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INTRODUÇÃO
Apresentação
Justificativa
Metodologia
CAPÍTULO 1 - DISCURSO E COMUNICAÇÃO
1.1 DISCURSO SUJEITO E IDEOLOGIA
1.2 O DISCURSO DA MÍDIA
12.1 Informador e alvo: possíveis interpretativos
1.2.2Contrato comunicacional
1.3 CENAS DE ENUNCIAÇÃO E ETHOS DISCURSIVO
1.3.1 Gêneros do discurso e cena de enunciação
1.3.2 Ethos
A tripla relação entre discurso, sujeito e ideologia é, por assim dizer, a base do
funcionamento da linguagem. Neste funcionamento, os sujeitos e o sentido estão submersos na
linguagem, pois são afetados pela língua e pela história. Seja qual for o ato de comunicação,
ele é determinado pela situação imediata, como ensinou Mikhail Bakhtin. A palavra dentro de
uma enunciação, está vinculada a um dado momento histórico, funciona na interação entre um
locutor e interlocutor (outro) e em função desse outro: por exemplo, a palavra pode ser dirigida
aos pais no ambiente familiar; na rua ou escola para os colegas; para um médico, professor, etc.
A ideia de um indivíduo não é originada no seu pensamento, se constrói mediante a
interação com outros indivíduos, organizados socialmente, e com o mundo. Esse processo
dialético é a realidade do signo. E segundo Bakhtin a própria compreensão individual “é uma
resposta a um signo por meio de outros signos” (2009, p.114). A própria consciência “é um fato
socioideológico”. Em outras palavras, o indivíduo utiliza os signos apreendidos para opor a
outros signos, num processo dialético, fazendo assim surgir daí um novo signo. Isso é o que
ocorre nas relações interindividuais, numa sociedade organizada econômica, política e
ideologicamente.
Mas que aqui a ideologia não seja vista cerceada da arena em que atua, ou seja, o próprio
signo. O objeto ideológico possui um significado, portanto “tudo que é ideológico é signo”.
Sem signos não existe ideologia” (BAKHTIN, 2009, p. 31). Ao tratar a palavra como signo
ideológico por excelência, Bakhtin passa a direcionar o seu estudo da linguagem para a
enunciação e enunciado, onde a palavra se manifesta. E nisso, o filósofo russo diz que cada
campo do domínio dos signos produz e refrata a realidade como bem lhe convém, porque “todos
os campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem” (BAKHTIN, 2011, p. 261).
Tudo que os interlocutores comunicam, seja através de discursos mediante os textos orais ou
escritos, será determinado pelo campo no qual é produzido.
Em suma, quando um sujeito passa pelas etapas da objetivação social, entrando no
sistema das ciências, da arte, da moral, do direito, faz da sua “consciência uma força real, capaz
mesmo de exercer uma ação sobre as bases econômicas da vida social” (idem, p. 12). Esses
sistemas se cristalizam na ideologia do cotidiano na qual existem vários níveis de ideologias
que vão do inferior ao superior.
Sobre isso, Michel Foucault foi bastante perspicaz e crítico, contrário a concepção de
ideologia numa perspectiva marxista que se restringe ao poder do Estado e da ciência, e vista
como falsa consciência, considera que todo conhecimento é determinado por uma combinação
de pressões discursivas, institucionais e sociais. Dessa forma, alguns desses conhecimentos
desafiarão os discursos dominantes e outros o aceitarão, num jogo de configurações. Para esse
filósofo:
[…] em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo
controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de
procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu
acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade (FOUCAULT,
2014, p. 9).
Isso quer dizer que por trás de todo discurso existe uma ordem prestes a controlar o que
pode ou não ser dito. Por conseguinte, existem procedimentos de exclusão, o mais conhecido é
a interdição que consiste em três: “o tabu do objeto, ritual da circunstância, direito privilegiado
ou exclusivo do sujeito que fala” (FOUCAULT, 2014, p. 9).
