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FILME DOCUMENTAL, ETNOGRAFIA E HISTÓRIA ORAL

Áurea Pinheiro
Universidade Federal do Piauí - UFPI.
E-mail: aureapazpinheiro@gmail.com.

Cássia Moura
E-mail: cássia.moura@gmail.com

A nossa proposta neste texto é apresentar alguns desafios e inquietações impostos ao


historiador, tão habituado a manusear fontes escritas de arquivos públicos ou particulares,
mas que se vê diante da possibilidade de trabalhar com outras fontes e orientações, com a
pesquisa participativa e métodos da antropologia e etnografia, com recursos audiovisuais e
com a fotografia documental.
Ao longo dos últimos três anos, realizamos pesquisas de natureza histórico-
etnográfica, que nos permitiu olhar a história, a etnografia, o filme e a fotografia documental
como instrumentos capazes de capturar formas, cores, movimentos, dramatizações,
teatralizações e diálogos mediados entre devotos e santos protetores.
As pesquisas que realizamos até agora têm como mote norteador as relações entre
memória, cultura, identidades e patrimônio cultural; a proposta tem sido estudar “História e
Patrimônio: santos e devotos na tradição brasileira” 1.
Narramos histórias de fé, de religiosidade e de espiritualidade. Histórias de devoção
popular que marcam o cotidiano de comunidades, que definem, aprofundam e fortalecem
os vínculos de indivíduos uns com os outros e com seus ancestrais. Histórias presentes nas
ruas, nas praças, nas casas, nos lugares de memória vivenciados, praticados e consumidos
por fiéis em rituais, festas e celebrações tradicionais da cultura brasileira, nordestina e
piauiense em particular. O convívio com os praticantes em suas comunidades nos permitiu

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O projeto “Memória, Cultura, Identidades e Patrimônio Cultural” é financiado pela Fundação Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes, em parceria com o Ministério da Cultura. A intenção
dessas instituições é implantar redes de cooperação acadêmica no País em Cultura, com vistas ao
estabelecimento de convênio de fomento no âmbito do Programa de Apoio ao Ensino e à Pesquisa Científica
em Cultura.
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compreender que não existem histórias sem sentido e que é preciso encontrá-las até mesmo
onde os outros não as vêem.2
Ao longo do trabalho estivemos convictos que a pesquisa não é capaz de repor a
originalidade da realidade vivida e sentida no trabalho de campo, levando-se em
consideração um conjunto de variáveis que a pesquisa eventualmente não dá conta, e a
própria inscrição da cultura na temporalidade submete a mudanças. Não temos como
apreender a totalidade, a complexidade do real, daí porque a nossa descrição
pretensamente densa é parcial (GEERTZ, 1989).
A questão que orienta este texto está centrada, sobretudo, nas dúvidas e inquietações
que nos movem, interesses e paixões que nos possibilitam repensar o lugar social que
ocupamos no mundo dentro e fora da academia.
Os desafios impostos ao nosso trabalho dizem respeito às apropriações do método
etnográfico, que se materializa em conhecimento e observação direta de grupos humanos,
de culturas que estudamos, mas também no diálogo que, na condição de historiador,
estabelecemos com as fontes de arquivos tradicionais, considerados aqui aqueles que
guardam um acervo de documentos escritos. Sabemos que hoje há uma multiplicidade de
arquivos e acervos, em diversos suportes. Desde aqueles que guardam documentos escritos,
àqueles que guardam acervos audiovisuais. Outra questão desafiadora é que a etnografia
trata de um tempo presente e, portanto, dispensaria documentos escritos. Mas os objetos

