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PRÁTICAS DE LINGUAGENS DE PROFESSORES EM FORMAÇÃO

Gilvânia Maurício Dias de Pontes


UFRGS
gilvaniapontes@hotmail.com

Palavras – chave: formação, linguagens, semiótica.

Introdução
Neste artigo faço um levantamento de alguns eixos para leitura de relatos de professores sobre
suas experiências com as linguagens corporais da arte e da educação física. O objeto ao qual
lanço o olhar são os textos - memoriais de formação produzidos por professores durante o
curso de ensino de arte e educação física na infância, promovido pelo Paidéia/ UFRN.
Observando as experiências de formação de professores como práticas sociais em que
interagem vários actantesi na produção de sentidos, nos escritos dos professores estão os
enunciados de seu processo de formação. Nesta escrita configuram-se relações entre:
experiência estética, linguagens verbais e não verbais e construção de sentido para o ensino de
arte e educação física na infância. Neste artigo faço o exercício de aproximação a algumas
formulações conceituais que poderão ser facilitadoras da leitura dos memoriais. Penso,
sobretudo, na relação entre os aportes da semiótica discursiva francesa e as práticas de
formação de professores para lançar-me a olhar os efeitos de sentidoii enunciados nos
memoriais de formação.

Construindo um olhar semiótico


A semiótica discursiva é marcada pelos estudos de Algirdas Julien Greimas
(Lituânia/Paris, 1917-1992). Ao longo de quase meio século essa vertente da semiótica tem
se produzido na relação entre três grandes opções epistemológicas: a linguística de Louis
Hjelmslev (Dinamarca, 1899-1966); a antropologia de Claude Lévi-Strauss (Bruxelas, 1908-
2009) e a fenomenologia de Merleau-Ponty (França, 1908-1961). Em Hjelmslev recupera a
idéia de que nenhum signo existe isolado, eles estão em relação com outros signos. Para
Hjelmslev toda linguagem é possuidora de um plano da expressão e um plano do conteúdo;
em Lévis-Strauss, a semiótica busca os conceitos de diferença e relação; com base na
fenomenologia de Merleu-Ponty: a conexão indissolúvel entre sujeito e objeto; a concepção
de percepção como lugar não linguístico onde se situa a apreensão da significação; e o
conceito de estesia.
A semiótica não é una, e nem está acabada para que dela se faça “usoiii”, decorrendo
dessa constatação a necessidade de esclarecer a quais escolhas semióticas me refiro ao
pretender a leitura dos textos produzidos por professores. São escolhas ligadas a uma vertente
contemporânea da semiótica discursiva que se propõe a semiotizar as práticas, os encontros
entre actantes, a produção de sentido em co-presença.
Da publicação da Semântica Estrutural de Greimas em 1966 até os dias atuais a
semiótica discursiva, como uma teoria geral dos processos de significação, tem se proposto a
semiotização de diferentes tipos de objetos: os discursos enunciados, as situações e as
experiências sensíveis (LANDOWSKI, 2005). Já na Semântica Estrutural Greimas postulava
a interconexão entre duas macrosemióticas – o mundo natural e as línguas naturais (que
tornam possível o conhecimento do primeiro). Em sua última obra individual Da Imperfeição
(GREIMAS, 2002), essa interconexão, que marca a arquitetura teórica da semiótica
discursiva, é ampliada e revitalizada com a abordagem da dimensão sensível da significação,
a dimensão estética – o que remete às origens fenomenológicas do projeto semiótico.

Em Da Imperfeição, publicado na França em 1987, e no Brasil em 2002, Greimas


introduz na semiótica as preocupações relativas à abordagem da dimensão sensível da
significação, integra às análises semióticas a problemática dos fenômenos de significação em
sua dimensão estésica. Nesta obra, na primeira parte, “A fratura”, Greimas analisa cinco
textos, enquanto acontecimentos estéticos, evocados em relatos por M. Tournier, I. Calvino,
R. M. Rilke, J. Tanizaki e J. Cortázar. Diz da experiência sensível no encontro entre sujeitos e
objetos tomando a forma súbita de uma irrupção do sentido e do valor: num primeiro tempo,
uma falta de sentido - suspensão da vida cotidiana, a espera do inesperado; num segundo
tempo uma aparição súbita e deslumbrante que faz o sujeito entrever para além da banalidade
das aparências, um mundo outro; para em um terceiro tempo voltar à cotidianidade. Percurso
em três etapas em que, de um lado está a experiência estética, e do outro, o cotidiano, do qual
o sujeito emerge somente um instante para, logo em seguida, voltar a mergulhar nele
(LANDOWSKI, 2005).

