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Brasil
Valério Brittos∗
da lei constitucional sobre a pena de morte, o primeiro ano do Estado Novo, preocupou-
da instituição dos Conselhos Nacionais de se particularmente com o rádio, utilizando-o
Cultura e de Petróleo, e da preocupação com claramente com objetivos políticos, o que, de
os ruídos produzidos pela radiodifusão, os uma forma ou de outra, verifica-se até os dias
preços dos gêneros de primeira necessidade de hoje. Controlando mais de perto os meios
e a tuberculose, eram transmitidas pelo rádio para a massa, o órgão da ditadura Departa-
mediante a leitura de jornais, já que as emis- mento de Imprensa e Propaganda (DIP) ado-
soras não possuíam departamentos de radio- tava medidas de arbítrio, como a cassação
jornalismo estruturados.1 Mas os jornais no- de concessões de emissoras de rádio, fecha-
ticiavam também o próprio rádio, por exem- mento de jornais e censura em geral, além
plo condenando os concursos para locutores, da distribuição de benefícios aos aliados do
que não teriam conseguido evidenciar valo- regime de exceção.
res autênticos. Na década de 30, principalmente desde
sua metade, o rádio vivia novos tempos, em
2 A guerra pela audiência grande parte estruturado empresarialmente,
atuando de forma comercial, com progra-
Quando a adaptação de Orson Welles foi ao mação mais diversificada e de agrado popu-
ar, no mesmo ano o país já havia vivido duas lar, beneficiado pelo decreto-lei 21.211, de
tentativas frustradas de golpe dos integralis- 1932, que autorizava oficialmente a veicula-
tas. Nesta primeira fase de constituição do ção de publicidade, respaldado na definição
massivo, num movimento não circunscrito pelo modelo norte-americano de distribuição
ao Brasil, o país começava a modernizar-se, de concessões a grupos privados e incenti-
sendo o mercado nacional estruturado e or- vado pelo barateamento do custo dos recep-
ganizadas as atividades industriais, mediante tores, o que o popularizou. O rádio começou
a substituição de importações. MARTÍN- a estabelecer sua posição perante o público,
BARBERO (1995, p. 11-12) assinala que o que o adotou como entretenimento indispen-
rádio atuou no processo de formação da na- sável.
ção brasileira, sendo sua função no período Na guerra pela audiência, os programas já
fazer-se voz da interpelação que, a partir do eram preparados antecipadamente, passando
populismo, convertia as massas em povo e o a ter horário certo, com artistas e produto-
povo em nação. res contratados pelas emissoras. No Rio de
O movimento populista, aqui representado Janeiro, a maior audiência ainda era da Rá-
por Getúlio Vargas, que em 1938 completava dio Mayrink Veiga, que tinha como principal
1
O primeiro noticioso especialmente redigido
contratado Cesar Ladeira, seguida de perto
para o rádio foi o Repórter Esso, que estreou às pela Nacional, que logo conquistaria a hege-
12h55min do dia 28 de agosto de 1941, na Rá- monia no país. Em São Paulo rivalizavam
dio Nacional, produzido pela agência de publicidade as Rádios Record e Cruzeiro do Sul, e ao
McCann-Erickson para a Esso Standard do Brasil. longo do território nacional surgiam emisso-
A primeira redação de radiojornalismo foi montada
em 1948, por Heron Domingues, locutor do Repórter ras como as Rádio Voz do Oeste (Cuiabá),
Esso, na mesma Rádio Nacional, com a denominação Sociedade Rádio Difusora (Campo Grande),
de Seção de Jornais Falados e Reportagens.
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O rádio em 1938 no Brasil 3
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cópio, Walter, Domingos e Leônidas como nico que estabelece verdadeiro pânico entre
principais jogadores, ficou em terceiro lugar. os ouvintes Yankee:
As redes de rádio, hoje expandidas pelo
satélite, em 1938 já se consubstanciavam, via “Ontem à noite uma estação
coligações e formações de cadeias, princi- radiofônica irradiou um programa
palmente entre São Paulo e Rio. Programas [...] de uma maneira nitidamente
de emissoras maiores muitas vezes eram re- real se representava uma invasão
transmitidos pelas menores, a partir da cap- nos EUA, levada a efeito pelos ha-
tação da programação original em ondas cur- bitantes do planeta Marte. Tão per-
tas.4 Em outros casos, scripts de radioteatro feito era o realismo do programa
e humorísticos eram remetidos das agências que um verdadeiro pânico se esta-
cariocas e paulistas para emissoras de outros beleceu entre os ouvintes. [...]
