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Áurea Pinheiro
Universidade Federal do Piauí - UFPI.
E-mail: aureapazpinheiro@gmail.com.
Cássia Moura
E-mail: cássia.moura@gmail.com
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O projeto “Memória, Cultura, Identidades e Patrimônio Cultural” é financiado pela Fundação Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes, em parceria com o Ministério da Cultura. A intenção
dessas instituições é implantar redes de cooperação acadêmica no País em Cultura, com vistas ao
estabelecimento de convênio de fomento no âmbito do Programa de Apoio ao Ensino e à Pesquisa Científica
em Cultura.
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compreender que não existem histórias sem sentido e que é preciso encontrá-las até mesmo
onde os outros não as vêem.2
Ao longo do trabalho estivemos convictos que a pesquisa não é capaz de repor a
originalidade da realidade vivida e sentida no trabalho de campo, levando-se em
consideração um conjunto de variáveis que a pesquisa eventualmente não dá conta, e a
própria inscrição da cultura na temporalidade submete a mudanças. Não temos como
apreender a totalidade, a complexidade do real, daí porque a nossa descrição
pretensamente densa é parcial (GEERTZ, 1989).
A questão que orienta este texto está centrada, sobretudo, nas dúvidas e inquietações
que nos movem, interesses e paixões que nos possibilitam repensar o lugar social que
ocupamos no mundo dentro e fora da academia.
Os desafios impostos ao nosso trabalho dizem respeito às apropriações do método
etnográfico, que se materializa em conhecimento e observação direta de grupos humanos,
de culturas que estudamos, mas também no diálogo que, na condição de historiador,
estabelecemos com as fontes de arquivos tradicionais, considerados aqui aqueles que
guardam um acervo de documentos escritos. Sabemos que hoje há uma multiplicidade de
arquivos e acervos, em diversos suportes. Desde aqueles que guardam documentos escritos,
àqueles que guardam acervos audiovisuais. Outra questão desafiadora é que a etnografia
trata de um tempo presente e, portanto, dispensaria documentos escritos. Mas os objetos
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O projeto conta com 07 trabalhos em andamento, quatro deles resultarão em dissertações de mestrado em
História e os demais em TCC de graduação. Realizamos o INRC – Inventário Nacional de Referências Culturais
da Arte Santeira do Piauí, 2007 a 2008. Já publicados os livros “Celebrações” [2009], “Senhores de seu ofício”
[2009] e “Cadernos do Patrimônio Cultural do Piauí” [2009]; em fase de editoração e publicação o livro
“Tempo, Memória e Patrimônio” [2010], obra coletiva organizada por Áurea Pinheiro [UFPI] e Sandra Pellegrini
[UEM]. Já foram produzidos os documentários etnográficos “Passos de Oeiras” [2008], “Congos: ritmo e
devoção” [2009] e o vídeo educativo “Piauí: história, memória e patrimônio cultural” [2008]. Em fase de
produção o documentário etnográfico “As escravas da mãe de deus” [2010], com apoio e patrocínio da
Associação Cultural de Amigos do Museu de Folclore Edison Carneiro [ACAMUFEC], em parceria com o Centro
Nacional de Folclore e Cultura Popular [CNFCP], do Departamento de Patrimônio Imaterial [DPI], do Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional [IPHAN], com patrocínio da Petrobras, via Edital de Apoio à
Produção de Documentários Etnográficos – Etnodoc 2009, que tem como objetivo a documentação e difusão
do Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro por meio do apoio à produção de documentários inéditos para
exibição em TVs públicas. Já realizamos a 1ª edição do congresso internacional de história e patrimônio cultural
[2008] e estamos em fase de organização da 2ª edição do mesmo congresso [outubro de 2010], em Teresina,
Piauí, na Universidade Federal do Piauí, com apoio do Programa de Pós-Graduação em História. Projetos e
ações que fazem parte das atividades de pesquisa do Grupo CNPq “Memória, Ensino e Patrimônio Cultural”.
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A metodologia da História Oral (ALBERT, 2004; THOMPSON, 1992; FREITAS, 2006) foi
utilizada para complementar os instrumentos de pesquisa presentes no Manual de Aplicação
e realizar os registros dos trabalhos de campo. Priorizamos as entrevistas temáticas com os
santeiros, destacando o ofício e os modos de fazer. A inserção dessas diferentes vozes em
nosso texto, ainda que transcritas e manipuladas segundo as orientações do Manual de
Aplicação, pretendeu ampliar a abordagem do discurso científico em direção a
interpretações outras, advindas dos próprios praticantes da Arte Santeira.
O estudo de fontes tradicionais [escritas], as entrevistas temáticas e a convivência com
os informantes permitiram ler a Arte Santeira como um artefato representativo da cultura
local-regional e, por conseguinte, brasileira. As entrevistas, mesmo privilegiando questões-
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problemas, nos possibilitaram conhecer as trajetórias de vida dos santeiros, que têm a sua
arte assinalada por uma religiosidade popular típica do Nordeste brasileiro, com vivências e
experiências rurais e urbanas; marcadas por uma espiritualidade peculiar, expressões
devocionais recorrentes de um diálogo entre as diversas culturas que forjaram e têm
reelaborado temporalmente a identidade brasileira e nordestina em particular.
O trabalho de campo nos colocou desafios de método e epistemológico, sobretudo, no
que tange à produção de conhecimento sobre o Outro. Como estabelecer um diálogo entre
os pesquisadores e os praticantes da Arte Santeira, os produtores dos bens culturais que
inventariamos? Como estabelecer uma comunicação entre os praticantes, informantes,
interlocutores, mediadores e os processos de produção?
