Professional Documents
Culture Documents
Texto originalmente publicado no blog “Reação Adventista“. Para ler na página original,
clique aqui.
Bom, se Jesus foi literal ao dizer estas palavras, devemos considerar que elas se
estendem para todo e qualquer tipo de agressão sofrida. Isso quer dizer que,
embora Jesus tenha dado apenas três exemplos, devemos aplicar o pensamento a
outros. Sendo assim, segue-se que: (1) Se alguém vier com um pedaço de pau, te
der uma cacetada na cabeça e você não desmaiar, ofereça o outro lado da cabeça
também; (2) Se alguém vier com um caco de vidro e te cegar um olho, ofereça o
outro olho também; (3) Se você é uma menina e um rapaz vem te beijar à força,
ofereça outro beijo; (4) Se uma pessoa do seu mesmo sexo que você quiser te
beijar à força, também deixe e ofereça outro beijo; (5) Se um estuprador quiser te
violentar…
Como fica claro, interpretar as palavras de Jesus como sendo literais traz
implicações nefastas. E essas implicações não parecem possuir qualquer ligação
com os preceitos cristãos, tampouco possuem alguma utilidade racional. Ao
contrário, quando interpretamos Mateus 5:39-41, estamos dizendo que os
cristãos devem assumir uma postura de covardia e desvalorização da própria
vida, o que não são virtudes cristãs. O cristão, como criatura de Deus, deve zelar
por sua vida, a qual não pertence a si mesmo, mas é um dom de Deus. Deve
ainda cultivar a coragem em todos os sentidos, já que a própria Palavra ensina
que de fora do céu ficarão os covardes (Ap. 21:8). Ser corajoso, no sentido cristão,
é não permitir que o medo nos paralise e nos impeça de fazer nossas obrigações.
Isso inclui, evidentemente, a obrigação de proteger nosso corpo, nossa saúde,
nossa vida, bem como nossa família, nosso próximo e nossos bens (sim, os bens,
já que eles também provém de Deus).
Alguém poderá argumentar aqui que os mártires entregaram seus corpos e suas
vidas em nome de Cristo e que, portanto, não seria correto tomar uma atitude de
proteção da própria vida. Talvez até me citem Mateus 16:25: “Pois quem quiser
salvar a sua vida, a perderá, mas quem perder a vida por minha causa, a
encontrará”. A argumentação não é válida. Em primeiro lugar, porque eu não
estabeleci a autoproteção como princípio máximo. Há ocasiões em que o
sacrifício do próprio corpo ou da própria vida será necessário a fim de alcançar
um bem maior. A autoproteção vigora como princípio básico apenas enquanto
não há nada mais importante que a sua própria vida em jogo. No momento em
que sua vida se torna secundária em função de algo superior, o sacrifício não só é
permitido como é a cosia certa a se fazer. Num caso desse, negar a sua vida
torna-se egoísmo. Essa é, aliás, a argumentação que faz G. K. Chesterton (grande
pensador cristão) em um trecho de “Ortodoxia”, onde pontua a diferença entre
um mártir e um suicida. Em um dos parágrafos ele afirma:
Em primeiro lugar, a preocupação central de Jesus não é com o fato de que Pedro
está armado, nem com o uso que o mesmo faz da arma para enfrentar o soldado
que prendia Cristo. A preocupação central de Jesus está no fato de que Ele possuía
uma missão clara e que não poderia ser frustrada: morrer pela humanidade. Em
outras palavras, ele precisava se entregar. Qualquer pessoa que, naquele
momento, intentasse salvá-lo estaria se tornando literalmente um obstáculo aos
planos de Deus. O contexto do da própria passagem de Mateus deixa isso claro.
Nos versos que se seguem Jesus afirma: “Acaso, pensas que não posso rogar ao
meu Pai, e Ele me mandaria neste momento mais de doze legiões de anjos?
Como, no entanto, se cumpririam as Escrituras, segundo as quais assim deve
suceder?” (Mateus 26:53-54). Aqui Jesus deixa claro que está se deixando
prender porque faz parte de sua missão. Cristo está literalmente dizendo: “Não
quero sua ajuda, Pedro. Eu vim exatamente para isso”.
