, por vezes contraditória e incompleta, p or vezes fanática, mas sem é inicialm ente perturbada p o r uma longa conversa com Pedro,
tampouco buscar excluí-los dela” . F e liz m e n t e , o romancista se rebela que marca o in ício de sua nova existência interior, mesm o se nada
por vezes contra o autor: são então seus personagens que exprimem essa
exteriorm ente deixa supô-lo.592 E m seguida, é assaltado p or uma
parte dele mesmo que o escritor não conhece completamente.588 Nào
necessidade m con trolável de se exprim ir, que se desencadeia após
é por acaso que nenhum deles reflete uma única W eltanschauung, nem
sua primeira visita ao d om ín io de R o s to v , na primavera de 1809.
mesmo aquela do romancista que, ademais, adrmtirá alguns anos mais
tarde: “ Perdi o controle sobre Ana Karenina, ela faz o que quer” .589Por N ão, a vida não está terminada aos trinta e um anos, decidiu subi­
isso, permanece indispensável levar em consideração as partes plena e tamente o príncipe André, definitivamente, irrevogavelmente. N ão
puramente narrativas do texto: ainda que seja quase impossível esgotar basta que eu saiba o que há em mim, é preciso que todo mundo o

a densidade, o entrelaçamento e a com plexidade dos estados de alma saiba, tanto Pedro quanto essa mocinha que queria fugir. E preciso

que nutrem o pensamento de Tolstoi, elas perm item perfurar a tela de que todos me conheçam, que minha existência não transcorra
apenas para mim, que eles não vivam fora de minha vida, mas
ceocismo que cerca suas reflexões explícitas sobre a história.
que esta se reflita na deles e que vivamos todos a mesma vida.
U m a vez apaziguados os m om entos de cólera, durante os quais
prima a lei da fatalidade, abolindo a própria ideia de uma livre A necessidade de agir não é sempre algo que se dá de im p ro vi­
atividade humana, T olsto i renuncia a anular as escolhas, cessa de so, unicamente desencadeada p or uma ilusão — essa necessidade do
afirmar que não há nenhuma diferença entre o fútil e o importante, hom em de se imaginar, a tod o custo, livre e que é sempre frustrada
para dar a palavra à necessidade de escolher, de agir, de intervir. Seu no ep ílogo. Ela nasce igualmente da possibilidade realista de trans­
com portam ento lembra aquele do príncipe B olkonski quando esse formar a própria vida, de reconhecer a existência dos outros em
busca em vão se con ven cer de que tudo é inútil e insignificante. si m esm o e de si m esm o nos outros. P o r vezes, m esm o, ela nasce
Mas seu instinto mantêm um discurso totalm ente diverso. Seja da possibilidade de sim plesm ente influenciar os acontecimentos.
em sua juventude, quando, para salvar a m ulher do m édico do 7o “ E cada um, d o general ao soldado, tinha consciência de não ser
regim ento de caçadores, aceita cobrir-se de “ ridículo, o que temia mais do que um grão de areia insignificante nesse mar humano, mas
acima de tudo ,5' O u ainda na idade em que o entusiasmo juvenil experimentava ao mesm o tem po uma sensação de potência com o
parece definitivam ente com prom etid o, quando, após a campanha parte desse tod o form idável” .594 Já falamos da lenta e substancial
de Austerlitz e após ter encontrado Lisa já m oribunda, decide não metamorfose interior de Pedro (precisemos apenas que, uma vez
mais servir o exército e v ive r “ só para si” na grande propriedade de terminada a guerra, ele não renuncia a se erguer contra o governo).
Bogutcharovo, sem empreender mais nada e apenas “ acabar sua vida Nicolau R o s to v segue uma via mais simples, talvez mais superficial,
mas, sob certos aspectos, tão eficaz quanto a de Pedro. Inicialmente
Isaiah Berlin, Les Penseurs russes, op. a t ., p. 5 7 .

'“ G eo rge Steiner, T oU toy o , D o sto evsky, op. rít., cap. 3 .


s” Ib id ., liv ro II. t. I. p. 539.
Claudia Magns. " I I mistero delle due scntture", II C o m e r e delia seta, 2 de abril de 2000. A esse
respeito, Henry James observou que os pereonagens de Tolstoi estão impregnados de "uma maravilhosa ,u Ib id ., livro II, t. I, p. 502.

massa de v,da . C f. também Milan Kundera, Les Testam ents trahis, Pans, Galiinurd, 1993. p. 22. m lb id ., livro II, t. I, p. 543.

Leon Tolstoi, L a G uerre et la P a ix, op. cit., livro I, t. I, p. 234. w Ib id ., livro I, t. I, p. 32H

205
O PEQUENO * - D* BIOGRAFIA A HISTÓRIA
A HISTÓRIA INFINITA

aterrorizado pelas possibilidades de escolha que deve enfrentar, decide


acrimonioso, apodíctico, aparentemente sem apelo, e, no entanto,
se refugiar no seio do quadro estreito e imutável do Exército'. Lá ao
profundamente im pregnado de um desejo de desafio. Ele pede para
menos, ele espera estar ao abngo das turbulências da vida e se tomar
ser desmentido: p or si m esm o. Querem os dizer que nesse desprezo
um hom em excelente. Esse desígnio, que lhe parecia tão árduo no
não entrava nem o personagem, nem o romancista: ele conduz o
m eio mundano, toma-se, no seio do regim ento, bastante realizável-
primeiro a abandonar o estado-m aior para conduzir pessoalmente
Essa incoerência da vida livre em que ele nào encontrava seu um batalhão, e o segundo a propor outra maneira de pensar a históna.
lugar e se enganava em suas escolhas, não existia mais aqui.
C o m grande frequência, T o lsto i cessa de agitar o espectro da
Nada mais de Sonia com quem era preciso ou nào era preciso
não exaustividade da históna. M ais do que se submeter a ela, tenta
se explicar. N ã o era mais possível ir ou não ir aqui ou acolá-
não se dispunha mais destas vinte e quatro horas que se podiam controlá-la. A m eia v o z, através da sim ples narração, ele reage ao
utilizar de tantas maneiras diferentes; nada mais dessa multidão dilema b iográfico, que partilha com Carlyle, de uma maneira que
de pessoas entre as quais nenhuma é verdadeiram ente próxima não é nenhum p ou co destruidora ou resignada. C om o? Graças a três
nem completamente estranha; nada mais de relações financeiras pnncípios narrativos particularmente persistentes: personalizando
confusas e embaraçadas com o velh o conde; nenhuma chamada
a ação, m ultiplicando os pontos de vista, e dando livre curso ao
à terrível perda no jo g o ... aqui no regim ento, tudo era claro e
m ovim en to con tín u o dos indivíduos e das situações.
simples. O mundo inteiro se dividia em duas partes distintas:
uma. nosso regim ento de Pavlogrado, a outra, todo o resto. E T od o s os personagens de Guerra e p a z estão profundamente
esse resto nào nos importa de m o d o algum .595 marcados p or suas experiências sociais, mas raros são os raciocínios
impessoais fundados sobre as massas, as classes, as gerações e assim por
E, no entanto, bastará que ele encontre a força de reconhecer seu
diante (com exceção da dualidade cidade-campo) ou os personagens
amor pela pnncesa Maria, para descobrir que ele p o d e fa z e r , e será
representativos, ordinários, normais. Cada personagem tem um nome
justamente ele, o te m o N ik olu k a, am edrontado pela desordem
e uma história: m esm o os personagens aparentemente insignificantes
o mundo livre, que tratará o cam ponês não apenas com o um
(com o o coch eiro E fim , o empregado T ik on , a ama Savichna e o
instrumento, mas com o um fim em si e um ju iz : “ N o dom ínio
palafreneiro P ro k o fi), m esm o os mais medíocres, com o B eg e Vera,
mais importante para ele, não estava o azoto e o o x ig é n io do solo
sempre em rivalidade com os outros, nunca são banais e têm sempre
e o ar nem tal arado aperfeiçoado ou tal adubo especial, mas [...]
alguma coisa de pessoal. C o m o diz Tolstoi, têm uma personalidade
o trabalhador, o camponês” .s%
legítima. Poderíam os dizer — parafraseando o início de A n a K areni-
na — que cada um deles é m edíocre “ a seu m o d o ” . Nesse sentido, o
VIII
determinismo de T olstoi nada tem a ver com o determinismo natu­
Tolstoi não apenas com bate o p ró p rio ceticism o ético, mas ralista, que “ esmaga a vida, substitui a ação humana por mecanismos
a por to os os meios violar a inacessibilidade d o passado. Seu de sentido ú n ico” .597 Sem dúvida, esse esforço de personalização, tão
prezo pe os historiadores (c o m o Thiers ou, p io r ainda, Henry tenaz e intenso, dá a todos os aspectos da narração uma dimensão
e, que toma suas categorias científicas p o r fatos reais) é da antropomórfica. Contrariamente a Flaubert, que quer descrever o
ma natureza que aquele que A n d ré experim enta pelos milita- mundo da natureza e os objetos materiais com uma precisão absoluta,
e arc ay de T o lly a Pfull e Benningsen). É um sentimento Tolstoi utiliza as árvores, os corpos celestes, os gorros, para descrever
as em oções dos seres humanos. C o m o observou, justamente, G eor­
ge Steiner, essa escolha, discutível sob certos aspectos, permite-lhe
livro [I, t. I, p. 509.

Levine de A n a K a m m a ’1 ^ ^ ^ N‘C°laU“ ra levada adlante Pel° personagem Conscantino


Jean-Paul Sartrc, Q u*esl-ce q u e la littérature?, Paris, Galliinard, 1948, p. 163.