A partir dessa obra, a semiótica passa a reflexão sobre o modo de presença estética na
vida humana, isto é, presença estética na cotidianidade. O contanto com as qualidades do
mundo sensível ou do Outro, vivido na relação com o mundo que nos circunda ou através da
figuratividade dos textos, como salienta Oliveira (OLIVEIRA, 2002: 11),

[...] favorece o aparecimento de uma outra semantização, seja do mundo


percebido, seja do sujeito que percebe. Se esta vivência sensível opera
transformações é porque o arranjo estético produz quebras de estereótipos e
de simulacros preconstituídos. Nessas condições é que se entreabrem novas
possibilidades de sentido a partir de outras valorizações. Sobre estas é que
Greimas converte as fraturas em escapatórias...

Sendo assim, semiótica volta-se para o sentido da vida e as experiências estéticas


fazem parte do nosso viver rotineiro. Retoma-se a relevância da análise do dia -a- dia em sua
dimensão estética, considerando o estésico, componente afetivo e sensível da experiência
cotidiana, como forma primeira de produção de sentido. Sob essa perspectiva o Sujeito e o
Objeto se reposicionam em um novo espaço relacional – um sentir o outro num movimento de
significação que não está dado a priori. Sentir como comunhão e co-existência, fazendo
sentido ao sentir-se em inter-relação. Como comenta Landowski (2005a: 94):
[...] em seu último livro De l’Imperferction, Greimas abriu uma via de
encontro entre o homem e o mundo, o encontro estético. Nesse plano, não é
mais uma distância objetivamente, mas a proximidade imediata ou, até
mesmo alguma forma de intimidade efusiva que se estabelece entre dois
pólos da relação, entre um sujeito para quem o conhecer não se separa do
sentir, e um objeto ou um outro sujeito, também cognoscíveis mediante o
sentir.

Nessa perspectiva, a semiótica além de proporcionar instrumentos técnicos úteis para a


descrição dos objetos significantes pode, também, ser concebida como uma prática reflexiva e
crítica de questionamentos sobre nós mesmos enquanto sujeitos em atividades de construção
de sentidos.
Landowski, representante da semiótica discursiva que continua o trabalho de Greimas,
escolhe voltar sua atenção para as condições de emergência da significação na dinâmica dos
discursos e das práticas socais reais, ou seja, vividas – a construção de uma semiótica das
experiências. Emergência da significação no momento mesmo da interação (em situação, em
ato) e como “sentido sentido” – contribuição do sensível à emergência do sentido na vida
cotidiana (LANDOWSKI, 2005b).
Ao tratar do estatuto e rumos contemporâneos da semiótica discursiva, Landovski
(2001) salienta que interessa captar o vivido do sentido nas suas evoluções ligadas ao próprio
curso das coisas, isto é, interessa ao olhar semiótico o devir, as formas em via de construção.
Assim, a semiótica discursiva procura colocar a questão da emergência do sentido quando se
concentra na dinâmica própria da relação entre sujeito e objeto.

O sentido não está dado nos objetos, não existe para se pegar, ele deve ser construído.
A significação é produzida na interação com o mundo, isto é, em práticas semióticas
concretas. Sobre o conceito de significação da semiótica discursiva salienta Oliveira (2008:
28-29):

[...] a semiótica ou teoria da significação de Algirdas Julien Greimas e seus


colaboradores fundamenta que o significado não está nas coisas, na ordem
do mundo, mas na ordem da cultura, e as linguagens não são meios, mas são,
sobretudo, criação de possibilidades de mundos para além dos existentes,
envolvendo os que poderão ainda vir a ser. [...] o fazer do semioticista erige-
se no face a face com os objetos de sua interação, nos quais ele está inserido
no processo de construção da significação, onde ele tanto observa a
ocorrência dos efeitos de sentido dos seus arranjos plásticos e do conteúdo,
quanto ele os vive e experimenta.

