Professional Documents
Culture Documents
estudos semióticos
http://www.revistas.usp.br/esse
Resumo: Este trabalho consiste na investigação dos modos de (re)inserção de uma obra na rede quase meio século após o
surgimento de sua versão original, o qual ocorreu em um momento “pré-internet”. A obra escolhida é o Minimanual do
Guerrilheiro Urbano, escrito em 1969 por Carlos Marighella, e o material investigado são retomadas ao Minimanual
presentes contemporaneamente na rede. Entre o final dos anos 1960 e a metade dos anos 2010 houve mudanças
socioculturais, o aparecimento de novas mídias, de novos gêneros discursivos. Diante disso, surgem algumas indagações:
que motivos levam ao resgate da obra? Como se dá a apropriação da mesma? Que mecanismos discursivos contribuem
para a explicação desse ressurgimento? Partindo dessas e de outras questões, nosso objetivo é verificar as categorias
semióticas que predominantemente se mantém e aquelas que mais se transformam na comparação entre o texto original e
aqueles que remetem a ele meio século depois, em processos de construção de intertextualidade e da transmidiação,
depreendendo, assim, as diferenças e semelhanças relativas à imagem do guerrilheiro e à organização e funcionamento dos
textos estudados. Como resultados, observa-se que as retomadas são motivadas pelo gênero, por elementos visuais e
sobretudo por traços passionais presentes na obra original e reconfiguradas no contexto estudado.
que não se consideram mais apenas essas 1. Hoje, ser “violento” ou “terrorista” é uma
categorias no texto-enunciado, mas em seu uso, qualidade que enobrece qualquer pessoa
isto é, observa-se o tempo do uso, o espaço do uso, honrada, porque é um ato digno de um
a relação entre actante e texto etc. revolucionário engajado na luta armada contra a
O objetivo deste trabalho é verificar as categorias vergonhosa ditadura militar e suas atrocidades.
semióticas que predominantemente se mantém e (p. 1);
aquelas que mais se transformam na comparação 2. O guerrilheiro urbano é um homem que luta
entre o texto original e aqueles que remetem a ele contra uma ditadura militar com armas,
quase meio século depois, em processos de utilizando métodos não convencionais. Um
construção de intertextualidade e de transmidiação, revolucionário político e um patriota ardente, ele
depreendendo, assim, as diferenças e semelhanças é um lutador pela libertação de seu país, um
relativas à imagem do guerrilheiro e à organização e amigo de sua gente e da liberdade. (p.2)
funcionamento dos textos estudados. Para isso, 3. As armas do guerrilheiro urbano são inferiores
analisam-se os contextos interno e externo da obra às do seu inimigo, mas vendo do ponto de vista
e dos textos nos quais ela (res)surge. Espera-se, moral, o guerrilheiro urbano tem uma vantagem
com essa investigação, trazer algumas que não se pode negar. Esta superioridade moral
contribuições da semiótica discursiva para a é o que sustem o guerrilheiro urbano. Graças a
discussão sobre as motivações e o funcionamento ela, o guerrilheiro urbano pode levar ao fim seu
da intertextualidade e dos modos de presença do trabalho principal, que é atacar e sobreviver (p.
Outro no discurso. 2);
Iniciaremos com a exposição da obra e a análise 4. O guerrilheiro urbano encarcerado vê a prisão
dos elementos considerados pertinentes para a como um terreno que deve dominar e entender
compreensão de sua retomada. Em seguida, para libertar-se por meio de uma operação da
analisaremos as diferentes formas de ressurgimento guerrilha. Não há prisão, nem uma ilha, ou uma
do Minimanual na rede, juntamente com a penitenciária na cidade, ou uma fazenda, que
explanação dos principais conceitos teóricos não seja impregnável pela astúcia, perseverança
manejados na análise. Por fim, algumas reflexões e pelo potencial de fogo dos revolucionários (p.
interligando discurso na rede, semiótica, luta 17);
armada e intertextualidade. 5. Desde agora, os homens e mulheres
escolhidos para a guerra de guerrilha urbana são
1. Algumas palavras sobre a obra trabalhadores; camponeses a quem a cidade
atraiu por seu potencial de trabalho (...) (p. 25).