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O projeto conta com 07 trabalhos em andamento, quatro deles resultarão em dissertações de mestrado em
História e os demais em TCC de graduação. Realizamos o INRC – Inventário Nacional de Referências Culturais
da Arte Santeira do Piauí, 2007 a 2008. Já publicados os livros “Celebrações” [2009], “Senhores de seu ofício”
[2009] e “Cadernos do Patrimônio Cultural do Piauí” [2009]; em fase de editoração e publicação o livro
“Tempo, Memória e Patrimônio” [2010], obra coletiva organizada por Áurea Pinheiro [UFPI] e Sandra Pellegrini
[UEM]. Já foram produzidos os documentários etnográficos “Passos de Oeiras” [2008], “Congos: ritmo e
devoção” [2009] e o vídeo educativo “Piauí: história, memória e patrimônio cultural” [2008]. Em fase de
produção o documentário etnográfico “As escravas da mãe de deus” [2010], com apoio e patrocínio da
Associação Cultural de Amigos do Museu de Folclore Edison Carneiro [ACAMUFEC], em parceria com o Centro
Nacional de Folclore e Cultura Popular [CNFCP], do Departamento de Patrimônio Imaterial [DPI], do Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional [IPHAN], com patrocínio da Petrobras, via Edital de Apoio à
Produção de Documentários Etnográficos – Etnodoc 2009, que tem como objetivo a documentação e difusão
do Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro por meio do apoio à produção de documentários inéditos para
exibição em TVs públicas. Já realizamos a 1ª edição do congresso internacional de história e patrimônio cultural
[2008] e estamos em fase de organização da 2ª edição do mesmo congresso [outubro de 2010], em Teresina,
Piauí, na Universidade Federal do Piauí, com apoio do Programa de Pós-Graduação em História. Projetos e
ações que fazem parte das atividades de pesquisa do Grupo CNPq “Memória, Ensino e Patrimônio Cultural”.
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de estudo da etnografia não são repletos de temporalidades? Não é preciso compreender a


historicidade das culturas?
É preciso pensar em histórias no plural, entender que o conhecimento do passado
permite uma compreensão mais profunda do presente, que a história não é uma mera
sucessão de eventos, mas uma constante relação entre eles. É preciso nos valer do estudo
crítico das fontes, compreendermos as mudanças e as permanências nas culturas que
estudamos.
Entre 2007 e 2008, realizamos o INRC [Inventário Nacional de Referências Culturais] da
Arte Santeira do Piauí. O objetivo era narrar e discutir histórias imersas no contexto do ofício
e modos de fazer da Arte Santeira. Histórias presentes nos bairros das cidades de Teresina,
José de Freitas, Campo Maior, Pedro II e Parnaíba. Histórias de escultores, entalhadores,
santeiros. Homens que vivem como artesãos e têm um modo singular de produzir a Arte
Santeira. A pesquisa em parte foi orientada pelo Manual de Aplicação, ferramenta teórico-
metodológica do INRC.

O INRC é, antes, um instrumento de conhecimento e aproximação do objeto de


trabalho do Iphan, configurado nos dois objetivos principais que determinaram sua
concepção:
1. identificar e documentar bens culturais, de qualquer natureza, para atender à
demanda pelo reconhecimento de bens representativos da diversidade e
pluralidade culturais dos grupos formadores da sociedade; e
2. apreender os sentidos e significados atribuídos ao patrimônio cultural pelos
moradores de sítios tombados, tratando-os como intérpretes legítimos da cultura
local e como parceiros preferenciais de sua preservação. (CORSINO, 2000:8).

A metodologia da História Oral (ALBERT, 2004; THOMPSON, 1992; FREITAS, 2006) foi
utilizada para complementar os instrumentos de pesquisa presentes no Manual de Aplicação
e realizar os registros dos trabalhos de campo. Priorizamos as entrevistas temáticas com os
santeiros, destacando o ofício e os modos de fazer. A inserção dessas diferentes vozes em
nosso texto, ainda que transcritas e manipuladas segundo as orientações do Manual de
Aplicação, pretendeu ampliar a abordagem do discurso científico em direção a
interpretações outras, advindas dos próprios praticantes da Arte Santeira.
O estudo de fontes tradicionais [escritas], as entrevistas temáticas e a convivência com
os informantes permitiram ler a Arte Santeira como um artefato representativo da cultura
local-regional e, por conseguinte, brasileira. As entrevistas, mesmo privilegiando questões-
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problemas, nos possibilitaram conhecer as trajetórias de vida dos santeiros, que têm a sua
arte assinalada por uma religiosidade popular típica do Nordeste brasileiro, com vivências e
experiências rurais e urbanas; marcadas por uma espiritualidade peculiar, expressões
devocionais recorrentes de um diálogo entre as diversas culturas que forjaram e têm
reelaborado temporalmente a identidade brasileira e nordestina em particular.
O trabalho de campo nos colocou desafios de método e epistemológico, sobretudo, no
que tange à produção de conhecimento sobre o Outro. Como estabelecer um diálogo entre
os pesquisadores e os praticantes da Arte Santeira, os produtores dos bens culturais que
inventariamos? Como estabelecer uma comunicação entre os praticantes, informantes,
interlocutores, mediadores e os processos de produção?
Ao longo da pesquisa foi possível encontrar vestígios de artistas populares ligados à
arte santeira nos tempos de ocupação do território piauiense, quando os jesuítas iniciaram o
processo de catequese das populações que habitavam a região, momento em que os rituais
tradicionais católicos se misturaram à devoção popular de culto às imagens, novenas,
procissões e pagamento de promessas com a produção de ex-votos, capelas e altares
domésticos.