Ao lado do sentido já realizado presente no discurso enunciado, que era o principal


objeto da semiótica na década de 1960, o sentido de que se trata agora é o sentido em ato, tal
como o experimentamos. O sentido deixa de ser somente um efeito textual – calculável a
partir da organização sígnica – para ser concebido como efeito incerto, porém analisável, do
modo como nos relacionamos com a própria presença dos objetos – obras de arte, rosto, corpo
ou discurso de outro sujeito (LANDOWSKI, 2002).
Sobre textos e práticas
Tendo apresentado, brevemente, a semiótica vamos a minha relação com ela... A
pergunta com a qual me deparo quando me proponho a ler a escrita de professores diz respeito
a como eu leitora me colocarei diante de tais textos. Com que olhar estou me dispondo à
leitura? Como não ser aprisionada em minhas próprias lentes de forma que possa interagir
com os textos de outrem? Essa inter-relação do Eu (neste momento pesquisador) com esse
Outro professor em suas próprias buscas/pesquisas marca o início do meu processo de
significação para as escritas de professores. Assim, parece ser necessário um movimento
recorrente, e movente, de estar atenta a como olho enquanto olho o outro que se apresenta a
mim em sua escrita. Pensando sobre este processo produção de sentidos em relação, em inter-
relação eu – outro, busco compreender os textos dos professores como práticas de linguagem
em que estão enunciados efeitos de sentido sobre formação docente.
Sobre textos e práticas, Landowski (2001) salienta que a semiótica, sob inspiração
fenomenológica, saiu da problemática do texto no sentido restrito, em que lhe foi atribuía à
função de “método” de análise do conteúdo do texto. Mesmo que se considere que os textos
fazem sentido, o sentido que seria o seu não se faz presente como uma propriedade do texto
ou como, uma coisa a ser descoberta. Ele não existe no texto para se pegar, deve ser
construído. Compreender o texto é fazer, é operar, é construir. A prática da leitura é de
interação entre sujeito-objeto, e entre sujeito – sujeito e, dessa forma, de construção de
sentidos.
Práticas e textos, do ponto de vista empírico, são gêneros de objetos diferentes,
pertencem a ordens de manifestações diversas. A prática é o acontecimento em processo,
enquanto o texto é o que foi produzido, e pode ser lido para compreender as práticas. No
entanto, quem lê constrói o sentido dos textos de pontos de vista diferentes. Como salienta
Landowsky (2001: 30):

Quando os textos são textos propriamente ditos, seu sentido não procede
inteira e diretamente daquilo que eles são enquanto textos. Ele depende ao
mesmo tempo dos pontos de vista de leitura adotados por cada um, isto é, da
posição de cada leitor, enquanto ator num universo de práticas em conflitos.

A leitura acaba por adquirir o estatuto de uma prática em que quem lê não o faz
distanciado daquilo que defende e fundamenta o seu agir no mundo. Não somente o sentido
do texto se constrói, mas o próprio ato de leitura.

Assim, pensando sobre a minha prática leitora, busco entender como os professores
vêem e escrevem suas experiências? Quais efeitos de sentido estão enunciados nos seus
textos? Essas são as questões/indicadores para seguir na leitura dos memoriais. Para melhor
significá-las, se faz necessário refletir sobre outros disparadores de leitura, entre eles as
práticas de linguagens na produção de textos escritos.