Durante o período do Regime Militar brasileiro
(1964-1985), uma parte da militância de esquerda,
A escolha de traços de guerra para esse
insatisfeita com a atuação da oposição, decide
movimento implica em uma luta voltada contra um
pegar em armas para combater a ditadura. Mais de
adversário, considerado inimigo. O discurso enfatiza
trinta grupos armados atuaram no país entre 1968
características negativas da ditadura e o seu caráter
e 1973, sendo um dos principais, pelo número de
inimigo (vergonhosa ditadura, inimigo, grandes
ações realizadas e de militantes, a Ação Libertadora
capitalistas etc.), afirmando que a condição de
Nacional, liderada por Carlos Marighella. No
pobreza e repressão no país é de responsabilidade
momento do auge da realização das ações armadas,
do governo.
em 1969. Marighella lançou o Minimanual do
O segundo exemplo resume, de algum modo, as
guerrilheiro urbano, um documento de 26 páginas,
principais relações interdiscursivas presentes na
organizado em diversos tópicos, no qual apresenta
obra. Primeiro, a oposição à ditadura; por outro
as características e ações essenciais para a
lado, os métodos não convencionais, expressão que
formação do guerrilheiro e da guerrilha urbana.
se refere ao mesmo tempo a uma forma de oposição
Trata-se de um texto de caráter essencialmente
diferente daquela que vinha sendo praticada pela
prático, considerado bastante original, que se
esquerda não armada e a uma forma de luta que,
tornou conhecido em diferentes países do mundo.
apesar de ser armada e se assumir como guerra,
Apesar de o objetivo deste trabalho não ser
caracteriza-se como uma guerra revolucionária,
analisar a obra e sim suas retomadas, observa-se
com um exército revolucionário, não um exército
que algumas características do manual ressurgem
convencional. A noção de ruptura surge como
com bastante frequência e seu conhecimento
elemento central nesse discurso, pois o
contribui para a maior compreensão das remissões.
revolucionário caracteriza-se por romper com os
Nesse sentido, tomando como base os trechos a
códigos e valores já existentes e buscar construir o
seguir, faremos uma breve análise do texto de
novo. Ainda sobre este exemplo, destaca-se um
Marighella.
valor bastante presente no discurso, semantizado
na expressão libertação do país. O próprio nome da
39
estudos semióticos, vol. 12, n. 2 – dezembro de 2016
organização (Ação Nacional Libertadora) já contém guerra revolucionária, valores esses considerados
um dos valores centrais a ser alcançado na extrapositivos e, sendo uma luta “não
guerrilha urbana, a liberdade. convencional”, tendo rompido com a esquerda
O manual constrói a imagem de um guerrilheiro “convencional” e com a ditadura, seus valores são
ideal, elencando suas qualidades, que são de duas de absoluto, não de universo.
ordens: do ser e do fazer. Enfatizam-se Claude Zilberberg (2004) ao discorrer sobre
características morais desse sujeito (pessoa axiologia, propõe a distinção entre valores de
honrada, ato digno de um revolucionário engajado, absoluto e valores de universo. O primeiro seria
patriota ardente, amigo de sua gente e da liberdade, voltado para a “unicidade e exclusividade”, este
superioridade moral). Para além de uma questão resultaria, portanto, da triagem, procurando atingir
estritamente ética, o texto projeta um guerrilheiro o máximo de pureza. Os valores de universo, por
repleto de atributos abstratos, qualidades sua vez, operam a mistura, voltam-se para a
consideradas essenciais para a luta: revolucionário, “difusão e universalidade”.
