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190

Curitiba
Fev. 2016

Arte da capa: Estúdio Vermelho Panda

ENTREVISTA ENSAIO
Gonçalo M. Pornografia e
Tavares • 6 nazismo • 30
2| | fevereiro de 2016

translato | Eduardo Ferreira

A travessia
da tradução fundado em 8 de abril de 2000

Rascunho é uma publicação mensal

T
da Editora Letras & Livros Ltda.
Caixa Postal 18821
raduzir parecia fácil. e faria jus à invenção do autor. ficados primeiros. Ainda assim parecia CEP: 80430-970
Optara pela estratégia Acreditava na tradução co- fácil superar essa tensão, com persistên- Curitiba - PR
literal (ou quase isso). mo ferramenta de renovação da cia e uma pitada de inventividade. Afi-
Palavra por palavra, literatura. Forma de dar sobrevi- nal, o texto não se termina nunca, em rascunho@rascunho.com.br
devagar mas em rit- da aos melhores textos, resguar- vários sentidos. www.rascunho.com.br
mo seguro. Faltava, claro, como dá-los para as novas gerações, Depois, traduzir já não lhe parecia
que um pouco de sal. Um toque trasladá-los a outras culturas e tão fácil. Queria percorrer a escritura com
Editor
pessoal, talvez. Ao final do tra- eras. Eram nobres motivos. desassombro e, simplesmente, possuí-la.
Rogério Pereira
balho, tudo soava um tanto arti- Traduzir parecia fácil, a Tomar posse, sem peias. O que almejava
ficial. Texto sem alma. princípio. Mas reescrever pala- era derramar um olhar tranquilo, estica-
Editor-assistente
Traduzir parecia fácil. Di- vra por palavra não era opção, do e sem pressa, que fosse lentamente se
fícil era descolar as palavras dos embora pudesse ser inicialmen- acostumando à penumbra do texto, len- Samarone Dias
sentidos que sempre lhes atri- te tentador. Não queria secar o tamente divisando os contornos de todos
buíra, para injetar-lhes ânimo texto nesse processo de reescri- os sentidos. Mídias Sociais

novo. Ou, talvez, para insuflar tura. Pretendia irrigá-lo com o Era tudo o que queria. Mas simples Sofia Guancino Pereira
em si mesmo nova forma de veio da criatividade, mesclando não era. Aquela mesma miríade de aparên-
compreendê-las. a sua à do autor. cias parecia transformar-se logo em névoa Colunistas
Parecia necessário desa- Queria preservar aquele densa, camadas de poeira cobrindo e ve- Affonso Romano de Sant’Anna
prender algumas coisas, livrar- belo espetáculo que imaginara lando o texto. Como navegar dentro do Eduardo Ferreira
se de parte da carga do passado. perceber na primeira leitura do nevoeiro? Como devolver à escritura, na Fernando Monteiro
Lastro vazio de sentido, embora original. Aquela miríade de apa- tradução, ao mesmo tempo a inteireza e to- João Cezar de Castro Rocha
inicialmente necessário para na- rências cobrindo todo o texto, das as imprecisões de seu sentido original? José Castello
vegar texto adentro. Chegara à remetendo a um descortinar de Também percebia que o tempo co- Nelson de Oliveira
conclusão de que traduzir pode- sendeiros interpretativos. O tex- bria o texto original de asperezas difí- Raimundo Carrero
ria exigir certo desarme. Novos to lhe abria toda uma amplitude ceis de limar na reescritura. Não queria Rinaldo de Fernandes
olhares. Arrancar sentidos que, de leituras possíveis. Algo que o eriçar as arestas. Não queria um tecido Rogério Pereira
acreditava, andavam engancha- deixava maravilhado e ansioso excessivamente ríspido, até agressivo ao Wilberth Salgueiro
dos em palavras velhas, gastas. por terminar a leitura — mas, ao olhar e ao tato.
Traduzir era fácil, antes de mesmo tempo, por prolongá-la Em transe, suplicava que o livrassem Projeto gráfico e programação visual
que se lhe iluminasse a consciên- indefinidamente. desse texto torcido, de significados escas- Rogério Pereira / Alexandre De Mari
cia. Via pelas frinchas do texto, Traduzir era mesmo fá- sos e herméticos. A tradução o instigava.
pelas entrelinhas. Percebia novos cil. O original parecia esperar a Seu ânimo flutuava entre o desespero e a Colaboradores desta edição
caminhos para a reconstrução reescritura, mesmo que em cli- empolgação. Desejava ferir, torturar, per- André Caramuru Aubert
do texto, para dar-lhe vida nova ma de alguma tensão. Aquela furar as palavras à procura de um derra- Antonio Carlos Secchin
— não apenas nova roupagem. que existe entre a exigência da me de sentidos. Traduzia à espera de um Bruna Dantas Lobato
Seria transformação mais pro- sobrevivência e a necessidade milagre. Traduzir, finalmente, lhe parecia Edson Cruz
funda, que valorizaria o original de preservação de certos signi- impossível. Como deve ser. Eugenio De Signoribus
Gisele Eberspächer
Jacques Fux
Jonatan Silva
Luiz Rebinski
Marcio Renato dos Santos

rodapé | Rinaldo de Fernandes Margarida Patriota


Marieta Boimel
Patricia Peterle

Anotações sobre
Paula Dutra
Peron Rios
Rafael Rodrigues
Tom Clark

romances (30)
Tracy K. Smith
Vivian Schlesinger

ILUSTRADORES
Bruno Schier
Carolina Vigna

V
Dê Almeida
Estúdio Vermelho Panda
eredicto em Ca- mentam Adenilson de Barros e dos eventos narrados se esvaziasse por for- FP Rodrigues
nudos, de 1970, Gilmei Francisco: “Foi a partir ça da imparcialidade do autor”]. O sexto Hallina Beltrão
de Sándor Márai, é da leitura da tradução inglesa do romance histórico que os pesquisadores Osvalter
o quinto romance texto euclidiano que Márai re- comentam é Luzes de Paris e o fogo de Ramon Muniz
histórico comenta- solveu contribuir [...] com sua Canudos, de 2006, de Angela Gutiérrez. Robson Vilalba
do pelos pesquisadores Adenil- interpretação da Guerra de Ca- Tido como um “jogo de armar”, este ro- Tereza Yamashita
son de Barros de Albuquerque e nudos” [em sua coluna na Folha mance resulta “de uma espécie de cola- Theo Szczepanski
Gilmei Francisco Fleck no livro de S. Paulo, Marcelo Coelho te- gem dos mais variados gêneros textuais”.
Canudos — conflitos além da ceu, em 2002, um comentário Constam dele “desde os convencionais
guerra: entre o multiperscpec- interessante acerca deste roman- elementos da prosa até a reprodução de
tivismo de Vargas Llosa (1981) ce. Disse o colunista que “parece imagens de pinturas, esculturas e capas Apoio:
e a mediação de Aleilton Fon- faltar a Veredicto em Canudos de livro. Grande parte do romance, en-
seca (2009). Veredicto em uma fabulação que pudesse tor- tretanto, compõe-se [...] de cartas escritas,
Canudos é uma importante nar- nar menos abstrato o deba- principalmente, pela personagem Branca,
rativa feita a partir da perspecti- te proposto”. Disse ainda, sobre menina rica que estudou na Europa, ami-
va de um romancista estrangeiro a perspectiva adotada por Sándor ga da personagem Morena, que conviveu
(Sándor Márai é húngaro). Co- Márai: “...é como se a dimensão entre os conselheiristas”.
fevereiro de 2016 | |3

15
Sermões
17Inquérito
18
As ruas de Drummond
40 Poemas
Nuno Ramos Paulo Venturelli Antonio Carlos Secchin Tracy K. Smith

eu, o leitor quase diário | Affonso Romano de Sant’Anna


cartas@rascunho.com.br

Nas redes sociais


É muito boa essa resenha [Sobre
Jorge Amado, mineiros
e Rockfeller
Antologia da poesia erótica brasileira].
Gustavo Ramos • Facebook

Amoooo esse jornal.


Alisson Oliveira (@ali-geek) • Instagram

Sempre acompanho o trabalho de vocês.


Parabéns @jornalrascunho. 27.09.1982 Pereira, e o que entra, Trancredo Neves. Reencontro com ve-
Glau Sarges (@fraulein.glau) • Instagram Tarso de Castro, João Ubaldo, Maria lhos amigos, leitores, desconhecidos.
Helena Carneiro da Cunha, Antonio Houaiss, Viajamos com Otto Lara, Fernando Sabino, Helio Pelle-
Apaixonei por vocês @jornalrascunho. Roberto Dávila e eu — entrevistando Jorge grino, Paulo Mendes Campos e esposas, mais Abgar Renault
Vocês me entendem. Amado. Parece que o programa foi bom, a acre- e Alphonsus de Guimaraens Filho. Jantar na “Casa dos Con-
Felipe (@felipes_a) • Instagram ditar nas repercussões um dia depois, por pes- tos”, reencontro com Roberto Drummond e França Júnior,
soas que me pararam na rua, na ginástica e até Branca de Paula, Jaime Prado Gouvêa. Encontro de gerações.
na minha ida ao Ministério da Fazenda (pois Sessão de cinema no “Palácio das Artes” e o filme de
caí na malha fina. Logo eu.). longa-metragem sobre BH antigo. Almoço no Minas Tênis
A situação de Jorge Amado é difícil. Ten- Clube, com toda a turma mais Maria José de Queiroz, antiga
tei fazer-lhe todo tipo de pergunta objetiva, es- professora de literatura hispanoamericana.
forçando-me por provocar um clima parecido O filme sobre Belo Horizonte me impressionou. Co-
com aqueles da entrevista do Jorge Semprún. mo disse a amigos, vendo ali cenas do princípio do século,
Aliás, me disse o Ávila, que foi o próprio Jorge desfiles, festas, chegada dos príncipes ingleses, revolução de
que sugeriu meu nome entre os entrevistadores, 30 e 32, a ditadura de Getúlio, a “legião de outubro” do in-
por causa da entrevista com o Semprún. tegralista Francisco Campos; e vendo (a partir de hoje) o dis-
Perguntei-lhe sobre a relação com o PC curso de João Pessoa, os discursos de JK, etc, essas coisas me
hoje, sobre sua visão de Prestes, sobre suas re- dão a seguinte sensação: o país que se perdeu a si mesmo.
lações com o stalinismo, ele que recebeu o Prê- E sinto que isto é coisa desde 1500. Me explico: é como se
mio Stalin, 1956. Perguntei-lhe também sobre houvesse uma grande bola ou objeto qualquer sendo empur-
o caráter religioso do PC. Em geral, ele se saiu rado por diversas forças, mas em direções não coincidentes:
bem. Mas ele tem ainda uma série de laços com exército, igreja, poder econômico, e o inefável “povo”, etc.
o PC, mesmo que sejam laços afetivos. É neste Haveria um traçado no chão ziguezagueante, cambaleante,
sentido que ele elogiou tanto Prestes e Giocon- confuso. A direção seguida não é a que nenhum grupo que-
do Dias, ficando com ambos. Mas fez uma au- ria, nem mesmo os vencedores e donos do poder. Dá uma
tocrítica reconhecendo que em certo momento sensação melancólica de desencontro. Uma cidade com me-
de sua vida foi muita sectário. Mas que em ou- nos de 100 anos — Belo Horizonte — já foi desvirtuada de-
tro momento deixou isto tudo de lado e come- zenas de vezes, virou uma aberração.
çou a pensar de maneira mais independente. (Leio no Pasquim entrevista do Henfil com a mulher
o jornal de literatura
do Brasil Duas observações sobre seus livros. que há dois anos esfaqueou o Roberto Campos, dada como
desde abril de 2000

189
1) Confessou que havia pensado em fa- sua amante.)
cUriTiBa, JaNeir
o de 2016 | www.rascunho
.com.br
zer o Pedro Archanjo da Tenda dos milagres Paulo Mendes Campos, sobre a história de BH, lembra
uma espécie de Marighella, que ele tanto es- que um arquivista da prefeitura queimou os arquivos, porque
schier
Arte dA cApA: bruno

timava. Mas mesmo tendo diluído na bio- só tinha coisa velha e o que interessava era o futuro. O filme
grafia do personagem fatos biográficos de que mostra é um terço do material, pois os outros dois terços
Marighella (como a prova que fez em versos), estavam inviáveis.
Pedro Archanjo, ao invés de revolucionário, (Marina conta que o Jornal do Brasil queimou a coleção
casa-se com a filha da burguesia, uma branca. de fotos antigas quando fez a reforma modernizadora).
Diz, deste modo, que o controle que tem so-
bre seus personagens é relativo. 12.09.1999
2) Contou também que o fim de Dona Jantar na casa de Roberto Irineu Marinho dia 6 de se-
Flor “seria outro: depois de dormir com Vadi- tembro em homenagem a David Rockfeller. Presentes alguns
nho (que volta da morte), ela vai com ele para intelectuais. Pedro Corrêa do Lago, Arnaldo Jabor, João
o outro mundo, numa saída mítica e mágica. Ubaldo, etc., além de Turíbio Santos que tocou peças brasi-
enTrevisTa
sidney Rocha e o
ensaio
inÉDiTo
Mas para sua surpresa, após Vadinho, ela vai leiras com seu conjunto. João Ubaldo, depois do jantar, nu-
seu Fernanflor • 6
Os enigmas e jogos
de Georges Perec • 30 Foi assim a guerra,
de João Guilhoto • 42
para a cama com o marido Teodoro, gosta e ma mesa, em que estávamos uns poucos, contou estórias de
acaba ficando com os dois. seu pai e sua família, de cangaceiros, a origem de Sargento
Getúlio. Falou a noite inteira, só ele.
30.01.1983 Roberto Irineu nos levou a ver, no subsolo, sua formi-
Vindo de Belo Horizonte com Marina, dável adega especializada em vinho da Borgonha. Portento-
onde a Cemig orquestrou o lançamento de um sa. Karin, sua mulher, estava lindamente grávida de gêmeos.
Envie e-mail para cartas@rascunho.com.br livro-álbum de fotos de BH do princípio da dé- Roberto mostrou sua coleção de champanhe Don Peringon.
com nome completo e cidade onde mora. cada de 1940: Curral del Rey e JK. Grande Perguntei a David Rockfeller sobre a Villa di Bellagio onde es-
Sem alterar o conteúdo, o Rascunho festa no Automóvel Clube. Presentes políticos tive como bolsista com Marina recentemente. Disse que quem
se reserva o direito de adaptar os textos. e a sociedade. O governador que sai, Francelino cuida de tudo é sua filha Peggy.

