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O abolicionismo penal e a realidade brasileira


O abolicionismo penal e a realidade brasileira

Walace Ferreira

Publicado em 05/2013. Elaborado em 05/2013.

Por mais que a proposta abolicionista apresente interessante


argumentos em seu favor, ainda não há notícias sobre o
sucesso da mesma em qualquer Estado, cabendo ressaltar as
fortes críticas que essa teoria vem sofrendo.

Resumo: O abolicionismo penal consiste numa teoria filosófico-penal que


defende o fim do sistema penal, por considerá-lo gerador de um sofrimento inútil
e nocivo. Parte do pressuposto de que o conceito de crime é errôneo, e o direito
penal deve ser substituído por formas de conciliação e reparação realizadas pela
própria sociedade civil, sem a interferência coercitiva do Estado. Abordaremos
suas características, perspectivas teóricas e finalizaremos o artigo tratando da sua
impossibilidade de aplicação no contexto brasileiro.

1. O QUE É O ABOLICIONISMO PENAL?

O abolicionismo penal faz parte de um conjunto de teorias que negam


legitimidade à pena. Contudo, é mais radical, defendendo o fim imediato da
justiça criminal, contestando inclusive a própria definição de crime. Importante
ressaltar que há diversas correntes do abolicionismo penal, notadamente as de
Louk Hulsman (1997), Nils Christie (1998) e Thomas Mathiensen (2005). Seu
surgimento como corpo teórico pode ser datado da década de 80, nos países
nórdicos e na Holanda, embora seus pressupostos filosóficos sejam muito
anteriores, remontando pelo menos até o século XIX, com o desenvolvimento das
ideologias libertárias.

Tal teoria vai de encontro à concepção geral pré-estabelecida na opinião corrente


e, num primeiro momento, aparece como utópica e ingênua. Também é contrária
ao que, em geral, é difundido pelos meios de comunicação, que tendem a

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transmitir uma opinião favorável a um direito penal mais rigoroso. Na opinião


corrente, a pena é legitimada pela prevenção geral e especial, as quais, lato sensu,
consistem, a primeira, na intimidação como forma de se evitar a delinqüência e, a
segunda, na reeducação do infrator pela pena privativa de liberdade, o que
também impede que este cometa novos crimes enquanto está encarcerado.

No entanto, todos, assim como os meios de comunicação, concordam que a justiça


criminal, da forma como está estruturada, apresenta graves defeitos. A pena
privativa de liberdade não executa, de forma alguma, sua função ressocializante,
muito pelo contrário: o indivíduo, após o cárcere, tem mais chances de praticar
novos crimes do que antes. Há quem argumente que isso só ocorre nos países
periféricos, devido às más condições das prisões. Contudo, nem as prisões do
primeiro mundo cumprem sua suposta função de reeducação. Até mesmo a
prevenção especial não é cumprida de forma completa, pois dentro da prisão
apenados muitas vezes continuam cometendo delitos, como uso de telefones
celulares ou através de ações contra os outros presos e agentes carcerários. Além
disso, o próprio sistema penal, devido ao seu tamanho e forma de gerência, não
cumpre corretamente aquilo que se propõe a fazer, é ineficiente, o que pode ser
verificado pela enorme presença da denominada cifra negra, os crimes que passam
despercebidos pelas autoridades.

Outra falha do sistema penal, muito apontada, é a sua seletividade: a julgar pela
população carcerária, a prática da criminalidade é quase que restrita às classes
sociais menos favorecidas. Em verdade, a criminalidade é difundida por todo o
espectro social, mas a ação do sistema penal está focada sobre os despossuídos.
Isso fere frontalmente o princípio da igualdade, defendido no caso brasileiro pela
Constituição de 1998, e que se constitui como um dos principais alicerces dos
Estados de Direito do Ocidente. É, enfim, a universalidade do crime em contraste
com a seletividade da justiça.

Os juristas defendem diversas maneiras de se combater esses defeitos manifestos


do sistema penal, como o aperfeiçoamento do sistema carcerário, a redução do
rigor do direito penal, dentre outras medidas. Entretanto, há correntes de
pensamento que questionam a própria legitimidade do sistema penal, defendendo
o seu fim ao invés de sua reestruturação ou reforma, adotando uma posição muito
mais extremada do que a daqueles que procuram meramente reformar o sistema
penal.