Foucault, concebe o discurso não como um mero conjunto de signos que servem para
significar as coisas, é muito mais do que isso, defende a ideia de que o discurso é pratica que
forma sistematicamente os objetos de que fala. Ele renuncia a ver no discurso um fenômeno
meramente de expressão ou tradução verbal de uma síntese realizada em algum outro lugar,
busca nele um campo de regularidades para diversas posições de subjetividade:
O discurso, assim concebido, não é a manifestação, majestosamente desenvolvida, de
um sujeito que pensa, que conhece, e que diz: é, ao contrário, um conjunto em que
podem ser determinadas a dispersão do sujeito e sua descontinuidade em relação a si
mesmo. É um espaço de exterioridade em que se desenvolve uma rede de lugares
distintos (FOUCAULT, 1987, p. 61).
Pode-se dizer assim que a forma como esses três estudiosos pensam a língua, sem
deixar de relacioná-la com a história e tornando o sujeito imprescindível para a compreensão
do funcionamento da produção de sentido na sociedade é o ponto comum que os mantém unidos
na maneira de pensar o discurso. E como foi visto, Foucault e Bakhtin refletem sobre as
instâncias da sociedade em que os discursos são proferidos, o que leva o primeiro a falar de
uma ordem de discurso prestes a controlar o que pode ou não ser dito. Mas, reiterando
novamente, para o filósofo francês, o discurso seria uma dispersão de enunciados, que o analista
deve ordenar; e mais, o sujeito “não é a causa, origem ou ponto de partida do fenômeno de
articulação escrita ou oral de um enunciado e nem fonte ordenadora, móvel e constante, das
operações de significação que os enunciados viriam manifestar na superfície do discurso”
(BRANDÃO, 2004, p. 35).
Semelhante a essa não submissão do enunciado à consciência suprema de um sujeito,
Bakhtin diz o seguinte:
O enunciado é pleno de tonalidades dialógicas, e sem levá-las em conta é impossível
entender até o fim o estilo de um enunciado. Porque a nossa própria ideia – seja
filosófica, científica, artística – nasce e se forma no processo de interação e luta com
os pensamentos dos outros, e isso não pode deixar de encontrar o seu reflexo também
nas formas de expressão verbalizada do nosso pensamento (BAKHTIN, 2011, p. 298).
Ele, o sujeito, é constituído pelo discurso dos outros, pelas relações discursivas. O
enunciado é, portanto, não só a marca apenas de um indivíduo, mas se constrói também a partir
da relação com os outros. Não deve ser visto apenas como um objeto linguístico, mas como
acontecimento, prática social. E a determinação das regularidades desse enunciado “formação
discursiva”, evitando, como diz o próprio Foucault, palavras demasiado carregadas de
condições e consequências, inadequadas, aliás, para designar semelhante dispersão, tais como
‘ciência’, ou ‘ideologia’, ou ‘teoria’, ou ‘domínio de objetividade’ (FOUCAULT, 1987, p. 43).
Com isso, para Foucault até o modo como um indivíduo interpreta é condicionado pelas
formações discursivas. A formação discursiva consiste na descrição do sistema de dispersão
entre enunciados e na definição de uma regularidade (uma ordem, correlações, posições, etc.)
entre objetos a serem analisados, os tipos de enunciação, os conceitos e as escolhas temáticas
(FOUCAULT, 1987, p. 43).
Além desses dois pensadores mencionados, Michel Pêcheux defende uma posição de
referência a História em relação as questões linguísticas, o que para ele só se:
[…] justifica na perspectiva de uma análise materialista do efeito das relações de
classes sobre o que se pode chamar as ‘práticas linguísticas’ inscritas no
funcionamento dos aparelhos ideológicos de uma formação econômica e social dada:
com essa condição, torna-se possível explicar o que se passa hoje no ‘estudo da
linguagem’ e contribuir para transformá-lo, não repetindo as contradições, mas
tomando-as como efeitos derivados da luta de classes hoje em um ‘país ocidental’,
sob a dominação da ideologia burguesa (Pêcheux, 1995, p. 24).