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4| | fevereiro de 2016

a literatura na poltrona | José Castello

Paulo com febre

C
ilustração: Dê Almeida
riticar para se confessar?
Desviar a atenção da lite-
ratura alheia para falar de
si e de seu próprio estu-
por diante do que lê? O
que talvez pareça uma traição à crítica
pode ser, na verdade, um caminho para
descongelá-la dos rituais solenes que,
há muito, a asfixiam. “Sou um aliado
da minha própria confusão, tomei o
partido dos seus erros, não me respon-
sabilizo pelos descaminhos a que me
levar o meu inconformismo”, escre-
ve Paulo Mendes Campos, no ano de
1947, na coluna Semana literária, que
mantém no Diário Carioca.
Em vez de enfraquecer seus argu-
mentos, a confissão de Paulo só o for-
talece. Tem 25 anos de idade — é um
jovem crítico. Fala de um grande escri-
tor 40 anos mais velho que ele, naque-
le momento ainda vivo: André Gide
(1869-1951). Trata de uma biografia de
Gide que Klaus Mann, o filho de Tho-
mas Mann, acaba de publicar, livro que
o desagradou justamente por sua frieza e
equilíbrio. Paulo gostaria de ler um rela-
to mais apaixonado, que correspondesse
melhor à atração que o escritor francês
exerceu sobre ele e sobre sua geração.
Não o encontra. Reclama, irrita-se. tor termina sua leitura um pouco fracassado. Há ção de Valéry não disfarça a condição
“Hoje estamos confusos. Não sa- uma parede invisível que o separa do livro que lê, da escrita como “tentativa” (isto é,
bemos mais o que fazer de um antigo obstáculo que ele não consegue ultrapassar. Essa rascunho), e não como “realização”.
ídolo como André Gide. Ele era o nosso parede é o próprio livro. Segundo: para defini-la, ele recorre
guia. A malícia do tempo ensinou-nos Outros críticos, mais solenes, teriam pu- ao corpo — e as dores humanas —
que nós o guiamos”, desabafa Paulo. dor em admitir — até para eles mesmos — o como metáfora essencial. É um pou-
Suas palavras nos desviam, por momen- fracasso de sua aventura. Paulo não: ele expõe, co da própria impotência que Paulo
tos, do livro em si, para tratar de algo sem qualquer timidez, até suas limitações mais nos fala através do crítico francês. Re-
que fica entre o próprio livro e o lei- íntimas. Tem medo de lagartixas. “Diante de conhece a debilidade de seu objeto.
tor: a figura enigmática do escritor. Ao uma lagartixa perco todo o meu valor moral. Es- Mais ainda: inclui-se nessa debilida-
se lamentar da própria confusão, Pau- tá acima de minhas forças. Sinto nojo e medo.” de. Sabe que apenas “tenta fazer”.
lo não está falando de um sentimento A confissão aparece na coluna Jornal, que assina Pensando na origem da poesia,
que é apenas seu, mas de toda uma ge- no Diário Carioca em 1948. Por que um críti- Paulo recorre agora a Claude Roy para
ração. Amplia assim o espaço da crítica, co só deve tratar de grandes temas? Por que não dizer: “Sobre a gênese do poeta, nin-
tornando-a não mais a mera inspeção pode tratar, também, de seus pequenos temores, guém disse nada melhor do que Roy:
racional de uma obra, mas um instru- conferindo-lhes o mesmo status de uma grande — Em todo grande poeta habita o
mento para avaliar os estragos — mas dúvida intelectual? mau poeta que ele calou”. Usa, mais
também as transformações — que um Em vez de vergonha — como provavel- uma vez, a voz alheia para falar de si e
livro provoca em seus leitores. mente a maioria pensará —, há sim, Paulo nos daquilo (“mau poeta”) que os escrito-
Leio o artigo de Paulo Mendes mostra, coragem. Uma espécie muito humana res, em geral, preferem não expor. O
Campos em De um caderno cinzento, de bravura, quando alguém se dispõe a desmas- estilo confessional de Paulo, mesmo
coletânea de “crônicas, aforismos e ou- carar, sem nenhum mal-estar, a si mesmo. Isso, que quase sempre sutil, percorre toda
tras epifanias” organizada por Elvia Be- em vez de afastar o crítico do leitor, o aproxi- sua escrita. Em outro momento, tra-
zerra para a Companhia das Letras. Para ma. Nivela as duas leituras e abre caminho pa- tando da fragilidade do conhecimen-
Paulo, os livros servem como um espe- ra aquilo que a crítica, antes de tudo, deve ser: to, ele relata um sonho: “Sonho que
lho: ao falar de um livro, é de si mesmo, um diálogo. Só assim a crítica pode aceitar seus um amigo, chegando de Paris, me dá a
sempre, que ele acaba por falar. Será só limites e incorporá-los. Escreve Paulo, em arti- notícia da morte de Samain. O poeta
ele? Não será esse um efeito incontor- go publicado em O Estado de S. Paulo em 1953, Samain, consulto um manual, morreu
nável da leitura? Não estarão os leitores sem nenhum receio de parecer inocente, ou frá- em 1900”. A lembrança de Paulo apa-
sempre dentro dos livros que leem? Não gil: “O máximo de lógica mental e linguística de rece em uma crônica do ano de 1953.
é a si mesmo, no fim das contas, que que formos capazes não nos impedirá, por um O erro de meio século assinala não
um leitor sempre chega? lado, de viver em um mundo misterioso; por apenas a precariedade de nosso saber,
Em uma crônica de duas décadas outro lado, por mais rigorosa que seja nossa ma- mas o quanto essa precariedade, no
depois, publicada na revista Manche- neira de exprimir, nossa linguagem será sempre fim das contas, nos constitui.
te, Paulo escreve, sem ter medo do que fantasiosa, irreal”. Não é qualquer escritor que Misturando pensamento e
escreve, sem precisar falsificar ou dis- tem a coragem de sustentar essas palavras. confissão, crítica intelectual e me-
farçar: “Também eu poderia escrever a Também quando escreve a respeito da li- mória pessoal, Paulo, por fim, ex-
história de meu ideal: como ser derrota- teratura, Paulo inclui sempre a fragilidade e a plode a fronteira entre os gêneros.
do na vida sem fazer força. Mas, mesmo hesitação. Quando fala da poesia, em artigo pu- Antecipando assim o que faria, com
para ser derrotado, tenho feito um pou- blicado no Correio da Manhã em 1946, cita Paul grande brilho, a crônica brasileira
co de força”. A leitura exige concentra- Valéry para dizer que ela “é a tentativa de repre- do século 20. Ele nos lega uma de-
ção e empenho. O esforço despendido sentar por meio da linguagem articulada aquelas finição apaixonada da literatura,
pelo leitor, contudo, não é garantia de coisas que os gestos, as carícias, os beijos procu- quando anota: “A poesia é o estado
que ele “desvendará” o que lê. Todo lei- ram obscuramente exprimir”. Primeiro: a defini- febril da linguagem”.
6| | fevereiro de 2016

entrevista | Gonçalo M. Tavares

G
onçalo M. Tavares é

Diante do
reconhecido por seu
texto repleto de crue-
zas e nuances da vi-
da real, do cotidiano
comum e banal de qualquer pessoa.

enigma
Por trás dessa artimanha literária, o
escritor esconde um interessante ar-
ranjo de criação literária, que combi-
na o isolamento em um “bunker do
século 19” e o mergulho por comple-
to na multidão e na “confusão da ci-
dade”. Em entrevista concedida por
e-mail ao Rascunho, Tavares explica
um pouco do seu processo criativo,
sua paixão pelos filmes do cineasta
russo Andrei Tarkovski e do norte-a-
mericano John Ford, além de comen-
tar sobre a sua relação com pessoas
portadoras da Síndrome de Down.
Jonatan Silva | Curitiba - PR

• Em Uma menina está perdida no


seu século à procura do pai, o se-
nhor trata de uma questão delica-
da — a trissomia 21. Mas em todo
o livro, Hanna leva uma vida mui-
to próxima ao que consideramos
“normal”. O senhor acredita que o
livro tem um caráter inclusivo?
A ficção — ou qualquer livro
de ficção — não pretende ser didáti- Gonçalo M. Tavares
ca, não pretende ser e não tem objeti- por Osvalter
vos pedagógicos. A ficção é o mundo
das liberdades, de uma liberdade que
quer pensar e fazer coisas, que quer
transformar a literatura em uma
energia inteligente, em uma ener-
gia narrativa que não seja uma ener-
gia narrativa igual a das telenovelas,
portanto quer uma energia narrativa
completamente diferente do contar
o puro de histórias. Essa energia nar-
rativa não tem a ver, pelo menos no
meu caso, com uma tentativa de fazer
livros que sejam inclusivos. Hanna,
com trissomia 21, é uma persona-
gem como outra qualquer que está
num mundo de ficção e que, de algu-
ma maneira, vai agindo com Marius
ou outra personagem e vai cruzando
com outras pessoas, como se fosse
uma personagem que tem essas ca-
racterísticas da síndrome de Down
— como Marius tem as característi-
cas de estar como quem foge ou co-
mo uma outra personagem que tem
a característica de ter um olho muito
vermelho. Enfim, são características
e, portanto, é um livro de ficção que
tenta que a sua força tenha a ver com
a liberdade de colocar suas persona-
gens em ação e em cruzamento.

• Há anos o senhor trabalha com


crianças portadoras de trissomia
21. Como esse convívio influenciou
a escrita do livro?
Sim, realmente trabalho há vá-
rios anos com crianças portadoras de
trissomia 21. Não trabalho direta-
mente, mas com futuros professores
de crianças e adultos especiais. Dou
aulas num mestrado de reabilitação
psicomotora com futuros profissio-
nais que vão trabalhar com crianças
e adultos com diferentes tipos de
problemas, tanto cognitivos como
físicos. Essa experiência, de alguma
maneira, realmente me marcou, por-
que sempre que tive um contato com
fevereiro de 2016 | |7

pessoas com trissomia 21 foi um traça uma questão humana im- subir a escada, em que ele se sente Há como que uma suspensão no
contato muito forte, emocional- “A literatura deve portante. O senhor criou pro- ajudado e suportado por Hanna. fim e uma entrada já em movi-
mente. A síndrome de Down dá alterar as funções positalmente Hanna com esse mento, no início. Nesse short
um conjunto de características cardíaca e respiratória, caráter, sem os esboços anima- • Em entrevistas, o senhor co- movie que refere, a questão do
emocionais que fazem com que, deve alterar o lescos que muitas vezes vemos mentou sobre a velocidade de fogo, da adoração e do fascínio
no meu caso, seja algo comovente em seus textos? sua escrita: quanto mais lento que temos pelo espetáculo do fo-
funcionamento
— sempre. Não levo diretamen- Eu diria que realmente o é o processo mais consciente go em movimento, talvez esteja
te uma experiência de vida para orgânico do leitor, “sim” é a palavra-passe que mar- é o resultado, e quando o se- em primeiro lugar, talvez seja o
o livro — o livro, como eu disse, e não apenas o ca a Hanna, o “sim” que tem a ver nhor escreve muito rápido, vo- essencial. E esse fascínio pelo fo-
realmente é de ficção — mas, co- funcionamento mental. com disponibilidade, não é? Essa razmente, mais surpreendente go é antiquíssimo, é ancestral.
mo é evidente, a forma como eu Não alterar apenas personagem, a Hanna, está dispo- e inesperado é o texto. Como Talvez este short movie junte dois
olho, como tento entender fo- nível, está disponível para ser aju- aconteceu com Uma menina es- mundos bem afastados: o do
as ideias, alterar o
ra da ficção e fora da literatura dada e, pode parecer pouco, mas tá perdida no seu século à pro- fogo, antigo, e o da fotografia.
as pessoas com trissomia 21, de organismo. Acho que estar disponível para ser ajudada, cura do pai? Quando começou Sobre a banalidade, Roland Bar-
certa maneira, tem influência no isso é um belo projeto.” ter a consciência de sua fragilidade a escrever o livro, o senhor já sa- thes tem um livro ótimo — Mi-
que depois eu escrevo, mesmo es- — e do fato de estar perdida à pro- bia os caminhos que iria tomar? tologias sobre coisas, produtos
crevendo com total liberdade. O cura do pai — remete a uma du- A forma como escrevo, e e acontecimentos do cotidia-
que me fascina também nas pes- pla fragilidade. Todos nós quando como escrevi esse livro, segue no. E é um grande livro. O ba-
soas com síndrome de Down é estamos perdidos nos sentimos um tom muito semelhante: eu nal tem uma grande potência, só
a capacidade de contágio, uma fracos, desprotegidos e, portanto, basicamente sento-me e escrevo. depende da qualidade do nosso
espécie de calma e de bondade Hanna, ao estar perdida, é quase Tenho, por vezes, três ou quatro olhar sobre ele. É o nosso olhar e
que se infiltra nas pessoas que es- como se estivesse num ponto de apontamentos, três ou quatro não aquilo que é olhado que im-
tão à volta. Quando um meni- imobilidade maior e, estranha- notas e começo a escrever. O pri- porta. O que mais me preocupa
no com síndrome de Down está mente, em vez de ser atacada por meiro impulso de escrita é sem- atualmente é esta invasão da tec-
junto com outras crianças, as ou- isso, em vez de ser ignorada por pre muito rápido, como foi neste nologia, uma invasão artificial da
tras crianças deixam, quase que estar em um ponto vulnerável de livro. Depois é lentíssima na re- curiosidade. Ficamos com mais
instintivamente, de ser tão com- grande intensidade, pelo contrá- visão, deixo ficar durante meses ansiedade de curiosidade, mas
petitivas, há como que um aman- rio, alguém (no caso, Marius, um e anos. Revejo e vou revendo, não pelos grandes enigmas. Pe-
samento. As pessoas ficam mais homem que claramente se per- vou revendo. Portanto, a escrita lo mesquinho. As pessoas estão
mansas, mas mansas de uma for- cebe que não é um bondoso, um sempre é uma mistura entre ve- sempre na expectativa de receber
ma bonita. Os meninos deixam praticante da bondade) estranha- locidade e, numa fase posterior, uma mensagem, de receber al-
de querem competir uns com os mente para e vai tentar ajudá-la e, lentidão, revisão, corte, etc. go do exterior que as resgate de
outros porque está, ali ao lado dessa maneira, une o seu destino uma vida em que não estão satis-
deles, alguém que é incapaz de — pelo menos naquele período • Short movies é uma colcha de feitos… e assim ficam totalmente
competir, não tem capacidade de curto do livro — a Hanna e vai retalhos de cenas do cotidiano, disponíveis para serem interrom-
competir. Essa fragilidade trans- tentar encontrar o pai de Han- mas um cotidiano um tanto pidas, que é aquilo que me pa-
mite aos outros uma sensação de na. A grande fragilidade de Han- kafkiano. O senhor vê as roti- rece mais grave. É sinal de uma
que não faz muito sentido a com- na, ao ser o que é e estar perdida, nas diárias como um mergulho grande fraqueza. De uma gran-
petição. É interessante pensarmos transforma-se numa força, numa no absurdo ou seriam elas que de desistência em relação àquilo
em dois meninos ditos “normais” potência que obriga os outros a nos salvam da estranheza? que estão a fazer. O que eu estou
que deixam de competir entre si. agir. Se alguém desse uma ordem, Não vejo as situações de a fazer não é suficientemente im-
Isso é muito interessante, porque dizendo “ajuda-me” ou “ordeno Short movies exatamente como portante, posso ser interrompido
é um contágio que, de alguma que me ajudes”, não seria tão efi- absurdas. São situações extremas, em qualquer altura. É isto que as
maneira, caracteriza várias pes- caz como Hanna que apenas pede situações que raramente existem, pessoas dizem, sem o saber. Es-
soas com Down. A ideia de con- ajuda com a sua fragilidade. Isso situações que estão no fim da li- ta incapacidade para prolongar
tagiar a atmosfera com qualquer altamente marcou o livro. Mui- nha, uma espécie de situações que a concentração num só assunto
coisa me parece muito diferente tas coisas acontecem por causa da mudam a vida das pessoas; mas durante muito tempo é talvez o
do espírito funcional e, por vezes, fraqueza de Hanna. E essa ideia não são absurdas, são realistas, rea- que mais assusta em relação, por
agressivo e violento que existe no de que a fraqueza pode gerar no- listas com grande intensidade, mas exemplo, à criatividade. Como
mundo, digamos, mais produti- vos acontecimentos é uma ideia realistas. Felizmente a nossa reali- surgirão as criações resultando de
vo. As pessoas com síndrome de que me parece importante. Nós dade tem normalmente intensida- saltos, fragmentos e energia cons-
Down transmitem a ideia de que estamos muito habituados a pen- des bem mais baixas. As vidas têm tantemente interrompida? Não
a eficácia e a eficiência, a produ- sar que é a força que gera acon- noventa e nove por cento de ações sei… Hoje é mais difícil ser bom
ção — todas essas palavras do tecimentos, que a força é que faz de intensidade baixa. E só assim leitor, por exemplo, isso é muito
século 21 empresarial — são inú- coisas, e o que vemos em muitos aguentamos a realidade. As rotinas evidente — o mundo da tecnolo-
teis diante de qualquer coisa que episódios do livro é que a fraqueza diárias estabilizam os dias. Não gia está sempre a dizer: não leias,
não sabemos bem o que é, mas potencializa situações, que a fra- sentimos que um dia novo seja es- olha para mim, não leias — mas
que sentimos que é mais forte e queza e a fragilidade de Hanna é tranho para nós, como por exem- em compensação hoje é mais fá-
que tem a ver com a característi- que mudam muitas vezes as con- plo, sentimos quando visitamos cil fazer muitas outras coisas. No
ca humana, talvez, ligada a uma dições, por exemplo, do hotel, das um país estrangeiro de que não fa- fundo, todas as épocas têm su-
espécie de ingenuidade bondosa, pessoas do hotel e do comporta- lamos a língua. Um dia novo não perfície e profundidade, e talvez
que me parece tocante. mento das pessoas — que se alte- nos é completamente estranho a atual não seja nem melhor nem
ram na presença de Hanna — que porque temos as rotinas e as ne- pior do que as anteriores.
• Como em muitos dos seus li- se tornam melhores. Há como cessidades básicas do corpo — co-
vros, em Uma menina está per- que uma transformação quase mer, dormir, a higiene, etc. Cada • Os textos de Short movies são
dida no seu século à procura do que alquímica com os persona- dia novo não nos é estranho nem profundamente visuais e a for-
pai, vários personagens são en- gens que se cruzam com Hanna ameaçador porque acordamos ça está justamente na projeção
grenagens de um grande meca- e, portanto, de alguma maneira, com o nosso corpo, com o mesmo de imagens criadas enquanto
nismo, como um sistema social há um dueto — Hanna e Ma- corpo, com as mesmas memórias, os lê. Na sua opinião, a ima-
que não pode falhar. O senhor rius, um dueto estranho — que vontades e hábitos. O absurdo tal- gem tem se tornado mais im-
acredita que esse é o espírito de vai atravessando várias cidades e vez seja a suspensão injustificada, a portante que a palavra?
nossa época? alterando a paisagem, como se ela suspensão sem causa, dos hábitos. A ideia seria ir um pou-
De certa maneira, Han- fosse uma espécie de Moisés, que co contra a linguagem que pen-
na consegue vencer o espírito da separa a água, que faz com que • No conto O importante, um sa, que reflete. A linguagem de
época, ou seja, a fragilidade ven- tudo se afaste para ela avançar. E adolescente se recusa a apagar Short movies é uma linguagem
ce a funcionalidade, a força. E é, Marius quase que vai de carona, um incêndio porque quer ti- que mostra, aliás, é quase um
talvez, uma história que relata com se Hanna abrisse o caminho rar uma fotografia em frente às percurso oposto aos meus outros
um pouco isso, de que maneira e, apesar de ser um homem forte e chamas. Esse é um retrato fiel livros. A ideia era mostrar peque-
a fragilidade consegue mexer no com agressividade, Marius vem a de nossos tempos e a cultura nos gestos: pegar uma chave, mo-
mundo funcional da época. ser um auxiliar, como se fosse ape- da selfie e do eu. Como expli- ver as mãos, o tremor das mãos e
nas um ajudante e ela aquela que car uma sociedade alicerçada a expressão. Tentar que tudo —
• Hanna é uma menina que consegue abrir as portas. É uma em banalidades? toda a violência e todo o drama
sempre diz sim, seja por curio- relação paradoxal sobre quem é o Veja estes fragmentos do — se coloque no visível. E nes-
sidade ou por não saber o que mais forte e quem é o mais frágil Short movies não são bem co- se aspecto é importante não se
fazer — ao contrário de Kashi- entre Marius e Hanna. Isso está mo contos; são mesmo pequenos valorizar a imagem, a multipli-
ne, de um dos contos de Mat- muito presente nas páginas que filmes, muitas vezes sem início cação infinita das imagens que
teo perdeu o emprego — e isso relatam a vertigem de Marius ao nem fim, apenas com o meio. acontecem socialmente a cada
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fotos: divulgação