Ao longo da pesquisa foi possível encontrar vestígios de artistas populares ligados à
arte santeira nos tempos de ocupação do território piauiense, quando os jesuítas iniciaram o
processo de catequese das populações que habitavam a região, momento em que os rituais
tradicionais católicos se misturaram à devoção popular de culto às imagens, novenas,
procissões e pagamento de promessas com a produção de ex-votos, capelas e altares
domésticos.
Na imaginária produzida pelos artistas populares está presente o ex-voto, que designa
uma variedade de objetos doados por fiéis aos santos de sua proteção como forma de
agradecimento por um pedido atendido. A prática de trocas simbólicas entre o santo e o
devoto é uma manifestação artística que se liga diretamente à arte religiosa e popular desde
os primórdios da colonização portuguesa no Brasil. As motivações do presente votivo são
muitas. No Piauí, os pedidos mais recorrentes são quanto à cura de doenças e se
materializam em esculturas produzidas por artesãos santeiros, que esculpem em madeira as
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partes do corpo afetadas por moléstias – perna, cabeça, mão, coração etc. Essas esculturas
produzidas em madeira são deixadas pelos fiéis em locais públicos – capelas ou sala de
milagres.
Com o processo de colonização portuguesa no Brasil e no Nordeste brasileiro, a prática
de trocas simbólicas, a produção de ex-votos se popularizou e ficou a cargo de artesãos e
artífices anônimos, que residem próximo aos santuários, lugares de peregrinação ou aos
devotos que encomendavam as peças. Mestre Dezinho e Mestre Expedito, santeiros
emblemáticos da Arte Santeira do Piauí, produziram, ao longo de suas vidas, ex-votos. O
santuário de Santa Cruz dos Milagres, no Piauí, é um desses lugares de peregrinação que
recebe grande variedade de objetos trazidos pelos romeiros que ali se dirigem para pagar
promessas.
Além da Arte Santeira, estudamos festas e celebrações na cidade de Oeiras, primeira
capital do Piauí; dente elas destacamos as Procissões de Bom Jesus dos Passos e do Fogaréu
e Os Congos. Atualmente, estudamos as culturas tradicionais de populações ribeirinhas do
rio e delta do Parnaíba e da região do Amapá, no Norte e Nordeste do Brasil.
Nesse universo de investigação, a história oral, a fotografia documental e o filme
etnográfico têm se mostrado ferramentas valiosas.
Descobrimos as potencialidades do audiovisual como ferramenta de pesquisa, de
registro documental. A nossa incursão no universo da produção do filme etnográfico ou
cinema documentário remonta a 2007. Entendemos que além de ler e buscar compreender
as imagens de arquivos era possível produzi-las. Nesse percurso, o interesse tem sido por
populações tradicionais, santeiros, devotos, pescadores, rendeiras, etc. Buscamos
compreendê-as por meio de imagens em movimento, fotografias e pesquisa de natureza
histórico-etnográfica.
Ao olharmos a produção do filme etnográfico ou cinema documentário, verificamos
que esse fenômeno cultural se iniciou ainda nos anos vinte do século passado e que a
intenção de seus realizadores era capturar a vida de improviso.
O nosso desejo é a observação direta das vivências das gentes dos sertões, rios e mar
pela imagem e pela pesquisa histórico-etnográfica, mas sem a pretensão de verdade, como
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foi a regra até os anos sessenta do século XX, quando linguagem audiovisual, realidade e
verdade eram quase sinônimos.
Nos permitimos usar as denominações cinema documental, documentário,
documentário social e filme etnográfico, como forma de linguagem que fornece
possibilidades de acesso ao conhecimento do Outro.
Nos consideramos viajantes, buscamos outros mundos, vivências e culturas. Como os
viajantes do século XIX, registramos, tomamos notas, reflitimos e narramos o que vemos,
inscrevemos o nosso olhar dentro de um universo de olhares possíveis. Muitos viajantes do
século XIX procuraram relatar o exótico, nós preferimos as vivências cotidianas de pessoas
simples, buscamos revelar o Outro e a nós mesmos.
O viajante do século XIX,
Buscamos esse Outro, como os antigos viajantes, por meio de uma observação direta,
mas não no que esse Outro tem de exótico ou diferente, mas no que ele tem de valor
cultural, que nos permita ler a nós mesmos, numa busca que revela imagens a serem
socializadas com um espectador e leitor, que passa a ter acesso ao discurso por meio do
documento visual produzido por nós e por uma equipe que realiza um trabalho
efetivamente coletivo.
Vivemos o fascínio por escrever por meio de imagens. As nossas reflexões sobre o real
e o filme etnográfico têm esse valor de registro. Procuramos pensar o filme etnográfico com
todos os desafios que comportam a pesquisa e as narrativas históricas convencionais, com
tudo que as envolve: emoção, razão e ética.
Não buscamos a precisão, a objetividade dos primeiros documentários etnográficos,
mas sim compreender as relações complexas entre imagem e real. Tomamos a imagem
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Referências
ALBERT, Verena. Manual de História Oral. 2. Ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.
FREITAS, Sônia Maria de. História oral. Possibilidades e procedimentos. 2. ed. São Paulo:
Associação Editorial Humanitas, 2006.
THOMPSON, Paul. A voz do passado. História Oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.