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Psicanálise

por Renato Mezan



Entrevistando certa vez uma senhora cuja aparência indicava claramente que
já passava dos 50, Groucho Marx ouviu dela que "estou chegando aos 40". "Não
diga! Vindo de qual direção?" Quanto a Freud, sabemos que costumava se
referir à disciplina que criou como "unsere junge Wissenschaft", a nossa jovem
ciência. Transcorrido mais de um século desde que viu a luz, já não se pode
dizer que ela seja tão jovem, e, quanto a ser ou não ciência, o debate continua
acalorado. Quererá isso dizer, como afirmam seus detratores, que a psicanálise
se tornou uma velha caquética e, além do mais, ridícula, pois se toma por uma
viçosa balzaquiana no esplendor dos seus 40 e poucos?
A verdade é que o valor de uma prática ou a consistência de uma teoria nada
têm a ver com o número de décadas que se passaram desde a sua instituição.
Jovem, adulta ou anciã, a psicanálise deve ser avaliada pelo que é, pois
obviamente disso depende o que poderá vir a ser, em outras palavras, o seu
futuro.

Detalhe dissonante O que é, então, a psicanálise? Antes de mais nada, um
método para sondar o inconsciente; disso decorrem uma prática terapêutica e
um conjunto de conhecimentos, uma teoria da psique. Como método, ela
consiste na escuta do detalhe dissonante, num discurso ou numa produção
humana qualquer, na reconstituição do contexto a que pertence esse detalhe e
no estabelecimento da natureza e dos motivos da dissonância, em termos dos
desejos, fantasias, impulsos e defesas que a determinam. O método
psicanalítico revelou-se de sutileza e fecundidade extraordinárias; ele
conserva seu interesse ainda hoje e, em meu modo de ver, se for manejado
corretamente, continuará válido pelos tempos vindouros.
A prática fundada sobre esse método tem uma forma canônica -a análise
individual, com suas regras e com suas características- e inúmeras variantes,
que utilizam o método em contextos e situações diferentes da terapia clássica.
Na terapia individual, certas queixas são mais frequentes hoje do que cem
anos atrás: depressões, estresse, eclosões psicossomáticas, drogadição, falta de
sentido para a vida, vazio, frustração e insatisfação com as relações afetivas.
Mas, se as formas de padecimento evoluíram em consonância com as
mudanças na sociedade e na maneira de viver, os motivos que as determinam
continuam a ser os mesmos que a psicanálise identificou há décadas: defesas
mutilantes, falta de amor e de reconhecimento pelo outro, tentativas de
controle daquilo que não pode ser controlado e, também ainda hoje, repressão
sexual e culpa em escala excessiva, nefasta, deletéria.
Já as "variantes" consistem na psicanálise aplicada a obras da cultura ou a
fenômenos sociais, mas também à análise de crianças, de famílias, de casais, de
situações conflitivas em instituições como escolas, hospitais ou empresas, à
"terapia breve". Penso que a demanda por esse tipo de trabalho, que já vem
crescendo, tenderá a se intensificar no futuro, porque o tratamento individual
é custoso e porque nem sempre ele é indicado. Nada há no método
psicanalítico que o impeça de ser utilizado nesse tipo de circunstância, pois o
funcionamento psíquico do ser humano, quer deitado num divã, quer em outra
situação qualquer, depende sempre, em última análise, do jogo das suas
emoções e do significado consciente e inconsciente que elas atribuem aos fatos
da vida.

Fundamentos, teoremas e corolários Essas afirmações pertencem à teoria
psicanalítica, que, como toda teoria, tem seus fundamentos, seus teoremas e
seus corolários. Muito se discute hoje sobre a validade de seus diversos
aspectos, e dentro do próprio campo freudiano existem correntes que têm da
vida psíquica visões diversas. Mas todas concordam em alguns pontos
essenciais, sem o que não seriam escolas de psicanálise: a existência e a
eficácia do inconsciente, a necessidade do trabalho interpretativo, a
importância do infantil para a vida adulta e também para o andamento da
terapia "stricto sensu" (em que ele aparece sob a forma da transferência) etc.
Creio que a teoria psicanalítica continuará evoluindo, se enriquecendo e
eventualmente vendo corrigidas algumas de suas asserções, o que ocorre
desde os primeiros anos da sua existência. Isto é prova da sua vitalidade e não
da sua decadência: em simpósios, revistas, livros, os analistas procuram
elaborá-la de modo que seja conforme com sua prática e com aquilo que esta
revela. Quem sabe se não está se formando, hoje mesmo, uma nova escola de
psicanálise, da qual só ouviremos falar daqui a algum tempo?
Em suma: o futuro da psicanálise está, em grande medida, nas mãos dos
analistas e dependerá do modo pelo qual soubermos fazer frente aos desafios
clínicos e teóricos que a vida social e nossos pacientes nos forem colocando.
Para isso dispomos do método analítico, mas também de nossa própria
inventividade e da capacidade (que se espera tenha sido estimulada pela
análise pessoal) de não aderirmos, como cracas ao casco de um navio, ao já
sabido, ao já conhecido e ao já provado. Como, aliás, fez em seu tempo um
certo Sigmund Freud.

Renato Mezan é psicanalista, coordenador da revista "Percurso" (Instituto Sedes Sapientiae) e professor
titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, autor, entre outros, de "Freud - Pensador da
Cultura" (Brasiliense).

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