Tais correntes são heterogêneas, no entanto, sobre os pressupostos e argumentos


do por que da não legitimidade da pena, assim como sobre como se alcançará a
etapa em que não haverá mais pena. Configuram, em seu conjunto, as teorias
negativas da pena: A teoria agnóstica, a materialista/dialética e o abolicionismo
penal, do qual trata esse artigo.

O abolicionismo, em síntese, é a teoria que defende o fim do sistema penal, por


este constituir um sofrimento inútil e nocivo; parte do pressuposto de que o
conceito de crime é errôneo, e o direito penal deve ser substituído por formas de

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conciliação e reparação realizadas pela própria sociedade civil, sem a interferência


coercitiva do Estado.

Dentre seus pressupostos filosóficos, destaca-se o marxismo, principalmente no


que se refere ao conflito de classes, que se reflete no direito penal, sendo a sua
seletividade uma forma de controle social. Outro desses pressupostos é o
anarquismo de Max Stirner, extremamente radical, que prega a completa
liberdade do indivíduo para que este possa se realizar por completo, sem
interferência alguma do Estado. Esse princípio, o da auto-realização, da liberdade
individual, está presente no abolicionismo, influenciado pelo ideário libertário.

Todavia, seu principal fundamento encontra-se, assim como de outras teorias


negativas da pena, no fenômeno da self-fulfilling prophecy, advindo da Sociologia,
como principal argumento para deslegitimar e pena. De acordo com essa ideia,
quando a sociedade atribuiu um valor a um indivíduo, este é afetado por essa
atribuição: incorpora-o e passa a se comportar conforme o valoraram. Na
criminologia, isso representa uma ruptura, pois o crime, nessa ótica, não é
preexistente ao direito penal, que o reconhece e o positiva. Ocorre o movimento
contrário, isto é, o crime surge do próprio processo de tipificação, o direito cria o
criminoso. Este, ao ser rotulado como tal, sofre o peso desse rótulo, e passa a agir
conforme ele, ou seja, é a profecia que causa seu próprio cumprimento. Dessa
forma, o sistema penal, ao selecionar determinadas pessoas como criminosas,
efetivamente as induzem ao comportamento que rotulou como criminoso.

O presente artigo, nesse sentido, cuidará de conceituar o abolicionismo penal,


apontando críticas, tanto positivas quanto negativas.

2. PROPOSTAS ABOLICIONISTAS

O Abolicionismo penal tem como posição nuclear a extinção de todo sistema penal
e tudo que é associado a ele. Defende-se, com isso, que o sistema penal não é uma
solução, mas um problema devido a suas precariedades e sua ineficiência, uma vez
que esse só funcionaria de modo segregacionista, atingindo muito mais as classes
menos favorecidas do que todo o conjunto de atores que cometem delitos nocivos
à vida social, deixando muitas vezes imunes aqueles que mereciam ser punidos
(Machado, 2008).

Nesse sentido, temos como característica dessa corrente deslegitimadora da pena


a alegação de que o sistema penal seria altamente seletivo, só punindo uma
parcela da sociedade, aquela de baixa renda, desprovidas de oportunidades
sociais. Com esses sujeitos, o processo penal seria bastante rigoroso, sendo as
penas altas até mesmo para crimes como o furto, em hipóteses cujo valor
subtraído foi ínfimo. Por outro lado, crimes como os praticados por deputados,
senadores, os chamados de “colarinho branco” muitas vezes, ficam impunes,
revelando a ineficácia global do sistema penal moderno e a sua intimidade com os
fatores de colaboração para a manutenção das desigualdades sociais.

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Criticando o Direito Penal e os seus efeitos, apontando seus métodos não como
solução, mas como problema, os membros dessa corrente exigem projetos mais ou
menos radicais, mais ou menos teóricos e mais ou menos políticos. Seriam eles,
segundo a Vera Regina Pereira de Andrade (2003):

1) abolir a pena privativa de liberdade;

2) colocar no lugar da pena mecanismos de reconciliação em uma comunidade


ansiosa;

3) descriminalizar a política dos jovens;

4) desmascarar a execução do tratamento;

5) desestatizar o controle social;

6) organizar a reparação e o esclarecimento dos conflitos;

7) acionar uma política criminal negativa;

8) elaborar uma teoria sensitiva do Direito Penal e da pena;

9) exercer uma crítica negativa ao “status quo” da justiça penal.