As linguagens e as práticas
Kristeva (2007) salienta que o século XX foi do átomo, do cosmo e da linguagem. Em
relação à linguagem, pode-se observar que na contemporaneidade os verbos falar, ler e
escrever, ainda são conjugados em todas as pessoas e em todos os tempos. A essas
linguagens pressupõem-se outras, não menos ricas, do gesto, da imagem.
Para essa autora, cada época, cada civilização, em conformidade com o conjunto do
seu saber, das suas crenças, da sua ideologia, responde de modo diferente e vê a linguagem
em função dos moldes que a constituem. Seja qual for o momento histórico, a linguagem
apresenta-se como um sistema complexo em que se misturam problemas de ordem diversa:
caráter material diversificado, pois a linguagem é uma cadeia de sons articulados, mas é
também uma rede de marcas escritas ou um jogo de gestos; ao mesmo tempo a materialidade
enunciada comunica aquilo que chamamos de pensamento. A linguagem é, portanto, o modo
de ser do pensamento, a sua realidade e sua realização. Sendo a linguagem matéria do
pensamento e elemento de comunicação social, não há sociedade sem linguagem, com não há
sociedade sem comunicação.
A linguagem é “um processo de comunicação de uma mensagem entre dois sujeitos
falantes pelo menos, sendo um o destinador ou o emissor, e o outro, o destinatário ou o
receptor” (KRISTEVA, 2007: 17). No entanto, o destinador de uma mensagem é,
simultaneamente, também destinatário, pois ao emitir a mensagem endereça-a a uma
determinada pessoa ou grupo de pessoas. A mensagem destinada ao outro é destinada em
primeiro lugar àquele que fala – “falar é falar-se” (Idem: 18).
O sistema de signos convencionais a que chamamos de língua, fala e discurso e que
constitui a mais específica particularidade da espécie humana, é complexo nas suas origens e
função. Para estudá-lo o homem enfrentou o desafio de tomar face à linguagem a distância
necessária para considerá-la objeto separado de si próprio, condição indispensável para o seu
estudo. Para fins de estudo, a linguagem foi isolada e colocada à distância para ser captada
enquanto objeto de conhecimento particular, suscetível de nos dar acesso não apenas às leis
do seu próprio funcionamento, mas também a tudo que resulta da ordem social.
Conhecer a linguagem como um sistema que envolve sujeitos, sentidos, significações,
e estudar as suas particularidades enquanto tipo de linguagem, marca a reflexão sobre
linguagem apoiando-se na linguística. Para tanto, a linguística isola os traços referentes à
linguagem classificando-os em língua, fala e discurso. A língua é a parte exterior ao
indivíduo, parte social da linguagem que é reconhecida por todos os membros de uma
comunidade. A fala é sempre ato individual de vontade e de inteligência, segundo Saussure. O
discurso é a manifestação da língua na comunicação viva. “O discurso implica primeiro a
participação do sujeito na sua linguagem através da fala do indivíduo. Utilizando a estrutura
anônima da língua, o sujeito forma-se no discurso que comunica ao outro” (KRISTEVA,
2007: 21).

Kristeva (2007) ainda salienta que,

[...] quem diz linguagem diz demarcação, significação e comunicação.


Assim, todas as práticas humanas são linguagens: trocar mercadorias por
mulheres; produzir objetos de arte ou discursos explicativos como os as
religiões ou os mitos é formar uma espécie de sistema lingüístico secundário
em relação à linguagem, e instaurar na base desse sistema um circuito de
comunicação com sujeitos, um sentido e uma significação.
Greimas e Courtés (2008: 289) afirmam que somente no século XIX o conceito de
linguagem passou a ser entendido como diferente do conceito de língua, permitindo
vislumbrar as oposições entre a “linguagem semiótica” – linguagem no sentido geral – e
“língua natural”. Assim, a linguagem passa a ser objeto do saber, visado pela semiótica geral
não sendo definível em si, mas, em função dos métodos e procedimentos que permitem a sua
análise. A tentativa de definição da linguagem reflete atitudes teóricas, que ordenam, a seu
modo, o conjunto de fatos semióticos.
Sobre as características comuns ao universo das linguagens Greimas e Courtés (2008:
290) ressaltam:

[...] todas são biplanas, o que quer dizer que o modo pelo qual elas se
manifestam são se confunde com o manifestado: a língua falada é feita de
sons, mas o seu propósito não é falar de sons; os assobios do golfinho
significam algo diferente dos ruídos que ele emite. Além disso, toda
linguagem é articulada: projeção do descontínuo sobre o contínuo, ela é feita
de diferenças e de oposições.

