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“Missa é como um poema, não suporta enfeite nenhum.

A poeta Adélia Prado, uma das mais renomadas escritoras brasileiras da atualidade,
em recente encontro sobre canto e liturgia realizado em Aparecida, falou sobre a
linguagem poética e linguagem litúrgica, propondo um resgate da beleza na celebração
litúrgica. Sua participação foi de significativa relevância e, por isso, acreditamos ser
interessante repassar aos leitores de Vida Pastoral alguns pontos principais de sua
exposição.
Ao defender o esmero nas celebrações litúrgicas e a beleza como uma “necessidade
vital” que deve permeá-las, a poeta afirmou que “a missa é como um poema, não suporta
enfeite nenhum”. “A missa é a coisa mais absurdamente poética que existe. É o
absolutamente novo sempre. É Cristo se encarnando, tendo a sua paixão, morrendo e
ressuscitando. Nós não temos de botar mais nada em cima disso, é só isso”, enfatizou.
Segundo Adélia, essa é uma preocupação que a tem ocupado há anos: “Como cristã de
confissão católica, acredito que tenho o dever de não ignorar a questão”.
“Olha, gente”, comentou, com um tom de humor e lamento, “tem algumas
celebrações que a gente sai da igreja com vontade de procurar um lugar para rezar”.
Como um primeiro ponto a ser debatido, Adélia tocou a questão do canto usado na liturgia.
Falando especialmente sobre o canto “que tem um novo significado quanto à participação
popular”, diz que ele “muitas vezes não ajuda a rezar”. “O canto não é ungido, ele é
feito, fazido, fabricado. É indispensável redescobrir o canto-oração”.
Ela reforçou as observações, ressaltando que “o canto barulhento, com instrumentos
ruidosos, os microfones altíssimos, não facilita a oração, mas impede o espaço de
silêncio, de serenidade contemplativa”.
Segundo a poeta, “a palavra foi inventada para ser calada. É só depois que ela se
cala que a gente ouve. A beleza de uma celebração e de qualquer coisa, a beleza da arte,
é puro silêncio e pura audição”. “Nós não encontramos mais, em nossas igrejas, o espaço
do silêncio. Eu estou falando da minha experiência aqui”, comentou. “Parece que há um
horror ao vazio. Não se pode parar um minuto”. “Não há silêncio. Não havendo silêncio,
não há audição. Eu não ouço a palavra, porque não ouço o mistério, e eu estou
celebrando o mistério”, disse.
De acordo com a escritora mineira, natural de Divinópolis, “muitos procedimentos
nossos são uma tentativa de domesticar aquilo que é inefável, que não pode ser
domesticado, que é o absolutamente outro”. “Porque a coisa é tão indizível, a magnitude
é tal, que eu não tenho palavras. E não ter palavras significa o quê? Que existe algo
inefável que eu devo tratar com toda a reverencia”.
“A liturgia celebra o quê?”, questionou Adélia. “O mistério. E que mistério é esse?
É o mistério de uma criatura que reverencia e se prostra diante do Criador. É o humano
diante do divino. Não há como colocar esse procedimento num nível de coisas banais ou
comuns”. A seu ver, essa compreensão tem o intuito de aproximar o povo de Deus,
falando a linguagem do povo. “Mas o que é a linguagem do povo? É aí que mora o
equívoco”, disse. “Não há ninguém que se acerque com maior reverência do mistério de
Deus do que o próprio povo”. “Como é que eu posso oferecer a esse povo uma música
sem unção, orações fabricadas, que a gente vê tão multiplicadas e colocadas nos bancos
das igrejas e que nada tem a ver com essa magnitude que é a aproximação ao mistério
realizada pelo homem, pecador?”
Segundo a escritora brasileira, barateou-se o espaço do sagrado e da liturgia “com
letras feias, com músicas feias, comportamentos vulgares na igreja”. “E está tão
banalizado isso tudo nas nossas igrejas, que até o modo de falar de Deus a gente mudou.
Fala-se ‘o Chefão’, ‘Aquele lá de cima’, ‘o Paizão’, ‘o Companheirão’. Deus não é um
‘Companheirão’, ele não é um ‘Paizão’, ele não é um ‘Chefão’. Eu estou falando de outra
coisa. Então há necessidade de uma linguagem diferente, para que o povo de Deus possa
realmente experimentar ou buscar aquilo que a Palavra está anunciando”, afirmou.
Para ela, a “linguagem religiosa é linguagem da criatura reconhecendo que é
criatura, que Deus não é manipulável, e que eu dependo dele para mover a minha mão”.
Com esse espírito, enfatizou, “nossa Igreja pode criar naturalmente ritos e
comportamentos, cantos absolutamente maravilhosos, porque verdadeiros”.
Ao ressaltar que a missa é como um poema e não suporta enfeites, Adélia Prado
afirmou que a celebração da eucaristia “é perfeita” na sua simplicidade. “Nós colocamos
enfeites, cartazes para todo lado, procissão disso, procissão daquilo, procissão do
ofertório, procissão da Bíblia, palmas para Jesus. São coisas que vão quebrando o ritmo.
E a missa tem um ritmo, é a liturgia da Palavra, as ofertas, a consagração... então ela é
inteirinha.”
Segundo a poeta, “a arte a gente não entende. Fé a gente não entende. É algo
dirigido à terceira margem da alma, ao sentimento, à sensibilidade. Não precisa inventar
nada, nada, nada”. E encerrou declamando um poema seu, cujo fragmento diz:

Ninguém vê o cordeiro degolado na mesa,


o sangue sobre as toalhas,
seu lancinante grito,
ninguém.

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