Seguindo essa linha de pensamento, Andrade (2003) aponta que os membros


dessa corrente estariam de acordo com uma imagem do ser humano constituída
por homens capazes de se organizar autonomamente e livres de repressões. O
Estado, com isso, acaba por ser visto, na opinião dos abolicionistas, como portador
do papel de opressor diante de uma natureza positiva dos homens.

Um aspecto importante segundo a argumentação dos abolicionistas, é que a


história passada e a presente têm mostrado que o direito penal não conseguiu
resolver as questões para as quais foi criado. Pelo contrário, não raro, está
envolvido numa espiral que tem contribuído não só para alimentar o círculo
vicioso da violência e da delinqüência social, como se transformou num puro
instrumento do poder arbitrário sem qualquer outra finalidade que não seja a
materialização da política conjuntural do poder instituído. Argumentam que,
apresentando-se como preventivo e garantidor da segurança das pessoas, o direito
e o sistema penal modernos tornaram-se, na verdade, muitas vezes um agente da
própria violência e incerteza.

Decorre daí a crença de que só a abolição do direito penal, e não simplesmente a


mera descriminalização, permitirá às ciências criminais uma abordagem
multidisciplinar do mesmo fenômeno, assim como a substituição do primado da
punição sobre o delinqüente pela conseqüente valorização e intervenção das
vítimas e de toda a comunidade no sentido de garantir a justiça compensatória que
o delito praticado venha a determinar e exigir. Pouco a pouco, emerge daí um novo
paradigma de justiça social diametralmente diverso daquele que tem existido nas
nossas sociedades, e que tem no aparelho repressivo do Estado o seu principal

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esteio e na pena privativa de liberdade a sua penalidade de eleição, com todo o


cortejo de perversões e contra-sensos que tem acompanhado o sistema
penitenciário e as prisões em geral.

Para os abolicionistas, à medida que o aparelho de Estado vai declinando, depois


de ter preenchido as suas funções históricas que lhe foram atribuídas ao longo da
modernidade capitalista dos últimos três séculos, assiste-se também ao naufrágio
dos fundamentos que originaram o sistema penal estatal, com os seus códigos, as
suas perseguições policiais, as suas prisões, e todas as instituições que lhe
sobrevieram para materializar-se naquilo que hoje todos nós conhecemos.

Segundo Zaffaroni, em seu livro Em busca das penas perdidas (1991), o


abolicionismo penal consiste numa das respostas à crise do sistema penal recente,
surgida em razão da deslegitimação dos sistemas penais. Afinal, desse processo de
deslegitimação, surgem duas grandes correntes de proposta político-criminais,
com variáveis relativamente consideráveis em cada uma delas: a proposta de um
direito penal mínimo ou “contração de direito penal” e a proposta de sua abolição,
como tratado aqui, do abolicionismo penal.

Tendo como um dos seus principais objetivos – como já foi dito - a supressão do
sistema penal, tido como ineficiente e precário, buscar-se-ia através dos outros
ramos do direito como o civil, por exemplo, a solução para questões que são
resolvidas pelo poder coercitivo. Propõe-se, assim, a despenalização via busca de
solução de conflitos por meio da conciliação, bastante utilizada nos ramos do
direito processual civil, supondo que neste campo do direito ela prevaleceria, e se
encontraria o meio mais eficaz para a pacificação real da violência.

3. DELIMITANDO OS ARGUMENTOS FAVORÁVEIS

Para o movimento abolicionista, responsável pelas mais sérias críticas formuladas


ao sistema penal, a irrefutabilidade de seus argumentos torna adequada a
proposta de extinção, não apenas da pena privativa de liberdade, mas, repita-se,
de toda a máquina que movimenta o Direito Penal. O enfoque principal do
discurso abolicionista encontra-se centrado na ineficiência do sistema penal,
buscando uma humanização, em vista da redução da violência penal. O
abolicionista edifica, desde o ponto de partida, uma proposta alternativa à política
criminal, e não uma política criminal alternativa, daí se considerarem os méritos
da sua teoria.