minuto e a cada segundo. E, se criações. E se literatura for um gêneros literários. Para o se- zes é um ritmo quase musical, no
calhar hoje, produzem-se mais estímulo inicial — uma imagem nhor, o gênero funciona como sentido do desenvolvimento de
imagens do que se produziram inicial, um teste inicial — que po- um rótulo a atrapalhar o escri- uma energia, de uma intensida-
durante os séculos 12 ou 14, ou nha em movimento a imaginação tor, prendendo-o a algo que de. Quando termino de escrever
seja, há mais imagens novas por do leitor, então, acho que se con- apenas o limita? um livro, tento olhar para aque-
minuto do que as que se tinham segue algo de extraordinário. O Short movies me parece la energia verbal, tento perceber
feito num século. Portanto, isso de um gênero literário que cha- que animal é aquele. Para mim a
leva a que haja uma desvaloriza- • Em Short movies, o senhor mo de “cinema”. Para mim, os classificação animalesca dos tex-
ção da imagem, mas as grandes brinca muitas vezes com a noção gêneros literários clássicos são li- tos interessa muito mais. Eu não
imagens continuam a ser gran- do cinema — planos de câmera, mitadores, são castradores e são, penso “esse texto é um romance”,
des imagens. E é possível ainda, zoom in, zoom out. Qual é a sua muitas vezes, violentos em rela- “esse texto é um ensaio” ou “o
no meio de bilhões de imagens, relação com a sétima arte? ção a quem escreve, ao criador. que é isso?”. Eu olho para o texto
produzir grandes imagens — a Esse livro é escrito como se Eles são uma espécie de sistema como se ele fosse um organismo,
grande imagem é aquela que nos o narrador fosse uma câmera de de recessão que estão, por vezes, um animal e penso “que animal é
faz pensar e nos faz refletir, nos filmar. Isso parece-me evidente a convidar — quase que exigir esse?”, “esse animal está mais pró-
faz quase tremer como faz que- e, de alguma maneira, era isso o — que quem escreve se coloque ximo de quais outros animais?”,
rer mudar de vida. Não é apenas que eu queria: substituir o olho nesse sistema. Mas quem escre- “é da família de que outros ani-
a poesia que pode nos fazer exi- orgânico, o olho do narrador hu- ve é um emissor, emite a palavra. mais?”, “é inimigo de que ani-
gir mudar de vida, como dizia o mano pelo olho do narrador da Quem escreve é o primeiro, é o mais?”. Acho que a minha obra
Rimbaud, há também grandes máquina — como se o narrador começo. Quem lê recebe, quem tem muito a ver com isso. Acho
imagens que podem nos exigir fosse a lente. Nesse sentido, um estuda um livro, recebe. Quem que são vários animais, muitas
mudar de vida. Penso que é im- narrador-mecânico, um narra- tem a primeira palavra não de- vezes inimigos uns dos outros.
portante a literatura também dor-máquina, um narrador-má- ve estar subjugado, não deve ser Se eu pensar no água cão cava-
mostrar que a imagem, a grande quina fotográfica não faz juízo de “Para mim escrever obediente em relação a quem está lo cabeça (2005) ou no Short
imagem, continua a fazer todo o valor — “essa personagem é boa, é estar diante de um a ouvir. A ideia de gênero literá- movies, são provavelmente livros
sentido no século 21, apesar de essa personagem é má” —, não rio é querer impor um sistema de inimigos de Jerusalém (2004)
enigma e de não
sermos bombardeados por péssi- faz reflexões psicológicas, apenas obediência verbal a quem escreve ou dos livros d’O bairro (2002-
mas imagens. A grande imagem vê e mostra. E, de alguma manei- se saber o que vai e parece-me que isso é algo mui- 2010). Mas inimigos no senti-
ainda consegue revolucionar o ra, o narrador é este, é uma má- acontecer. Eu não sei to limitador. No meu caso, ten- do de que são outros animais e
coração e a cabeça dos humanos, quina de filmar. A minha relação o que vou escrever. to escrever a partir do alfabeto. que têm características comple-
não é? O que me parece no Short com a sétima arte é uma relação Começo a escrever e Para mim, claramente, a escrita tamente diferentes, têm hábitos
movies é que não são contos: é muito forte. Há períodos em que não tem por base os gêneros lite- completamente diferentes. São
depois há um tom que
um texto escrito que, à medida faz mais cinema, há períodos em rários, tem por base o alfabeto e animais-livros que têm rituais e
que se vai lendo, vai se transfor- que faz menos, mas há filmes e surge, e esse tom vai se o alfabeto não tem gênero literá- rotinas completamente diferen-
mando em imagem. E realmente há cineastas que são para mim desenrolando.” rio. O “a” não pertence à poesia, tes, objetivos completamente di-
o que me interessa é que as pes- fundamentais. Tarkovski, por o “b” não pertence ao romance. ferentes, portanto, são livros que,
soas olhem para o texto como se exemplo. Quando tenho dúvidas Não há um “a” específico ou um se fossem animais, seriam ani-
olha para uma imagem: o texto existenciais, vai Tarkovski quan- “b” específico do ensaio, as letras mais que se criaram alguns no
desaparecer e nós vermos algo, do quero acalmar, vai Tarkovski. estão disponíveis para entrar em mesmo espaço e, por isso, luta-
e essa imagem que vemos quan- É uma espécie de adoração vi- qualquer mundo. Naturalmente, vam entre si. Outros queriam ir
do termina — essa sucessão de sual, é um jogo entre o claro e o se pensarmos que o ensaio tem a para lugares totalmente diferen-
imagens — continua espero eu, escuro, é um ritmo e um tempo ver com o pensamento, se pen- tes. De alguma maneira, acho
a mexer-se na cabeça de quem que para mim são religiosos. É sarmos que o romance tem a ver que o que me interessa é pensar
leu e, portanto, há a questão de uma calma que me mostra o es- com a narração e a poesia, even- numa espécie de espaço selvagem
novas imagens. Parece-me que a sencial e, portanto, ver Tarko- tualmente, com a beleza ou com onde vários animais diferentes
literatura tem muito a ver com vski, às vezes ver dez minutos de uma sonoridade toma tamanha são atirados para lá. Entendo que
isso. Como é que nós consegui- um filme, é quase como ter uma importância. Se pensarmos nes- cada livro-livro seja um animal
mos provocar a imaginação? A espécie de banho luminoso, um sas lições básicas e grosseiras dos atirado para esse espaço selvagem
palavra imagem vem de imagi- banho que depois me permi- gêneros literários, para mim, é e livre. É um animal diferente
nação e imaginação é criarmos te voltar ao mundo real de uma evidente não conceber uma es- que vai marcando o seu territó-
imagens privadas. É essa capaci- forma muito mais limpa e clara. crita que não misture tudo isso, rio e definindo os seus objetivos.
dade da mente humana de po- Em termos de cinema, há deze- uma escrita que conte uma histó- E espero que esse espaço livre e
dermos ver, na nossa cabeça e no nas de realizados e grandes filmes ria e que pense, que seja sonora- selvagem dos vários livros que
nosso interior, imagens que não que marcam. Talvez, os dois que mente relevante é indispensável. vou escrevendo crie uma espécie
estão à frente de nossos olhos. A mais me comovem continuem Essas misturas são quase natu- de nova floresta literária que não
imaginação é uma espécie de ca- a ser A palavra (1955), de Carl rais e é artificial separarmos essas dependa da classificação clássica
pacidade paralela à visão e uma Theodor Dreyer, e How green was questões. Contar uma história dos gêneros literários.
capacidade que realmente tem a my valley (Como era verde meu e pensar não são inimigos, pelo
ver com todas as extraordinárias vale, no Brasil, 1941), de John contrário, são amigos fraternos. • Muitos dos relatos de Short
proezas que o homem é capaz Ford. São dois filmes que me fa- E só separamos isso se violen- movies falam sobre a morte ou
de criação. Posso estar diante de zem chorar quase sempre, são tarmos a linguagem. Acho que o desejo de morrer de algum
uma mesa numa casa em Lisboa muito comoventes. Realmente o muitas vezes os gêneros literá- personagem. Eles seriam o re-
e, de repente, posso pôr na mi- cinema que me interessa, esse ti- rios violentam a linguagem, re- flexo do medo natural que o
nha cabeça a imagem de um ou- po de cinema, é um cinema que talham, separam e dizem “agora ser humano tem da morte?
tro espaço. Posso pôr, de repente, nos obriga a respirar de uma ou- isso vai para aqui e aquilo vai pa- A morte é o começo, não é
na cabeça a imagem de uma cida- tra forma. O que nos é mostrado ra ali”, põem encaixes e, de certa o final. Acho que para qualquer
de do Brasil, posso lembrar-me entra pelos olhos, vai pelo corpo maneira, atuam como um ma- ser humano sensato a morte é
da imagem da Torre Eiffel e pos- e é como se impusesse um ritmo tador que corta a carne, separa a o começo. É a partir daí que se
so, inclusive, pensar em imagens e uma respiração completamente parte da coxa da parte do tron- começa a pensar, a partir da sen-
de outros tempos. Essa possibi- distintos. É esse o tipo de cinema co. Gêneros literários funcionam sação de mortalidade que se co-
lidade de me deslocar no espaço de que gosto. Não gosto do cine- como uma espécie de espaço de meça a definir o que se quer e a
e no tempo, instantaneamente ma que mantém o ritmo normal dissecação e a dissecação de ca- urgência do que se quer. Alguém
através de imagens autônomas, da realidade, gosto do cinema dáveres classifica, que quer fazer que não tenha a morte como re-
essa capacidade da imaginação é que muda a frequência cardía- juízos. E a mim, a literatura e a ferência é um tonto, é um des-
qualquer coisa de extraordinário. ca e respiratória do expectador. criação estão em outro mundo, pistado. É a nossa morte que, de
E, realmente, muitas vezes pare- Um pouco como acontece com do mundo de não se saber o que alguma maneira, dá sentido ao
ce-me que a literatura consegue is- a literatura. Também acho que a está a fazer, de estarmos diante que nós fazemos. Se fôssemos
so, consegue provocar nas cabeças literatura deve alterar as funções completamente de uma surpresa, imortais, tudo perderia o senti-
das pessoas o instinto da imagi- cardíaca e respiratória, deve alte- de um enigma. Para mim escre- do, tudo perderia a potência e a
nação, ou seja, o instinto de criar rar o funcionamento orgânico do ver é estar diante de um enigma sua força. Se fôssemos imortais e
imagens privadas e autônomas, leitor, e não apenas o funciona- e de não se saber o que vai acon- acontecesse uma coisa ou outra,
que fazem um percurso próprio, mento mental. Não alterar ape- tecer. Eu não sei o que vou escre- completamente diferente, sería-
um percurso que muitas vezes, nas as ideias, alterar o organismo. ver. Começo a escrever e depois mos indiferentes porque sempre
mais tarde, dá origem a novas Acho que isso é um belo projeto. há um tom que surge, e esse tom teríamos tempo para corrigir, fa-
ideias. A imaginação é a produção vai se desenrolando. E esse tom, zer de novo. Enfim, a questão da
de imagens que leva as pessoas a • Short movies, assim como vá- esse ritmo, não têm a ver com os mortalidade é a base da nossa vi-
pequenas invenções, a pequenas rios de seus trabalhos, subverte gêneros literários — muitas ve- da. Sêneca e os estoicos falavam
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muito disso, de se pensar diaria- ou um candeeiro são. Era um livros e dos filmes são histórias que não me parece que o século
mente na morte e a nossa mor- objeto muito semelhante a um com ligações intermináveis. Por 21 tenha mais crise, mais violên-
te estar presente, não como uma mobiliário que hoje usamos e, que não numa história seguir o cia, mais agressividade que os sé-
ameaça, mas que, pelo contrário, portanto, transformava-se em amigo do personagem principal culos anteriores.
é a nossa referência, a nossa ba- uma coisa banal mas, ao mesmo e saber o que aconteceu ao ami-
se — e que permite decidirmos tempo, uma coisa sempre pre- go? Por que a história tem a ver • Muitos dos homens e mulhe-
com clareza e lucidez e não com sente. Nós, pelo contrário, entre apenas com as personagens prin- res de Short movies parecem
uma espécie de tontice de quem o candeeiro, o cinzeiro e a cavei- cipais e com o desenvolvimento esperar Godot. Beckett é uma
pensa muitas vezes que é imor- ra, cavamos um buraco enorme. e desenlace das personagens se- influência real?
tal, que é um deus. Nesse aspec- São dois mundos completamen- cundárias? Se nós começarmos a Vejo a espera e o tédio co-
to, os gregos eram muito lúcidos. te diferentes, nós não temos uma olhar um bocado à distância, co- mo elementos essenciais da vida
Para os gregos, os seres huma- caveira em casa porque quere- meçamos a perceber que somos moderna, mas também da anti-
nos eram classificados como “os mos que a morte continue ta- nós que, ao decidir o momento ga. O tédio é uma energia poten-
mortais”, aqueles que vão mor- pada e, de alguma maneira, não em que termina uma história, cialmente terrível mas também
rer. Devemos assumir isso: nós nos lembremos dela e quase que vamos decidir se teremos uma potencialmente extraordinária.
somos aqueles vão morrer. En- de uma forma mística ou estra- história feliz ou infeliz. As histó- Daí nascem a violência, a agres-
quanto estou a responder a essa nhamento não racional, tapa- rias por si só não são felizes ou sividade, mas também a criação,
pergunta, eu sou aquele que vai mos a morte no espaço privado infelizes. Elas são felizes e infe- a invenção, o encontrar de algo
morrer, mas por enquanto estou pensando que assim a morte não lizes, felizes outra vez e infelizes que ainda não existia. O tédio e
a responder a pergunta. Quando se lembra de nós. É como se fos- outra vez, depois felizes e depois a espera são tempos sem ativida-
vejo a mim próprio como aque- se o resto de nossa irracionalida- entediantes, intensas e monóto- des urgentes, diretas. E portanto
le que ainda não morreu — por de que ainda existe no século 21. nas. Quem escreve, quem cria há ali um espaço em branco que
isso pode estar a responder essa uma narrativa, faz uma espé- pode ser preenchido, que tem de
pergunta —, mudo por comple- “Cada dia novo não • Até certo ponto, nenhum dos cie de corte. Nós damos sempre ser preenchido se não quisermos
to o tom, mudo por completo a nos é estranho nem textos possui “final feliz”. Em o meio de qualquer coisa, não enlouquecer. Quando se está à
intensidade do que faço e, de al- ameaçador porque um mundo imerso em crises damos nem o começo e nem o espera de alguém — quer seja no
guma maneira, seleciono o que econômicas, conflitos armados final. Porque para dar o come- caso de um encontro profissional
faço. Nesse aspecto, a ideia da
acordamos com o e violência urbana é impossível ço é exatamente a mesma coisa: ou na espera de uma namorada
morte, que está muito presente nosso corpo, com o criar um clássico “final feliz”? onde é que começa uma histó- — e se essa espera leva dias ou se-
nos textos — nesse Short mo- mesmo corpo, com as A ideia de um clássico “fi- ria? Por que uma história tem manas, a cabeça tem de ser ocu-
vies e nos outros livros —, acho mesmas memórias, nal feliz” é estranha, porque é que começar quando nasce uma pada, se não suicidávamo-nos.
que está muito presente na mi- vontades e hábitos. O um pouco semelhante à ideia personagem e não quando nas- A espera interminável, a espera
nha vida de uma forma muito do “era uma vez”, de um come- ce o pai dessa personagem? Ou arrastada por grandes períodos,
clara. Não se pode viver de cos- absurdo talvez seja a ço muito definido. Acho que, quando os pais dessa persona- obriga as pessoas a inventarem
tas para a nossa própria morte, é suspensão injustificada, mais que a questão do terminar gem se conheceram? Quando é atividades físicas ou mentais pa-
um absurdo. Isso sim é o gran- a suspensão sem causa, no “feliz” ou no “infeliz”, a ques- que se começa? Mais uma vez: ra não se suicidaram. E, nesse as-
de absurdo. É interessante que a dos hábitos.” tão é: o que é esse “terminar”, o começo é totalmente artificial. pecto, a espera é então essencial e
morte é hoje socialmente escon- o que é uma história termina- É interessante pensar que não criadora. Beckett e outras artis-
dida. Tapa-se a morte, esconde- da e quando é que uma histó- se fala tanto em começos felizes tas da espera interessam-me por
se a morte. O morto é colocado ria termina? É como nos contos ou infelizes. As histórias clássi- causa disso. Colocam o homem
rapidamente em um espaço fe- clássicos, quando a princesa e o cas muitas vezes começam de num lugar que não é o da ativida-
chado, longe dos olhares das príncipe casam? Termina aí, ou uma forma feliz e terminam de de com um sentido, da atividade
pessoas. Numa cidade contem- termina quando, depois de casa- uma forma feliz. Digamos que profissional. O homem não está a
porânea, felizmente, em parte rem, a princesa e o príncipe têm essas são as histórias mais boa- fazer coisas por essa ser a sua obri-
porque mostra que há violência, três filhos? Ou será que podemos zinhas. A história clássica mais gação. O homem tem, sim, de fa-
um corpo morto em espaço pú- continuar a história de cada fi- convencional começa com um zer coisas, ou de pensar, para não
blico rapidamente é tirado da- lho? Um filho, se calhar, morreu estado mais ou menos tranqui- ficar louco enquanto não chega
quele espaço, é tapado, ou seja, cedo, o outro filho teve uma vida lo, há uma tragédia que rompe aquilo que o vai eventualmente
a ideia de tapar o morto tem a muito feliz e o terceiro foi infe- e essa tragédia, mais tarde, vai salvar. A espera é realmente um
ver com pudor. É um pudor que, liz. Enfim, onde é que paramos? ser remendada e então se chega período de grande potência.
por um lado, é bonito mas, por Paramos nos filhos, paramos nos ao final feliz. Há uma espécie de
outro, mostra como temos um netos? É interessante que as his- lógica quase gráfica: agora felici- • Em nenhum dos relatos há
horror à ideia da morte. Nes- tórias dos príncipes e das prin- dade; agora infelicidade. Em re- qualquer menção a um lugar
se aspecto, mudou por comple- cesas clássicos termina quando lação à vida e à arte, a vida e a específico. O senhor se sente
to a presença da morte. No dia muito nos filhos, dizendo: “ca- arte são muito imprevisíveis e, um escritor português ou um
contemporâneo nada tem a ver saram e tiveram muitos filhos”. portanto, de alguma maneira, escritor que está em Portugal?
com a presença da morte como Podíamos perguntar: bem, por nós colhemos o início e colhe- Gosto da ideia de um nar-
no “dia clássico”, no “dia da Ida- que termina aí a história, por mos o final. E o grande poder da rador sem espaço, um narrador
de Média”. Hoje a ideia de que que é que não continua? Os fi- literatura é que nós podemos es- que não sabemos bem onde es-
a morte deve ser tapada — não lhos, em primeiro lugar, foram colher o início e o final da histó- tá, quem é e que não faz juízo de
apenas no espaço público, mas felizes? E os filhos desses filhos ria e de um acontecimento. Em valor. E gosto também da ideia
tapada também no espaço pri- foram felizes? Mesmo nessas his- relação a nossa vida, é algo que de narrador que olha para um
vado — é tentar não falar so- tórias clássicas de fadas, de prin- não escolhemos. O início é mui- sítio e não sabe ao certo qual é.
bre isso. Às vezes o “tapar” não cesas e príncipes haveria uma to claro e nós não escolhemos Tenho vários livros muito dis-
é só por um plástico sobre o cor- altura que as coisas estariam in- o momento de nascer, quan- tintos entre si. Uns estão loca-
po morto, tapar é, por exemplo, felizes, haveria uma tragédia. E, do nascer. No final, se tivermos lizados em um espaço e outros
não se falar da morte em casa e se as coisas parassem por aí, o uma morte natural, também não nem tanto. Há livros, Uma via-
a morte ser um tema tabu. De final da história seria infeliz. O podemos escolher. A única hipó- gem à Índia, por exemplo, em
certa maneira, é tapar também que eu quero dizer é que as his- tese, em relação a nossa própria que o protagonista parte de Lis-
com um plástico as palavras ou tórias não têm final feliz ou in- vida, de escolha entre o início e o boa — é uma viagem de Lisboa
as lembranças que remetem à feliz, as histórias não têm final. final, é realmente o suicídio, que à Índia — e, portanto, Portugal
morte. Isso é algo que realmente Nós é que, artificialmente ou li- é uma questão tão pensada em e a língua portuguesa estão mui-
está em completo conflito com terariamente — ou em termos termos de filosofia. Realmente tíssimos presentes. Escrevi um li-
o dia normal das pessoas na Ida- de cinema ou de teatro —, te- é o acontecimento, o ato único vro que se chama Breves notas
de Média, em que morte, por mos que dizer “a história termi- em que a pessoa tem uma deci- sobre… Maria Gabriela Llansol
exemplo, no Renascimento, es- na aqui”. Ela acaba quando o são nesses dois pontos extremos. (1931-2008) e Maria Filomena
tava muito presente nos próprios pai morreu e o filho mudou de Mas, de alguma maneira, um Molder, que são duas escritoras
dias e nas casas. A ideia de uma país ou quando os dois [príncipe escritor ou um artista quando extraordinárias de Portugal. Por-
cava era como um objeto do co- e princesa] se casaram ou acaba constroem uma história têm es- tanto, tenho livros que são abso-
tidiano, um objeto da casa, que quando foi cometido um crime sa possibilidade quase divina de lutamente centrados na cultura
era muito comum. Em determi- ou acaba quando, de repente, poder escolher o início e o final. portuguesa. Uma viagem à Ín-
nada época, a cava era lembrar a um homem se apaixonou? A de- Todas as histórias, só para con- dia, por exemplo, é um livro que
morte — a nossa própria morte cisão de terminar uma história é cluir, são um meio. Tudo o que é retoma o conceito de epopeia, a
e a possibilidade da nossa pró- uma decisão puramente artificial mostrado é sempre o meio, pode estrutura d’Os Lusíadas e, por-
pria morte a qualquer altura. A e exterior. As histórias não termi- ser o mais intenso, mas é sempre tanto, parte do osso, do grande
cava era um objeto da casa co- nam, elas estão sempre ligadas. um fragmento de vidas muito esqueleto, da grande referência
mo, se calhar hoje, um cinzeiro A nossa história, as histórias dos mais largas. Queria dizer ainda da língua portuguesa que é o li-
10 | | fevereiro de 2016