Essa contribuição cultural de escravos e índios ter-se-á materializado, sobretudo,


na construção dos templos e em sua decoração. Na talha de retábulos e confecção
das peças do culto coletivo e que alimentavam, até o advento dos moldes para
gesso, a infinidade de oratórios domésticos de que viveu a fé de uma colônia
obcecada pela idéia de pecado.
Notáveis foram, desde o início da colonização, as reinterpretações artísticas de
concepções européias, por mestres nativos; como notáveis os mestres artistas do
povo que, no interior mais distante, criaram as imagens de que o culto não
prescindia e a pobreza material das comunidades não permitia importar.
(CARVALHO JÚNIOR, 1993:19).

Na imaginária produzida pelos artistas populares está presente o ex-voto, que designa
uma variedade de objetos doados por fiéis aos santos de sua proteção como forma de
agradecimento por um pedido atendido. A prática de trocas simbólicas entre o santo e o
devoto é uma manifestação artística que se liga diretamente à arte religiosa e popular desde
os primórdios da colonização portuguesa no Brasil. As motivações do presente votivo são
muitas. No Piauí, os pedidos mais recorrentes são quanto à cura de doenças e se
materializam em esculturas produzidas por artesãos santeiros, que esculpem em madeira as
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partes do corpo afetadas por moléstias – perna, cabeça, mão, coração etc. Essas esculturas
produzidas em madeira são deixadas pelos fiéis em locais públicos – capelas ou sala de
milagres.
Com o processo de colonização portuguesa no Brasil e no Nordeste brasileiro, a prática
de trocas simbólicas, a produção de ex-votos se popularizou e ficou a cargo de artesãos e
artífices anônimos, que residem próximo aos santuários, lugares de peregrinação ou aos
devotos que encomendavam as peças. Mestre Dezinho e Mestre Expedito, santeiros
emblemáticos da Arte Santeira do Piauí, produziram, ao longo de suas vidas, ex-votos. O
santuário de Santa Cruz dos Milagres, no Piauí, é um desses lugares de peregrinação que
recebe grande variedade de objetos trazidos pelos romeiros que ali se dirigem para pagar
promessas.
Além da Arte Santeira, estudamos festas e celebrações na cidade de Oeiras, primeira
capital do Piauí; dente elas destacamos as Procissões de Bom Jesus dos Passos e do Fogaréu
e Os Congos. Atualmente, estudamos as culturas tradicionais de populações ribeirinhas do
rio e delta do Parnaíba e da região do Amapá, no Norte e Nordeste do Brasil.
Nesse universo de investigação, a história oral, a fotografia documental e o filme
etnográfico têm se mostrado ferramentas valiosas.
Descobrimos as potencialidades do audiovisual como ferramenta de pesquisa, de
registro documental. A nossa incursão no universo da produção do filme etnográfico ou
cinema documentário remonta a 2007. Entendemos que além de ler e buscar compreender
as imagens de arquivos era possível produzi-las. Nesse percurso, o interesse tem sido por
populações tradicionais, santeiros, devotos, pescadores, rendeiras, etc. Buscamos
compreendê-as por meio de imagens em movimento, fotografias e pesquisa de natureza
histórico-etnográfica.
Ao olharmos a produção do filme etnográfico ou cinema documentário, verificamos
que esse fenômeno cultural se iniciou ainda nos anos vinte do século passado e que a
intenção de seus realizadores era capturar a vida de improviso.
O nosso desejo é a observação direta das vivências das gentes dos sertões, rios e mar
pela imagem e pela pesquisa histórico-etnográfica, mas sem a pretensão de verdade, como
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foi a regra até os anos sessenta do século XX, quando linguagem audiovisual, realidade e
verdade eram quase sinônimos.
Nos permitimos usar as denominações cinema documental, documentário,
documentário social e filme etnográfico, como forma de linguagem que fornece
possibilidades de acesso ao conhecimento do Outro.
Nos consideramos viajantes, buscamos outros mundos, vivências e culturas. Como os
viajantes do século XIX, registramos, tomamos notas, reflitimos e narramos o que vemos,
inscrevemos o nosso olhar dentro de um universo de olhares possíveis. Muitos viajantes do
século XIX procuraram relatar o exótico, nós preferimos as vivências cotidianas de pessoas
simples, buscamos revelar o Outro e a nós mesmos.
O viajante do século XIX,