Assim, tal propósito de eliminar o seu objeto de estudo é a única circunstancia que
o define. É dito que pensar que o abolicionismo infere numa teoria coerente,
sistemática e acabada seria incorrer em erro. Por isso, verificam-se no sistema
atual tantos fundamentos e explicações a favor da abolição do sistema penal.

Entre esses fundamentos, estão os seguintes:

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Eventos criminalizáveis que não são efetivamente criminalizados

O sistema penal somente intervém num reduzidíssimo número de casos, sendo


impossível determinar-se, estatisticamente, o número de delitos cometidos que
deixam de ingressar no sistema. Logo, todos os valores ou princípios que
costumam fundamentar a intervenção do sistema penal – a igualdade perante a
lei, a segurança, a punição do criminoso como realização da justiça – desmoronam
diante dessa sua aplicação excepcional, e, portanto, injusta, a um reduzido número
de selecionados violadores da lei penal.

Nesse aspecto, Louk Huslman (1997) acredita que todos os princípios ou valores
sobre os quais tal sistema se apóia, tais como a igualdade dos cidadãos, a
segurança, o direito à justiça, dentre outros, são radicalmente deturpados, na
medida em que só se aplicam àquele número ínfimo de situações que são os casos
registrados. O enfoque tradicional se mostra, de alguma forma, às avessas. Em
outras palavras, a supressão do sistema penal iria unificar a solução adotada
diante de um fato definido como crime, estendendo à parcela minoritária que é
alcançada pelo sistema o tratamento não penal que, na prática, resolve os conflitos
da maioria das pessoas envolvidas em eventos criminalizáveis.

O sistema penal atinge, basicamente, as camadas mais frágeis da


população.

Por mais que procure aplicar a lei de maneira uniforme, submetendo


indistintamente toda a população a seu rigor, o sistema penal tende a privilegiar
os interesses da classe dominante, que numa concepção marxista procura vincular
o sistema penal à organização do sistema capitalista. Nessa concepção, Thomas
Mathiesen (1996) sustenta que o Estado é possuidor de uma capacidade
extraordinária de sedução, detentor de uma capacidade de transmutação
inigualável, exerce sua tática de sedução criando pólos ou posições de aceitação ou
recusa, seria o estabelecimento do dentro e do fora, de maneira a controlar e
manipular suas passagens de acordo com a sua política de dominação e controle.
Logo, as camadas mais baixas, que não têm domínio da política e do aparelho do
Estado como um todo, acabam por sofrer as conseqüências das vontades e desejos
das classes dominantes.

Há, assim, uma seletividade que começa antes da intervenção do sistema penal,
com a discriminação social e escolar, com a intervenção dos institutos de controle
do desvio dos menores, da assistência social, entre outros fatores sociais. O
processo seletivo prossegue ainda no plano legislativo, onde se verifica uma
grande desproporção entre as penas cominadas aos delitos que ocorrem com
maior freqüência na periferia (agressões, furtos, roubos, etc.), se comparados aos
delitos próprios de agentes com poder aquisitivo alto (colarinho branco, uso de
tóxicos, crimes econômicos, culposos, de trânsito, etc.).

O sistema, assim, cria e reforça as desigualdades sociais, conservando a estrutura


vertical de dominação e poder.

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O sistema penal não atua de acordo com a legalidade, que é violada de


forma aberta e extrema, pelo altíssimo número de fatos violentos e de
corrupção praticados pelos próprios órgãos do sistema penal

Argumenta-se que o sistema penal está estruturado para que, de fato, não
funcione, pois tipifica uma quantidade de condutas muito superior à capacidade
operativa dos órgãos incumbidos da repressão criminal.

Outro conceito lógico do desencontro existente entre os programas de ação e os


recursos administrativos de que o sistema dispõe para implementar esses
programas, afirmam os abolicionistas, é o abandono do princípio da legalidade e a
sistemática violação dos direitos humanos, tais como as que diariamente são
veiculadas pela imprensa. De fato, qualquer organismo sério de defesa dos direitos
humanos pode comprovar o exagerado número de prisões ilegais, homicídios,
torturas e corrupção cometidos por agentes policiais e outras autoridades
envolvidas com o funcionamento do sistema penal, sem falar nas atividades
extorsivas, participação nos "lucros" decorrentes de contravenção e outras
atividades ilícitas.