estados, que então realizavam com elenco lo- Na realidade há razões para es-
cal as mesmas produções antes veiculadas sas reclamações. O programa ra-
pelas estações de maior porte. Além disso, diofônico, admiravelmente organi-
o próprio ouvinte sintonizava emissoras de zado sob o ponto de vista artís-
fora em ondas curtas.5 tico, dava em detalhes o desenro-
lar de uma invasão de habitantes
de Marte na Terra, citando o local,
3 A Guerra aqui etc. Centenas de pessoas tomadas
O impacto de The war of the worlds foi no- pelo povo, corriam pelas ruas, pe-
ticiado já no dia seguinte à sua veiculação, dindo socorro, sem saberem para
em primeiro de novembro de 1938, pelos jor- que ponto se dirigir”.
nais brasileiros, que reproduziram os tele-
gramas das agências de notícias Associated O êxito da versão para o rádio da obra de
Pres e United Press – como de praxe, o rá- H. G. Wells incentivou que no Brasil produ-
dio nacional transmitiu esse acontecimento a tores buscassem realizar o mesmo programa,
seus receptores por meio da leitura ao micro- em português. No Rio Grande do Sul, coube
fone dos matutinos. O jornal CORREIO DO a Flávio Alcaraz Gomes fazer a versão local
POVO assim informou seus leitores sobre o de A Guerra dos Mundos, na Rádio Guaíba,
programa, em sua página dois, de 1o /11/38, emissora em que atua até hoje. Evidente-
com o título Os Estados Unidos eram invadi- mente, essas produções brazucas não obti-
dos pelos marcianos – um programa radiofô- veram maior repercussão, pois faltou o ele-
mento novidade: já era sabido que se tratava
4
Foi em 1938 que se tornou possível a instalação de adaptações tupiniquins do radioteatro le-
de estações locais com potência de 100 a 250 W, em
pequenas cidades, com menos de 100 mil habitantes.
vado ao ar originalmente pela CBS, nos Es-
5
A recepção incluía emissoras de outros países, tados Unidos. Além do mais, a qualidade do
cidades e estados. Especificamente no Rio Grande do produto era inferior ao norte-americano.6
Sul, por sua localização geográfica, era bastante co-
6
mum a recepção de estações da Argentina e Uruguai. Concomitantemente, Walter Galvani, em entre-
vista concedida em 29/12/97, salienta a criatividade
do rádio brasileiro daquele tempo: “Não havia recur-
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O rádio em 1938 no Brasil 5
O abismo técnico entre os Estados Unidos Tanto corresponde à realidade que a ca-
e o Brasil é apontado como a principal causa pacidade técnica do final da década de 30
para que neste país um episódio radiotea- era limitada que só em 11 de abril de 1938
tral não tivesse causado um forte efeito, pelo foi produzido o primeiro programa montado,
radialista Cândido Norberto, em entrevista instituindo o produtor e grandes equipes: o
para a redação deste texto, em 24/12/97: Curiosidades Musicais, de Almirante, tinha
como patrocinadores os produtos Eucalol.7
“A repercussão, para mim, é As emissoras espalhadas pelo país apresen-
aquela que ainda hoje se tem ao ler tavam, em 1938, programas como Discos va-
em jornais ou ver em televisão o riados, Música sinfônica, Rádio baile, Hora
trabalho que foi feito pelo Welles, infantil, Orquestra de salão, Música seleta,
na sua terra, naquele tempo, um proporcionando uma programação eclética,
tipo de programa que seria prati- muito distanciada do rádio segmentado ho-
camente impraticável no Brasil ou dierno.8
em outros países. Por quê? Porque O radialista e professor Sérgio Dil-
já naquele tempo a distância, do lemburg, em entrevista a esta pesquisa
ponto de vista técnico, entre os Es- (24/12/97), defende que não aconteceu um
tados Unidos e o resto do mundo, fenômeno semelhante no Brasil não só por-
era imensa, invencível. O rádio de que as condições técnicas do rádio nacio-
lá dispunha já de recursos técni- nal eram inferiores, mas porque o próprio
cos que por aqui nós nem sonhá- ouvinte não estava preparado para tal. Ele
vamos. Aqui se usava, ainda na acredita que o público pouco se interessa-
década de 40, gravadoras conven- ria por programas mais elaborados, já que
cionais grandes, que gravavam em estava acostumado com uma programação
acetato e que tornavam absoluta- mais simples. Lembra ainda que qualquer
mente impossível usar num grau impacto de um bem simbólico radiofônico
aproximado os recursos utilizados seria pequeno, porque o número de pessoas
por Welles. Imagina uma grava- que ouviam rádio era reduzido e o meio
dora, um enorme de um móvel, que ainda não possuía credibilidade para conven-
gravava em acetato, isso não per- cer.