Isso quer dizer que uma formação discursiva pode ser invadida por outra FD advinda
de outro lugar, ao explicar essa questão Pêcheux parte da tese de que “as palavras, expressões,
preposições, etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as
empregam” (PÊCHEUX, 1995, p. 160), o que equivale a dizer, em termos bakhtinianos, que a
palavra enquanto signo ideológico por excelência é a arena da luta de classes, e o seu sentido
dependerá da “formação ideológica”, o que leva Pêcheux a chamar, então:
[…] formação discursiva aquilo que, numa formação ideológica dada, determinada
pelo estado da luta de classes, determina o que deve ser dito (articulando sob a forma
de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa,
etc.) (PÊCHEUX, 1995, p. 160).
Desse modo, como dito anteriormente, nem tudo pode ser dito livremente, pois como
mostra Foucault o sujeito não é dono do seu discurso, porque a palavra de enunciação será
determinada pela formação ideológica a qual pertence. As palavras que enuncia dão a ilusão de
que é o dono do próprio discurso, quando na verdade não o é, está sob uma ordem de discurso,
de acordo com uma determinada estrutura, e mesmo porque, reiterando a firmação de Bakhtin,
a própria ideia – filosófica, científica, artística – nasce e se forma no processo de interação e
luta com os pensamentos dos outros.
Em suma, cada ideia é produzida por essas instâncias através de um reflexo e de uma
refração da realidade que as cria, a qual pertencem, são uma forma e um determinado conteúdo
ideológico, ou seja, enunciados diversos “relativamente estáveis” aos quais Bakhtin denomina
com a categoria bastante conhecida, “gêneros do discurso”, que serão tratados mais adiante.
Segue-se nesse estudo a seguinte questão defendida por Orlandi, na sua obra
introdutória Análise do discurso: princípios e procedimentos, em que a língua ao fazer sentido
apenas na história, como mostra Bakhtin, Pêcheux e Foucault, e visto que há por detrás dos
discursos certas ordens, que o colocam sobre uma determinada estrutura a partir de formações
ideológicas, resulta que a interpretação é regulada de a acordo com determinadas condições.
Assim mostra que o “gesto de interpretação se faz entre a memória institucional (o arquivo) e
os efeitos de memória (interdiscurso), podendo assim tanto estabilizar como deslocar sentidos.
Ser determinada não significar ser (necessariamente) imóvel” (ORLANDI, 2005, p. 48). Para
esse estudo se optou pela escolha do segundo, os efeitos de memória, denominado por
Maingueneau de interdiscurso, e dialogismo por Mikhail Bakhtin.
Antes de dar prosseguimento a essa abordagem é preciso fazer uma distinção entre os
sujeitos da enunciação e da análise do discurso. Para Orlandi:
A maneira como concebem o sujeito (na enunciação, o sujeito é um sujeito origem de
si; na argumentação o sujeito é o sujeito psicossocial; na Análise de Discurso, como
vimos, o sujeito linguístico-histórico, constituído pelo esquecimento e pela ideologia)
e o modo como definem o exterior (na pragmática o exterior é fora e não o
interdiscurso) marcam as diferenças teóricas, de distintos procedimentos analíticos,
com suas consequências diversificadas (ORLANDI, 2005, p. 91).