206 207
O PEQUENO X - Da b io g r a f ia A h is tó r ia
A HISTÓRIA INFINITA

om per com a tradição realista um pou co mecânica, que dá ao leitor de uma noite que vê o jo v e m Nikoluchka Bolkonski presa de pesadelos.
uma sensação de coaçâo e de inumanidade: o p ivô de seus escritos Como tudo isso terminará? Essa solução narrativa não exprime unica­
jamais deixa de ser o ser humano, com seus erros e suas dores.59"
mente a pressão da enação, com o se “ esse êxtase oculto, que nasce do fàto
Provido de um sobrenome, de um nom e e de um pouco de de dar forma à vida através da língua, ainda não se tivesse esgotado” .601
históna, cada personagem pensa, olha e sente as coisas a seu modo É um ponto a que já fizem os alusão, a propósito da marcha de flanco
U m hom em não tem um determinado aspecto, é sempre outra pessoa para além de Krasnaia Pakra, aquela que deveria ter sido fatal para o
que nota que ele tem esse aspecto: as mãos de Karenin são grosseiras e Exército russo e que conduziu, ao contráno, as tropas francesas à sua
ossudas quando Ana as olha e são brancas e suaves através do olhar de perdição. Isso se toma ainda mais evidente se, por um instante, tentamos
Lidi Ivanovna.599 O mesmo se dá com os acontecimentos históricos. O escutar mentalmente o relato da ruptura entre André e Natacha. Se não
encontro dos dois imperadores em Tilsitt não tem a mesma significação tivesse havido em Natacha um não sei quê de excessivo que a tomava
física e moral para aqueles que se encontram no Quartel-General e infeliz, e se André, uma vez longe dela, não lhe tivesse dado a impres­
aqueles que estão no Exército: enquanto Bons Drubetskoi não con­ são de viver uma verdadeira vida, de ver novos países e novas pessoas
sidera mais Napoleão com o um inim igo e sim com o um soberano e que lhe interessavam... se o príncipe Bolkonski, esse velho originalão,
organiza alegres jantares com os ajudantes de ordens franceses, Nicolàu tivesse aceitado que seu filh o quisesse mudar de vida, introduzindo
R ostov expenmenta sempre o mesmo sentimento mesclado de ódio, nela algo de n ovo, quando, para ele, a vida já estava terminada , se a
de desprezo e de medo. Longe de se irritar com esse caráter irredutí­ princesa Maria não tivesse sido tão ciumenta, se D o lo k o v não tivesse
vel, Tolstoi faz dele um ponto de interesse para dar a palavra à imensa se divertido manobrando a vontade de Anatole, se a mãe de Natacha
diversidade dos espíntos humanos, que faz com que uma verdade não não tivesse ficado com o pequeno Pétia nos campos de Otradnoie...
se apresente jamais do mesmo m odo a duas pessoas.600 Reforçando Mas também se, se, se... talvez, então, Natacha não tivesse permanecido
uma forma literária clássica, aquela das duplas e das triplas intngas, ele tanto tempo tomada dessa tristeza que a fazia pensar que nunca mais
cultiva, mais do qualquer outro, a coexistência das imagens diferentes acontecena nada, nada, que tudo o que havia de belo já acontecera , e
o mundo. Sua prosa ignora a unidade, e suas explicações fogem da ela teria podido sentir também entre ela e Anatole a força dos obstáculos
generalização: a única coisa que une verdadeiramente todos seus per­ morais que experimentava em relação aos outros homens. A o longo de
sonagens e a rebelião do múltiplo contra o uniforme. todas essas passagens, o efeito de eco sugerindo que cada um deles evoca
ainda outros, T olstoi conta o conjunto de circunstâncias infelizes que
Enfim, Tolstoi nào se contenta em contar os diferentes pontos de
deixam Natacha à mercê de Anatole com o um movim ento absoluto.
vista, ele faz com que se mexam: o múltiplo de Guerra e P a z nunca é
Somos mergulhados numa melodia que continua a ressoar em nossos
movei. N ã o é, portanto, surpreendente que a trama não tenha nem
ouvidos m uito tem po após a execução da peça.
inicio nem fim bem estabelecido: somos imediatamente projetados, sem
pream ulo nem apresentações, no calor de uma conversação em casa de T o d o o relato está impregnado de uma esperança, embora não

a avlovna, onde a alta sociedade de São Petersburgo (onze de seus seja pensável reconstituir todos os gestos, as ações, os pensamentos
epresentantes presentes, mais vinte e três citados) comenta a execução que formaram um acontecim ento, talvez seja ao menos possive

o uque de d Enghien, para sermos em seguida dispensados ao longo evocar as perdas, as discordâncias, as incoerências, as possi 11
não realizadas. Através de todos esses se, Tolstoi conta tam em
que não teve seguimento, o que foi e se interrompeu. D iz no q
G eo rg e Steiner, T o h to y or Dostoevsky, op. d t.. cap. 2 .
o acontecim ento só estabelece sua necessidade após ter se pro u ,
1981 t I p ^ 3 0 3 J o u m a u .x (1976), traduzido d o alem ão p ° r Ph ilippe Jaccottet, É ditionsdu Seuil,

“ °L e o n Tolstoi, L> G uerre et la P m x , op. d t., livro II, t. I, p 5 5 9 .


**" G eo rg e Steiner, T o ls to y or D o sto evsky, op. cit., p- 15.

209
O PEQUENO X - Da BIOGRAFIA à HISTÓRIA

mas que, 110 m om ento da realização e do encadeamento das ações, CAPÍTULO VII
existiam outros possíveis que poderiam se realizar: eles foram apagados,
eliminados do resultado final, mas isso não significa que tenham sido
menos reais. O u tro exem plo - feliz, desta vez - se desenrola pouco
antes da fuga de Moscou, quando um oficial se apresenta a R ostov para
Sobre os ombros dos gigantes
lhe pedir algumas charretes para os feridos. O conde dá inicialmente
seu assentimento, depois, “ com o ele falava sempre quando se tratava
de questões de dinheiro” , fala disso timidamente com a condessa, que
impede seu marido de dissipar “ tudo o que temos, os bens das crianças” ,
até que Natacha faça sua aparição. O rosto decom posto pela cólera,
ela acusa sua mãe de ter ordenado uma ignom ínia e convence seu
pai a ceder as charretes para o transporte dos feridos. N o espaço de
alguns instantes, o que parecia impossível se tom a bastante evidente:
“ Longe de lhes parecer estranho agora, parecia-lhes, ao contrário, que i
não se poderia agir de outra forma; do m esm o m o d o que, quinze
minutos antes, ninguém tinha achado estranho que se abandonassem Carlyle, os historiadores alemães D ilth ey e Burckardt, Tolstoi.

os feridos para transportar os bens, todos considerando que as coisas Esse encadeam ento de nomes não é apenas cron ológico: cada um

não podenam se dar de outra form a” .602 desses autores colaborou para a evolução de minha démarche. Mas,
com o costuma acontecer quando se dialoga, não é simples fazer um
N o coração da narração, T olstoi deixa de lado seus estados de
balanço e discernir o que p rovém de um ou do outro. Essa d ifi­
alma céticos e propõe outra maneira de pensar a históna, 11a qual os
culdade é ainda mais marcada visto que minha interrogação inicial
vazios são tão essenciais quanto os cheios. E vocando os pontos de di­
sobre o valor heurístico da biografia gradualmente se ampliou e se
vergência e as possibilidades inexprimidas da vida de Pedro, de André
transformou, para se abnr sobre uma série de questões concernentes
e de Natacha, e de todas as outras “ quantidades infinitesimais” que
às possibilidades e aos limites do con h ecim en to histórico. C om ecei
participaram da campanha da Rússia, ele sugere inverter a perspectiva
este livro tom ando a contrapé a ideia de que a biografia era um
e ver nos limites da históna, em seu caráter inesgotável, uma de suas
n ovo problem a historiográfico. P ou co a pouco, com preendi que
qualidades fundamentais. Nessa perspectiva, mais do que reconstituir
não se tratava apenas de reabilitar um debate, de reparar um erro
as mil circunstâncias, pequenas, mais ou menos banais, que foijaram
historiográfico, mas que m e defrontava com um conjunto de argu­
o acontecimento, toma-se importante fazer com preender que elas
mentos suscetíveis de d evo lver à História um pouco de sua qualidade
são mil, pequenas, mais ou menos banais e que bastava faltar uma
épica. P o r isso m e pareceu im portante concluir esse percurso com
para que um fato não se produzisse. Em suma, o que conta, é parar um vaivém entre o passado e o presente historiográficos. Trata-se
de dissimular o não finito para tentar sugeri-lo. aí, bem o sei, de um exercício perigoso p or causa dos inevitáveis
nscos de anacronismo que o acompanham, mas espero que a reflexão
Léon Tolstoi, L a G uerre el la P aix, op. a t .. livro III, t. II. p. 318. Para considerações extremamente sobre o pequeno x que o século X I X nos propôs possa nos ajudar
interessantes sobre a lei da retrospecção que nos condu z a representar o passado c o m o unia pre­
a dissipar alguns dos equívocos que embaralham a discussão atual
paração em vista de certo fàto sucedido, verjacqu es Bouveresse, L 'H o m m e probable. Robert M u sil,
le hasard, la m o yen n e el 1'escargot de 1'histoire. Paris, Édm ons de l ’ Éclat, 1993. sobre a história biográfica.