O sistema penal não previne a prática de novos delitos

O sistema penal encontra como uma das principais justificativas para a sua
existência o que se convencionou chamar de “prevenção geral”. Segundo este
argumento, prevendo-se a punição em razão da prática de determinados atos,
todos ficariam intimidados e, por isso, não agiriam da forma considerada
reprovável.

Os abolicionistas entendem que este princípio é equivocado porque busca educar


através do medo, pretendendo impor um padrão de conduta ao invés de privilegiar
o diálogo, o convencimento, a argumentação. Revelando sua incapacidade de
persuadir pelo argumento, o direito penal, como instância formal de regulação de
conflitos, impõe a violência e exibe sua fraqueza, mostrando-se incapaz de
prevenir a prática de novos delitos. Com efeito, apesar da tipificação legal, o
homicídio, o aborto, o roubo, o tráfico de entorpecentes e outros delitos são
praticados com relativa regularidade, tal como ocorreria se não houvesse qualquer
proibição.

Isso implica em dizer que as pessoas não deixam de praticar as condutas definidas
como crime por temor à sanção prevista no preceito secundário da norma, mas
por força dos valores injetados em toda sua existência, tais como o relacionamento
familiar, a escola, a igreja, a sociedade, etc.

Entretanto, o que se configura é o exato oposto, visto que a pena de prisão não
intimida, pois os cárceres estão abarrotados de pessoas que não se amedrontam
diante da pena e pelas ruas circulam criminosos que praticam toda sorte de delitos
indiferentes à possibilidade de serem punidos. Além de rejeitar o sistema penal
como inibidor da criminalidade, os abolicionistas entendem que, por apresentar

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resposta violenta e pública, ele acaba por estimular a própria violência em outros
campos, principalmente nos presídios, considerado por muitos como verdadeira
“escola do crime”.

Sobre isso, Edmundo de Oliveira (1996), lamenta que a prisão continue a se


apresentar como um espetáculo deprimente, atingindo além da pessoa do
delinqüente, já que orfana filhos de pai vivo em,viúva a esposa de marido
combalido, prejudica o credor do preso tornado insolvente, desadapta o
encarcerado à sociedade, suscita graves conflitos sexuais, onera o Estado e
amontoa seres humanos em jaulas sujas, úmidas, realidades bastante comuns ao
Brasil.

O sistema penal intervém de maneira estereotipada tanto sobre o


acusado como sobre a vítima

Argumenta-se que o sistema penal supõe que todos os envolvidos (réus e vítimas)
têm as mesmas reações e necessidades, desconsiderando a singularidade de cada
um. Dessa maneira, na grande maioria dos casos, mesmo a opinião do ofendido
não possui qualquer relevância para o desfecho do processo criminal, cabendo
unicamente ao Estado a persecução e aplicação da sanção. As partes envolvidas,
tanto o réu como as vítimas são vistas pelo Estado sem a intenção que o caso exige
e adota sempre a ideia de que o agredido exige uma vingança imediatista e ao
agressor não é permitido o questionamento, caracterizando-se implicitamente um
caráter de vingança particular.

Nesse aspecto, Louk Hulsman (1997) lembra que no dia do julgamento a vítima
pode considerar o problema inicialmente vivido de outra forma, passando a não
desejar a punição prevista legalmente, mas ainda assim a questão será julgada
com o rigor da lei. A proposta abolicionista, de promover um encontro entre as
partes envolvidas, valorando especialmente a expectativa do ofendido,
proporcionaria maior possibilidade de composição do conflito. Ou seja, para os
abolicionistas o sistema penal não interfere de maneira justa, satisfatória e
coerente com a realidade, pois visualiza os fenômenos criminais de uma só
maneira em que o deleito e os seus respectivos protagonistas são estáticos, sem
levar em conta nenhuma individualidade factual, produzindo uma resposta
insatisfatória.