vro de Camões. A cultura portu- Há vários dos meus li- relação com a língua diferente da vai continuar o seu percurso. O
guesa, no meu caso, deu origem vros que eu diria que são mui- “Escrever para mim relação normal de quem escreve que eu sinto é que há uma an-
a muito trabalho, muitas coisas to animalescos — animalesco pressupõe uma fuga, tecnicamente. Escrever é uma re- siedade pela publicação. Na pró-
que fiz. É evidente que há outros no sentido de sobrevivência, um sítio escondido, de lação invulgar. Entramos numa pria internet há uma espécie de
livros que são situados em uma da guerra, da luta, do conflito. observação que permita ângulo completamente distinto, inclusão de todas as fases que
paisagem de Europa mais central A máquina do Joseph Walser como se fosse uma aterrissagem classicamente tinham diferen-
uma digestão mental e
e outros livros, digamos, não es- e Um homem: Klaus Klump sobre a língua. Escrever é ter um ças temporais. A pessoa escrevia,
tão situados em lugar nenhum. são exemplos disso, são livros de afetiva da realidade.” conjunto de pressupostos acres- passado um tempo, revia o texto,
Mas me sinto absolutamente um guerra, de ataque, de defesa, de cido de um conjunto de quali- depois publicava. Passado mais
escritor português, um escritor alguém que ocupa o espaço que dades. Tem a ver com isso, com tempo vinham as reações. Por-
que utiliza a língua portugue- é o espaço do outro. E julgo que imaginar e com a linguagem. tanto, estava aqui a questão do
sa. Escrever em português não é a literatura está muito centrada Publicar é outro mundo. Publi- tempo no meio, que ia ensinan-
apenas usar uma técnica, a língua nisso e, no meu caso, interessa car é tornar público. Depois de do coisas a toda a gente. Agora,
não é um objeto, ou seja, a língua muito os casos extremos e não tornar público, qualquer pessoa muitas vezes com essa pressão de
não é uma caneta ou um copo. necessariamente os casos mé- tem acesso a um livro. A mesma publicar, quando escreve e publi-
Ela é uma coisa completamente dios. Nos casos extremos há uma frase, o mesmo texto, pode ser li- ca na internet, logo se passa a ter
diferente. A língua é algo perten- guerra. Há uma música do Leo- do por uma senhora de 80 anos a reação — alguém dizer “gos-
ce ao nosso corpo, ao nosso or- nard Cohen de que gosto mui- muito religiosa ou por um jovem tei muito” ou “não gostei”. Essa
ganismo. De alguma maneira, é to, There is a war, — “there is a de 17 anos muito provocador. E inclusão de movimentos de es-
a música que nos embalou quan- war between the rich and poor,/ a mesma frase vai ser lida e in- crita, publicação e reação, que
do ainda estávamos na barriga a war between the man and the terpretada de forma totalmente classicamente tinham um tempo
da mãe. Essa música é som que woman”. Há uma guerra insta- distinta. Portanto, publicar tem no meio, é algo muito perigoso,
ainda não dávamos sentido, mas lada e, de alguma maneira, os a ver com tornar público, tor- porque é acelerar os mundos, co-
esse som que nos embalou era o livros não tratam das questões nar acessível a qualquer pessoa. mo se fosse um único momento.
som da língua portuguesa. Isso tranquilas, tratam das violências E, nesse particular, as qualidades
tem a ver com as sílabas, o tom e conflitos. De qualquer manei- para publicar bem, no sentido • O senhor escreve geralmente
das palavras, a acentuação. Tudo ra, é bom dizer que, em termos em que tem a ver com resistir à pela manhã, mas o seu proces-
isso dá uma música que é essen- sociais, há algo que revolva cada publicação, são completamente so de trabalho é fruto daquilo
cial e com a qual eu nasci e, mes- vez mais: este abismo que se co- diferentes. Há pessoas que publi- que chamou de um “esconde-
mo antes de nascer, com a qual lava entre pobres e ricos. O que cam muito cedo e são muito cri- rijo temporal”. Isso significa
convivi e, portanto, essa língua é assustador, falo pensando em ticadas, não aguentam a pressão que a literatura só acontece
é qualquer coisa de tão relevante alguns países como Portugal e e deixam de publicar, deixam de quando o autor se liberta do
quanto a minha estrutura men- muitos países da Europa, quer escrever. Há pessoas que publi- “mundo real”?
tal, a minha estrutura orgânica. dizer, é assustador percebermos cam e ganham muitos prêmios, Entre o mundo real e a es-
A língua é qualquer coisa que que, entre um trabalhador de ba- ganham muitos elogios, mas crita há uma circulação, claro,
entra mesmo no sangue. E para se e alguém que trabalha como também não aguentam a pressão mas demasiada circulação, dema-
não falar na ligação entre a língua diretor, há uma diferença desor- e ficam a pensar que no segun- siado tráfego entre uma coisa e
e o pensamento. Trabalhar nu- denada do que se recebe que, às do livro não vão conseguir fazer outra, perturba-me. Gosto de es-
ma língua, escrever numa língua, vezes, é de 1 para 100, 1 para 50, algo semelhante. Portanto, fi- crever num sítio com uma janela
pensar numa língua é ver numa 1 para 30. São números incrivel- cam com a pressão que os impe- mas não com uma janela que dê
língua. A língua é um posto de mente assustadores. Parece-me de de continuar. E há a terceira para um espaço demasiado agi-
observação, é um posto de vi- uma coisa simples, como deter- hipótese que é alguém publicar tado ou ruidoso. Escrever para
gia. A língua define uma relação minar uma diferença entre o li- um livro e ninguém ligar, nin- mim pressupõe uma fuga, um sí-
ótica com o mundo. Eu vejo de mite mais baixo e o limite mais guém dar atenção nenhuma. tio escondido, de observação que
determinada maneira porque eu alto assumir uma proporção, va- Ou seja, quando se publica há permita uma digestão mental e
uso determinada língua. Eu ou- mos imaginar, mesmo que fosse três hipóteses, três limites: se- afetiva da realidade. Escrever ten-
ço de determinada maneira por- de 1 para 10, já era uma redução rem muito criticados, receberem tando repetir a realidade parece-
que eu uso determinada língua. enorme das diferenças econômi- muitos elogios ou ninguém ligar. me desnecessário — a vida por si
Eu toco nas coisas de uma deter- cas. É, para mim, um pouco as- A questão basicamente é, para só tem por base infinitas repeti-
minada maneira porque eu uso sustador perceber que no século quem escreve, quem acha que a ções — comer e comer e comer
determinada língua. No caso da 21 pode haver empresas em que escrita vai fazer parte da sua vi- outra e outra vez e outra vez. E
língua materna, não é qualquer o trabalhador recebe 500 euros e da, só deve publicar quando sen- dormir outra vez, etc. Se retirar-
coisa que se assemelhe a um fato uma pessoa na mesma empresa te que, aconteça o que acontecer, mos as repetições de hábitos, ati-
que a pessoa vai se tornar um. É pode receber 20 mil euros. Es- que seja muito criticado ou mui- vidades corporais necessárias, etc.
o próprio corpo, a língua é o pró- tamos a falar de uma diferença to elogiado ou que a reação seja Se tirarmos isso ao dia, vemos
prio corpo — não se distingue brutal e é evidente que isso com de indiferença, ele vai continuar. que fica pouco. Para mim é indis-
do corpo. Aliás, verbalmente nós o tempo vai cavando diferenças Portanto, as qualidades necessá- pensável escrever em um mundo
sentimos isso: a língua são mo- muito violentas em termos de rias para resistir à publicação tem isolado. Escrevo em uma espécie
vimentos da própria língua or- condições de vida. É claro que a ver com uma certa distância em de bunker, que é como costumo
gânica, movimentos dos lábios, meus livros não são sobre isso, relação ao mundo. Então, é um chamar uma sala do século do
são movimentos de pequenos mas é algo que me preocupa. outro mundo, completamente 19, em que não há internet, em
músculos. E não é por acaso que distinto. O perigo é realmente que desligo o telemóvel [celular]
pessoas que aprendem determi- • Durante quase uma década o nós juntarmos o escrever e o pu- e, portanto estou, durante três ou
nada língua, desde o início, têm senhor se dedicou vorazmente blicar. A ideia de que só a publi- quatro horas, isolado do mundo.
dificuldades em reproduzir sons a ler e escrever e muitos de seus cação torna uma pessoa escritora Isso para mim é imprescindível.
de uma outra língua completa- livros foram concebidos nes- é uma ideia perigosa, pensando Criar mesmo um conjunto de
mente distinta. Estão habituadas se período. Isso aconteceu en- até nas pessoas que começam defesas físicas — muros — e com
a fazer um determinado conjun- tre seus 20 e 30 anos. Por que agora, ser escritor é escrever. Há as defesas eletrônicas. Escrevo
to de movimentos para dizer de- o senhor decidiu esperar tanto grandíssimos escritores que pra- num espaço que é um espaço do
terminadas palavras. A língua tempo para publicar os livros ticamente não publicaram em século 19, não há tecnologia ab-
é um conjunto de movimentos que estavam guardados? vida. Pensando no Pessoa, pen- solutamente nenhuma. Sei que
inscritos logo na nascença — um Para mim é muito cla- sando no Kafka, a questão de durante três ou quatro horas vou
conjunto de movimentos, um ro que escrever e publicar são publicar é uma questão total- estar sozinho e não vou ser inter-
conjunto de pensamentos, uma duas ações completamente dis- mente secundária. Nesse aspec- rompido. De alguma maneira,
forma de pensar. Para mim é ini- tintas, aliás, não por acaso, em to, acho que separar ao máximo corto essas ligações com o mun-
maginável pensar em escrever português temos dois verbos o escrever do publicar parece- do exterior, com a realidade exte-
noutra língua, imaginar pensar distintos: escrever e publicar. Es- me uma boa estratégia, no sen- rior. Quando vou de casa para o
noutra língua, etc., etc. crever pressupõe um conjunto tido de que a pessoa só publica meu ateliê, o tal bunker do sécu-
de ações, de movimentos e de quando sentir que está prepara- lo 19, vou a pé, são quinze mi-
• O senhor trata com frequ- qualidades que nada tem a ver da para isso, que está preparada nutos a pé, e nesse período, saio
ência em seus livros da ques- como conjunto de movimentos, para tornar público. O critério de manhã, tento sequer olhar pa-
tão hierárquica e acho que A de ações e de qualidades necessá- para publicar não deve ser a pes- ra as bancas de jornais. Tento não
máquina do Joseph Walser é rias para publicar. São duas ações soa sentir que tem um livro for- olhar para os títulos, quase como
o exemplo mais forte disso. O completamente diferentes. Se te, não deve ser apenas isso. A se fosse um zumbi que acordou
senhor sente-se incomodado fossem a mesma ação, teriam o pessoa só deve publicar quando e vai ali em uma espécie de túnel
com a necessidade de um nive- mesmo verbo. Para escrever é ne- tem um livro forte quando sentir no meio da cidade, um túnel ex-
lamento social? cessário ter imaginação, ter uma que, aconteça o que acontecer, terior, um túnel invisível. E vou
fevereiro de 2016 | | 11