A mesma ideia é expressa de modo mais direto no evangelho de João. Ele relata o
episódio da seguinte maneira: “Mas Jesus disse a Pedro: ‘Mete a espada na
bainha; não beberei, porventura, o cálice que o Pai me deu?'” (João 18:11). Ou
seja, a parte central da repreensão é que Pedro estava lutando contra os planos de
Deus. O problema não estava no uso da espada, mas no momento, que era
inoportuno. Marcos, ao narrar a mesma cena, sequer vê a necessidade de relatar
a repreensão de Jesus feita a Pedro. Limita-se a descrever: “Nisto, um dos
circunstantes, sacando da espada, feriu o servo do sumo sacerdote e cortou-lhe a
orelha” (Marcos 14:47). Já Lucas resume a repreensão de Cristo na seguinte
frase: “Mas Jesus acudiu, dizendo: ‘Deixai, basta’. E, tocando-lhe a orelha, o
curou” (Lucas 22:51). Em suma, nenhum dos textos oferece qualquer margem
para que Jesus estivesse fazendo uma teologia antirreação e antiarmas. Supor
isso é forçar os textos a dizerem o que eles não dizem; enfatizar nos textos o que
eles não enfatizam; deixar de lado o que realmente os escritores bíblicos querem
chamar a atenção no evento narrado.
Em segundo lugar, quando Cristo afirma que “todos os que empunham a espada,
pela espada morrerão”, deve-se ter em mente o contexto histórico da época.
Israel vivia sob domínio do Império Romano, cujo poderio militar era
incrivelmente grande. Roma tinha poder para massacrar qualquer grupo de
rebeldes que desejasse. Se, portanto, os discípulos iniciassem seu ministério
empunhando espadas por aí, rapidamente seriam vistos por Roma como
rebeldes. Principalmente se esses discípulos viessem a matar algum soldado
romano. O resultado disso seria, sem dúvida alguma, um rápido extermínio por
parte do Império. As palavras de Jesus estavam, na verdade, traçando uma
distinção entre a missão de um soldado e a missão de missionário. A missão do
soldado é lutar fisicamente e o seu fim geralmente é a morte pelas próprias
armas que utiliza. A missão do missionário, entretanto, era viajar por centenas de
lugares pregando o evangelho. Longe de estar condenando a missão de um
soldado, Jesus estava apenas enfatizando que os discípulos não eram soldados,
mas missionários. Não há como ser as duas coisas. Não por haver alguma
contradição moral, mas por haver uma incompatibilidade de missões.
Em suma, Jesus não queria que Pedro ou seus demais discípulos fossem
soldados, mas missionários. A expansão da Igreja necessitava disso. Cristo
necessitava de homens dispostos a abnegar até mesmo seus direitos mais
básicos, como o da autoproteção e o da reação, a fim de unicamente anunciar o
evangelho e manter intacto o caráter do mesmo. O contexto exigia isso. E ser
missionário requer essa abnegação.
De tal fato não se pode depreender que todas as pessoas devem ser missionárias.
Missionário, no senso estrito da palavra, é aquele que trabalha integralmente
com o evangelho. Este é totalmente guiado pela missão evangelítica. Ele não
pregará onde mora; morará onde precisa pregar. Ele não pregará para onde viaja;
viajará para onde precisa pregar. Se precisar trabalhar, ele trabalhará para
sustentar sua missão. Não pregará onde trabalha, trabalhará onde precisa pregar.
O missionário estará pronto para abnegar todos os seus direitos/desejos se for
necessário. Talvez o sonho de fazer faculdade, de ser juiz, de ir à Disney, de
morar na Suíça, de ser rico, de casar, de ser um jogador de futebol. Ele não é mais
um homem da sociedade. Ele é um ambulante, um peregrino, um nômade de
futuro incerto que se movimenta em função de sua missão. O missionário é o
oposto do homem cristão da sociedade, que desempenha a missão evangelística
de acordo com as raízes que fincou na sociedade.
Em suma, não há como utilizar o texto de Mateus 26:52 para sustentar que seria
pecado buscar autoproteção ou reagir a agressões físicas. A passagem deve ser
entendida dentro de seu contexto bem específico, no qual: (1) Pedro não deveria
sacar sua arma naquele momento, pois Cristo necessitava morrer pelo ser
humano; (2) os discípulos não deveriam parecer um grupo paramilitar, a fim de
não distorcerem o caráter do evangelho, nem serem vistos pelo Império Romano
como uma ameaça; (3) os discípulos não deveriam ser soldados, mas como
missionários, abdicando de alguns direitos legítimos para pregar o evangelho
intensa e integralmente, espalhando-o pelo mundo. Interpretar além disso é
forçar o texto.