Inicialmente, uma característica do discurso midiático que precisa ser posta em questão
vai de encontro a essa afirmação do filósofo russo, e é muito bem explicada por Patrick
Charaudeau quando diz que “as mídias não transmitem o que ocorre na realidade social, elas
impõem o que constroem do espaço público” (CHARAUDEAU, 2006, p. 20). O que significa
que a informação por elas transmitida baseia-se numa visão particular construída dessa
realidade. A informação é uma questão de linguagem e como visto anteriormente a linguagem
não é pura como se nascesse sempre de um “grau-zero” toda vez que um sujeito dela faz uso;
nem é transparente de toda. Ao contrário, “ apresenta sua própria opacidade através da qual se
constrói uma visão, um sentido particular do mundo” (idem, 2006, p. 20). Por isso, as mídias
impõem sua própria interpretação da realidade, aquilo que elas constroem a partir dos
acontecimentos.
[…] uma lógica econômica que faz com que todo organismo de informação aja como
uma empresa tendo por finalidade fabricar um produto que se define pelo lugar que
ocupa no mercado de troca dos bens de consumo (os meios tecnológicos acionados
para fabricá-lo fazendo parte dessa lógica); e uma lógica simbólica que faz com que
todo organismo de informação tenha por vocação participar da construção da opinião
pública” (CHARAUDEAU, 2006, p. 21).
Essa finalidade ambígua das mídias de informação acaba influenciando as condições de
produção do discurso midiático que são construídos a partir de três lugares definidos por
Charaudeau: o lugar da condição de produção que compreende as práticas de organização
profissionais e realização do produto; o lugar de construção do produto que diz respeito a
organização estrutural semiodiscursiva segundo hipóteses sobre a co-intencionalidade
correspondente a “efeitos visados” e “efeitos possíveis” referentes a relação enunciador-
destinatário; e finalmente, o lugar das condições de interpretação que se baseia no alvo
imaginado pela instância midiática “efeitos produzidos” e nas instância de consumo do produto
“efeitos do produto”. Abaixo o esquema dos três lugares da máquina midiática:
São esses três lugares que constroem o sentido da máquina midiática, a partir dos quais,
segundo Charaudeau, é possível explicar a informação. A explicação virá a partir da análise
desses três lugares, que servirá para dizer o seguinte, que a informação não corresponde apenas
a intenção do produtor, nem apenas à do receptor, ela é sim, de fato, resultado da co-
intencionalidade, pois compreende “efeitos visados” e “efeitos possíveis”. Isso significa que o
discurso midiático se configura em texto a partir de uma organização semiodiscursiva na qual
são escolhidas as formas de um sistema verbal, e de diferentes sistemas semióticos: icônico,
gráfico, gestual. Assim, o sentido só é possível a partir do reconhecimento dessas formas pelo
receptor, da co-intencionalidade.
Em outras palavras, todo texto midiático se direciona a um receptor ideal, imaginado
pela instância midiática, que se encontra em dada condição de interpretação. É por isso, que
para Patrick Charaudeau, “toda análise de texto nada mais é do que a análise dos ‘possíveis
interpretativos’” (2006, p. 27), pois somente uma parte do texto produzido é interpretada.
“No que tange à comunicação midiática, isso significa que qualquer artigo de jornal,
qualquer declaração num telejornal ou num noticiário radiofônico, está carregada de
efeitos possíveis, dos quais apenas uma parte – e nem sempre a mesma –
corresponderá às intenções mais ou menos conscientes dos atores do organismo de
informação, e uma outra – não necessariamente a mesma – corresponderá ao sentido
construído por tal ou qual receptor” (CHARAUDEAU, 2006, p. 28)
Com base nessa explanação, é possível dizer que qualquer que seja o gênero do discurso
jornalístico: editorial, crônica, artigo de opinião, notícias etc., terá apenas uma parte das
intenções conscientes tanto daqueles que produzem os textos jornalísticos, quanto daqueles que
deveram recebê-los, os leitores, que são, em termos midiáticos, o alvo. Um leitor interpretará
um gênero determinado a partir da condição de interpretação em que está inserido. Condição
essa que é determinada pelas condições sociais. Tal concepção não está distante da que foi visto
acima (ver: 1.1), segundo a qual a própria formação ideológica condiciona os gestos de
interpretação, pois a língua que é histórica em essência interpela o sujeito, e neste caso o sujeito-
leitor, interlocutor, destinatário etc.