como um zumbi durante esses dez minu-

Os escombros
tos. Abro o bunker e tento me concentrar
a escrever. No meu caso, a interferência
do mundo exterior perturba. É evidente
que estou atento à realidade, intervenho
sempre que posso, mas acho que tem um
outro mundo, que é um mundo interno,
fechado, que não é um mundo documen-

de uma
tário — ou da opinião em relação ao que
vai acontecendo. Por outro lado, como é
evidente, o real vai entrando e o que acon-
tece no mundo — as notícias dos jornais
—, de alguma maneira, vai entrando, de
uma forma não-literal e não-evidente,
nos textos. Mas pessoalmente tenho essa

guerra interior
necessidade de me isolar do mundo pa-
ra escrever. Durante muito tempo escrevi
em cafés. Era um tempo de escrita com-
pletamente diferente, escrevi em cader-
nos, uma escrita que misturava escrita e
design muitas vezes. E que tinha por ba-
se de fundo o barulho das pessoas. Mas
hoje tento escrever nesse bunker do sé-
culo 19, por vezes alternando com uma
entrada no real, que tem a ver com a ca-
minhada. Quase sempre, quando posso,
Romance e livro de contos revelam o rigor
caminho por uma ou duas horas no meio de Gonçalo M. Tavares com a palavra
das pessoas, no meio da multidão, vendo
os que andam por nós: as pessoas que pa-
ram, as pessoas que discutem, namorados Jonatan Silva | Curitiba – PR
a ter comportamentos estranhos. Enfim,

S
tento ter um período do dia em que mer-
gulho no exterior, mergulho na cidade,
na confusão da cidade. Tento, de alguma e existe a previsão hotel, mas nenhum dos quartos
maneira, abastecer-me dessa energia e dos para um futuro No- tem números. Cada um recebe o
comportamentos humanos. Portanto, eu bel de Literatura lu- nome de um campo de concen-
diria que hoje os meus dias balançam en- sófono, o português tração nazista de acordo com a
tre o isolamento — três ou quatro horas Gonçalo M. Tavares sua localização dentro do prédio.
—, um isolamento completo do mundo, é o favorito. Nascido em 1970 em
inclusive o eletrônico, e por outras vezes Luanda, o escritor é responsável Marius pensou em várias coi-
eu mergulho completamente na realida- por um dos maiores arrebates li- sas ao mesmo tempo. Teve o impulso
de, na energia das pessoas, que depois me terários dos últimos tempos, che- Uma menina está de virar as costas de imediato e de
perdida no seu século
dá uma energia para escrever. gando a receber elogios de José à procura do pai tirar Hanna dali, mas não o fez.
Saramago. Gonçalo não é exata- Gonçalo M. Tavares — Por que fazem isso?
• Certa vez, o senhor comentou sobre mente um autor pop, mas possui Companhia das Letras — Porque podemos — res-
como escrever a mão ou digitar no com- um séquito de leitores ávidos pela 240 págs. pondeu a senhora, secamente. —
putador influenciam sua forma de pen- sua obra — que, por sinal, é uma Somos judeus.
sar o que está criando. O que muda no das mais profícuas dentre os escri-
resultado de uma obra literária depen- tores de língua portuguesa — e É impossível saber se Ma-
dendo do método como é concebida? vai do romance à poesia épica. rius também é judeu, mas a dú-
Eu diria que a inclinação da mão em Sem se ater a rótulos, Gon- vida faz parte da artimanha do
relação ao papel interfere no que se escre- çalo M. Tavares trabalha os limi- escritor em preservar seus per-
ve. E logo de imediato, escrever com uma tes dos gêneros literários, usando sonagens de qualquer rótulo.
única mão — como se escreve num cader- distanciamentos e aproximações Somente Hanna está às claras,
no com caneta — e no computador, com entre eles como elementos nar- longe da neblina deixada pelos
duas mãos, é completamente diferente. rativos. O romance Uma meni- conflitos bélicos. Parte dessa faci-
São dois mundos. Não pode ser a mesma na está perdida no seu século à Short movies lidade de identificação da meni-
atividade — se uma é feita com uma mão procura do pai, que acaba de ser Gonçalo M. Tavares na vem de sua própria inocência.
Dublinense
e outra, com duas. É como lançar uma bo- lançado no Brasil, é um de seus Ela sempre está disposta, não
96 págs.
la com uma ou duas mãos. O tipo de es- textos mais delicados. O caráter existe postergação ou medo —
forço é completamente distinto. Ou seja, humanizado do livro está liga- e essa assertividade exagerada de
não é apenas uma questão literária, de ti- do à relação pessoal de Gonçalo Hanna é um reflexo de sua pró-
po de escrita, de pontuação, de diferentes com crianças portadoras de tris- pria curiosidade e desejo. A ga-
metodologias. É também uma questão de somia 21, a síndrome de Down, bre o preconceito e a ignorância rota é a antítese perfeita de outro
corpo. Mudar a posição do corpo, o ritmo como Hanna, a protagonista. de toda uma sociedade conser- personagem de Gonçalo M. Ta-
do corpo — escrever cansado ou cheio de (Há anos o escritor desenvolve vadora. Algo muito próximo ao vares, Kashine, de um dos contos
energia, por exemplo — tudo isso muda a trabalhos com crianças e jovens tratamento do medo e da loucu- de Matteo perdeu o emprego.
forma de escrita e o conteúdo da escrita. portadores da síndrome.) ra dado por Gonçalo em Jerusa-
Em uma Europa pós-guer- lém ou da banalidade do mal em À flor da pele
• Recentemente, António Lobo Antu- ra, Hanna, uma menina de 14 A máquina de Joseph Walser, Gonçalo é sempre um pro-
nes disse que não havia nenhum nome anos, procura por seu pai entre ambos parte da tetralogia O rei- dutor de sentimentos à flor da
interessante ou relevante na literatura os escombros — metafórica e li- no, que fecha com Um homem: pele. Não existe meio termo em
portuguesa contemporânea, além de teralmente falando — com a aju- Klaus Klamp e Aprender a re- seus livros. Se em Senhor Henri
negar a importância de Fernando Pes- da de Marius, um homem que zar na era da técnica. e a enciclopédia, parte da cole-
soa. Como o senhor avalia a produção surge repentinamente e parece O narrador em terceira ção O bairro, o dito protagonista
atual de Portugal? sempre estar em fuga. Enquanto pessoa intercala com Marius a se embriaga de absinto para po-
Penso que há grandes autores na li- procura pelo pai, a garota tenta condução do livro, mas não há der enxergar o mundo, em Uma
teratura portuguesa. A história da literatu- também encontrar a si mesma. nenhum aviso sobre a mudança menina está perdida no seu sé-
ra e da língua portuguesa é muito rica, há Ainda que seja um sujeito miste- no ponto de vista e, de repen- culo à procura do pai existe um
grandes e grandes escritores que, antes de rioso, Marius acaba protegendo te, o leitor acaba imerso em um quê analítico, capaz de esmiuçar
terem essas gerações, a geração dos vivos, Hanna, como no caso em que novo universo. Tavares é um es- friamente os fragmentos da guerra
quis dizer — há uma geração dos vivos e Josef Berman, um “fotógrafo de critor de estranhamentos. Em para conseguir projetar o futuro.
uma geração dos mortos — têm grandes animais”, tenta retratar a menina toda a sua obra, raras são as vezes A caça pelo pai de Han-
nomes. Acho que a geração dos mortos como uma aberração. Nesse sen- em que o leitor se debruça sobre na é apenas o combustível para
tem grandes nomes e a geração dos vivos, tido, Uma menina está perdida uma narrativa cartesiana e lógi- que os questionamentos sobre a
da literatura portuguesa, tem grandes no- no seu século à procura do pai ca. Em determinado momento, necessidade real de guerra e suas
mes. E fico muito contente com isso. faz um importante mea-culpa so- Hanna e Marius estão em um consequências sejam trazidos à to-
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luís baptista

na. De certa forma, todos os que


morrem e aqueles que sobrevivem
mutilados carregam o DNA da
menina, porque estão apartados
e dilacerados assim como ela está.
Gonçalo traz para a sua li-
teratura gente incompleta, como
os personagens de Short mo-
vies, livro publicado em Portu-
gal em 2007 mas que só chegou
ao Brasil em setembro.