Já Nils Christie (1998), após considerar a ingerência da justiça criminal entre os


envolvidos como verdadeiro "roubo de conflitos", percebeu a importância de se
conhecer bem todo o contexto de um fato antes de o considerar criminoso,
sugerindo como exemplo o julgamento que fazemos sobre as atitudes reprováveis
de nossos filhos, sobre quem sabemos demasiado. O sistema penal, portanto,
congelaria no tempo o delito e seus protagonistas, dando ao fenômeno criminal
uma resposta insatisfatória e irracional.

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4. DA INVIABILIDADE DE APLICAÇÃO DO ABOLICIONISMO NO


BRASIL

Por mais que a proposta abolicionista apresente interessante argumentos em seu


favor, ainda não há notícias sobre o sucesso da mesma em qualquer Estado,
cabendo ressaltar as fortes críticas que essa teoria vem sofrendo, não só pela
magia utópica que a ronda, mas também por possíveis conseqüências que a
seguiriam, o que pioraria o atual sistema adotado por nossa sociedade.

Ao analisar uma das maneiras pela qual a teoria seria posta na prática, nos
deparamos com um provável controle interno materializado pela auto-censura e
pelo policiamento moral coletivo e/ou um controle social rígido imposto pelo
Estado em que haveria uma completa vigilância da população, seja pela polícia,
seja pelo controle tecnológico com o objetivo de “disciplinar” a sociedade. Um
doutrinador que argumenta nesse sentido é Luigi Ferrajoli (1998), para quem o
controle social excessivo de modo a prevenir a ocorrência de qualquer crime
limitaria a liberdade dos cidadãos, assim como afetaria a privacidade de todos. O
maior receio quando se toca nesse assunto é de que com a supressão do Direito
Penal esse controle se torne demasiadamente repressivo e seja regido por técnicas
um tanto quanto irracionais, fazendo com que a humanidade regredisse alguns
passos na sua evolução histórica caso o sistema falhasse. Isso significa,
paradoxalmente, que o abolicionismo, ao defender o fim do direito penal, prega
uma alternativa em que exalta outra forma de controle social, como em que uma
exaltação ao “direito penal” em que supera em rigor muitos ardorosos
proponentes da legitimidade da pena.

O forte caráter jusnaturalista do abolicionismo penal é algo que suscita críticas a


essa teoria, por parte da corrente positivista. Para que seja válida, é necessário que
a sociedade seja, naturalmente, solidária e capaz de resolver seus conflitos de
forma adequada por si mesma. O Estado seria um ente opressor, que frustra essa
solidariedade natural. Assim, os abolicionistas seriam perigosamente ingênuos,
considerando que o único opressor é o Estado e ignorando que outro homem pode
também ele tornar-se opressor dos outros. A abolição do direito penal levaria a
outras formas de controle social, informais, mas não necessariamente melhores.

Dado o exposto ao longo do artigo, como podemos enxergar a possibilidade de


aplicação do abolicionismo penal em nosso país? O abolicionismo penal acredita
que a melhor política criminal ainda é uma boa política social. O que faz sentido,
mas não surge como solução completa para os conflitos sociais existentes, até
mesmo nos países com maior grau de desenvolvimento, melhor distribuição de
renda e maior igualdade social. Sendo assim, é de se supor que sua aplicação seria
muito mais utópica quando consideradas as características da atual sociedade
brasileira.

A criminalidade tem raízes muito mais profundas do que uma análise rápida pode
expor: a problemática social, a perspectiva de ascensão célere no meio marginal,
impensável com o dispêndio de trabalho honesto, a excessiva procura por drogas,

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o descaso para com as gerações futuras, tudo isso fomenta o crescimento


desordenado da marginalidade.

Os próprios abolicionistas afirmam que o que leva o indivíduo a não praticar


condutas descritas como crimes são os valores apreendidos durante toda a sua
vida, tanto no âmbito familiar, na sociedade, bem como na religião. Fosse
completamente verdadeiro o argumento, deveriam ser raros os crimes nas classes
mais abastadas de todas as sociedades. O que não se verifica na prática,
especialmente em nosso país, onde, talvez por certeza da impunidade, é comum a
prática de crimes de sonegação, corrupção e outros mais, característicos de
indivíduos de melhor educação, formação e melhor acesso à informação. Não há,
pois, de se diferenciar tais crimes dos que atingem diretamente as ruas, como
assaltos, tráfico de drogas, homicídios, latrocínio, dentre outros.