Sobre esse processo de cooperação entre locutor e leitor, Dominique Maingueneau, fala
em sua obra, Análise de textos de comunicação, do leitor-modelo e saber enciclopédico;
segundo o linguista, ao se tratar de um texto impresso, o destinatário ainda não é um “público
empírico”, mas uma imagem ideal que o sujeito que escreve almeja atingir, este sujeito atribui
a imagem certas aptidões: espera, assim, que o leitor possua uma competência linguística e uma
competência enciclopédica (MAINGUENEAU, 2004, p. 47). A competência enciclopédica diz
respeito aos saberes e scriptes (roteiros) acumulados ao longo da vida.
Comunicar, informar, é questão de “escolha” de conteúdos a transmitir, das formas
adequadas em acordo com a norma do bem falar, está sobretudo na escolha do efeito de sentido
para influenciar o outro, por fim, na escolha de “estratégias discursivas” (CHARAUDEAU,
2006, p. 30). Patrick Charaudeau considera a informação como discurso. Nesse âmbito do
informativo indaga sobre três elementos: a mencânica de construção do sentido, sobre a
natureza do saber que é transmitido e sobre o efeito de verdade que produz no receptor.
A mecânica de construção do sentido se refere aos processos de semiotização: de
transformação e de transição. Primeiro consiste na transformação do “Mundo a significar” em
“mundo significado”, estruturando o segundo através de categorias, expressas por formas.
Aborda: as categorias que identificam os seres do mundo nomeando-os, que aplica a eles
propriedades qualificando-os, as que descrevem as ações nas quais esses seres estão engajados
narrando, que fornecem os motivos dessas ações argumentando, que avaliam esses seres, essas
propriedades, essas ações e esses motivos modalizando. É nesse processo que o ato de informar
se inscreve porque deve descrever (identificar-qualificar fatos), contar (reportar
acontecimentos), explicar (fornecer as causas desses fatos e acontecimentos)
(CHARAUDEAU, 2006, p. 41).
B) Cena genérica – Trata-se aqui do gênero de discurso. Cada gênero define o seu
papel.
As cenas genéricas funcionam como normas que suscitam expectativas. Aos gêneros
estão associadas (MAINGUENEAU, 2015, p. 120):
Uma ou mais finalidades: supõe-se que que os locutores sejam capazes de atribuir
uma (ou várias) finalidades(s) à atividade da qual participam para poder regular
suas estratégias de produção e de interpretação dos enunciados.
Papéis para os parceiros: em um gênero de discurso, a fala vai de um papel a outro.
A cada um desses papéis são atribuídos direitos e deveres, bem como competências
específicas. Há papéis ‘estatuários’ (professor, presidente, comerciante…) E certas
atitudes durante a enunciação (entusiasmo, calma, benevolência…).
Um lugar apropriado para seu sucesso: pode se tratar de um lugar fisicamente
descritível (uma escola, um tribunal, uma sala de banquete…), mas, para a Web,
para emissões de rádio e de TV, para textos escritos, trata-se de espaços de outro
tipo.
Um modo de inscrição na temporalidade que atua em diversos eixos: a periocidade
ou a singularidade das enunciações, sua duração previsível, sua continuidade, seu
prazo de validade.
Um suporte: um “texto” não é um conteúdo que tomaria emprestado de maneira
contingente algum suporte (a oralidade do face a face, as ondas do rádio, o livro em
papel, uma tabuleta em argila…): ele é indissociável de seu modo de existência
material, tanto que ele próprio condiciona sua forma de transporte e,
eventualmente, de arquivamento.
Uma composição: dominar um gênero de discurso é ter uma consciência mais ou
menos clara de suas partes e de seu modo de encadeamento.