rebelde, radical, valente, audacioso, corajoso, A luta armada é uma forma extrema e exclusiva
ousado, combativo, patriota, consciente, decidido, de militância, o guerrilheiro rompeu com a
confiante, tranquilo, seguro, firme, paciente, esquerda não armada, ao discordar dela no modo
persistente, perseverante. Os sujeitos que optam de organização do combate ao regime militar. A
pela luta armada são considerados indivíduos que tentação para seus adeptos é a de realizar uma
decidem conscientemente (consciente, decidido, ação extremamente difícil, que os diferencia dos
firme) por uma ruptura (revolucionário, rebelde, demais (a aproximação da figura do herói, valores
radical), e tem confiança nela (confiante, tranquilo, extrapositivos, de absoluto). Outro elemento
seguro), mesmo sabendo que a luta é longa intensificador, que move este sujeito, consiste no
(paciente, persistente, perseverante). Por isso, agem ódio ao inimigo.
de forma exemplar agem de maneira exemplar
(valente, audacioso, corajoso, ousado, combativo). 2. As formas de (res)surgimento da obra
As competências mais concretas apontadas
Como foi dito anteriormente, no momento de
como necessárias para a atuação na guerra
surgimento da obra ainda não havia comunicação
revolucionária são da ordem do saber e do poder
pela rede, tanto que o texto original foi reproduzido
fazer. Dentre elas, as mais constantes no discurso
em mimeógrafo e suas cópias circularam
são: saber atirar; saber dirigir, pilotar avião e
clandestinamente. Distintamente, o corpus deste
manejar barco; entender de mecânica, rádio,
trabalho foi construído a partir de textos surgidos
telefone, eletricidade e de técnicas eletrônicas; ter
exclusivamente na rede. A coleta do material
conhecimento em primeiros-socorros; ter
estudado ocorreu por meio de uma busca no google
conhecimentos topográficos e do terreno onde atua;
acionada pelas expressões “Mini-manual do
saber copiar letras e falsificar documentos; saber
guerrilheiro urbano” e “Manual do guerrilheiro
produzir armas e munições etc.
urbano”, a qual teve aproximadamente quarenta e
Além da extensa lista de virtudes e habilidades
cinco mil resultados. Após uma análise prévia,
físicas, a análise mostra ainda que, quando o
selecionaram-se 120 referências para serem
assunto é tempo, encontram-se os extremos de uma
investigadas.
frequência (sempre, nunca, jamais etc.); quando é
Os gêneros nos quais o Minimanual (res)surge
quantidade, abrange-se a totalidade ou o nulo
são os mais variados: página no facebook; blogs;
(todos, nenhum, nada, não há etc.); ao se falar de
notícias, reportagens, entrevistas, artigos de
modo, tem-se também maneiras extremas
opinião, páginas de enciclopédias, manuais, entre
(radicalmente, indiscriminadamente, etc.). O
outros. Há também muitos vídeos que tratam da
guerrilheiro é um sujeito que optou por uma
obra, entretanto, estes não serão considerados no
militância extrema, o que exige uma conduta rígida,
presente artigo.
que busca, em todos os sentidos, aproximar-se do
Voltemos às perguntas motivadoras do trabalho:
grau máximo. Esse caráter excessivo se manifesta
o que motiva esse (res)surgimento? Quais são suas
também pela linguagem. O ator guerrilheiro
formas?
caracteriza-se pelo excesso. Sua figura aproxima-se
Stange (2014), refletindo sobre a transposição do
de um herói.
conceito de enunciação para enunciados visuais,
No quinto exemplo, a passagem “os homens e
apresenta três condições que permitem a expansão
mulheres escolhidos para a guerra de guerrilha
do conceito para outras semioses: formal, subjetal e
urbana” revela outra característica importante
fenomenológica.1 Observe-se que a autora traça um
desse discurso, pois ele atribui ao guerrilheiro um
status diferenciado, que nem todos podem alcançar. 1
Or, afin de situer ma démarche dans le contexte plus
Para ser guerrilheiro não basta estar modalizado vaste des essais d’extension du concept d’énonciation,
pelo querer, é preciso estar em conjunção com j’identifierai trois conditions fondamentales de cet
outros valores modais, como saber e poder fazer a élargissement : une condition formelle, une condition
40
Oriana de Nadai Fulaneti
41
estudos semióticos, vol. 12, n. 2 – dezembro de 2016
resistência à ditadura militar”, que indica uma Se no momento em que o Minimanual foi
postura favorável e de admiração em relação ao publicado a circulação de textos compostos por
manual e às ações por ele ensinadas. De modo diversas formas de expressão era mais restrita, ao
inverso, o comentário relativo ao manual de longo desses quase cinquenta anos, com o
ocupação escolar chama Marighella de “terrorista’, desenvolvimento de novas tecnologias, houve um
em claro posicionamento contrário ao autor e sua grande aumento da difusão de textos sincréticos que