A opção por uma semiótica dos conjuntos significantes, que ultrapassa e engloba a
semiótica das unidades mínimas, os signos, leva a considerar a lógica do texto, discurso e
narrativa.
A semiótica discursiva estuda as linguagens tendo como foco a produção e apreensão
de sentidos a partir das marcas que estão no texto. O objeto da semiótica discursiva é o texto
entendido como objeto de significação. Assim, texto é aquilo que se dá a apreender, conjunto
dos fatos e dos fenômenos passíveis de leituras/análises. O texto pode ser verbal, não verbal
ou sincrético. Estar diante de textos é buscar compreender o que o texto diz e como faz para
dizer o que diz, pois um texto se organiza em dois planos: o plano de conteúdo e o plano de
expressão. Plano do conteúdo, lugar dos conceitos ou onde o texto diz o que diz; plano da
expressão, lugar de trabalho das diferentes linguagens que vão, no mínimo, carregar os
sentidos do plano do conteúdo.
Ao tratar da relação entre texto e discurso, Fontanille (2007: 88) refere-se ao texto
como objeto analisável no qual é possível detectar estruturas e o discurso como produto dos
atos de linguagem. Tais atos manipulam e produzem estruturas que só podem ser atualizadas
por atos de linguagem.

A respeito do discurso, Fontanille (2007) alerta sobre a diversidade de explicações


acerca do conceito de discurso e afirma que, apesar da diversidade, há o consenso de que o
discurso é a unidade de análise semiótica que permite apreender não somente os produtos
cristalizados da atividade semiótica – os signos - mas, principalmente os próprios atos
semióticos.

Entendendo ato como “o que faz ser”, passagem da potencialidade a existência


(GREIMAS e COURTÉS, 2009: 42), o discurso é uma enunciação em ato e este ato é um ato
de presençaiv. Dessa forma, “a instância do discurso não é um autômato que exerce uma
capacidade de linguagem, mas uma presença humana, um corpo sensível que se exprime
(FONTANILLE, 2007: 83)”.
Quando se escolhe como ponto de partida o discurso, dá-se conta de que as formas
cristalizadas ou convencionais estão longe de serem unicamente signos, pois uma das
propriedades mais interessantes do discurso é a sua capacidade de reunir globalmente nossas
representações e nossas experiências. O discurso não se contenta em utilizar as unidades de
um sistema ou de um código preestabelecido, o discurso inventa incessantemente novas
figuras, contribui para redirecionar e deformar o sistema que outros discursos haviam antes
alimentado.
Para analisar a significação em um discurso toma-se por base a diferença e oposição
entre termos. A diferença apresenta-se como uma oposição entre dois conteúdos, situados em
lugares diferentes. Desta oposição cria-se uma narrativa que conduz de um pólo para outro
uma transformação, modulada, deformada ou invertida. Assim o sentido de um discurso é
perceptível em suas transformações. Daí ser importante, quando da análise do discurso, não
perder de vista “a produção das formas significantes, maneira pela qual o discurso
esquematiza nossas experiências e nossas representações com o objetivo de torná-las
significantes e partilhá-las com outrem (FONTANILLE, 2007: 87)”.
Greimas e Courtés (2008: 144), acrescentam,

Sempre que alguém se refere à existência de duas macrossemióticas –


mundo verbal presente sobre a forma de línguas naturais, e o “mundo
natural”, fonte de semióticas não-linguísticas, o processo semiótico aí
aparece como um conjunto de práticas discursivas: práticas linguísticas
(comportamentos verbais) e não–lingüísticas (comportamentos somáticos
significantes, manifestados pelas ordens sensoriais).