Um uso específico de recursos linguísticos: todo locutor tem à disposição um
repertório mais ou menos extenso de variedades linguísticas (quer se trate de
escolher entre diversas línguas ou dialetos ou entre diversos registros no interior da
mesma língua) e cada gênero de discurso impõe, tacitamente ou não restrições na
matéria.
Apesar desta caracterização ser útil para uma análise, Maingueneau diz que identificar
essas normas da cena genérica não é o bastante, pois “enunciar não é apenas ativar as normas
de uma instituição de fala prévia; é construir sobre essa base uma encenação singular da
enunciação: uma cenografia” (MAINGUENEAU, 2015, p. 122).
C) Cenografia – Esta noção se apoia na ideia de que o enunciador, por meio da
enunciação, organiza a situação a partir do que pretende enunciar.
Um romance pode muito bem ser enunciado por meio de uma cenografia do diário
íntimo, do relato de viagem, de uma conversa ao pé do fogo, de uma correspondência amorosa,
etc. A cenografia consiste na forma como o enunciador, por meio da enunciação, organiza a
situação da qual pretende enunciar (MAINGUENEAU, 2015, p. 123). É a cenografia que
legitima o discurso, pois é por meio dela que se tenta buscar a adesão do destinatário.
Essa noção elaborada por Maingueneau não se restringe a projeção de cenários
entendida como de praxe. Cenografia é a legitimação de um enunciado que deve legitimá-la.
Estabelecer que essa cenografia da qual a fala vem é precisamente a cenografia requerida para
enunciar como convém num ou noutro gênero de discurso (Idem, 123).
1.3.2 Ethos discursivo e cenografia
Aristóteles, em sua obra Retórica, é o primeiro autor que elabora conceitualmente a
noção de ethos, concepção que chegou até a contemporaneidade. De acordo com Dominique
Maingueneau, Aristóteles pretendia apresentar uma technè cujo objetivo era examinar o que é
persuasivo para tal ou qual indivíduo. A boa impressão pela forma como se constrói o discurso
e a imagem dada de si para convencer o auditório, no intuito de ganhar sua confiança, são o
essencial para se provar pelo ethos. O destinatário deve atribuir certas propriedades à instância
posta como fonte do acontecimento enunciativo (MAINGUENEAU, 2011, p. 13).
Em Aristóteles, o ethos está vinculado à própria enunciação, e não a um saber extra-
discursivo. Para convencer seus interlocutores, o locutor deveria ganhar sua confiança lhes
passando uma imagem de si positiva. Na formação dessa imagem deveria se valer de três
qualidades fundamentais: a pronesis, ou prudência, a aretè, ou virtude, e a eunoia, ou
benevolência.
Apesar do ethos estar associado ao locutor, visto ser ele a fonte da enunciação, é do
exterior que ocorre a caracterização do locutor pelo ethos, pois “o destinatário atribui a um
locutor inscrito no mundo extradiscursivo traços que são em realidade intradiscursivos, já que
são associados a uma forma de dizer” (MAINGUENEAU, 2011, 14). Ele, o ethos, mobiliza a
afetividade do destinatário, implica uma experiência sensível do discurso, “não se trata de uma
representação estática e bem delimitada, mas antes, de uma forma dinâmica, construída pelo
destinatário através do movimento da própria fala do locutor” (idem, 2011, p. 14).
O termo ethos é tratado por diversos campos. Seu sentido pouco especificado se presta
a múltiplos investimentos: na retórica, na moral, na política, na música… Até mesmo nos textos
de Aristóteles, se verifica que a noção é objeto de diversos tratamentos como na Política e na
Retórica.
Maingueneau estabelece uma distinção entre ethos discursivo e ethos pré-discursivo.
Para o linguista, o ethos está crucialmente ligado ao ato de enunciação, mas não se pode ignorar
que o público constrói representações do ethos do enunciador antes mesmo que ele fale. Isso se
deve a interação de fenômenos de ordens muito diversas na elaboração do ethos. Pois este se
elabora mediante “uma percepção complexa, mobilizadora da afetividade do intérprete, que tira
suas informações do material linguístico e do ambiente” (idem, 2011, p. 16).