As estatísticas brasileiras revelam o aumento quantitativo da população, o baixo


aproveitamento em todos os graus de ensino, a ausência de capacitação
profissional da maioria da população, além de altos índices de desemprego. A
educação é falha e os estímulos para uma boa formação moral são quase
inexistentes, restando pequenos oásis. A má formação das crianças e adolescentes,
a desesperança, os exemplos de impunidade, a ausência de punição severa em
relação aos crimes considerados graves, os domínios do crime organizado,
globalizado e do narcotráfico, os incontáveis problemas sociais, são fatores
decisivos para a elevação dos índices de criminalidade e mostram a
impossibilidade atual do abolicionismo penal no Brasil.

De fato, catadores de papel, mineiros, garis, faxineiros, trabalhadores das mais


diversas atividades insalubres expostos a agentes cancerígenos, bóias-frias,
trabalhadores em olarias e carvoarias, pessoas em regime de trabalho semi-
escravo em muitos rincões do país, flanelinhas, biscateiros, vendedores de
quinquilharias de porta em porta, trabalhadores sem carteira assinada, camelôs,
todas essas pessoas que em comum têm apenas a parca remuneração pelos seus
empenhos laborais e condições sociais adversas, fazem bom uso do seu livre-
arbítrio, não se voltando à prática de ilícitos. Tal realidade dá ensejo à idéia de
Jean Jaques Rousseau (2008) que afirmou: “O homem nasce bom, a sociedade é
que o corrompe”. Nessa sociedade, com isso, o abolicionismo penal seria inviável.

Todavia, é inegável a aceitação do fato de que a criminalidade não advém apenas


da miséria, mas no contexto do capitalismo, a partir desta se fortalece e se
expande. Caberia então ao Estado, enquanto ente responsável pelo zelo com a
sociedade, encontrar as medidas necessárias para reparar as distorções causadas
pelo sistema de exclusão social oriundo do capitalismo. Para tanto, medidas sócio-
educacionais seriam não mais que indispensáveis.

Utopicamente, uma vez resolvido o problema da miséria, findar-se-ia a questão


criminal? Diriam muitos que sim, mas não estariam esses contemplando a
criminalidade como um todo, se levarem em consideração os crimes cometidos
pelas altas camadas da sociedade. A necessidade de punir tais atos, que estão

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alheios à falta de perspectiva, uma vez que os seus agentes dispuseram de todas as
oportunidades educacionais que o dinheiro pode oferecer, leva a reiteração da
ideia de pena como maneira de manifestação de reprovação por parte da
sociedade a atitudes à margem da lei.

Portanto, é imperativa à realidade brasileira a existência de um sistema que possa


coibir e prevenir atos que se opõem ao Ordenamento Jurídico, aliando tal sistema
punitivo a uma política de reestruturação sócio-educativa para prevenir que a
miséria e a pobreza fomentem ainda mais a criminalidade, já muito bem
desenvolvida por aqueles indivíduos que, mesmo diante de uma educação
privilegiada, enveredam pelo caminho tortuoso da ilegalidade. Sendo assim, o
abolicionismo penal, que, em sua teoria, aparece como primorosamente
fundamentado, mostra-se inviável para a realidade fática brasileira, essa composta
por sérias deformidades na composição social e que ainda lida com os
desdobramentos de um processo colonial estapafúrdio que instalou, por meio do
autoritarismo e do uso desmedido da força, um ideário fundado na busca de
sempre levar vantagem sobre o próximo, deixando de lado valores como a
cooperação, ética e altruísmo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A Ilusão de Segurança Jurídica: do


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Autor
Walace Walace Ferreira
Ferreira
Professor de Sociologia da UERJ. Pesquisador. Doutor em
Sociologia pelo IESP/UERJ.

Informações sobre o texto


Como citar este texto (NBR 6023:2002 ABNT)

FERREIRA, Walace. O abolicionismo penal e a realidade brasileira. Revista Jus


Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3605, 15 maio 2013. Disponível
em: <https://jus.com.br/artigos/24443>. Acesso em: 6 fev. 2019.

https://jus.com.br/imprimir/24443/o-abolicionismo-penal-e-a-realidade-brasileira 12/12

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