Tiros curtos
Short movies é uma col-
cha de retalhos de pequenos
contos, meros registros de ações
cotidianas comuns, mas também
absurdas e surreais. Os textos
são como estampidos de um ti-
ro curto: logo que começam já se
acabam. E pronto.
Nas palavras do autor, essa
sensação é proposital. O livro é
uma “tentativa de levar a litera-
tura do cérebro aos olhos e não
a deixar sair daí”. Tanto assim é
que não são poucos os contos em
que as descrições das ações são
enfileiradas, como se esperassem
cada uma a sua vez para entrar o autor
em cena. Mesmo sem ter quais- Gonçalo M. Tavares
quer ilustrações, é um livro pro- à Índia — livro em que Gon- que grandes nomes da literatura —
fundamente imagético. çalo homenageia em uma só ta- como Paul Valéry, André Breton e Gonçalo Manuel de Albuquerque
No conto que abre Short cada Camões e James Joyce. Por T. S. Elliot — são vizinhos de porta. Tavares nasceu em Luanda,
movies, O piano, a relação entre sinal, Tavares parece ter cer- Os livros criam um diálogo impos- na Angola, em 1970. Pouco
um homem e seu piano rodeado ta predileção por personagens sível entre si e desembocam em um tempo depois se mudou para
de água nocauteia o leitor logo modorrentos, como Joseph grande mosaico literário. Nos livros Portugal. Começou a escrever
no primeiro assalto — ao me- Walser, de A máquina de Jose- que compõem a tetralogia O reino aos 20 anos, decido a publicar
lhor estilo de Julio Cortázar. A ph Walser, um homem simples também se vê o trânsito de persona- somente após os 30. É autor
progressão dramática coloca em que não percebe que Margha, gens e lugares, como se tudo fizesse de 1 (2004), Matteo perdeu
xeque a noção de realidade e do sua mulher, tem um caso com o mesmo parte de um único reino. o emprego (2013), Atlas
disparate da narrativa. Não inte- encarregado da fábrica. Já Os velhos também que- do corpo e da imaginação
ressa ao personagem a casa que O que se vê nos textos de rem viver, recria a tragédia Alces- (2013), animalescos (2013)
desabou ou a família que morreu Short movies é o reflexo de um te, de Eurípedes, em Saravejo no e Breves notas sobre o
no desastre: só lhe cabe o instru- mundo em guerra, devastado começo da década de 1990 duran- medo (2007), entre outros.
mento com as teclas já partidas. e desajustado como se anteci- te o cerco sérvio. A obra, recheada
Mais adiante, em O táxi, Gonça- passe Uma menina está perdi- de sarcasmo, é um híbrido entre o
lo trabalha o texto como se fosse da no seu século à procura do épico e a novela, impulsionando o
um enquadramento de câmera: pai. A linguagem direta e franca leitor entre os mortos de uma terra
trecho
primeiro a mulher que levanta de Gonçalo cria uma lógica di- em transe.
o braço para que o táxi pare; de- ferente daquela a qual estamos Uma menina está
perdida no seu século
pois, a mulher sorri, pois dar com acostumados e, por isso, um tex- Orgânico à procura do pai
a mão já não é suficiente; o con- to sobre a corrida do ouro (No- Aos 45 anos, Gonçalo tem no
to avança e vemos as roupas ele- ve) tem tanto a dizer sobre os currículo mais de 30 livros — sen- Não se trata de provocar
gantes da mulher, ficamos sem nossos dias ou a frieza de uma do que sua estreia aconteceu em uma revolução, não gostamos
entender o porquê de nenhum mãe que só pensa em tomar ba- 2001 com Livro da dança — e im-
carro parar; somente no último nho de sol enquanto a filha se al- dessa palavra, trata-se em
portantes prêmios literários como o
parágrafo o autor revela o que há voroça ao presenciar a queda de Portugal Telecom — atual Oceanos primeiro lugar de um projeto
de tão macabro que nenhum táxi um avião (Barulho). — e o Jerusalém, que lhe rendeu da de acumulação: transmitir
atende a mulher. Mas até chegar à boca de Saramago um dos maiores uma inquietação progressiva,
conclusão o leitor é envolvido em Terra em transe elogios já recebidos: “Gonçalo M.
uma teia de tensão que desenrola Não é de hoje que o lei- mês a mês crescendo, quase
Tavares não tem o direito de escre-
em menos de uma página. tor é uma marionete nas mãos ver tão bem apenas aos 35 anos: dá sem dar por isso. Pela
Como todo os livros de Ta- de Tavares. Mas quem conhece vontade de lhe bater!”. repetição, por não deixar
vares, Short movies é uma rup- a sua obra deve estar acostuma- Tamanha proficuidade po- que se instale qualquer tipo
tura. O narrador às vezes aparece do: se volta nela, não tem do que de ser explicada de duas maneiras:
onisciente e onipresente, para, reclamar. Em Matteo perdeu o de trégua ou suspensão, por,
a primeira, psicológica e a segun-
no conto seguinte, se transfor- emprego, por exemplo, os tex- da, física. Para Tavares, escrever faz enfim, não desistirmos...
mar em um espectador igno- tos formam um efeito dominó parte do rol de necessidades orgâni-
rante que, assim como o leitor, em que o personagem do conto cas que possuiu e é algo tão natural
espera o desenrolar da história anterior se liga ao próximo até quanto beber água ou se alimentar.
trecho
para saber o que está realmente que se chegue ao Matteo. Não dá Depois, a volumosa produção lite-
acontecendo. Enquanto a mi- para dizer se os relatos são con- rária se justifica pela dedicação do Short movies
séria, a devassidão e toda sorte tos ou capítulos de um roman- angolano, entre seus 20 e 30 anos, Uma vaca, com o número 76
de tragédia atinge os cenários, ce. Talvez não sejam nem um, a uma escrita disciplinada e diária.
o narrador caminha pela cidade nem outro. Para Short movies Durante aquela década não se preo- na orelha, está morta, o corpo
como se avaliasse os estragos sem Gonçalo rechaça o esteriótipo cupou em publicar o que criava, caído sobre a neve. O excessivo
contabilizá-los. do “conto”, assim como fez com queria somente escrever. frio súbito matou vários animais
Os personagens também Canções mexicanas, livro escri- Para o garoto que aos 18 — dezenas, centenas, milhares
não são menos maquinais, co- to após uma viagem de dez dias anos precisou decidir entre seguir
mo a louca, do conto homôni- pela Cidade do México, e não como jogador semiprofissional de de animais. Mas nenhum
mo, que se perde nas poses que impõe qualquer definição fecha- futebol ou optar pela carreira de animal era igual àquela vaca
faz contra a vontade para delei- da sobre o que são os textos que matemático, Gonçalo M. Tava- com o número 76 desenhado
te de um fonógrafo anônimo. integram o livro. São ficções. res relevou durante seus quase 15 numa placa amarela agarrada à
Eles são gente maleável e suges- Mas toda ficção tem um ca- anos de carreira literária um talen-
tionável, como Bloom, prota- ráter lúdico para Tavares, como fi- to que poucas vezes esse mundo orelha. Esse número, sabe-se lá
gonista do épico Uma viagem cou claro na coleção O bairro, em presenciou. porquê, assusta.
fevereiro de 2016 | | 13

“Pra onde a gente tá indo? ”

Pesadelo
“Olha aqui, guria: às vezes o im-
portante não é para onde vamos, mas co-
mo e por que estamos indo. Não sei se me
entende. E se tu não me encher muito o
saco, comigo tu não terá do que te quei-
xar. Pelo menos enquanto estiver ao meu
lado, tomando o rumo do teu destino.”

compartilhado
A guria não sabe para onde vai.
Pensa que sabe como, mas está enga-
nada. Pensa que sabe por que, mas está
mortalmente enganada. Porém agora é
tarde, e você já embarcou nessa cami-
nhonete com ela. Só há uma direção a
seguir. Em linha reta, o mais recente
romance de Tailor Diniz, conduz o lei-
tor por uma estrada que nada tem de Ao usar recursos de vários gêneros literários, Tailor Diniz
reta. Além dos saltos nos batimentos
cardíacos, das surpresas que surgem a mantém o leitor seguro sob as rédeas do suspense
cada curva, há ainda a constante tra-
vessia de fronteiras, entre sonho e rea-
lidade, perigo e sensualidade, controle Vivian Schlesinger | São Paulo - SP
e desatino. Envereda por estradas escu-
ras de memória e confusão, mas dei-
xa-se seduzir na ilusão de descobrir o
que é realidade. Ao chegar às últimas Na estrada, Damián come- esquizofrênico, seja pela lingua- …um homem com ves-
linhas do romance, percebe que a “rea- ça uma série de agressões verbais gem de Sophia. Para as pergun- tes brancas, bata e calças largas,
lidade” aqui é uma questão de escolha, a Sophia, carregadas de imagens tas vulgares de Damián, ela tem uma máscara acetinada de bai-
mas estará aliviado, como ao despertar sensoriais grosseiras alusivas a respostas rápidas, cortantes, co- le a encobrir-lhe parte do rosto,
de um pesadelo. sangue ou sexo. Atropela e ma- mo de uma adolescente mima- tinha diante de si um cavalete,
Tudo começa em um ambiente ta um animal sem piscar. Em se- da mas inteligente. Quando tem uma pasta com folhas de desenho
de normalidade possível: Sophia An- guida vem o primeiro de muitos oportunidade, põe sua inteligên- e, na mão direita, um lápis de
tonelli, uma garota de programa, en- clássicos sinais de mau agouro: cia em prática, e assim cruza a croqui. […] Os croquis foram se
contra-se em uma caminhonete, sendo Em linha reta uma ave noturna, não identifica- fronteira para a segunda fase do sucedendo, como se fossem a série
Tailor Diniz
conduzida ao homem que a contratou, da, atravessa o caminho do carro enredo. E como boa literatura, completa de quadros de um dese-
Grua
o Sacerdote, por Damián, um moto- em ziguezague. Na Antiga Gré- se na primeira parte do romance nho animado, quadro por qua-
128 págs.
rista grosseiro e antiquado. Em uma cia já acreditava-se que pássaros a personagem fugia espontanea- dro, a revelar um ato sexual por
narrativa linear, a personalidade de Da- traziam más notícias aos vivos e mente de sua vida “normal”, ao inteiro…
mián e de Sophia é revelada por diálo- às vezes até roubavam suas almas dar ouvidos a seu alarme inter-
gos ágeis e irônicos. antes da hora. Após a publicação no, inicia a fuga de volta. É brilhante a forma com
de O corvo, de Poe, a associação A partir daí é impossível dis- que Tailor Diniz recria o am-
“Como é mesmo teu nome, guria?” entre pássaros e tragédia iminen- tinguir sonho e fato na narrativa. biente de um pesadelo dentro
Ela soltou um suspiro: “Sophia…”. te tornou-se inescapável. Com Personagens viajam em linha reta de outro. O narrador descreve
“Nome de velha, mas bonito.” efeito, a partir desse momento e após algumas horas, não saíram a personagem através dos olhos
“Com ‘ph’” […] “Sophia com ‘ph’ no romance, o ritmo de sustos do lugar. Sophia passa uma noite dela, daquilo que ela vê nesses
em vez de ‘f ’. Dá pra entender?”. aumenta, assim como o número escondida na mata enquanto es- desenhos — ela mesma, mas
[…] “Tudo bem, tudo bem, enten- de detalhes arrepiantes: cuta dois homens soturnos con- como se não se lembrasse de
di. E isso faz alguma diferença?”. versando sobre Deus, uma ovelha ter participado dessas cenas. A
Soprava uma brisa agradá- degolada, um saco de algodão epígrafe de Borges é demons-
O motorista, bronco, fã de Ro- o autor vel, nem quente nem fria, típica manchado de sangue, uma gaita, trada com precisão. Há poucas
berto Carlos, demonstra alguma sofis- Tailor Diniz de uma noite de início de outono. Piazzolla. Um deles, Martín, que situações mais arrepiantes do
ticação ao ironizar a artificialidade da Ela voltou, prendendo os cabelos toca gaita, lembra Martín Fierro, que descobrir-se fotografado
escolha pela grafia antiga, com ph no É escritor e roteirista de na nuca com uma piranha colo- épico dos pampas argentinos, de (ou desenhado) em atos bizar-
lugar do f. A garota revela, nesse diá- cinema e TV. Tem treze rida. Ele trouxe para a mesa uma José Hernández, até por sua lin- ros que alguém não se lembra
logo, seu lado frágil, com seu mau hu- livros publicados, entre maleta de madeira, de onde pegou guagem permeada de castelha- de haver cometido.
mor mediante a chacota do motorista. eles Transversais do uma faca de lâmina larga, uma no. Parece livre e despreocupado. Na segunda parte do livro
Sophia leva duas vidas: uma perigosa, tempo (Bertrand Brasil, tábua de frios e dois pratos peque- Valdirenes, o outro estranho, sen- há uma rápida sucessão de micro
de garota de programa, outra conserva- 2007), Prêmio Açorianos nos. Tirou uma garrafa de vinho te-se invadido pela presença de -enredos, onde entram em cena
dora, de uma jovem universitária, com de Literatura 2007 — da caixa de isopor e abriu-a com Martín, como se a acentuar uma muitos personagens, cada um
namorado, família, aparelho ortodôn- Melhor Livro de Contos, um saca-rolhas […] Ela observa- fronteira entre os dois. A conversa com sua linguagem, ambiente,
tico. Damián é um homem solitário e e Prêmio Associação va-o a distância. Teve a impressão é tão desconexa que nem Sophia e conflitos próprios, claramen-
violento, mas assim como Sophia, pa- Gaúcha de Escritores de que ele mancava com uma per- nem o leitor sabem se de fato te definidos. Novamente o oní-
rece levar duas vidas: em casa, sua espo- 2007 — Melhor Livro de na, a esquerda. Ao longe, ouviu-se ocorreu, porém dado o cenário rico é crível, cada uma dessas
sa e sua mãe preocupam-se muito com Contos. Crime na Feira o urro de um animal noturno. e a linguagem cifrada, contribui “estações” faz sentido enquanto
sua demora. Aí está um dos valores des- do Livro (Dublinense, para o clima de tensão e estranha- Sophia aí está, mas parecem eva-
se curto romance: os personagens são 2011) foi finalista do O narrador eleva a tempe- mento de fronteira. nescer quando ela passa à próxi-
multifacetados, paradoxais, o que man- Prêmio Açorianos/Porto ratura com poucas frases, produ- Ao final desta viagem, So- ma. O autor conseguiu capturar
tém o leitor tateando entre o estranho e Alegre em 2011, na to de artesania hábil na tesoura e phia chega a um local isolado no aquilo que é tão difícil explicar
o ameaçador. Tudo intensifica a tensão categoria Narrativa Longa. no acabamento. Uma brisa agra- tempo e no espaço, onde a vista ao se despertar de uma noite de
de fronteira, ou de duas margens de um Publicou A superfície dável, um toque nos cabelos, e das janelas é um cenário sinistro, muitos sonhos.
divisor — uma linha reta. da sombra (Grua, eis que surge uma faca de lâmi- não há qualquer cheiro nem ruí- Contar mais iria desman-
A própria arquitetura do romance 2012), o primeiro de um na larga e um saca-rolhas, ambos do, uma espécie de Truman Show char o prazer de sentir o medo
parece ter duas fases bastante diferen- tríptico do qual faz parte potencialmente letais. O moto- de terror. Encontra-se em um que Diniz articulou com com-
tes entre si, com um ponto de transi- Em linha reta (Grua, rista manca, detalhe que traz a ambiente de silêncio e assepsia, petência, elementos de vários
ção bem marcado, mas há pistas na 2014) e El penitente, a memória atávica da imagem do um misto de Inquisição, 120 dias gêneros literários, construídos
primeira daquilo que virá na segunda. ser lançado em breve. Diabo, que ficou manco após sua de Sodoma e ficção científica. Há sobre uma estrutura de thriller.
A epígrafe, de Borges, sugere tratar-se queda do céu. E para comple- alusões a organizações religiosas Em linha reta faz referências a
de um pesadelo do qual nós, leitores, tar, ao longe, um urro noturno. fundamentalistas, a masmorras muitos dos romances policiais
iremos participar nos papéis de teatro, O narrador coloca o leitor exata- de ditaduras, e instituições gover- mais importantes, e como tal,
espectador, ator e fábula. No primei- mente onde Sophia está: sozinha namentais, onde cada um exerce consegue entreter e causar es-
ro parágrafo há uma cena de hospital, na mata, com um homem arma- sua função, por mais degradante, tranhamento. Para testar as hi-
uma médica ou enfermeira tentando do, cercada de escuridão e medo. sem o menor traço de humanida- póteses que o leitor vai tecendo
comunicar-se com um paciente que po- Para que o leitor não fique de. Até as cenas de sexo são nar- para explicar o que lê é necessá-
de estar inconsciente ou até em coma. sufocado no suspense, Diniz in- radas com distância e através de rio que o pensamento seja mais
Quem ele ou ela é e como chegou a esta tercala momentos de humor, se- desenhos feitos por um persona- veloz do que virar as páginas, ta-
situação, só lendo para descobrir. ja pela conversa do motorista gem sem nome e sem rosto: refa difícil nesse page-turner.
14 | | fevereiro de 2016

divulgação
Coisa de cervejada, as co-

Fragmentos
legas atiçando, sem mentira ne-
nhuma, uma única vez, como é
que foi acontecer um troço des-
tes, doutor?, com que cara eu
vou olhar pro meu Louro, dou-
tor?, ele pra mais de seis meses
em São Paulo e eu aqui grávi-

da tragédia
da, beirando os quatro meses,
capaz até dele me esfolar viva
[...] ou o senhor me arranja um
remédio pra tirar essa criança
logo, ou eu sou capaz de dar ca-
bo da minha vida [...]