O cristão passivo pode tentar argumentar ainda com base em algumas ideias
extraídas da Bíblia tais como: “O cristão deve ter fé em Deus e não em armas
para protegê-lo”, ou ainda: “O cristão não deve agredir ninguém, mas amar”.
Ora, essas ideias são distorções das Escrituras. Analisemos a primeira. Apela-se
para a fé em Deus para protegê-lo. É óbvio que devemos ter fé em Deus sempre,
mas isso não nos proíbe, tampouco nos exime de fazer a nossa parte. Se a fé em
Deus nos desobrigasse de tomar medidas para nossa proteção, não faria sentido
trancar a porta de casa com chave, ter extintor no carro, usar cinto de segurança,
comprar um computador com garantia de fábrica, guardar pertences valiosos em
um cofre, ir ao médico e etc. Na verdade, o próprio Jesus diz a Satanás: “Não
tentarás o Senhor teu Deus”. E o texto bíblico que afirma: “Se o Senhor não
guardar a cidade, em vão vigia a sentinela” (Salmo 127:1), não exclui a
necessidade de um sentinela, embora ele nada possa se Deus não estender sua
proteção. O mundo que Deus criou funciona por meio de leis naturais. Não
devemos viver nele como se vigorasse a magia. Na vida real devemos fazer a
nossa parte à todo o momento. Deus fará a dEle. Ter uma arma ou aprender artes
marciais podem ser atitudes importantes para se proteger ou proteger a outros.
Não há qualquer passagem bíblica que desabone esse tipo de conduta. Pelo
contrário, trata-se de algo prudente. E Deus poderá salvar pessoas através disso,
inclusive.
Quanto à segunda ideia, perceba que ela distorce o amor. É evidente que amar não
implica permitir que coloquem em risco sua vida ou a vida de alguém ao redor.
Imagine que você está andando na rua e encontra um sujeito tentando se
aproveitar de sua filha. Qual será sua postura? Deixar que o sujeito abuse de sua
filha, alegando que precisa amá-lo e não agredi-lo? Ou tentará salvar sua filha,
apartando-o com sua força física ou algum instrumento de proteção? Tenho
certeza de que sua postura será a segunda. Não é diferente quando se trata de
nossa própria vida em jogo. É perfeitamente possível ser um cristão amoroso,
perdoador e que ajuda ao próximo, mas, ao mesmo tempo, que reage quando sua
vida ou a vida de pessoas ao seu redor está em perigo.
Enfatizo que toda essa reflexão se refere à autoproteção e não ao uso da violência
como forma de vingança, justiça própria e retaliação. A Bíblia é bem clara ao
dizer que não devemos nos vingar, no âmbito moral, pois a “vingança” pertence
a Deus. E, no âmbito civil, também não devemos buscar justiça com as próprias
mãos, pois cabe ao Estado julgar, através do corpo de leis vigentes e de juízes
preparados para isso. O próprio princípio do Antigo Testamento “olho por olho,
dente por dente”, não passava de uma regra jurídica aplicada apenas por juízes,
após um julgamento formal, para determinados tipos de crimes – a saber, crimes
de agressão física à inocentes ou falso testemunho (Êxodo 21:22-25, Levítico
24:19-20 e Deuteronômio 19:15-21). Aliás, a crítica de Jesus, no Sermão do
Monte, ao princípio “olho por olho, dente por dente” não se referia a sua
aplicação jurídica, a qual era legal, mas sim à sua aplicação no âmbito moral. Em
outras palavras, muitos utilizavam o princípio como uma justificativa para odiar
e retaliar, buscando vingança e justiça com as próprias mãos. Jesus, portanto, faz
uma clara distinção entre princípio jurídico e princípio moral, estabelecendo que,
no âmbito moral, o individuo deveria estar pronto para liberar perdão, e no
âmbito jurídico, deveria deixar o julgamento e a punição à cargo dos juízes. Essa
deve ser a postura cristã.
Deixe um comentário
Voltar ao
Direitas Já!
topo