mitia que se fizesse sonoplastia se- A questão técnica também é recordada
quer parecida com a que Welles pelo radialista Ary Rego como um ponto
usou em seu programa”. central para que, em 1938, o Brasil não pu-
sos de gravação. Nesta época, em 1938, por exemplo, 7
No mesmo ano, em cinco de agosto, também foi
era quase tudo ao vivo. Eles se reuniam no estúdio e lançado o primeiro programa de auditório da Nacio-
interpretavam naquele momento. De repente um ator nal, Caixa de Perguntas, do mesmo Almirante.
pegava um caco, uma fase de criação, e enfiava no 8
Na já citada entrevista, Cândido Norberto diz
meio do texto, até melhorando. Enquanto, do outro que “o que se está vendo na televisão hoje era a pro-
lado do vidro, na mesa de controle de som, aquilo que gramação do rádio, que migrou. A diferença é que o
se chamava um contra-regra criava os sons que tinham rádio não tinha imagem e a televisão tem, porque os
que acompanhar tudo isso. Era fascinante. Coisa fan- textos são os mesmos”.
tástica. Bota criação nisso, e na hora, ali”.
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desse produzir radioteatros que provocassem Mas acho que não tínhamos no
comoção popular. Relacionando este item Brasil, naquele momento, pelo me-
com a programação da época, ele pondera, nos que se saiba, nas grandes emis-
conforme entrevista para este projeto, em soras, das grandes cidades, um ta-
30/12/97, que os programas de então eram lento daquela envergadura do Or-
muito simples9 e que a própria população son Welles para fazer um tipo de
não estava preparada para o consumo de um trabalho como aquele. Basta ver
produto diferenciado, de maior dificuldade que o Orson Welles, depois, des-
de compreensão, no estilo de The war of the dobrou toda uma longa jornada na
worlds, preferindo os humorísticos, que não área cinematográfica, onde ele rea-
exigiam tanto raciocínio, no que concorda lizou filmes extraordinários. Acho
com Dillemburg. que é isso que faltou, porque é com
De acordo com entrevista para esta inves- os poucos recursos de um estúdio
tigação, realizada em 29/12/97, o radialista que se faz tudo aquilo. Com um
Walter Galvani, relembrando o final da dé- bom contra-regra, como se cha-
cada de 30, coloca o sucesso de The war of mava na época, que você produz
the worlds como o resultado pessoal do gê- os sons necessários e está feito,
nio criativo de Orson Welles, considerando está armado o grande circo do ter-
um fator preponderante para que a mobiliza- ror ou da aventura, seja lá o sen-
ção do rádio nacional não alcançasse o pa- tido que queira se dar. Talvez até
tamar do estadunidense justamente a inexis- hoje as condições técnicas dos Es-
tência de um valor como o dele, mesmo reco- tados Unidos ainda sejam melho-
nhecendo que as condições técnicas dos Es- res. Mas, de qualquer maneira,
tados Unidos, na época, eram superiores às basta ver a maneira como o pro-
brasileiras: grama foi feito, pois ele usou efe-
tivamente o poder da palavra e al-
“Eu acho que só faltou o ta- gum efeito de som. Você faz uma
lento do Orson Welles, porque re- tempestade com uma folha de pa-
almente, foi uma coisa fantástica. pel”.