Ao registrar [...] um enorme contingente de população negra, cativos e libertos,


provenientes da África, descendentes destes, africanos ou miscegenados com
europeus e indígenas), [...] construiu e representou um tipo de imagem e
impressão, colocando-se ao mesmo tempo como tradutor/intérprete dos grupos
existentes, de seus significados. A divulgação da presença desse grupo para o
público leitor europeu tinha como objetivo principal revelar o ‘outro’, no que este
possuía de desconhecido, novo, diferente. A visão que foi possível formar a partir
da experiência passou pelo contato direto [grifo das autoras] com o que foi, então,
identificado como sendo o ‘outro’, a população local. (LEITE, 1996:95)

Buscamos esse Outro, como os antigos viajantes, por meio de uma observação direta,
mas não no que esse Outro tem de exótico ou diferente, mas no que ele tem de valor
cultural, que nos permita ler a nós mesmos, numa busca que revela imagens a serem
socializadas com um espectador e leitor, que passa a ter acesso ao discurso por meio do
documento visual produzido por nós e por uma equipe que realiza um trabalho
efetivamente coletivo.
Vivemos o fascínio por escrever por meio de imagens. As nossas reflexões sobre o real
e o filme etnográfico têm esse valor de registro. Procuramos pensar o filme etnográfico com
todos os desafios que comportam a pesquisa e as narrativas históricas convencionais, com
tudo que as envolve: emoção, razão e ética.
Não buscamos a precisão, a objetividade dos primeiros documentários etnográficos,
mas sim compreender as relações complexas entre imagem e real. Tomamos a imagem
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como um ponto de referência da cultura, não do real. Pensamos a imagem como


sociograma, como imaginou Boudieu (2006) ao recorrer a uma etnografia da aldeia do
Sudoeste francês onde passou sua infância. No artigo “O camponês e a fotografia” (2006),
analisou os usos sociais e o sentido das fotografias e da prática fotográfica em uma
sociedade camponesa do início de 1960. Para o pesquisador, as fotografias são vistas e
apreciadas não em si mesmas e por si mesmas, isto é, em termos de suas qualidades
técnicas ou estéticas, mas como sociogramas que possibilitam um registro visual das
relações e papéis sociais existentes. Estamos cientes que sempre teremos uma visão
“parcial” e fragmentária das vivências dos grupos que observamos.
Etmologicamente a palavra documentário tem o sentido de prova, documentum, que
significa modelo, lição, ensino, demonstração, prova. O trabalho cotidiano tem nos
mostrado que não há uma fórmula fixa para definirmos o documentário, mas que existem
alguns elementos que podem ser considerados, sem obviamente ter a pretensão de fixidez.
Podemos elencar, dentre eles: a ausência de ator, de encenação e de um roteiro prévio
inflexível. O que não pode ser excluído da produção fílmica é a ética e a emoção na
realização de um documentário. Portanto, o filme etnográfico é sempre fruto de uma
pesquisa e como tal comporta todos os desafios de uma pesquisa convencional.
O termo filme etnográfico ou cinema etnográfico foi empregado pela primeira vez em
1926, para nomear elaborações criativas da realidade, distinguindo-as de cinematografias
como as descrições de viagens, por exemplo. O filme etnográfico é um gênero de
documentário realizado por cineastas independentes, antropólogos, etnólogos e mais
recentemente por historiadores, que usam a linguagem audiovisual para investigar e narrar
histórias de vida de grupos humanos, de culturas contemporâneas. São filmes que
centralizam a narrativa no conteúdo etnográfico.
Consideramos importante ressaltar que o documentário é um gênero cinematográfico
que se caracteriza pelo compromisso com a exploração das experiências da realidade, não
com a realidade “tal como ela é”. O documentário, assim como o cinema de ficção, é uma
representação parcial, fragmentária e subjetiva da realidade.
O filme etnográfico em Portugal teve seus primeiros registros nos anos sessenta do
século XX. Foram produzidas imagens de etnias africanas que foram usadas como
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propaganda colonial. Após aquele período, cineastas independentes começaram a explorar o


