CARLOS REIS
Dicionario
de Estudos
Narrattvos
ALMEDINAPrefacio
Passaram mais de trinta anos, desde que dois jovens universitarios
meteram ombros a tarefa de escrever um Diciondrio de narratologia. A ousadia
da empresa juntou-se, nesse tempo que recordo com alguma nostalgia, 0
entusiasmo de desbravar um terreno que, se nao era novo, tinha muitas coisas
por descobrir. Assim fizemos, a minha colega Ana Cristina Macério Lopes
eeu, quando a informatica para uso pessoal estava a comecar (alguns ainda
se lembrarao das majestosas dimensdes de um computador doméstico dos
de entao...), a internet era coisa desconhecida e o intercambio académico
escasso. Tinhamos, porém, o fervente entusiasmo que muito compensa e havia
estudantes em farta quantidade e qualidade, disponfveis para acolherem o
trabalho de investigacéio de quem 0 fazia com empenhamento e seriedade.
O Diciondrio de narratologia andou 0 seu caminho e nao foi ele curto.
No tempo de vida que conheceu, desde 1987, publicaram-se em Portugal
nove edic6es e reimpressdes, no Brasil apareceu uma versa condensada,
com 0 titulo Diciondrio de teoria da narrativa, e em Espanha sairam duas
edigdes. Acredito que, se os autores tivessem consentido novas reimpress6es
depois de 2011 (ano da tiltima publicagao entre n6s), ainda hoje 0 Diciondrio
de narratologia teria clientela. Nao seria sério nem seria pertinente fazé-lo,
porque se trataria de uma op¢ao comercial e nada mais.
Do final do século xx para cé, a narratologia mudou substancialmente:
abriu-se a novos campos de estudo e desdobrou-se em movimentos inter-
disciplinares que incorporaram no seu trabalho novos conceitos, novos
métodos e novos olhares sobre a narrativa. Aqueles que, nesse final de
século, se apressaram a fazer o funeral da narratologia terao talvez ficado
surpreendidos com a complexidade e com a fecunda diversidade dos estudos
narrativos que dela floresceram. Cabe neles muito do que importa fazer,
quando estudamos a narrativa com um sentido de exigéncia operatoria que
6 4rduo mas necessario, se quisermos ir além (muito além) de aproximagdesPrefitcio 12
meramente impressionistas, politicamente motivadas ou fidelizadas a causas
circunstanciais. A famosa crise das Humanidades passa justamente pela
perda daquele sentido de exigéncia, coisa que muitos tardam em entender,
na universidade e fora dela.
Cabe perguntar o que sobrevive do quase arcaico Diciondrio de narratologia
neste livro de titulo novo. Restam algumas coisas, outras mudaram, muitas
mais emergiram como consequéncia da evolugao a que brevemente aludi.
Oque vem do Diciondrio de narratologia e uma parte do que nele mudou tem
e tera, em grande medida, a marca da minha coautora de entao, a quem
devo a experiéncia de uma camaradagem e de um didlogo cientffico que
nao esquecerei. Isso nao se apaga deste Diciondrio de estudos narrativos, cuja
construgao e escrita assumi por inteiro, porque a minha colega seguiu
outros rumos e afastou-se daquilo a que hoje chamamos estudos narrativos.
Ficdmos a perder com isso (eu, sobretudo), valendo como consolacao que a
lingufstica portuguesa tem hoje, em Ana Cristina Macdrio Lopes, um dos
seus vultos mais destacados.
Entretanto, a minha colega generosamente consentiu que, neste livro novo,
eu retomasse entradas do Diciondrio de narratologia em que é forte o timbre
da sua autoria (na altura optémos por nao assinar as entradas, até porque
uma boa parte delas foram escritas a quatro maos). Aquele consentimento
nao dispensa, contudo, o registo, quando tal se justifica, de uma coautoria
que fago questa de manter viva. Por outro lado, as frequentes remissdes
para o Diciondrio de narratologia — obra que, evidentemente, nao enjeito — s40
ainda o testemunho de um trabalho que, de facto, foi coletivo - ou dual, se
se preferir. Para além disso (e da supressao de matérias cuja presenga neste
novo dicionario entendi nao fazer jé sentido), tudo o que vem daquele passado
foi profundamente refundido, reescrito e atualizado. Assim tinha de ser.
Continua presente nesta obra, como é dbvio, a légica do diciondrio, Foi
ela que motivou um complexo trabalho de arquitetura de uma disciplina
que tem coeréncia propria, légica operatéria e legitimidade epistemo-
logica. Um diciondrio que nao resulte de um esforco de sistematizagao
e de harmonizacao conceptual ~ sem prejuizo de inevitdveis extensdes
transdisciplinares ~ nao fard sentido ou seré um mero agregado de termos
aleatoriamente recolhidos. Isto nao significa que aquela arquitetura seja
facil de conseguir, razao pela qual sempre sera possivel notar lacunas,
redundancias ou desajustamentos; 0 acolhimento e a resposta dos leitores
serio decisivos para que, em futuras edigdes, esta obra fique menos longe
daquela perfeigao que sé alguns deuses alcangam.