Como se vê o ethos relaciona-se não só ao material linguístico, mas também aos
elementos extralinguísticos que influem na interação verbal tanto de um texto oral quanto
escrito. Em suma, o ethos “é um comportamento que, como tal, articula verbal e não-verbal,
provocando nos destinatários efeitos multi-sensoriais” (idem, 2011, p. 16).
Esses efeitos são diferentes tanto para o locutor quanto para o destinatário: o ethos
visado não é necessariamente o ethos produzido. Um professor que queira passar uma imagem
de muita cordialidade e gentileza pode ser interpretado como sendo superficial demais, outro
que queira passar uma imagem mais séria e ortodoxa pode ser percebido como monótono; um
político que queira se passar por um indivíduo aberto e amigo do povo, pode ser visto como
demagogo.
Maingueneau assinala a variação da concepção de ethos que pode ser concebido:
- Como mais carnal ou menos carnal, concreto ou mais ou menos “abstrato””. Tudo
depende, antes de qualquer outra coisa, do modo como se traduz o termo ethos: caráter, retrato
moral, imagem, costumes oratórios, feições, ar, tom… Pode-se privilegiar a dimensão visual
(“retrato”) ou a musical (“tom”), a psicologia vulgarizada (“caráter”).
- Como mais ou menos saliente, manifesto, singular vs coletivo, partilhado, implícito
e visível.
- Como mais ou menos fixo, convencional vs ousado, singular. É evidente que existem,
para um dado grupo social, ethe fixados, que são relativamente estáveis, convencionais. Mas
não é menos evidente que existe também a possibilidade de jogar com esses ethe convencionais.
Sobre certos princípios mínimos, Maingueneau está de acordo:
- o ethos é uma noção discursiva, ele se constrói através do discurso, não é uma
“imagem” do locutor exterior a sua fala;
- o ethos é fundamentalmente um processo interativo de influência sobre o outro;
- é uma noção fundamentalmente híbrida (sócio-discursiva), um comportamento
socialmente avaliado, que não pode ser apreendido fora de uma situação de comunicação
precisa, integrada ela mesma numa determinada conjuntura sócio-histórica.
A concepção de ethos proposta por Dominique Maingueneau se inscreve no quadro da
análise do discurso e sobre corpora de gêneros “instituídos”, que opõe aos gêneros
“convencionais. Sobre isso o linguista francês diz o seguinte:
A perspectiva que defendo ultrapassa em muito o domínio da
argumentação. Para além da persuasão por meio de argumentos, essa noção de ethos
permite refletir sobre o processo mais geral de adesão dos sujeitos a um certo discurso.
Fenômeno particularmente evidente quando se trata de discursos como a publicidade,
a filosofia, a política etc., que – diferentemente dos discursos que revelam de gêneros
“funcionais”, como os formulários administrativos e os manuais de instrução – devem
ganhar um público que está no direito de ignorá-los ou recusá-los (MAINGUENEAU,
2011, p. 17).
Neste trecho é perceptível a divergência da noção formulada por Maingueneau, pois
não há a restrição do ethos apenas a retórica, ao processo de convencimento por meio da
argumentação. Ele entende que o ethos permite “refletir” sobre o processo de “adesão” dos
sujeitos a um certo discurso. Em cada discurso os sujeitos se manifestam de modo diferente.
Discursos tais como a filosofia, a política, devem ganhar um público. O enunciador provoca
um efeito no público-destinatário. Entretanto esses efeitos não são impostos pelo sujeito.
Na realidade, do ponto de vista da AD, esses efeitos são produzidos pela formação
discursiva. Dito de outra forma, eles se impõem àquele que, no seu interior, ocupa um
lugar de enunciação, fazendo parte integrante da formação discursiva, ao mesmo título
que as outras dimensões da discursividade. O que é dito e o tom com que é dito são
igualmente importantes e inseparáveis” (MINGUENEAU, 1997, p. 45).