gênero, que se expandiu desde então.
O cinema direto é uma denominação que se confunde com o cinema-verdade.
Afirmou-se no final dos anos 1950 e refere-se, na teoria e na prática, a um gênero de
documentário que se empenha em capturar a realidade e produzir efeito de verdade, era
um cinema do real, que mesmo admitindo certa subjetividade, buscava o estatuto de
verdade.
Iniciava-se, portanto, como um instrumento de filmar o homem, a máquina estava a
serviço da antropologia, da etnografia, realizava-se, assim, o filme etnográfico. A máquina
era um instrumento de pesquisa, de registro, o som era direto e sincronizado com as
imagens, modelo de reproduzir o real, de dizer o real como que uma necessidade de
registrar, capturar a sua essência.
A expressão cinema direto aplica-se, hoje, em sentido muito restrito, para designar um
movimento do cinema documentário entre os 1958 e 1962 que se desenvolveu na América
do Norte, Canadá e EUA; é possível afirmar que o movimento começou na França, no
Quebec e no Reino Unido nos anos 1950, onde se praticou o free cinema, cinema-verdade
ou simplesmente cinema direto.
A realização de filmes etnográficos nos permitiu compreender a importância do
trabalho coletivo, de campo, do contato com o Outro, dos rituais de encontro. Ao longo dos
trabalhos realizados, algumas inquietações apareceram, uma delas diz respeito aos usos e
significados das imagens, do jogo, das manipulações. O que significa ler essas imagens como
um conjunto de textos. Como, então orientar teórico e metodologicamente o trabalho?
Os desafios estiveram e estão colocados no cotidiano de nosso ofício, sobretudo, no
que se refere às interlocuções com outras áreas do conhecimento. Nessas reflexões,
destacamos a nossa tentativa de compreender símbolos, sentidos, significados, leituras,
reflexões, orientações propostas pelos autores com os quais dialogamos. Reflexões sobre a
experiência com a pesquisa etnográfica, sobretudo, com o uso dos recursos audiovisuais.
Ao longo desses últimos três anos, buscamos a etnografia como prática e método de
pesquisa para compreender a cultura, os saberes de populações tradicionais brasileiras e
piauienses em particular, dentre elas os artesãos santeiros, os devotos, as populações
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ribeirinhas. Temos enfrentado desafios epistemológicos, de método e éticos nesse contato


com o Outro, próximo de nós territorialmente, mas distante social e em maneiras de ser e
viver o mundo.
Um dos nossos interlocutores - Geertz, antropólogo norte-americano, idealizador da
antropologia interpretativa ou hermenêutica, que argumenta que a interpretação deve vir
em todas as etapas do estudo, e que a sociedade, com a sua complexidade cultural, é um
texto a ser lido e compreendido pelo pesquisador. Para ele, a função social do antropólogo é
permitir que as sociedades estabeleçam diálogos entre si.
Entendemos a cultura como um fenômeno complexo, social e historicamente
elaborado por grupos humanos diversos, marcados por experiências e vivências locais. Para
Geertz, o conceito de cultura denota um padrão de significados, transmitidos
historicamente, incorporados em símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas
em formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem
seu conhecimento e suas atividades em relação à vida. Está fora de dúvida que termos como
“significado”, “símbolo” exigem explicação, é nessa exigência de explicação que reside os
nossos enfrentamentos e desafios.
Assim como a navegação, a pesca, as celebrações e o artesanato são artefatos locais e
se fazem representar à luz de elementos que marcam o saber local, a Etnografia pode ser
compreendida como o estudo de práticas, representações, costumes, sentidos e significados
culturais, constituídos social e historicamente. O trabalho de que se vale da Etnografia é
artesanal; o pesquisador se propõe a descobrir e compreender aspectos do saber local dos
grupos humanos. Busca compreender que existem diferentes visões de mundo, entender
uma cidade a partir de suas ruas, becos, entroncamentos. O trabalho etnográfico exige
sensibilidade pelo caso individual, olhar uma variedade infinita da vida social e coletiva.
Na vida social, coletiva, de grupo existem instituições, regulamentos, procedimentos,
conceitos, decisões, códigos, processos e formas. Uma dada cultura comporta elementos
religiosos, de família, de governo, de arte, de ciência, diferentes da vida social e coletiva
daquele que observa atentamente a vida dos outros. O antropólogo e o historiador devem
transitar entre dois mundos – o campo e a academia, a pesquisa e a escrita. É preciso,
portanto, refletir sobre o trabalho realizado, os encontros e desencontros com o Outro,
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diferente de nós. Enfrentar desafios conceituais, metodológicos, resolver problemas novos,