210
O pequeno x - Da b o g u a f ia A h ist ô s ia S obre o s o m b ío s d o s g ig a n t e s

II grandes m odelos de interpretação, marxista e estruturalista entre


outros, sugenu a numerosos historiadores interrogarem-se sobre a
Durante a segunda metade do século X X , quando o projeto noção de in divíd u o: em 1987, Bernard G uenée considera que o
biográfico parecia definitivam ente abandonado, ele foi retomado estudo das estruturas dá espaço demais ao que deriva da necessidade,
por alguns autores difíceis de classificar (c o m o R ich ard Hoggart, e, alguns anos mais tarde, Jacques Le G o ff esclarece que “ a biografia
Oscar Lewis ou D anilo M on tald i), todos desejosos de dar a palavra [lhe] parece em parte liberada dos bloqueios onde os falsos pro­
àqueles que a Históna com H maiúsculo abandonara.603 E é precisa­ blemas a mantinham. Ela p od e m esm o se tom ar um observatóno
mente nessa óptica, tão distante da abordagem tradicional da história p n vilegiad o” .606 D ecepcion ad os e insatisfeitos com as categorias
política, que se dissipou p ou co a p ou co a desconfiança para com a abrangentes de classe social ou de mentalidade, que reduzem o sen­
dimensão individual. Esteja ela ligada à m em ória dos marginais, dos tido das ações humanas ao efeito de forças económicas, sociais ou
vencidos e dos perdedores, ou ainda daqueles que, mais simples­ culturais globais, m esm o os historiadores sociais resolveram, então,
mente, não contaram (na esteira da históna oral, dos estudos sobre refletir sobre as trajetórias pessoais.607 Em suma, no d ec o n e r desses
a cultura popular e da história das mulheres61’4), a reflexão biográfica últimos anos, a dimensão individual se tornou uma questão central,
progressivamente retom ou em toda historiografia.605 A crise dos e a biografia, de certa form a, se dem ocratizou: a aposta hoje não é
mais o grande h om em (noção descartada, e p or vezes mesmo tida
por pejorativa), mas o h om em qualquer.
MJ C f R ,c h ‘“rd U C uU ure áu PmWTe É tu d e sur le slyle de vie des classes populaires en Anglelerre
(1961), traduzido do inglês por Françoise e Jean-Claude Garcia e jea n -C la u d e Passeron, Pans, As novas experiên cias historiográficas m e parecem ter se
Editions de M m uit, 1970; Oscar Lcwis, L es E n fa n ls de S a n c h e z. A u io b i^ r a p h ie d 'u n e fam ille m exicaw c
caractenzado p or duas tendências contraditórias. D e um lado, a
(1961). traduzido d o i n g l « por C élin e Zim s. Pans, Gallimard, 1978; D an.lo M ontaldi, A utobiogm fie
alia leggera, T o n n o , Einauldi. 1961; D anilo M ontaldi, m U a n t i p o h tici d, base, T o n n o , E.naudi, biografia foi investida de esperanças desmesuradas, que iam muito
1961. C f. igualmente os trabalhos de R o c c o Scotellaro. C o n la d .n i del S u d . Ban. Laterza, 1954. além de um trabalho de com preensão científica. O sociólogo D a­
C f., entre outros, Raphael Samuel (d ir ), E a sl E n d U n d e r u w ld : C h a p lers in lhe U /e o / A n l i u t H ard-
niel Bertaux contou m uito bem com o, em 1968, o relato de vida
•ng, Londres-Boston, R o u tled ge & Kegan Paul, 1981; Paul Th om p so n , T h e Votces o f lhe Pasl.
O x fo r d - N e w Y ork , O x fo r d U m versity Press, 1978; She.la R o w b o th a m , H id d c n jr o m H istory: 3 3 0 lhe aparecera c o m o uma ferramenta de conhecim ento alternativa,
e a n ó / H o m e n 's O ppression a n d the F ighl against it, Londres, Plu to Press, 1973;Jerem y Seabrook,
antiautoritária, do passado, mas também com o um instrumento de
W o r k .n g C la s s C h ildhood. Londres, G ollancz, 1982; Lu.sa Passenm, T o n n o operaia e fascismo: una
slo n a o ra le. R o m a , Laterza, 1984; Julia S w in d e lk I t a IV ritm g a n d H orking W o m e n : V , e O ther luta para transfonnar a sociedade no presente.608 N o outro extrem o
side o f Silence, C am bndge, Po lity Press, 1985.

C f M ichel Manan, “ fh is to ir e saisie par la biographie", E sp n i. 1986, 117-118, p. 125-131; François


, ari biographique re une vie, Pans, L j D écouverte, 2(K)5. Numerosas revistas consagraram Bem ard G u enée, E n tre 1'Église et l'É ta t. Q u a tre vies de prélats fr a n g is à la J in du M o y e n A g e , Paris,

emente um número m onográfico à biografia e à autobiografia C f , por ordem cronológica: N e w Gnllimard, 1987, p. 14; Jacques Le G off, S a in t Louis, Pans, Gallimard, 1996, p. 15 N o que tange à
redescoberta da biografia, cf., entre outros, Natalie Zem on Davis, TJie R e tu m of Xlartin Guerre, Pans,
S d f" C ° nfr0nt-*tl0n and Social V isio n ” , 1977, IX . I, N o u ve lle R e v u e de psychanalise.
, ; C aluers inlem atioiiaux de sociotogie, "H m o ire s de vie et vie sociale” , 198, X L I X , 2; Revue R . Laffont, 1982; Jacques Louis Ménétra, Journal de m a we. Jacques-Louis Alétiétra, compagnon vitner au
lífsiècle, Ed. por Daniel R o ch e, Paris, Montalba, 1982; Robert A. Rosenstone, Xfirror in the Sfm ne:
v' e • 1983, 191; S igm a, “ V en dere le vite: la biografia letteraria",
Am erican Encounters u ith XlcijiJafuin, Cam bndge (Mass.), Harvard Umversity Press, 1998; Alam Corbin,
, . Le biographique , 1985, 63; Sources, “ Problèm es et méthodes de la
biographie . A c t « du CoU oque, Pans, Sorbonne 1985, 3-4; D iogènc, “ La biographie” , 1987, 139; L e M o n d e retrouvé de Liiub-François Pinagot, sur les traces d ’un iticonnu, 1 7 9 8 -1 8 7 6 , Paris, Flammanon,
1998; Donna M erw ick. D ea th o f a N otar: C onquest and C hange in Colonial N e w Ywfc, Ithaca (N .Y .),
„ f ' - ' ' R eflcct,0 n ' on th< S e lf\ 1987; R e v u e fr a n ç a s de psychanahse, “ Des biograph.es,
l 8 o, i l . t n q u ê t e , Biographie et cycle de v ie ” , 1989, 5; C aluers de philosophie, “ Biograph.es. La vie C om ell U n iven ity Press, 1999; Phihppe Artières e D om inique Kalifh, Vidal, le tueur des fbnm es. L h e

com m e e e se dit... , 1990, 10; Rn/ue des scierues hum aines, “ Le biographique” , 1991, 224; Politix. biographie soante. Paris, Pem n, 2(M)1; Lucette Valensi, Mardochée Naggiar, Pans, Stock, 2(K)8.

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I 1CS ' 2, R n u e d A lln n a g iw el des de liiiiyiu' úiietnandí'. " L e ^enre buigrjphique d-ins tice” , in B io g ra p h y a n d Society. T h e U fe H isto ry Approach in the Social Sciences, Berveriy Hills, Sage
« stonographies française et allemande contem poraines” , 2(K)1, 33; R e v u e des sciences hum aines, Publications, 1981. Essa esperança marca igualmente a reflexão do Popular M em o ry G ro u p da
lographies , 2001, 263; L ittíra tu re. "B iograph iqu es” . 2002, 128. N o que concerne às revistas U niversidade de Uirm ingham (C en tre for C ontem porary Cultural Studies): cf. Popular Mem ory'
1 Q7 ÍN j consagradas ao género biográfico, cf. B iography. A n Interdisciplinary Q u a rlerly (desde G roup, "P op u la r M e m o ry: T h e o ry , Politics, M e th o d ” , in R i c h a r d Johnson, G regor McLennan,
1W 8). A u to /B ,o g r a p h y S tu d .e s (desde 1985), 77,e Jo u r n a l o f N a rra ,ive a n d U fe H .slo ry (desde 1991). Bill Schwar2 e D avid Sutton (dir.), X ía kitig H istories, Londres, Hutchinson, 1982, p. 205-252.

212 213
O PEQUENO * - Da b io g r a fia a HISTÔdlA S obre o s o m b r o s d o s g ig a n t e s