Desse modo, o discurso é uma instância de análise na qual a produção não poderia ser
dissociada de seu produto, o enunciado. O ato de enunciação no discurso produz uma tomada
de posição que de acordo como Fontanille (2007, p: 97-98) é ato de presença de um corpo que
significa.
Conforme o autor:

[...] o primeiro ato é de tomada de posição: ao enunciar, a instância do


discurso enuncia sua própria posição. Ela é, então, dotada de uma presença
(entre outras coisas de um presente) que servirá de orientação ao conjunto de
outras operações. Como esclarece Maurice Meleau-Ponty: “perceber ´´é
tornar algo presente a si com ajuda do corpo. De nossa parte, se afirmarmos
que enunciar é tornar algo presente a si com ajuda da linguagem, só
estendemos o axioma fenomenológico pra dele fazer um axioma semiótico.
Ademais, do ponto de vista semiótico, a percepção já é uma linguagem, pois
ela é significante. Já que o primeiro ato de linguagem consiste em “tornar
presente “ só se pode concebê-lo em relação a um corpo que possa sentir a
sua presença.
Sob o prisma aqui apresentado para a aproximação ao texto, vemos o conceito de
linguagem e de texto relacionados às práticas. Práticas de linguagens, atos de escrita em que o
autor se enuncia ao construir enunciados. Novamente a questão sobre a forma e o conteúdo
dos enunciados dos professores nos memoriais se presentifica como próximo ato de leitura a
produzir.

Sobre os textos de que se fala: a escrita de si como prática de formação


Fundamentando-se no pressuposto que de o adulto professor, também, vive em
processo de construção e reconstrução permanente de seus conhecimentos autores Nóvoa
(1988), Dominicé (2006), Josso (2004), entre outros, salientam a urgência em observar os
dizeres dos professores como práticas de auto-formação. Entre as formas de expressão dos
professores, a “escrita de si” é constituidora/reveladora de suas relações com o conhecimento,
consigo e com o outro. Em práticas de escrita os professores buscam produzir sentido próprio
para seus estudos e trajetórias. O gênero acadêmico autobiográfico, do qual o memorial faz
parte, tem, desde as últimas décadas do século passado, se tornado tradição na universidade
brasileira, embora ali já estivesse presente desde 1930 como forma de expressão das
transformações culturais e acadêmicas (PASSEGGI & BARBOSA, 2008).

Passeggi (2008:27) refere-se à escrita auto-bio-gráfica como prática de cuidado de si e


de renascimento,

Auto-bio-grafar é aparar a si mesmo com suas próprias mãos. Aparar é aqui


utilizado em suas múltiplas acepções: segurar, aperfeiçoar; resistir ao
sofrimento, cortar o que é excessivo e, particularmente como se diz no
Nordeste do Brasil, aparar é ajudar a nascer. Esse verbo rico de significado
permite operar a síntese do sentido de bio-grafar-se, aqui entendido como
renascer de outra maneira pela mediação da escrita.

A escrita como linguagem que media o dizer do renascimento traz os enunciados das relações
de produção deste ato – relações familiares, relações profissionais, relações com outros textos - verbais
e não verbais. É um movimento de significar e significar-se em co-presença, compartilhando os
sentidos em construção com outros sujeitos.

Assim, os memoriais são textos em que estão enunciadas práticas de constituição de si


e de formação de docente, textos que trazem efeitos de sentido selecionados e tornados
públicos por seus autores em relatos de suas experiências.
A experiência para Larrosa (2002) é aquilo que nos passa, o que nos acontece, o que
nos toca. Este autor sugere um olhar para educação observando o par experiência/sentido, uma
possibilidade existencial e estética de refletir sobre a educação. Para ele as palavras produzem
sentido, criam realidades e podem funcionar como mecanismos de subjetivação. “Tem a ver com as
palavras os modos como nos colocamos diante de nós mesmos e diante dos outros e do mundo que
vivemos” (LARROSA, 2002: 21).

Neste caso específico, os memoriais abordam as inter-relações dos autores com as


práticas das linguagens corporais da arte e da educação física. Na leitura destes textos, meu
interesse é o de compreender a relação estabelecida pelos professores, enquanto actantes de
práticas de linguagens, com os conteúdos do campo da arte e da educação física como
experiências estéticas.