brasileira
Artifício desnecessário
Fernando Fiorese afirma,
na Nota do autor, que os verda-
deiros autores de Um chão de
presas fáceis são dois amigos
dele, Humberto e Murilo. Eles
teriam encaminhado a Fiore-
se transcrições de entrevistas,
cópias de textos extraídas de
Em Um chão de presas fáceis, Fernando Fiorese aborda livros, folhas manuscritas e da-
tilografadas, registros de diálo-
rotinas limitadas, de onde aparentemente não há saída gos ouvidos ao acaso — enfim,
material coletado na Rio-Bahia
entre julho e setembro de 2011,
Marcio Renato dos Santos | Curitiba - PR matéria-prima para um — su-
posto — documentário que

U
nunca chegou a ser editado.
Ainda na Nota do autor,
m painel do Bra- por exemplo, no capítulo De- o autor Fiorese comenta que organi-
sil a partir de uma saparecida — ou seria um frag- Fernando Fiorese zou o material que recebeu a
região brasileira. A mento ou um conto? — há uma partir de um roteiro e de um
frase pode definir informação inicial: “Cartaz afi- Nasceu em Pirapetinga (MG), diário. Por isso, Um chão de
Um chão de pre- xado no Posto Xodó, entrada de em 1963. É autor, entre outros, presas fáceis é apresentado
sas fáceis, o mais recente livro Medina”. Em seguida, Um chão do livro de poemas Um dia, como “Documentário” e, Fio-
de Fernando Fiorese. Em 280 de presas fáceis traz o texto: o trem (2008) e da coletânea rese insiste, os verdadeiros au-
páginas, o autor apresenta por de contos Aconselho-te tores são Humberto e Murilo.
meio de capítulos breves — ou Um chão de presas fáceis Maria da Silva, 57 anos, crueldade (2010). É professor O artifício, guardadas as
Fernando Fiorese
fragmentos individuais? — dra- estatura nem alta nem baixa, de Teoria Literária e Literatura proporções, já foi utilizado na
Escrituras
mas de moradores que vivem gordinha, cabelos e olhos escu- Brasileira na Faculdade de literatura, entre tantos autores,
280 págs.
nas cidades mineiras pelas quais ros. Desaparecida de Comercinho Letras da Universidade Federal por João Ubaldo Ribeiro, em
passa a BR-116, trecho conheci- na noite do dia 10 de outubro de de Juiz de Fora (UFJF). Um A casa dos budas ditosos, e
do como Rio-Bahia. 2007. Vestia calça comprida pre- chão de presas fáceis (2015) o recurso também aparece em
É possível pensar a obra ta e camisa de malha bege. Não recebeu patrocínio da Petrobras Amar-te a ti nem sei se com
como um romance, mas prin- precisa voltar. Mas que entre em para o seu desenvolvimento. carícias, de Wilson Bueno.
cipalmente como um livro de contato, ao menos para dizer on- Vive em Juiz de Fora (MG). Mais do que se valer de
contos. Cada capítulo traz uma de enfiou a receita de fios de ovos um mecanismo desgastado,
situação dramática que funcio- da mamãe. receber um conteúdo alheio e
na isoladamente — o conjunto publicar em seu nome, o que
também faz sentido, e há capítu- Este exemplo, com varia- tende a provocar o efeito —
los, no final da obra, que apre- ções, muitas das quais mais ex- dejá-vù? — de uma piada que
sentam pontos de contato entre tensas, se repete por toda a obra. não tem mais graça, no caso
si, mas os fragmentos — seriam O narrador solta um spoiller, pa- de Fernando Fiorese o artifí-
mesmo capítulos? — possuem ra, em seguida, narrar. E os títulos cio se revela desnecessário, ab-
começo, meio e fim, e se bastam. dos capítulos — que na realidade solutamente desnecessário.
Apesar de as narrativas se- são, enfim, contos — já sugerem Para o leitor, não faz di-
rem ambientadas em cidades aquilo que o leitor vai se deparar ferença se o autor, ou uma ou-
mineiras, a impressão é de que ao fruir o texto. Eis alguns dos tí- tra pessoa, fez a pesquisa de
o livro tem como cenário uma tulos dos contos: “Menino quan- campo na rodovia Rio-Bahia.
única cidade. Os muitos perso- do enfeza, sobe o preço da vela”, O livro de ficção funciona,
nagens pobres são coadjuvantes “Tudo lhe fede, nada lhe cheira”, e se impõe, não apenas por
em uma rotina controlada por “Há males que vêm pra pior”, aquilo que “conta”, mas como
pouquíssimos ricos. A maio- “Antes de entrar, veja por onde “conta”. Fiorese investe em
ria não tem perspectiva de cres- sair”, “O que carcará deixa, uru- uma narrativa precisa, o nar-
cimento, os salários permitem bu não enjeita”, “Eu queria ser rador utiliza as palavras mais
apenas sobreviver. A existência pobre um dia, porque é duro ser adequadas possíveis, a escri-
é trabalhar em alguma fábrica, pobre todo dia”, “Marido fora, ta segue na ordem direta, em
trecho
casa ou sítio, isso quando tem mulher dá esmola” e “Casar é tro- primeira ou terceira pessoa, e
vaga, vender o corpo por pouco Fiorese investe em car o doce pela doença”. Um chão de presas fáceis todos os fragmentos da obra
dinheiro, comer, dormir, acor- uma narrativa precisa, Auto-explicativos, os tí- são compreensíveis, em sin-
É o que eu digo, cara, já fiz de
dar, ingerir bebida alcoólica para o narrador utiliza tulos — que lembram frases de tonia com a oralidade, enfim,
esquecer e, às vezes, morrer em para-choques de caminhão —, tudo nessa vida. Não lembro em busca do leitor.
meio a algum conflito fútil. as palavras mais de fato, antecipam a narrativa e, de um único dia no à-toa desde Mesmo que utilizar o
Um chão de presas fáceis adequadas possíveis, a ainda, revelam o humor e a iro- que tinha meus seis, sete anos. artifício, de ter recebido o “li-
até parece, tanto, o Brasil. escrita segue na ordem nia presentes no livro. “Marido
Sempre engordando o patrão.
vro” de presente, tenha sido
direta, em primeira ou fora, mulher dá esmola” trata, a uma brincadeira — talvez se-
Da síntese e do humor exemplo do que está sugerido, de Fosse rico ou remediado, ja essa a intenção do autor, a
terceira pessoa.
Os fragmentos da narra- adultério. Durante a ausência do nenhum daqueles fodidos nunca piada não funciona diante da
tiva são acompanhados de um marido, a esposa se envolve com me deu um tostão de gorjeta. E obra literária, do texto irreto-
breve resumo. Então, antes de pelo menos um outro homem, cável, que, inclusive por causa
eu que bobeasse nas contas...
seguir pelo texto em prosa, o lei- apesar de ela mesma não acredi- do humor que relativiza im-
tor tem acesso a uma sinopse do tar, aparentemente, naquilo que Acabava devendo até os cabelos passes complexos, diz muito
que vai encontrar. Na página 29, fez e nas consequências do ato: da bunda pra eles. sobre a tragédia brasileira.
fevereiro de 2016 | | 15

tante, um livro datado. O que,

Graça finita
parece-me, é pouco provável.
Além de ser excepcionalmen-
te bem escrito, o romance, com
seus diversos cenários (a casa, o
trabalho, o trânsito), persona-
gens (o homem, a mulher, o fi-
lho, o chefe) e possibilidades de
temas e abordagens, é uma pe- Luxúria
Fernando Bonassi
ça de ficção de fato. E são justa-
Em romance crítico, Fernando Bonassi reflete mente os motivos estéticos que
Record
366 págs.
podem moldar sua imagem no
sobre a derrocada do novo milagre brasileiro futuro. Além disso, é bem pro-
vável que seja tomado como um
relato que captou um período
Luiz Rebinski | Curitiba - PR muito particular da história do
Brasil. O zeitgeist que, a meu ver,

A
falta na literatura brasileira, bas-
tante acostumada a olhar para si
trecho
os poucos a literatura brasileira con- o autor própria e para fatos remotos.
temporânea vai encontrando o Brasil Fernando Bonassi Esse tipo de livro é bem Luxúria
contemporâneo. A histeria política, mais comum em outras para-
o egocentrismo exacerbado, a pie- Nasceu em São Paulo, em 1962. gens. De orelhada, lembro-me Um campo novo parece estar
guice das redes sociais e a eterna in- Romancista, contista, dramaturgo de Liberdade, do americano se abrindo. Uma novidade bem
cógnita a respeito do futuro do país que aflige e roteirista, publicou mais de vinte Jonathan Franzen, um roman- que pode estar acontecendo,
a todos há tanto tempo, têm rendido romances obras. É autor, entre outros, dos ce meio enfadonho, mais jorna- ele pensa. Não sabe onde,
e coletâneas de contos — Reprodução, de Ber- romances Um céu de estrelas lístico do que literário, mas que
nardo Carvalho, e O Brasil é bom, de André (1991) e Subúrbio (1994). ousou tocar em questões caras nem por que, mas sabe que
Sant’Anna, são alguns exemplos. Luxúria, de Assina, em coautoria, os roteiros aos americanos contemporâ- está diferente. Há mais gente
Fernando Bonassi, engrossa a lista. dos filmes Estação Carandiru e neos das guerras que o país tra- como ele e isto o conforta. Este
O livro narra a trajetória errática de um Cazuza: só as mães são felizes. vou no Golfo. Mas o trabalho é o tempo das oportunidades,
metalúrgico que, na sanha de emergir socialmen- de Bonassi se aparenta muito
te, constrói uma piscina em sua casa. O persona- como nunca antes visto. É o
mais com dois romances recen-
gem principal, que no livro é identificado como tes: Lionel Asbo — Estado da tempo dele, também.
“o homem de que trata esse relato”, é acossado Inglaterra (2014), de Martin
pela vida que leva: a falta de perspectivas no em- Amis, e Submissão (2015), de
prego, a rotina massacrante, o trânsito violento e Michel Houellebecq.
um casamento modorrento, que nem a presença Edson Kumasaka
O livro de Amis é uma sá-
de um filho (que o personagem considera meio tira à mídia e ao modelo social
mongoloide) consegue causar entusiasmo. A pis- da Inglaterra, que gera criaturas
cina é uma forma de redenção. “O menino é es- como Lionel Asbo, uma espécie
tranho. Quem sabe com uma piscina em casa, a de hooligan que vive de negócios
gente não atraia algum amigo para ele, pela pri- escusos até tirar a sorte grande
meira vez”, pensa o protagonista. na loteria e virar o país de per-
A construção irá mudar a vida de todos, mas nas para o ar. Já o romance de
de uma forma negativa. A mãe, viciada em anti- Houellebecq é quase um trata-
depressivos, que retira de graça no posto de saú- do sobre o estado de espírito da
de do bairro, vê sua ansiedade aumentar diante dos França atual, ameaçada pelo is-
problemas que se acumulam em casa por conta da lã radical. Ambos os livros, de
obra. A empregada, que tem uma relação confli- alguma forma, têm ligação com
tante com os patrões, sente-se ainda mais explo- Luxúria, dadas as preocupa-
rada agora que a sujeira da casa aumentou com o ções de seus autores em enten-
barro retirado do quintal. O filho, cada vez mais der os rumos de seus países sob
isolado, aprofunda sua tristeza quando o pai resol- a ótica de temas variados, como
ve se desfazer do cachorro da família, também ve- política e educação.
lho e estropiado por doenças. Seguindo o exercício de li-
O livro trata claramente da classe C brasi- teratura comparada, Submissão,
leira, aquela que na última década comprou ge- no entanto, se aproximaria mais
ladeira, TV de plasma, carro zero quilômetro e de Luxúria por conta do ponto
passou a se locomover de avião. Uma parcela da de vista político, e se afasta pe-
população pouco escolarizada e sem muita quali- la visão mais “classe média” de
ficação profissional, que se beneficiou dos incen- seu narrador, um intelectual da tentou entender a classe média
tivos do governo na economia. Mas as benesses Sorbonne. Já Lionel Asbo tem baixa em uma série de roman-
minguaram e a bolha do new milagre brasileiro como foco praticamente o mes- ces (e com maior brilhantismo
estourou. E é disso que trata Luxúria, um roman- mo grupo social do livro de Bo- em Eles eram muitos cavalos,
ce de ideias como há tempos não se via na litera- nassi: a classe trabalhadora. Em mezzo conto, mezzo romance),
tura brasileira. E as ideias em questão dão conta choque, os personagens. Asbo é Bonassi apresenta uma escrita
de que, muito provavelmente, o Brasil voltará a um homem que optou pela via mais rebelde, digamos, em que
regredir depois de um delírio coletivo, econômico da delinquência, deu um sono- a indignação se sobrepõe aos
e social. Afinal, o que vai acontecer, agora que o ro foda-se para as instituições e caprichos estilísticos. O autor
emprego sumiu, com a classe que emergiu a partir convenções sociais. Já o homem mantém uma verve quase punk
do crédito fácil — sem que tenha de fato emergi- de que trata o relato de Luxúria em seu discurso, que tem na ce-
do socialmente, por meio da educação? acreditou no sistema e por ele fez na final do livro seu apogeu.
Mais do que a história de um desenganado, tudo que pôde, mesmo diante de Fernando Bonassi sur-
Luxúria apresenta um problema imenso do qual suas imensas limitações. giu nos anos 1990 como uma
nem os analistas econômicos e sociais do país es- No plano estilístico, Lu- grande promessa da literatura
tão muito preocupados. Até mesmo o jornalismo xúria ganha força pela lingua- brasileira. O bom arranque, no
ainda não se deu conta da pauta. Não fosse a litera- gem. Contado em capítulos entanto, perdeu força ao longo
tura um tema sem importância para o brasileiro, o curtos, é repleto de boas arti- da década seguinte, com o escri-
romance poderia até suscitar debates fora do meio manhas narrativas, como a in- tor se dedicando paralelamen-
literário. Mas o provável é que não ultrapasse a re- tertextualidade dos “diálogos te aos roteiros de TV e cinema
doma da qual poucas vezes a nossa ficção saiu. surdos” que os personagens — ainda que nunca tenha pa-
mantêm entre si. Mas certamen- rado de publicar. Luxúria não
Ensaio e ficção te é a violência da prosa de Bo- só surge como o melhor livro
O maior perigo de um livro como nassi o atrativo mais imediato do autor, mas também é a con-
Luxúria é o de se tornar uma espécie ao leitor. Comparado ao escri- firmação de que uma promessa
de ensaio e, em um futuro mais dis- tor Luiz Ruffato, que também realmente virou realidade.
16 | | fevereiro de 2016