do espectro, predominava, ao contráno, uma visão resignada, m ini­ ciências sociais p or perm anecerem prisioneiras de uma ilusão própria
malista, que repousava sobre a estranha con vicção de que o estudo ao senso com u m que “ descreve a vida co m o um caminho, uma
de um indivíduo permanecia, no fundo, uma empresa relativamente rota, uma carreira, c o m suas encruzilhadas (Hércules entre o vício
simples.60'' Assim, em 1985, p or ocasião de um c o ló q u io organizado e a virtude), suas emboscadas [...], com portando um com eço (“ um
na Sorbonne, as razões profundas (mas nem sempre conscientes) com eço na vid a” ), etapas, e um fim , em duplo sentido, de term o
que traziam de n o vo à cena a consideração de destinos individuais e de finalidade” .612 A p ós ter oposto os conceitos de vida enquanto
viram-se com odam ente despachadas pela in vocação genérica dos históna e enquanto h a b itu s,613 ele denunciava o relato biográfico
registros da em otividade e da vivência. A biografia foi ali apresentada com o uma criação especiosa, fruto de uma pulsão narcísica. A
com o um recurso agradável, “ uma modesta ferramenta, que ajuda
literatura se via tomada c o m o testemunha para sustentar esta tese:
a m elhor observar ou ilustrar as tendências longas, as estruturas,
“ É ló gic o pedir assistência àqueles que tiveram que rom per com
os pesos; em hipótese alguma ela poderia pretender se tom ar um
[o arbitrário da representação tradicional do discurso romanesco] .
ferm ento intelectual” .610 C on cedia-se-lh e, assim, uma função de
Segundo Bourdieu, as ciências sociais deviam de agora em diante
impulso, de exploração prelim inar ou de simples ilustração. En­
tomar co m o exem p lo a literatura contemporânea que soubera, desde
quanto as hipóteses teóricas requeriam ser estabelecidas por outros
W illiam Faulkner, libertar-se de toda contaminação biográfica. Em
procedim entos, a anedota pessoal continuava a cum prir o o ficio de
realidade, toda a análise de Bourdieu repousava sobre uma nítida,
suplemento de alma, de ornam ento, ou m esm o de simples cereja
embora im plícita, tnpartição hierárquica entre o senso com um , o
em cima do bolo. N ã o se apelava à experiência biográfica com o
discurso rom anesco tradicional e a vanguarda moderna. Os dois
desígnio de m elhor com preender o con texto social, mas unicamente
primeiros estariam ainda subordinados à ilusão biográfica, ao passo
com a finalidade de enfeitar um discurso geral.611
que a terceira teria definitivam ente rejeitado as noções de sentido,
Desse prim eiro m om en to da renovação biográfica, bastante
de sujeito, de consciência: “ É significativo que o abandono da
entusiasta, mas também, por vezes, bem p ou co refletido, emergiram
estrutura do rom ance c o m o relato linear tenha coincidido com
entretanto três questões de fundo. A prim eira concernia ao relato
o questionam ento da vida c o m o existência dotada de sentido, no
biográfico; a segunda, à relação existente entre a biografia e a his­
duplo sentido de significação e de direção .6I4
tória, enquanto a terceira tangia às relações entre história e ficção.
Outras objeções de peso foram mais recentemente levantadas
III por Galen Strawson. N u m artigo publicado em 2004 contra a
“ m oda” da narratividade (aí com preendida aquela da biografia), ele
A questão do relato biográfico foi posta de maneira radical recoloca em questão dois pontos em particular. D e um lado, a tese
p or Pierre Bourdieu. N u m artigo célebre, de 1986, ele criticava as

1’ icrre B ou rdieu , “ L'illu sion biograph iqu e", A ctes de la rechenhe en sciences sooales. 1 t i * . - P

V er a esse respeito la cq u o Le G o ft (“ C o m m en t écnre une biographie historique aujourd’ h u i?', Le 62 -6 3 ,6 9 . . . .


D ébar, 198 > 54, p. 48-53) que observi: “ O que m e desola na atual proliferação de biografias é que D on d e a célebre metáfora d o m etrò: "T e n ta r com preender uma vida co m o uma sene umca e
muitas del.is são puros e simples retornos à biografia tradicional superficial, anedótica, rasamente suficiente em si de acontecim entos sucessivos, sem outro laço além da associação a um siy .
cronológica, daquelas que sacrificam a uma psicologia obsoleta, incapaz de mostrar a significação cuja constância . sem dúvida, não é mais do que aquela de um nom e próprio, e quase ta
histórica geral de u iiu vid.i individual. É o r e to m o dos em igrados após a R e v o lu ç ã o Francesa e o quanto tentar explicar um trajeto no m etrô sem levar em conta a estrutura da re e, isto e.
im pén o que não tinham aprendido nada e nada esqu ecid o'". das relações objetivas entre as diferentes estações". O s nscos de r e d u c . o n . s m o associados a essa
Hubert B onin, La biographie p e u t-e lle jo u e r um ròle en histoire éc on om iq u e contem poraine?'', metáfora foram sublinhados p or jean-C laude Passeron. "B,ograph>es. flux. itineraires trajectoires .
in Ihoblèm es et m clhodes de la biographie, op. cit. p. 173; cf. tam bém Félix Torres, “ I)u champ des R e v u e fraiifaise de sociologie. 1989. 31. p. 3-22; e O l.v ie r Schwartz, "L e baroque des b.ograph.es .
Annales a la biographie: réflexions sur le retour d'un g en re ". ibid. p. 141-148. Les C ahiers de ph ilo so p h ie, 1990, 10, p. 173-183.
C f. G od frey Davies, "B io gra p h y and H isto ry ", M o d e m L a n g u a g e Q i,a n e r ly , 1940, 1, p. 79-94. Pierre Bourdieu, "L 'illu sio n biographique , op. cit., p. 69.

215
O PfQUENO X - D* BIOGRAÍIA A HISTÔSIA S o b re o s o m b r o s d o s g ig a n t e s

descntiva” , segundo a qual a narração representaria um princípio Outras formas narrativas são, sem dúvida, evocadas - especialmente
organizador da vida e da ação humana (para responder à questão a escntura de vanguarda e o gén ero picaresco mas a argum en­
“ quem sou eu?” é preciso contar a história de uma vida). D e ou­ tação visa sobretudo a narração dita tradicional. Bourdieu assimila
tro, a “ tese norm ativa” , segundo a qual a narração constituiria uma a históna (“ falar de histórias de vida é pressupor ao menos que a
condição de eticidade (a busca do relato b iográfico sendo percebida vida é uma históna” ) à coerência (“ a ‘vida’ constitui um todo, um

com o essencial à conduta responsável no espaço público). Assim, conjunto coeren te e o rien tad o” ). Strawson, p or sua vez, estima que

após ter distinguido o eu episódico do eu diacrônico, ele postula a narração encerra a existência no seio de uma unidade de sentido.

que certas pessoas p odem perfeitam ente conceber-se de um m odo N os dois casos, a vida é considerada com o um material psíquico que
a escntura elabora retrospectivam ente im p on d o-lh e uma estrutura
não narrativo, e que não há nenhuma necessidade psicológica ou
arbitrária: toda narração implicaria assim um processo de revisão e
moral de se conform ar a ele. Sem abordar diretam ente o problema
de manipulação da existência mais ou menos consciente.
da biografia, Strawson sugere, portanto, que as noções de relato e
de personalidade são convencionais, ultrapassadas, e que uma des­ E nfim , é uma im agem fragmentada do indivíduo que se de­

crição da realidade pode perfeitam ente se poupar delas. A crítica da preende desses dois textos. Bourdieu afirma que o único suporte
constante da individualidade é o n om e próprio, a fim de negar mais
narratividade vai de par com a crítica da história: “ Sou um produto
eficazm ente a iniciativa individual, assimilar os com portam entos
de meu passado. Mas não segue daí que a com preensão do que sou
pessoais e exaltar as coações normativas, a força do habitus. Strawson
deva necessariamente revestir uma form a narrativa ou histórica” .615
é mais audacioso. N o seu e lo g io do episódico e da descontinuidade,
C o m vinte anos de distância, as críticas de Bourdieu e de
ele chega a apagar a estratificação temporal da experiência:
Strawson repousam sobre argumentos diferentes e não se dirigem
T e n h o clareza de que os acontecimentos de meu passado mais
aos mesmos interlocutores: enquanto o p rim eiro se interessava es­
recuado não se relacionam com igo. [...] Isso não significa que eu
sencialmente p elo uso que as ciências sociais fazem dos relatos de
não tenha nenhuma lembrança autobiográfica dessas experiên­
vida, o segundo intervém no debate filo só fico e cognitivista sobre cias. R ecord o-a s [...]. Mas penso estar no justo e no verdadeiro
a natureza — real ou fictícia — do si. Seus argumentos convergem , quando penso que [essas experiências] não m e aconteceram.

entretanto, em pelo menos três pontos importantes.


Para além d o que os separa, tanto Bourdieu quanto Strawson me
Em prim eiro lugar, o ato b iográfico é apresentado p or ambos parecem prisioneiros de uma dicotom ia estrita entre um eu m e­
com o de natureza narcísica. Bourdieu o diz explicitam ente, enquan­ tafísico, con ceb id o c o m o uma essência estável e permanente, e
to Strawson o sugere quando escreve que os representantes do que um eu nom inal, que seria apenas uma realidade convencional, um
chama de “ maioria pró-narração” (Paul R ic o e u r, Charles Taylor, ajuntamento de peças díspares.
Alisdair M aclntyre, O liv e r Sacks, Jerry Bruner, Dan D ennet, Maria
Schechtman e jo h n C am pbell) estão animados p or um sentimento IV
agudo de sua importância pessoal.
Parece-me que a reflexão sobre a narração biográfica desenvolvida
Em segundo, ambos apresentam o relato c o m o uma forma pelos pensadores do século X I X nos preserva de uma visão individu­
rígida, que im poria inevitavelm en te uma coerência fictícia à vida. alista do indivíduo - e, portanto, da biografia. N ão se trata aí de um
simples jo g o de palavras. A o longo do século X X , o contraste entre o

6IS Galen Stanvson, " Against N arTativity” (2004), in GaJen Strawson. V i e S e lfí. M alden (Mass.),
B lackw ell Publishing, 2005, p. 63-86. C f tam bém G alen Strawson, “ A Fallacy o f our A ge. N o t
E vcry Life is N arra tive", T im e s U eterary S u p p le m e n t, 15 de outu bro de 2004, p. 13-15. 11 Galen Strawson, “ Against N arrativity” , op. d t . , p. 6 8 .