9
Rego rememora também que no rádio gaúcho
e de outras localidades de então faziam sucesso pro- O somatório dos documentos trabalha-
gramas de dedicatórias: “A pessoa chegava, pagava dos e do conjunto das entrevistas efetua-
uma quantia e fazia uma dedicatória. Cada emis- das conduz ao entendimento de que o de-
sora tinha seus impressos prontinhos para datilogra- senvolvimento da radiodifusão brasileira de
far, com nome, endereço, idade. Algumas emissoras
tinham sua maior fonte de renda em cima das dedica- 1938 já se colocava num patamar de evo-
tórias”. Dedicar músicas ainda hoje é uma possibili- lução técnica, cujas insuficiências eram ul-
dade em muitos programas de emissoras voltadas para trapassadas por soluções alternativas. Si-
segmentos mais populares, só que sem pagamento. multaneamente, o país industrializava-se, e
Ao mesmo tempo, sobrevivem em algumas emissoras
urbanizava-se, criando um público crescente
do interior, situadas em regiões com distritos agríco-
las, espaços de transmissão de recados pagos, como para a rádio, que, numa relação de partilha,
ocorre na Rádio Cultura, de Pelotas (RS). oferecia uma programação progressivamente
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O rádio em 1938 no Brasil 7
constituída com maiores cuidados ao recep- afirmou, justamente pela capacidade do ho-
tor, o qual completava o processo ligando-se mem de rádio (e de outras áreas de atuação
cada vez mais nos produtos ofertados e de- humana) do Brasil de inventar, de substituir a
positando maior confiança no meio. deficiência pelo espírito inovador. Portanto,
parece menos plausível qualquer ponderação
que pretenda explicar a não ocorrência de
4 Buscando a conclusão da
uma A guerra dos mundos local pela inexis-
Guerra tência de um Welles tupiniquim. Em reali-
As possibilidades de explicação para que o dade o talento varia de homem para homem,
Brasil não reprisasse um acontecimento ra- mas no Brasil sempre pipocaram expressões
diofônico da dimensão da experimentada nos de primeira grandeza, responsáveis por mo-
Estados Unidos, na noite de Halloween, são mentos inesquecível do rádio nacional.10
muitas e variam entre dissimilitude tecnoló- Na mesma linha de raciocínio, pode-se
gica, ausência de um talento como o de Or- afirmar que, de alguma forma, apesar das
son Welles e dessemelhança inclusive entre carências, e do próprio caráter de apelo po-
os públicos de um e outro país. O certo é que pular, os ouvintes brasileiros, nesta segunda
entre um e outro havia, em 1938, um fosso de fase do rádio, já possuíam algum tipo de
separação, o que torna a tentativa de compa- intimidade com radioteatros (que não raras
ração difícil – e mais complicada é a busca vezes reproduziram radiofonicamente textos
por se desenvolver analogias sabendo-se que clássicos), que, ainda que não se constituís-
esse precipício que separa as duas nações é sem em produções muito sofisticadas, da-
anterior ao tempo em análise e mantém-se vam ao receptor condições para que pudesse
até hoje. interagir com bens no estilo de A Guerra
Desta forma, reduzir a questão a uma dos Mundos. Conseqüentemente, produções
única causa não garante o entendimento de nessa linha já tinham um público ascendente
sua complexidade. É verdade que as diferen- preparado para tal.
ças técnicas entre um e outro país eram gran- Acrescenta-se que, em 1938, o Brasil
des, mas até hoje há pelo menos um buraco ainda possuía uma grande maioria agrícola,
tecnológico entre eles, embora atualmente mas já havia público urbano em crescimento,
qualquer inovação difunda-se com uma velo- pela industrialização incentivada por Vargas,
cidade muito maior. Além do mais, a criati- mas deve-se pensar se efetivamente um fenô-
vidade brasileira tem superado a maioria das meno como o ocorrido com a irradiação da
deficiências, como atestam o padrão da tele- CBS em 31 de outubro de 1938 não esbar-
visão e da publicidade nacionais. Pergunta- raria no isolamento a focos. Por outro lado,
se se a produção de Orson Welles reunia tan- mesmo com as massas em gestação, o rádio
tos efeitos de difícil realização que se tornava brasileiro já dispunha de um envolvimento
impossível sua feitura pelo espírito criativo com os ouvintes que, nessas trocas, certa-
brasileiro. 10
Renato Murce, José Blota Junior, Cesar Ladeira,
Se a barreira tecnológica não se consti- Oduvaldo Cozzi, Ari Barroso, Otávio Gabus Mendes,
tui num obstáculo intransponível é, como se Saint-Claire Lopers são alguns dos profissionais que
atuavam no período e legaram programas lendários.
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5 Referências bibliográficas
BELLI, Zenilda P. B. Leite. Raionovela:
análise comparativa na radiodifusão na
década de 40. São Paulo, 1980. Disser-
tação (Mestrado em Comunicação So-
cial) – Escola de Comunicações e Artes,
USP.
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