obra. circulam na rede. Desse modo, encontram-se
associações à obra de Marighella feitas a partir de
2.2 Retomada por associações a imagens:
conteúdos visuais
8. Atear fogo em pneus e em ônibus para rápidos, que pegassem o adversário de surpresa.
bloquear vias; bloqueá-las várias e Ademais, as barricadas são táticas normalmente
simultaneamente em pontos estratégicos de grande utilizadas em protestos coletivos de maior duração.
circulação em horários particularmente críticos. O uso do adjetivo pérfida para fazer referência ao
Isto vos parece atos espontâneos de manifestação Manual acrescenta à associação da imagem uma
patriótica por democracia, ou atos coordenados por valoração negativa da obra. Verifica-se, tanto no
líderes treinados na mais pérfida cartilha de caso dos manuais quanto das imagens, que os
guerrilha urbana? (...) elementos axiológicos são traços essenciais para a
Os atos de guerrilha não se limitaram a São produção dos textos de retomada, que se constroem
Paulo e seguiram o mesmo padrão por todo o Brasil. com fortes marcas de posicionamento ideológico.
Estariam eles usando do “Mini-Manual do
Guerrilheiro Urbano”, escrito por Carlos Marighella? 2.3 Retomada por associação ao
Disponível em <http://www.publi conteúdo verbal
kador.com/politica/o-lenho-verde/manifestacoes-
de-guerrilha-urbana>, acesso em 08/07/2016)2. A maior parte dos textos menciona a obra de
Vale ressaltar que, no caso do oitavo exemplo, Marighella associando-a a algum aspecto de seu
este dificilmente se aplicaria, tendo em vista que a conteúdo, desencadeado por três isotopias
guerrilha urbana não fazia barricadas, pois um dos principais. A primeira, relativa à memória do
seus princípios de ação era a realização de atos período do Regime Militar ou de Carlos Marighella;
a segunda, relativa à guerra e à segurança e, por
2
Todos os grifos, ao longo de todo o artigo, são nossos.
42
Oriana de Nadai Fulaneti
43
estudos semióticos, vol. 12, n. 2 – dezembro de 2016
44
Oriana de Nadai Fulaneti
45
estudos semióticos, vol. 12, n. 2 – dezembro de 2016
46
Dados para indexação em língua estrangeira
Fulaneti, Oriana de Nadai.
Semiotics and intertextuality: a study of the “Minimanual do guerrilheiro urbano”´s
presence on the network between 2010 and 2016
Estudos Semióticos, vol. 12, n. 2 (2016)
issn 1980-4016
Abstract: This work consists in the investigation of the ways of (re)insertion of a work in the net almost half a
century after the emergence of its original version, which occurred in a “pre-internet” moment. The work is the
Minimanual of the Urban Guerilla, written in 1969 by Carlos Marighella, and the investigated material is the
return to the Minimanual presented contemporaneously in the net. Between the late 1960 and the mid-2010,
there were social cultural changes, the emergency of new media and new discursive genres. Given this, some
questions arise: what reasons lead to the revival of the work? How does its appropriation happen? Which
discursive mechanisms contribute to the explanation of this resurgence? From these and other issues, our
objective is to verify the semiotic categories which predominantly remains and those which have changed most
by comparing the original text and those which refer to it half a century later, in the process of construction of
intertextuality and transmediation, and therefore, understanding the differences and similarities related to the
guerrilla’s image and to the organization and functioning of the texts approached. As results, it is observed that
the return is motivated by gender, by visual elements and above all, by passionate traits in the original work
and reconfigured in the context of the study.