217
O pequeno x - Da b io g r a f ia a h istó r ia
S o b re o s o m b r o s d o s g ig a n t e s

individual e o social frequentemente se fixou, com o que mumificado,


substâncias separadas: de um lado a dimensão individual, do outro a
em duas não verdades opostas: uma escolha deveria ser feita, seja em
dimensão social. O utros preferem tramas mais profundas ou imagens
favor do indivíduo, seja em favor do coletivo.'’17 A tal ponto que hoje,
mais fluidas. Eles nos fazem com preen d er que o eu não é nem uma
por razões que não derivam apenas do debate historiográfico, longe
essência nem um dado invanável, mas uma entidade frágil, que se
disso, as noções de indivíduo, de pessoa e de sujeito desencadeiam
desenvolve na relação com os outros.
automaticamente dois sinais de alarme: o mais antigo alerta contra a
É daí que procede a distinção fundamental proposta por D ilth ey
ideia de grandeza e de heroísmo, o mais recente contra o egoísmo e
entre a noção de “ identidade” ( Iden tità t) e aquela de “ m esm idade”
o narcisismo. N o entanto, os defensores da dimensão individual da
(Selbigkeit). C ontrariam ente à identidade (term o proveniente do
história nem sempre se deixaram extraviar pela retórica da grandeza e,
baixo latim que deveria e xp n m ir o caráter do ser em si, o sem per
sem dúvida, não teriam partilhado a vulgata neohberal sobre os direi­
idem, e que fez um retorn o obsessivo durante esses trinta últimos
tos do indivíduo (que culm inou, não faz tanto tem po, na famosa
anos), a mesm idade tem dimensão temporal. Desse pon to de vista,
patacoada de Margaret Thatcher: “ N ã o conheço nenhuma sociedade,
a história não é apenas com preendida com o uma disciplina ou uma
para mim há apenas indivíduos” ). Além do herói, cruzamos com figuras
profissão, mas c o m o um elem en to primordial da formação (no sen­
complexas, ambivalentes e mais sensíveis - tais com o o “ eu que aspira
tido alemão de B ild u n g ) social e política de cada indivíduo.618 Ela é
ao tu” de Hum boldt, a pessoa ética de Droysen, o hom em patológico
a condição sitie qua non para que alguém se afirme com o sujeito. E
de Burckhardt: cada uma a sua maneira nos permite escapar à lógica
nesse sentido que Burckhardt escrevia que a história é um fato pessoal
simplista do ou/ou e nos aproximarmos do e/e.
que denva do con h ecim en to que o h om em tem de si m esm o,619 e
Essas figuras nada têm de autárquico. Burckhardt esclarece
que M ein eck e lem brava que os autores mais sensíveis aos destinos
que um excesso de subjetividade — ou seja, de arbitrariedade e de individuais são aqueles que percebem o alcance da história sobre sua
intencionalidade — suprime as individualidades (don de suas per- vida pessoal.620 D e acordo com tal concepção, tão pou co heróica e
plexidades diante da arte de M ich elan gelo) e que o essencial, na tão pou co narcísica, a biografia não é de m od o algum uma forma
escntura histónea, reside na proporção entre as diferentes presenças de escritura egótica. B em p elo contrário, é a ocasião de apreender
humanas. E H um boldt, D roysen, H in tze recon h ecem a dependên­ a densidade social de uma vida.
cia substancial do indivíduo. U m a dependência que não significa Essa reflexão sobre o in divíd u o, fundada sobre a ideia de
p erten cim en to . A o lo n go de diversos decénios, assombrados pela B tldung, dá lugar a uma definição dinâmica e não substancial das
obsessão de catalogar os seres humanos (pela nacionalidade, pela diferenças. Trata-se de um pon to particularmente importante, que
cultura, pela raça — depois pela cor, o ângulo facial, o índice cefáli­ contrasta com uma visão naturalista que repousa sobre os con cei­
co e outros), esses historiadores não cessaram de dizer e de repetir tos de origem , de pertencim ento e de identidade (social, nacional,
que cada indivíduo é uma pluralidade, uma estratificação temporal, racial ou sexual). Ela nos convida a considerar a diferença com o
comportando inevitavelmente algo de bastardo e que não é suscetível
de ser arrumado num só e m esm o com partim ento. Naturalmente,
18 Essa perspectiva foi retomada pela psicanálise. Sobre a noçao de consciência e de sujeito na a^or
a relação in divídu o-com u n idade é declinada de diversas formas. dagem psicanalítica, cf. Paul R ic o e u r, D e Vinterprétation. Essai sur Freud, Pans, Editions du Seui ,
1965, livro III, cap. 2. C f. tam bém M ic h èle líom pard-P orte, L e S u jet. hislancegram m aticale s e h n
Alguns autores consideram o ser hum ano c o m o uma soma de duas
Freud, Paris, L ’Espnt du Tem ps, 2006.
‘ Jacob Burckhardt, L e C icerone, op. cit., p. X I X .
Friedrich M ein eck e, “ D ie Bedeutung der geschichtlichen W e lt , op. cit. C f a esse respeit
C t. N o rb e rt Elias, Lm S o n èlè des in d ivid u s (1987), traduzido d o alem ão p o r je a n n e Étoré, Paris,
xandre Escudier, “ D e Chladenius à D roysen. T h éo rie et m éthodologie de 1 histoire e gu
Favard, 1991.
allemande (17 5 0 -1 8 6 0 )", A n n ú le s . 2003, 58, 4, p. 773-775.

219
O p íq u e n o x - Da b io g r a f ia a h istó r ia S obre o s o m b r o s d o s g ig a n t e s

uma noção relacional: não é mais questão aqui de substância ou de o trabalho, a escola, a religião, etc.) e o eu seria assim desprovido
determinação original, mas so m ente de experiências. de toda espessura tem poral. D ilth ey evoca esse risco em sua crítica
Além disso, os pensadores do século X I X eram menos ingénuos da psicologia de seu tem p o .623 C o n ve n cid o de que o fato de ser
do que por vezes se pensa e muitos deles estavam bastante conscientes autor, de se contar - m esm o que de maneira descontínua e episódi­
do risco a que se expunham atribuindo à vida uma coerência ou uma ca - constitui uma das con dições necessárias para viver, parece-lhe
coesão forçada Desejoso de ir além da superfície factual do passado - os decisivo aplicar-se em reconstruir o fio dos pensamentos que um
acontecimentos políticos, militares ou de corte - , Carlyle compreende indivíduo trança entre uma situação e outra.
bem que a História não é uma sequência coerente de fàtos, mas que ela Som ente levando em consideração esses três perigos é que
é feita de um encavalamento de fios entrelaçados ao lon go do tempo. podem os pensar o in d ivíd u o ao m esm o tem po com o ser im preg­
Entretanto, ele nos indica, com outros autores, que a ilusão biográfica nado de história e “ inteligência que considera e analisa tudo isso”
não é o único obstáculo. Dois outros perigos devem ser evitados. - W illiam James falaria aqui de uma “ inteligência inteligente” .624
O segundo concerne à lógica do pertencim ento (religioso, social,
temporal, etc.), que, de bom grado, inscreve o indivíduo em cate­ V
gorias sociais rígidas, ou que escande sua experiência de acordo com
Abordem os agora a relação problemática entre a biografia e a
um calendário de acontecimentos históricos estabelecidos a priori (o
História. A vida de um indivíduo pode esclarecer o passado? Os tes­
advento da democracia, a ascensão do capitalismo, a independência
temunhos pessoais perm item formular hipóteses de ordem geral? E,
nacional, etc.).621 Sobre esse ponto, a H istóna tem m uito a aprender,
além disso, o que é importante na vida de uma pessoa e o que não
parece-me, com a literatura. Sensível aos impulsos incoerentes, frágeis
é? A partir do que apreciá-la e com o dar conta dela? E preciso levar
e fragmentados da vida social, T olstoi escreve que os acontecimentos
em conta a liberdade, a independência nacional, a democracia, ou o
não têm sempre a mesma significação e que os indivíduos vivem a
exército, a escola, a família, ou ainda a classe social, o capitalismo, ou
História segundo modalidades m uito diferentes e quase incompará­
talvez mesmo outros indícios com o o barulho, a doença, a poluição?...
veis. C o m o testemunham os relatos pungentes d o livreiro M endel
de Stefan Z w e ig , ou do antiquáno U tz (uma espécie de descendente E com base nessas questões, no coração mesmo dessas interroga­
do pnm o Pons de Balzac) de Bruce C h atw in, que v ive m as guerras, ções, que se desenvolveu a micro-história. Essa experiência historio-
os golpes de Estado e as expulsões co m o vagos ruídos de fundo, esse gráfica contribuiu, assim com o a história das mulheres e os trabalhos
tema das discordâncias de significação que atravessam a história co- que versam sobre a cultura popular, para restituir aos vencidos da
letiva assombra uma boa parte da literatura do século X X . 622

O terceiro nsco é aquele de uma visão esfacelada, fragmenta­ ,23 E igualm ente o sentim ento que se pode depreender do artigo de Strawson e de certas análises do

da da vida, co m o uma séne de clichés instantâneos: a experiência interacionism o sim bólico, da etn om etod ologia e da netw o rk analysis, que concebem o eu co m o um
produto hic et n u n c determ inado pelo con texto relacional contingente, pelo outro situacional .
individual seria fracionada em com partim entos estanques (a família, C f. Sabina Loriga, S o ldais. U n lahoratoire interdisciplirtaire: Vanttée piém o n ta ise au X V W siècle (1991),
Paris, Les Belles Lettres, 2007, introdução.
W illia m James ( T h e Principies o f Psychology (1890), Cam bridge (Mass.), H aivard U m versity Press,
Sob re o p e rte n c im e n to tem p ora l, cf. as o b servações de Jacques R a n c iè r e , “ L e concept 1983, cap. 1 ) constata que, contrariam ente à limalha de ferro, que, em presença de um obstáculo,
d anachromsme et la ven té de 1'h istorien", V in a c lu e l, 1996, 6 , p. 5 3 - 6 8 . nào consegue atingir o imà, R o m e u imagina toda sorte de m eios para encontrar Julieta. Eles
O u tro bom exem plo é aquele do agente floresta] E n gelber (personagem de M o n stro à explosão, do não ficariam tolam ente cada um de seu lado, o rosto pressionado contra a parede . Esse ponto

escntor tcheco Jarom irJohn), evocado por M ilan Kundera em L e R id e a u . E ssa i en sept parties, Pans, de vista é tam bém o de SiegfVied Kracauer, Jacques O ffenbach ou Le Secrtl du Second E m p ir t (1937),

C.allinurd, 2005. O acontecim ento pnncipal de sua vida nào é nem o nascimento da República traduzido do alem ão por Lucienne Astruc, Pans. Le Prom eneur. 1994: O ffenbach é apresentado

independente, nem alguma invenção técnica (o avião, o telefone, o aspirador, o telégrafo), mas a um só tem po co m o uma sorte de ferramenta de precisão, reveladora das menores transformações
simplesmente o barulho. sociais, e c o m o um protagonista capaz de exercer influência m odificadora sobre o regime.