diferentes dos colocados anteriormente.
Compreender, antes de tudo, o que é o Outro, suas dúvidas, sentimentos, desejos,
modos de ser e estar no mundo. Ao longo da pesquisa de campo, vivenciamos experiências
diferentes, formas e maneiras distintas, costumes e práticas diversas. Padrões sociais, de
comportamento, que devemos observar atentamente na labuta diária no trabalho
etnográfico e de historiador. São esses desafios que marcam a engenhosidade do trabalho
etnográfico, da análise etnográfica e de seu diálogo com a História.
Na atividade etnográfica, é preciso compreender que os fatos são construídos
socialmente, que a cultura é um processo de representação em um mundo repleto de
signos, sentidos e significados. O trabalho etnográfico comporta descrição. É preciso
descrever densamente o mundo e o que nele acontece. As representações elaboradas de
uma maneira específica de imaginar a realidade. As representações não se firmam no que
acontece, mas no que acontece aos olhos de quem as vê, daquele sujeito que observa a
partir do campo de conhecimento que elege para estudo.
Os grupos humanos formam uma teia de significação, que pode ser tecida, mas é
preciso misturar-se com as pessoas para entender alguma coisa, conviver com as diferenças,
dialogar com culturas diversas, compreendê-las com atenção analítica, sem perder de vista
os aspectos éticos que devem nortear o trabalho científico.
O trabalho etnográfico permite ao pesquisador o autoconhecimento, a autopercepção,
o conhecimento, percepção e entendimento do Outro. O que somos e entre quem estamos.

Referências

ALBERT, Verena. Manual de História Oral. 2. Ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.

CARVALHO JÚNIOR, Dagoberto. Arte sacra popular e resistência cultural. Cadernos de


Teresina. Ano 7, n. 14, ago, p. 19, 1993.

CORSINO, Célia Maria. Apresentação. In: INVENTÁRIO NACIONAL DE REFERÊNCIAS


CULTURAIS: manual de aplicação. Introdução de Antônio Augusto Arantes Neto. Brasília:
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 2000.
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FREITAS, Sônia Maria de. História oral. Possibilidades e procedimentos. 2. ed. São Paulo:
Associação Editorial Humanitas, 2006.

PINHEIRO, Áurea. As tensões entre clericais e anticlericais no Piauí. Teresina: Fundação


Cultural Monsenhor Chaves, 2002.

______. Passos de Oeiras. Documentário Etnográfico. Rio de Janeiro: Centro Nacional de


Folclore e Cultura Popular/Associação Cultural de Amigos do Museu de Folclore Edison
Carneiro/MinC/IPHAN/Petrobras, 2008.

PINHEIRO, Áurea e CÁSSIA, Moura. INRC – Inventário Nacional de Referências Culturais –


Arte Santeira do Piauí. Teresina: Ministério da Cultura/IPHAN, 2008.

______. Piauí: história, memória e patrimônio cultural. Teresina: Iphan/Educar: artes e


ofícios, 2008.

______. Celebrações. Teresina: Educar artes e ofícios, 2009.

______. Congos: ritmo e devoção. Documentário Etnográfico. Teresina: Educar artes e


ofícios, 2009.

THOMPSON, Paul. A voz do passado. História Oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

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