Sendo assim, observo as práticas de formação docente fundamentadas pela


consideração de que a “expressão de si”, a produção de linguagens no e pelos professores, é
um dos elementos desencadeadores da transformação de pensares/dizeres/fazeres na
abordagem das linguagens corporais – da arte e da educação física na infância.
Expressão de si na forma escrita, ao mesmo tempo pessoal e coletiva, pessoal porque
põe em andamento processos e repertórios individuais, coletiva porque atravessada por
experiências culturais. Escrita que traz marcas corporais, leituras, dizeres de si, dos outros.
Que deixa ver o processo expressivo em que os professores se autorizam a tornar público os
efeitos de sentido por eles construídos, enquanto se autorizam a dizer de suas experiências por
seus próprios meios. Portanto, são textos significativos em sua forma e conteúdo.
No processo de construção do “Memorial”, texto final dos cursos de Especialização
em ensino de Arte e Educação Física na Infância, promovidos pelo Núcleo de Formação
Continuada para professores de Arte e Educação Física – Paidéia/ UFRN enfatizou-se o
resgate de memórias em arte e educação física como aportes para significação da prática
pedagógica nestas áreas. Sendo assim, o ato de escrita do memorial colocou os professores
diante do resgate de experiências estéticas que marcaram os seus caminhos de acesso às
linguagens corporais da arte e da educação física, bem como das relações estabelecidas com
os conteúdos dessas linguagens em suas salas de aula. A retomada das experiências
corporais/culturais referentes a estas áreas de conhecimento possibilitou, por um lado, a
reflexão sobre o acesso sensível aos repertórios dessas manifestações culturais, e por outro,
reconstituir os processos de significação e valoração de tais práticas corporais na escola.

Sobre alguns olhares


Como é por meio de linguagens que lemos nossa relação com o mundo é nos
posicionamos e em linguagens dizemos quem somos e com que lentes olhamos para o mundo,
o relato dos professores sobre arte e educação física são enunciações de sentidos particulares e
coletivos para os saberes da arte e da educação física na infância. A escrita de suas
experiências com a práticas de linguagem da arte e da educação física remete aos processos de
aprendizagem das relações estésicas e estéticas que constituem o repetório destes professores
quando estão diante de seus alunos. Os sentidos enunciados nos relatos foram produzidos em
atos de leituras, práticas de linguagens dos professores, significativos de sua atuação diante
dos elementos culturais da arte e da educação física. Envolvimento intersubjetivo com o tema
em que estão presentes os modos de relacionamento, consigo e com o outro, na inevitável
tarefa humana de significar.

Referências
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LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista Brasileira de
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NOVOA, Antônio & FINGER, Matthias. (Orgs.). O método (auto) biográfico e a formação.
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PASSEGGI, Maria da Conceição & BARBOSA, Tatiana Mabel Nobre (Org.). Memórias,
memoriais: pesquisa em formação docente. Natal, RN: EDUFRN; São Paulo: Paullus, 2008.

i
Actante - aquele que realiza ou sofre o ato independentemente de qualquer outra determinação. Actantes são
seres humanos, animais, objetos ou conceitos que, a um título qualquer e de um modo qualquer, ainda a título de
meros figurantes e da maneira mais passiva possível, participam do processo (GREIMAS. A. J; COUTÉS. J.
2008).
ii
Não há “o” sentido ou “um” sentido, mas efeitos de sentido produzidos na interação entre Sujeito – Objeto,
Sujeito-Sujeito.
iii
Fundamentada pela Fenomenologia, para a semiótica discursiva contemporânea o mundo se apresenta como
uma totalidade que faz sentido. É do nosso próprio estar-no-mundo que nasce a possibilidades de sentidos.
Assim, olhar semióticamente para a escrita de professores é um ato de significar no encontro entre o eu –
pesquisador – leitor e esses Outros Sujeitos que se enunciam nos textos.
iv
Na perspectiva semiótica, a PRESENÇA (o estar aí) será considerada como uma determinação atribuída a uma
grandeza, que a transforma em objeto de saber do sujeito cognitivo. Tal acepção, essencialmente operatória,
estabelecida no quadro teórico da relação transitiva entre o sujeito do conhecimento e o objeto cognoscível, é
muito ampla: estão presentes, neste caso, todos os objetos de saber possíveis e a presença identifica-se, em parte,
com a noção de existência (GREIMAS e COURTÉS, 2008, p. 383).
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