220 221
O peq u eno x - Da b io g r a f ia A h istó r ia
So b r e o s o m b r o s d o s g ig a n t e s

históna uma dignidade pessoal.625 Em 1976, C ario Ginzburg se vali,


A pnm eira dessas utopias concerne à representatividade b io ­
da celebre questão do leitor operáno de Bertolt Brecht (O uem m
gráfica: ela se van glon a de p od er descobnr um ponto que con ­
m „ u Tebas, a cidade das sete portas?) para dar a palavra á ™
centraria todas as qualidades d o conjunto. O historiador deveria,
u ano do seculo X V I. Alguns anos ma.s tarde, G iovann, Levi nào então, cindir seu trabalho em dois tempos: determinar inicialmente
hesitou em ,r mais adiante: se o m o le.ro M e n o c c h io trana ™ d ã o indivíduo representativo (o camponês normal, a mulher com um ,
algumas marcas de heroísmo, Giambatrista Chiesa, o cura da aldeia etc.), depois, p or indução, estender suas qualidades a toda uma
piemontesa de Santena, e verdadeiramente um h om em qualquer626 categoria (o campesinato, o gén ero fem inino, e assim por diante).
E dessa aliança entre convicção política e reflexão m etodológica que Assim, M ich el V o v e lle declara que Joseph Sec “ testemunha por
nasceu a ideia de utilizar os materiais biográficos de maneira agressi- um gru po” (a burguesia francesa da província no século X V I I I ),
a a fim de questionar certas hom ogeneidades fictícias (tais com o a enquanto Joèl C o rn ette procura em B en oit Lacom be “ não mais o
nstituiçao, a comunidade ou a classe social) e de se debruçar assim Ú nico, mas um espelho que refrate tod o um m u ndo” .629 C oloca n ­
sobre as capacidades de iniciativa pessoa, dos a t o r t t S n c o s " do a pesquisa biográfica na perspectiva de uma generalização, tal

a m i ^ T " ate" Bn,ente os ■ " " ™ 'd o s dos sistemas normativos abordagem desem boca na busca obsessiva de experiências m édias:
a micro-histona demonstra que o con texto históneo corresponde os aspectos mais com uns (ou antes: aqueles que têm a reputação
em maisa um tecido conju ntivo atravessado de campos elétncos de de o serem) são exaltados em detrim ento daqueles que seriam mais
intensidade vanável do que a um conjunto com pacto e « e pessoais e particulares.630 Q ualqu er um que se tenha interessado por
fontes biográficas (diários íntimos, correspondências, memórias, etc.)
b a s ta rd T t^ d ' qU3lqUer ‘ nd' VÍdU° - reprKenta uma f « “’n sabe que, se aderimos a essa utopia, tenninamos inevitavelm ente
sas “ T ™ H " ° cm zam en ‘ ° experiências socais diver-
por em botar a especificidade dos destinos pessoais e p or arruinar a
Ela é acomn h 7 ™ CrUCÍl1 Para >h .stón a e para a polis.
vanedade da experiência passada: de maneira aparentemente in o­
de v e Z P " 0 entan' ° ’ reconheçam o-lo, de uma sensação
fensiva, negligenciam os e m esm o corrigim os os elementos egotistas
c t r f ' o con texto c o m o uma sénede
da biografia (uma operação que não deixa de lembrar os conselhos
feríncia , ^ erp0' t0' os (3uals ° centro de um se situaria na circun-
dos positivistas sobre as idiossincrasias individuais).631 O resultado de
histónca se rn ° ^ aSSI1' 1 d ' ante’ ° trabaJho de compreensão
semelhante trabalho de censura é dos mais melancólicos: o tem po
aZ o e i lneS80tÍVel' Cad* e « d , tem po remetendo
a outro espaço e outro tempo. histórico se tom a uma superfície desprovida de impressões digitais.632

resistir a ^ e n a í^ Zer se’ 30 ^o n g ° desses últimos anos, soubemos


' C f. M ic h el V o v e lle , L ‘Irrésistible A scen sio n de Jo sep h Sec, bourgeois d ‘A i x , A ix-en -P roven ce, Edisud,
t e n Z Z T r SenS3Ça° e V e m gem - P erSu n to -nie p or vezes se não 1975; Joèl C o m ette , Um révolutionnaire ordinaire. Benoit Lacombe, négociant, 1 7 5 9 - 1 8 1 9 , Pans, Champ
abracand d " tempen!" la ou m ™ » negá-la. A p on to de remediá-la Vallon, 1986. Essa perspectiva da representatividade é partilhada também por AJain C oubin, Le
abraçando duas utopias - P au| R i COeur diria duas formas de h yb m . M o n d e retrouué de Louis-Fratiçois Pitiagot, op. d t.
Sobre os riscos im plícitos dessa operação de estandartizaçào, cf. Bem ard Lepetit, D e I échelle en
histoire” , in J e u x d ’échelles, op. d t ., p. 78; Alain Boureau, H istoires d ’u n historien. K antarouncz, Paris,
C a r io G in s b u r g e C a r io P o n i " I I i Callim ard, 1990, p. 75-76.
Q tu d e m i >torid, 1979 t 40 p 181’ ] 9()n 0m C * COmc M e r c a to s t o n o g r a fic o e sca m b io diseguale", Ítalo C a lvin o experim en tou isto: “ H o je devo me resguardar de outro erro ou de outro mau hábito
próprio àqueles que escrevem lembranças autobiográficas: a tendência de apresentar sua própria
do italiano por M o r iq u e p* J '“ " m e u ," e' d u X V t sièd e ( 1976) ' traduzido experiência co m o a experiência ‘ m édia’ de uma determinada geração e de um determinado m eio,
(1985), traduzido do ítalian w ainm anon- G iov a n m L ev i, L e Pouvoir au vtllage fazendo sobressair os aspectos mais comuns e deixando na sombra aqueles que são mais particulares
e mais pessoais. D iferentem ente do que fiz em outras ocasiões, gostaria agora de acentuar os aspectos
C f. Jacq u es ' 989'
que mais se afastam da 'm édia' italiana, porque estou convencido de que se pode tirar sempre mais
£ " ’ ■G a C ^ É ^ m r 7 \ Z ^ nJe“X d’khe"eS ^ XIUT0-ú"úlySe verdade do estado de exceção do que da regra". C f. ítalo Calvino, Erm ite à Paris. Pages autobiographúiues
(1996), traduzido do italiano porJean-Paul Manganaro, Pans, Édidons du Seuil, 2001, p. 41.
a ~ e p r o p o s i t o T o m u l o u T o x ^ o ' “ " * ‘ ° CM,C" Q u a d e n u s ,o n a - 1 9 7 7 ■ 35. P 506-520. que,
o x im o ro excepcion al n o m ia l” . 2 C f. G iovan m L evi, "L e s usages de la biographie", A n n a les E S C , 1989, 44, 6 , p. 1325-1336.

223
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia A h ist ó r ia
S obre o s o m b r o s d o s g ig a n t e s

A segunda utopia é naturalista. T o m a d o p o r esta, o historiador


a históna, uma discordância, uma descontinuidade.636 Importa, p or
não persegue mais a identificação de um p on to miraculoso que re­
conseguinte, afastar toda lógica de submissão ou de dom inação (da
fletiria o conjunto histórico em sua íntegra, mas visa, desta vez “ à
históna sobre a biografia ou reciprocam ente) e conservar a tensão,
históna de cada u m ” . A inteligente aposta lançada p or Giovanm Levi
a ambiguidade, considerar o indivíduo, a um só tem po, co m o um
de abordar o passado de maneira intensiva (através da reconstrução
caso particular e uma totalidade.637
dos “ acontecimentos biográficos de todos os habitantes da aldeia
de Santena que deixaram algum rastro d ocu m en tal” 633 fez nascer Trata-se de uma empresa difícil. É, aliás, por isso que com ecei
muitas vezes, no seio da segunda geração de micro-historiadores, o essa reflexão com Carlyle: com ele, é co m o se estivéssemos lidando
sonho de fazer concorrência com o estado civil (para empregar uma com um d oen te ultrassensível que, em certo m om ento, exausto, se
expressão cara a Balzac). E - p o r que não? - de elaborar categorias engana de m edicam ento, mas que tem a coragem, antes do gesto
mterpretativas que aderissem p len am en te à realidade empírica. fatal, de se colocar algumas questões fundamentais. Poderíam os
Trata-se de uma concepção que pretende fazer do conhecimento dizer que o “ c o r p o ” de seu texto dá a refletir. O desejo de escrever
uma cópia integral da realidade. Ela lem bra os cartógrafos evocados uma história profunda, preocupada com os limiares do mundo, o
por Jorge Luis Borges que, desejando fazer um mapa perfeito do atrai a um p recipício. Esse abismo está fortem ente aparentado com
Im pério, constroem um com as mesmas dim ensões que esse.634 O aquilo que Jean-Claude Passeron definiu com o “ a ilusão da pan-
em preendim ento é, claro está, im praticável. E, m esm o que fosse pertinência do d escritível” : “ U m a vez que tudo isso faz parte do
possível, de que serviria? Esse mapa contribuiria verdadeiramente real, do direto, do singular, [...] tom a-se afetivamente difícil deixar
para a restituição da realidade viva de uma época? que se perca a m en or parcela, já que cada uma participa do sabor
total do relato [...]. T u d o parece pertinente porque tudo é sentido
São também essas solicitações utópicas, que v iv i pessoalmente
como m etoním ico " , 638 N o coração desse abismo, nenhuma descrição
por ocasião de uma pesquisa consagrada a um exército do século
é possível: o caos d o passado se reveste de traços cada vez mais an­
X V III, que m e sugeriram lançar um olhar para trás, sobre a época
gustiados, assim c o m o o pesadelo evocado por Femand Léger, que
que precede o d ivó rcio entre a história social e a história política.
imaginou o h orror suscitado pela tentativa de filmar vinte e quatro