Tanto o editorial quanto o artigo de opinião são produtos de um sujeito que escreve para
outros sujeitos, em um dado momento, sobre um fato noticioso, atual e, muitas vezes, polêmico.
Os editoriais e os artigos de opinião, portanto, são reconhecidos, dentro do domínio discursivo
jornalístico, pelo estilo opinativo e suporte argumentativo com a finalidade de persuadir.
Tais textos caracterizam-se por expressar a opinião do jornal e a opinião da instituição
que representam em relação aos acontecimentos, em geral, mais polêmicos. Como salientado,
pode-se entender que o editorial é um texto que emite uma opinião, a do jornal. Diferentemente,
o artigo de opinião emite a opinião de um autor, seja um jornalista, seja um colaborador. Em
geral, os textos opinativos, no domínio jornalístico, por abordarem temas polêmicos e atuais,
podem propiciar ao leitor a concordância ou a discordância de opinião. Essa é a principal
característica do artigo de opinião, ao contrário do editorial, que apresenta uma tendência mais
expositiva, ainda que também calcada na argumentatividade.
É válido dizer, nos termos bakhtinianos, que o editorial pertence aos gêneros
secundários, que se caracterizam pela complexidade de sua elaboração. Assim, diz Moura sobre
essa condição dos editoriais que “como gêneros secundários, são fruto de uma escolha pensada
ou mais premeditada pelo autor, que, ao inseri-los em outros espaços genéricos produz a sua
encenação discursiva” (MOURA, 2002, p. 76).
Ao propor uma definição de gênero de informação Charaudeau (2006), o faz segundo o
resultado do cruzamento entre tipo de instância enunciativa, um tipo de modo dsicursivo, um
tipo de conteúdo e um tipo de dispositivo:
O tipo de instância enunciativa se caracteriza pela origem do sujeito falante. Origem que pode
estar na própria mídia (um jornalista) ou fora da mídia (um político, um especialista, uma
personalidade convidada a falar-escrever na mídia).
O tipo de modo discursivo transforma o acontecimento midiático em notícia, atribui a esse
acontecimento propriedades dependentes do tratamento geral da informação. Organizam-se
em torno de três categorias: "relatar o acontecimento" , "comentar o acontecimento" ,
"provocar o acontecimento". Com isso é possível distinguir os seguintes gêneros discursivos:
a reportagem ("acontecimento relatado"), o editorial ("acontecimento comentado") e o debate
("acontecimento provocado").
O tipo de conteúdo temático constitui o macrodomínio abordado pela notícia de política
nacional ou estrangeira, acontecimento esportivo, cultural etc.
O tipo de dispositivo, especifica os textos e diferencia os gêneros de acordo com o suporte
(imprensa, rádio, televisão).
Charaudeau constrói sua tipologia baseada numa hierarquização: para ele é necessária
uma tipologia de base que entrecruze os principais modos discursivos do tratamento da
informação (“acontecimento relatado”, “acontecimento comentado”, “acontecimento
provocado”) colocados sobre um eixo horizontal, e os principais tipos de instâncias
enunciativas (instância de “origem externa”, instância de “origem interna”), às quais superpõe-
se um grau de engajamento (+/-), colocados sobre um eixo vertical. Abaixo um a figura
ilustrativa dessa tipologia:
Coletivismo Individualismo
Inovação Conservadorismo
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. Estética da criação verbal. Tradução: Paulo Bezerra. – São
Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.
BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Tradução: Maria Lúcia Machado. – Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 1997.
BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à análise do discurso. – Campinas, SP: Editora
da UNICAMP, 2004.
CARBONI, Florence. Introdução à linguística. – Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. Tradução: ANgela S.M. Corrêa. – São Paulo:
Contexto, 2006.
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