VI horas da vida de um h om em e de uma mulher, sem om itir nem um


gesto nem uma palavra.639 É igualmente para escapar aos horrores
O projeto que visa personalizar a história, conduzido através do abismo que C arlyle se entrega tristemente ao culto dos heróis.
do século X I X , é dom inado p or uma tensão ética, ligada à herança Em face da extraordinária vitalidade — e dos impulsos incoeren­
kantiana, que tendia a sublinhar a capacidade de autonomia e a tes, frágeis e fragmentados — do passado, o historiador experimenta
responsabilidade individual. A distinção entre ética e moral decor­
re dela. o trabalho do historiador não é m oral, no sentido de que
A esse propósito, S iegfn ed Kracauer (T lte o ry o f F ih n . T h e R ed cm p tio n o f the Physical R e a h ty , N e w
não propõe exem plos a seguir, mas é ético, pois faz aparecerem as
Y ork , O x fo r d U n iversity Press, 1960, cap. III) observa que, no cinema, o prim eiro plano nào é
questões inseparáveis da escolha, do erro, do fracasso. A lém de fazer apenas um elem en to da narrativa, mas também uma realidade autónoma que pode contrastar com
o quadro gera] (p o r exem p lo, as màos de M ae Marsh em Intolerância)
parte da históna, a biografia oferece também um pon to de vista sobre
Jean-Claude Passeron e Jacques R e v e l ( P en serp a r cas. Paris, Éditions de 1 EHESS, Figures , 2005)
definem o caso c o m o algo que vai além do exem plo (um obstáculo, um enigma).
Jean-Claude Passeron, "B iographies, flux, itinéraires, trajectoires*', op. cit. C f. ainda Jean-Claude
G iovanm Levi, L e p ouvoir au village, op. rir, p, 1 2 .
Passeron eja eq u es R e v e l (dir.) Penser p a r cas, op. cit., a propósito do positivism o de sempre que
Jorge Luis Borges e A d o lfo B ioy Casares. C h ro n iq u es de B u sto s D om ecq (1967). traduzido do espanhol
visa a uma com pleta inteligibilidade da realidade.
por Françoise-Mane Rosset. Pans. D en oel, 1970, p 41 -4 4
Sabina Longa. Soldais, op. a t.
C í. A propos d u cincttia, in A A . V V ., lnteUigence d u aném atographe, sob a direçào de Mareei L Herbier,
Paris, C orrêa, 1946, p. 340, citado por Siegfned Kracauer, U H isto ire, op. citt p. H7.

224 225
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia A h is tó r ia S obre o s o m b r o s d o s g ig a n t e s

uma penosa sensação de vertigem . Alguns, c o m o C arlyle (mas de sismógrafo.641 Assim c o m o D roysen, ele insiste sobre a diferença
também, em outros termos, H erd er e D roysen ), não a suportam: entre a exatidão e a verdade e estima que o historiador não pode
para se subtrair ao sentim ento de fragm entação e de desagregação se contentar com a pnm eira - sobretudo quando não escreve uma
eles sucumbem à m iragem da unidade da história. Embora isso possa crónica dos acontecim entos - , mas d eve se aplicar à apreensão dos
parecer paradoxal, desse ponto de vista (e unicamente desse ponto de pensamentos e do im aginário do passado. Nesse plano, a história
vista), a utopia naturalista e a da representatividade são a expressão
pode evocar um processo de m etam orfose pictórica que repousa
do mesmo mal-estar.'’40 O historiador “ naturalista” também espera
essencialmente em duas operações: a impregnação (poderíamos dizer
poder escapar à vertigem p o r um go lp e de força: descobrindo um
que o historiador d eve estender seu eu para além de si m esm o) e a
ponto m ágico a partir do qual seria possível refletir a totalidade ou
conexão (para im aginar e, talvez, preencher as lacunas do passado
fazendo do con h ecim en to um duplo da realidade.
que nos é dado apreender).
Mas outros historiadores — ou outros pensadores que se inte­
A analogia com a arte tem, no entanto, limites bem evidentes.
ressaram pela história — com preenderam que era preferível aceitar a
M esmo reconhecendo que a verdade histórica não é uma simples
sensação de vertigem e tirar partido dela mais do que tentar evacuá-la.
reprodução da realidade, Burckhardt sublinha a diferença entre ima­
Eles nos ensinam que, ainda que o trabalho de contextualização seja
ginação e invenção: o histonador não pode modelar a matéria a seu
interminável, isso não é uma deficiência a evitar, mas uma possibi­
bel-prazer, sua imaginação deve pennanecer ancorada na documentação
lidade positiva de conhecim ento. Em outros termos, o que está em
e se submeter à exigência da prova. O mesmo se dá para M eyer que é
jo g o para o historiador não reside nem no geral nem no particular,
mas em sua conexão. C o m o escrevem H um boldt e Dilthey, a históna favorável a uma espécie de autolimitação voluntária: o historiador não

é um conhecim ento herm enêutico fundado sobre a circulação, não tem o direito de enar livremente, com o o poeta, porque sua imagina­

forçosamente viciosa, entre as partes e o todo. ção deve pennanecer ligada aos fatos. Quanto a um segundo ponto,
essencial, a história se distingue da literatura: trata-se da finalidade do
Bem entendido, não é possível dissertar sobre a vitalidade do
relato. Contranamente à literatura (na verdade, Burckhardt, assim com o
passado sem se debruçar sobre sua opacidade. C o m o escreve Meinecke,
Ranke e outros, pensa sobretudo no romance histórico), a história não
o historiador trabalha num cam po de ruínas. R e fle tin d o sobre a
segue (ou antes, não deveria seguir) uma lógica da sedução, ela não
distância entre o passado e a históna, vários autores entre aqueles
domestica o passado, não o toma propositadamente familiar, bem pelo
que examinamos descobrem que, para além dos fatos, há um resto
fundamental que liga entre si os diferentes fragm entos e que dá contrário, busca lançar luz sobre sua altendade.64' Sob certos aspectos,

ao tod o uma form a que só p od e ser apreendida pela imaginação estamos em presença de uma espécie de definição avant la lettre da

histórica. O matenal histórico sendo a um só tem po infinito, lacunar históna com o processo de estranhamento.643
e aleatóno, Droysen constata que a exatidão do fato é certamente um
elem ento indispensável, mas não suficiente: todos os cacos de um 641Para retomar a imagem de A by Warburg. “ T e xte de clôture du séminaire sur Jacob Burckhardt , -P

edifício, colocados uns ao lado dos outros, não p od em expressar a Sobre a pesquisa histórica c o m o criação de ausentes e, em geral, de altendade, c f M ichel de C e»

L 'É critu re âc Vhistoire. Paris, Gallimard, 1975.


realidade viva do próprio edifício. Entre os historiadores, Burckhardt
M’ A « s e respeito, cf. igualm ente Siegfned Kracauer, L H istoire, op cit., cap. V II ^ raca^ e
é sem dúvida aquele que sentiu da maneira mais aguda a evidência vencido de que a história é estória (Sfory), ou seja, um intermediário n a r r a t i v o . ^ r a c . K
nào tem apenas um valor ornamental (um livro de história bem escrito é mais >. e
das perdas do passado: essa percepção lhe con fere uma sensibilidade
tem simplesmente um valor de comunicação (um livro de históna bem esento e num gr
ler para os nào especialistas). A aposta é mais importante. O histonador prtcisa ç P
restituir a qualidade épica d o passado. Mas, ao mesmo tem po, Kracauer suManha a P
1‘odenam os dizer que são novas formas da históna perteita: c f G e o rg e H u ppert, f l d é e d elh isto ire su ig etteris, da narraçào histórica, pois ela está ligada à promessa de viver num mu” *
p a ane (1970). traduzido d o inglês por Françoise e Paulette braudel, Pans, Fhm m anon, 1972. C o m o o fotógrafo, o histonador deve também respeitar certas resm^óes, a *?r, e ve

226 227
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia a h is t ó r ia
S obre o s o m b r o s d o s g ig a n t e s

VII entre o fato e a ficção, entre o conhecim ento e o jogo. Após ter repetido
que os critérios de verdade e falsidade não podem ser aplicados às
A o lon go dos últimos decénios, a confrontação com a literatura
representações do passado, Franklin R . Ankersm it afirma que as
muitas vezes repousou sobre a negação da verdade histórica. A via
foi traçada por R o la n d Barthes, que, num texto célebre de 1967, interpretações históneas se equivalem : “ Para o pós-m odern o, as

se perguntava se a narrativa histórica se distinguia verdadeiramente certezas científicas sobre as quais os m odernos sempre construíram

da epopeia, do rom ance ou do drama. E com base nessa questão [suas interpretações] não são mais do que vanações do paradoxo do

que o discurso histórico foi, repetidam ente, d efin id o com o uma mentiroso. A saber, o paradoxo do cretense que diz que todos os
elaboração ideológica: ainda que finja ser a cópia fiel do passado, cretenses m en tem ” .647 U m a versão mais desconfiada se apoiou em
ele não seria mais que “ uma form a particular do imaginário, o pro­ M ich el Foucault - e mais particularmente em sua reflexão sobre a
duto do que se poderia chamar a ilusão referen cial” .644 Alguns anos relação entre saber e p od er - para estigmatizar a noção de verdade
mais tarde, H ayden W h ite vai mais lo n ge reduzindo a história a histórica (p ro p o n d o um deslizam ento progressivo da história à p ro­
um artefato literário, a um registro de escritura que escaparia a toda paganda: a históna é uma teoria, a teoria é o produto da ideologia
forma de verificação objetiva.645 Desse p o n to de vista, a históna e dom inante, a id eo lo gia é o fruto de interesses particulares, etc.).648
a ficção literária derivariam da mesma estrutura cognitiva: com a Desde sempre, a noção de verdade histórica é torturada pela
diferença de que o histonador dissimularia o artefato atrás de uma dúvida. N o entanto, desta v ez tem-se a impressão de que, mais do
série de procedim entos retóricos (citações, referências bibliográficas, que raiva e desespero, a notícia da m orte da verdade suscita uma
etc.) que serviriam apenas para p rodu zir um efeito de real.646 Em espécie de consolo, e m esm o de entusiasmo e euforia. C o m o se
alguns anos, as provocações de Barthes e de W h ite se tornaram um finalmente fosse possível proclamar: enfim livres! Livres do passado?
leitm otiv obsessivo que, sob diferentes formas, retom a uma nova C o m o se o historiador pudesse agora dizer o que bem entender:
vulgata: a verdade histónea é o p rodu to de uma ilusão referencial, o passado não está em condições, de qualquer maneira, de op o r a
não existe realidade histórica, ou, mais precisamente, não existe m enor resistência a seus desejos interpretativos. Face a esse relativis-
nenhuma realidade fora da linguagem que dela fala, tudo sendo não m o narcísico, que não deriva da grande tradição cética (seja aquela
mais do que “ discurso” ou “ te x to ” , uma simples com binação de de Pirro e de S exto E m pírico, seja aquela do pirronismo histórico,
palavras. A esse respeito, evoca-se toda uma série de comparações seja aquela do e lo g io voltairiano da dúvida649), a tentação de afastar a
ou de contaminações entre a narração literária e a narração histórica,

Franklin R . Ankersm it, "H iston og ra p h y and Postm odeniism ” , H isto ry a n d Theory, 1989. 28,
2, p. 142-145. C f. igualm ente Linda H u tch eon , A Poetics o f P o stm o d en iism : H isto ry, T h eo ry,
equilíbrio estnto entre o realismo e a criatividade. C f. Sabina L onga, " L e mirage de 1'unité histori­
que . in Siegfned Kracauer, penseur de 1'hisloire, sob a direção de Philippe D espoix e Peter Schòttler, F iction. N e w Y o rk -L o n d re s , R o u tle d g e , 1988: D avid Harlan, "In tellectu al H istory and the

Pans, Édmons de la Maison des sciences de 1'homme-Presses de 1 U niversite Lavai, 2006, p. 29-44. R etu rn o f L iteratu re” , A m eric a n H istorical R e v ie w , 1989, 94, p. 581-609; Patrick Joyce, H is­
tory and P o st-M o d ern ism ” , P ast a n d Present, 1992, 131; N an cy F. Partner, H istory in an A g e
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R o b ert A . Canary e H en ry K o zic k i, T h e W ritinçi o fH is to r y , L ite ra ry Form a n d H istorical Vnderstand H istory: IV h a t a n d IV h y ? A n c ie n t, M o d e m , P o stm o d em Perspectives, L on d res-N e w Y ork . Rou tled ge,

m g, Madison, U niversity o f W isconsin Press, 1978. 1996; Ellen Som ekawa e Elizabeth A . Smith, “ T h e o n z in g the W n tin g o f History. or, ‘ I can’t think
w h y it should be so dull, fo r a great deal o f it must be invention’ " , Jo u rn a l o f Social H isto ry, 1988,
Isso significa que as obras históneas só podem ser submeodas a uma análise literána e linguística. O
22, p. 149-161; A n il W ord sw orth , "D e m d a and Foucault: W ritin g the H istory o f H iston city".
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in D erek A tn d g e, C .e o ff B enm ngton e R o b e rt Y o u n g (dir.). P o st-S tm clu ra lism a n d the Q u estio n o f
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229
O PEQUENO X - Da b io g r a f ia à h is tó r ia S obre o s o m b r o s d o s g ig a n t e s

literatura, com o se se tratasse de unia presença contagiosa, se fez, por vai de par com a consciência de que a verdade histórica é algo de
um efeito m ecânico de reto m o , mais insistente. D o n d e a tendência menos u n ívoco e de mais am bígu o do que fazem crer tanto Elton
a colocar im propriam ente no m esm o plano as reflexões daqueles quanto os pós-m odernos. A o histonador cabe estabelecer fatos,
que se debruçaram sobre a dimensão narrativa da história, com o muitas vezes descontínuos e heterogéneos, torná-los inteligíveis,
Paul R ic o e u r ou M ich el de Certeau, e aquelas de Hayden W hite, integrá-los numa totalidade significante. Isso implica que a verdade
ou m esm o as versões mais toscas da historiografia pós-m odem a.650 dos fatos não coin cid e sempre c o m sua significação. O ra, co m o
Assim, em 1990, p ou co tem po antes de sua m orte, o historiador escreve G oeth e, a história precisa de uma e da outra. E importante,
britânico G eoftrey Elton rogou aos historiadores que “ pusessem fim por outro lado, recon h ecer que a história, enquanto discurso sobre
às tagarelices e voltassem ao essencial” : ao essencial, a saber, ad fontes, a realidade, é igualm ente um relato que necessariamente recorre a
às fontes. Após ter acusado as ciências sociais de terem corrom pido alguns dos instrumentos da ficção: ela cria uma continuidade entre
a historiografia, ele sublinhava a natureza objetiva da história, pois os rastros descontínuos do passado, desenha uma trama, coloca em
“ o m om en to em que alguma coisa se passou é e perm anece inde­ cena personagens, utiliza-se da analogia e da metáfora.632
pendente do o b s e r v a d o r O tom da intervenção de Elton é sem M anter juntas essas duas perspectivas requer ao mesmo tem po
dúvida alguma demasiado perem ptório. Mas creio que, mesmo que paciência e prudência. N ã o se trata aqui de recolocar a história sob
poucos historiadores se reconheçam nas acusações que ele profere a alçada da literatura, tanto mais que, com o dizia Virginia W o o lf, as
contra as ciências sociais, suas proposições são a expressão de uma tentativas de apagar as diferenças que existem entre a narração histórica
posição defensiva que não cessa de se manifestar. U m a atitude que e a ficção quase sempre deram resultados deploráveis, inclusive no
poderíamos esquematicamente resumir nestes termos: é importante plano estético. O desígnio é, mais simplesmente, o de cultivar uma
restabelecer a noção de verdade e a lógica da prova, reafirmar a política de confrontação com a literatura, a fim de conferir mais pro­
existência de u m m étodo históneo, fundado sobre as fontes, capaz de fundidade e vanedade ao discurso histórico. Nesta óptica, parece-me
atestar a verdade do passado. E isso custe o que custar. M esm o sob o possível, e talvez mesmo urgente, meditar sobre as estratégias narrativas

risco de negar a natureza ínterpretativa da história e de se contentar a utilizar para dar relevo às incertezas, às dissonâncias e aos conflitos

com uma im agem ingénua e sem nuances da objetividade histórica. do passado — em suma, à história tal com o ela acontece. Tolstoi pode
assim nos ajudar a evocar o caso pessoal com o um m eio de rom per o
VIII excesso de coerência do discurso histórico, para meditar não apenas
sobre o que foi, sobre o que adveio, mas também sobre as incertezas
A qu i, ainda, as reflexões do século X I X p od em nos ajudar. do passado, sobre o que teria p odido se produzir e que se perdeu. As
Elas sugerem uma abordagem diferente, que se articula conform e sugestões que ele oferece sobre as maneiras de multiplicar os pontos
um duplo m o vim en to. É preciso, em p rim eiro lugar, defender a de vista a respeito da História também podem ser preciosas para o
ideia de que a história v iv e sob a férula da verdade: o histonador se historiador que se com prom ete a pennanecer num mundo em que
com prom ete a fornecer inform ações sobre uma realidade que lhe é os fatos realmente se produziram.
exterior e a submeter sua interpretação a uma verificação. Essa defesa

C t. Allaji M e g ill, R e c o u n tm g the Past: ‘ D es cn p tio n ’ , Explanation, and N arrativc in H istonog- "Esse p on to de vista foi defendid o por M ich el de Certeau, L Ecriture de I histoire, op. cit., Paul

raphy", A m erican H istorical R e vieu ', 1989. 94, p. 627-653. R ic oeu r, T en ip s et récit, Paris, Editions du Seuil, 1983. C f. igualmente R o g e r Chartier, A u bord de
la fa la ise. L 'h isio ire entre certitudes ci inq u ietu d e, Pans, Albin M ichel, 1998, Krzysztoí Pomian. .Sur
C f. G eo ftrey R . Elton, R e tu m to E ssentials. S o m e R eflections on tlic Presetit S ta te o f Historical S tu d y,
C am b ndge, C am b n d ge U n iversity P r e « . 1991. p. 50 e 59. 1'htstoire, Paris, Gallimard, 1999.
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E s te u v r o f o i c o m p o s t o c o m t i p o g r a f i a B e m b o e im p r e s s o

EM PAPEL C h a m OIS FlNE 80 G N A G r ÂF IC A E E DITOR A DE L R e y .

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