simetrias dissonantes | Nelson de Oliveira

Precisamos falar sobre


o Kevin valor estético
O valor estético é algo impossí- Ao perceber que a beleza esteja no objeto, que seja uma pro- número dois, três e quatro.
vel de ser provado. o valor estético é priedade objetiva sua. Segundo o pensador De que maneira o pensamen-
Pausa pra respirar. de Königsberg, uma pintura ou um poema to de grupo, o efeito adesão e o viés
algo impossível
Como uma oração tão simples po- não são belos em si. O sentimento estéti- de autoconveniência moldam nos-
de ser tão perturbadora? de ser provado, co ocorre em nós, em nossa consciência, ao sa apreciação artística e literária?
Comecemos novamente: Kant logo viu contemplarmos a pintura ou apreciarmos o Um exemplo: se você é um jovem
O valor estético é algo impossí- que essa premissa poema. Nessa circunstância, “Esse objeto me ambicioso, que deseja uma carreira
vel de ser provado. destruía qualquer agrada” é a expressão mais sensata. ] bem-sucedida no jornalismo cultu-
Que absurdo! Quem soltou essa ral, no mundo acadêmico ou edito-
possibilidade
barbaridade? O valor estético é estatístico. rial, você logo notará que respeitar
Dizem que o primeiro a afirmar de uma crítica Voltemos à terrível afirmação acima e disseminar o consenso costuma
isso, de maneira bem mais complexa, foi científica da arte — sobre a legitimação do bom e do ruim trazer mais satisfação que dissabor.
Immanuel Kant, em sua Crítica da fa- e da literatura. por meio do debate exaustivo —, fazendo a
culdade do juízo. Isso o aborreceu. incômoda pergunta: apreciamos tanto certa O prazer estético é um sen-
Kant queria muito que a estéti- obra de determinado artista ou escritor (por timento desinteressado, puro.
ca fosse uma ciência: a ciência do belo. exemplo: Mona Lisa ou Ulysses, Abaporu Verdade. Mas as instâncias
Queria que a mesma pintura e o mes- ou Dom Casmurro) porque essa obra pro- que legitimam e propagam o tra-
mo poema fossem admirados ou des- voca em nós um verdadeiro sentimento de balho artístico e literário — aca-
prezados por razões objetivas, lógicas, beleza ou porque fomos convencidos pelo demia, universidade, imprensa,
universais. Assim, seria possível provar consenso a apreciar essa obra? crítica, mercado editorial, premia-
racionalmente que determinada pintura A resposta é fácil: apreciamos a Mona ções, etc. —, por outro lado, têm
é uma obra-prima enquanto outra não Lisa ou Ulysses, o Abaporu ou Dom Cas- muitos interesses corporativos e
é, que determinado poema é uma obra murro porque fomos convencidos pelo comerciais. Afinal a arte e a litera-
-prima enquanto outro não é. consenso, e não há vergonha alguma nis- tura também são atividades sociais.
Ao perceber que o valor estético é so, afinal a apreciação da arte e da literatura O prazer estético é um senti-
algo impossível de ser provado, Kant logo não ocorre espontaneamente, ela exige edu- mento desinteressado, puro, mas a
viu que essa premissa destruía qualquer cação (críticos e professores, palestras e au- arte e a literatura não são ativida-
possibilidade de uma crítica científica da las, artigos e livros). des desinteressadas.
arte e da literatura. Isso o aborreceu. O problema é o cinismo e o oportu- São atividades impuras,
Ele até tentou salvar as aparências, nismo tão nossos, tão humanos, cuidadosa- comprometidas, como qualquer
afirmando que o juízo estético busca a mente disfarçados de pureza e integridade. outra numa economia de merca-
universalidade por meio do convenci- O consenso sobre o bom e o ruim na arte e do. Sua produção e seu consumo
mento, da persuasão. Ou seja, mesmo na literatura nasce do debate, mas frequen- estão sujeitos às mesmas regras
sendo subjetivo, o gosto se discute. Pra temente os debatedores não são espíritos do hegemônico sistema capitalis-
determinar se tal obra é boa ou ruim, as desinteressados. ta. Pierre Bourdieu escreveu mui-
pessoas devem se reunir e debater exaus- Como na retórica da política e na da to sobre essa dinâmica altamente
tivamente. Exatamente como na política religião, também na retórica da estética o competitiva, ao tratar do campo
e na religião. Dessa conclusão acaba de pensamento de grupo, o efeito adesão e o viés de batalha artístico e literário.
surgir uma oração mais simples ainda: da autoconveniência são os vícios mais co- O problema é que as instân-
O valor estético é estatístico. muns. Relembremos as principais tendên- cias que legitimam e propagam
Logo, são boas as obras que a cias de nossa mente durante um debate: o trabalho artístico e literário —
maioria disser que são boas, são ruins as 1. Viés de confirmação: tendemos a dar academia, universidade, imprensa,
obras que a maioria disser que são ruins. ouvidos somente aos argumentos que apoiam crítica, mercado editorial, premia-
Aí está a universalidade do juízo estéti- nossa crença, por mais absurdos que sejam. ções, etc. — escamoteiam essa ver-
co: no gosto da maioria, na tendência ao 2. Pensamento de grupo: por medo de dade inconveniente.
consenso, à unanimidade. sofrer uma represália, tendemos a trocar nos- Essas instâncias levam o
Vejam o absurdo da situação. Para sa crença pela crença de todos ao nosso redor. senso comum e a opinião públi-
a pergunta “Por que A divina comédia 3. Efeito adesão: tendemos a acredi- ca a acreditar que a beleza está
é uma obra-prima?” a resposta mais ho- tar em algo, sem pestanejar, apenas porque no objeto, que é uma proprieda-
nesta é “Porque a maioria afirma que é”. muitas outras pessoas também acreditam. de objetiva sua, como acredita-
Mas é óbvio que nenhum teórico 4. Viés de autoconveniência: pra não vam Platão, Aristóteles, Tomás de
da literatura escreveu ou escreverá isso. perder um benefício (amizade, emprego, Aquino e outros.
Cadê a elegância? Cadê a perspicácia? prestígio), tendemos a aceitar a crença do Essas instâncias levam o sen-
Para prender a atenção da audiência, pra nosso grupo social, profissional, etc. so comum e a opinião pública a
convencer e persuadir, a retórica do tex- 5. Cascata de disponibilidade: quanto acreditar que tudo depende do
to crítico exige malabarismo, prestidigi- mais uma crença é repetida pela opinião públi- modo correto de avaliar a arte e a li-
tação, metáforas e metonímias. ca, mais tendemos a aceitá-la como verdadeira. teratura: se todos nós julgássemos
Os teóricos da literatura não pre- 6. Simplificação do problema: dian- corretamente, todos nós acharía-
cisariam tanto desses recursos estilísti- te de qualquer questão polêmica, tendemos mos belos ou toscos as mesmas
cos se pudessem lançar mão do método a tomar partido rapidamente, sem analisar obras de arte e os mesmos livros.
científico… Mas o professor Kant já todos os argumentos. O valor estético é algo im-
avisou em bom alemão: não podem, 7. Problema de calibração: tendemos possível de ser provado.
não podem mesmo, o juízo estético, o a acreditar que somos mais sensatos e inteli- O valor estético é estatístico.
sentimento de beleza, esse é subjetivo, gentes que a maioria. Mas no ensino médio, na
individual, ele não tem nada a ver com 8. Ilusão de controle: tendemos a imprensa, em toda a parte os pro-
o raciocínio lógico. acreditar que podemos controlar o resulta- fessores, os jornalistas e os demais
O juízo “Esse objeto é belo” expri- do de eventos aleatórios (essa é a base das formadores de opinião conti-
me um sentimento de prazer: “Esse obje- superstições). nuam escamoteando a subjeti-
to me agrada”. Por isso sua demonstração Esses vieses cognitivos, tão comuns vidade do gosto, continuam se
jamais se apoiará em provas objetivas. nas discussões políticas e nas religiosas, in- passando por donos da verdade
[ Mas, atenção: quando dizemos felizmente também dominam as discussões estética. Seu salário e seu prestígio
“Esse objeto é belo” isso não significa que sobre arte e literatura. Principalmente os de dependem disso.
fevereiro de 2016 | | 17

inquérito
paulo venturelli

P
kraw penas

aulo Venturelli nasceu em • Qual foi o canto mais inusitado de onde


Brusque (SC), em 1950. tirou inspiração?
Desde 1974, vive em Curitiba Sem essa de inspiração. Arte é trabalho du-
(PR). É doutor em literatura ro. Qualquer coisa ou alguém pode detonar
brasileira pela USP. Aposentou- o processo criativo.
se recentemente do cargo de professor de
literatura da UFPR. Como estudioso, dedica- • Quando a inspiração não vem...
se principalmente ao romance brasileiro, Como não acredito neste mito romântico...
homoerotismo e estudo de gênero. Estreou É sentar à mesa, ler uns poemas que logo en-
na literatura em 1976 com os poemas contro um fio da meada e lá vou eu experi-
de Asilo de surdos. Produz literatura adulta mentar mares nunca navegados.
e infantojuvenil. É autor, entre outros,
de Admirável ovo novo, Composição para • Qual escritor — vivo ou morto — gos-
meus amigos, Fantasmas de caligem e A taria de convidar para um café?
morte. Em 2013, ficou em segundo lugar Sartre, para discutir seus romances existen-
no Prêmio Jabuti, categoria infantil, com cialistas que têm tudo a ver com o mundo
Visita à baleia. Acaba de lançar o romance de hoje.
Madrugada de farpas, pela Arte & Letra.
• O que é um bom leitor?
Aquele que descobre que a parafernália tec-
nológica não lhe dá substância existencial,
não cobre o vazio. Larga tudo isso e encon-
tra nos livros o que nem sabia que procurava.

• Quando se deu conta de que queria ser • O que te dá medo?


escritor? Esta juventude hedonista, alienada, individua-
Na adolescência. Quando descobri pela lei- lista, intoxicada pelo imediatismo, ludibriada
tura que a literatura me tirava da mesqui- pelos meios de comunicação e que não sabe o
nhez da vida, dos cerceamentos estéreis do que está perdendo ao desprezar os livros.
cotidiano.
• O que te faz feliz?
• Quais são suas manias e obsessões lite- Nada me faz feliz. A felicidade é outro mito.

Contra a
rárias? A condição humana agride o humano. Mas
Só escrevo com roupas velhas. Não produzo quando estou lendo e escrevendo me sinto
sem ler uns poemas antes. Não consigo ficar muito bem, desfruto de um prazer erótico
longe dos livros. Se ficar, a sensação é de que no amplo sentido que me leva a um paraíso
vou enlouquecer. muito particular.

mesquinhez
• Que leitura é imprescindível no seu dia • Qual dúvida ou certe-
a dia? za guia seu trabalho?
De manhã, poemas. No início da tarde, en- Se eu tivesse certeza, não
saios sobre diferentes temas. Depois, ficção e seria escritor. Uma ca-
ficção, o que renova as engrenagens da mente. ravana de dúvidas guia
meu trabalho. Muitas
• Se pudesse recomendar um livro à pre- perguntas sem resposta
sidente Dilma, qual seria? guiam meu mundo. Es-

da vida
Um romance gay bem suculento. Para ela te é o motor da escrita.
não se acovardar mais diante dos evangéli-
cos e recuperar o projeto dos kits gays nas • Qual a sua maior preocupação ao escrever?
escolas. É preciso lutar desde cedo contra os Que o meu texto atinja o leitor em algum
preconceitos, o machismo, a intolerância. ponto e isto o leve a ler sempre, em especial
as obras máximas da literatura.
• Quais são as circunstâncias ideais para
escrever? • A literatura tem alguma obrigação?
Silêncio. Estar atormentado por um demô- Tem. Ser tão cativante que transforme o lei-
nio e percebendo um buraco profundo lá tor e este, por meio da leitura, descubra que
dentro e que preciso preencher. • O que mais lhe incomoda no meio literário? era um fantoche na mão da mediocridade
O narcisismo. A presunção. A mania de achar que des- dos sistemas repressivos que tornam a vida
• Quais são as circunstâncias ideais de lei- cobriu a roda. A fome por holofotes. uma sopa de isopor.
tura?
Silêncio. E nenhum compromisso que me • Um autor em quem se deveria prestar mais • Qual o limite da ficção?
afaste dos livros. atenção. Não há limite para a imaginação. Um pro-
Assionara Souza. Sua escrita é criativa, irônica, debo- fessor meu do ginásio dizia que depois que
• O que considera um dia de trabalho chada e está longe da mesmice que contamina nossa os gregos escreveram nada há mais para es-
produtivo? literatura. crever. Depois dos gregos não veio mais na-
Quando escrevo um texto que contenha da? É só dar uma espiada por aí.
bons elementos a serem trabalhados até • Um livro imprescindível e um descartável.
chegar a um nível razoável que possa levar Dom Casmurro. Descartável é tudo o que a indústria • Se um ET aparecesse na sua frente e pe-
algo ao leitor. cultural vem produzindo, em especial essas séries inter- disse “leve-me ao seu líder”, a quem você
mináveis para jovens. o levaria?
• O que lhe dá mais prazer no processo Não tenho líderes. Mas se este ET tivesse
de escrita? • Que defeito é capaz de destruir ou comprometer uma máquina de dar sumiço, o levaria até o
A nebulosa que tenho pela frente. Os per- um livro? cabuloso Eduardo Cunha e a todos os “an-
sonagens criando vida própria e indo para O hermetismo bizantino de quem acha que está pro- jos” capturados pela Lava-Jato...
direções inesperadas. duzindo um texto experimental, sem dar entrada para
o leitor. • O que você espera da eternidade?
• Qual o maior inimigo de um escritor? Não acredito na eternidade. Ser eterno é es-
Pensar em fazer sucesso, em se tornar um • Que assunto nunca entraria em sua literatura? tar enfronhado com as lutas do dia a dia,
pop-star como está acontecendo com a Tudo que é humano me interessa. Assim, tudo pode comendo o pão que o diabo amassou e só
maioria neste país sem leitores. ser matéria sobre a qual me debruçar para escrever. por isto produzindo e produzindo.
18 | | fevereiro de 2016

serem o componente tátil, após o

As ruas de
visual e o auditivo, em dimensão
ainda mais íntima e acolhedo-
ra, pois tanto o visual quanto o
auditivo poderiam ocorrer mes-
mo com os corpos afastados. Em
“dois carinhos se procuram”, pe-
la primeira vez o outro responde,

Drummond
doando-se em reciprocidade .
A convocação da alteri-
dade é alimentada pelo desejo
de congraçá-la numa unidade
maior. É o que se lê na estrofe 4:

Minha vida, nossas vidas


formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
Como a geografia urbana do Rio de Janeiro permeia e tornei outras mais belas.

a obra de Carlos Drummond de Andrade A primeira pessoa do


singular (“minha”) logo cede
o passo à primeira do plural
Antonio Carlos Secchin | Rio de Janeiro - RJ (“nossas”), e ambas se soldam
na imagem unificada do dia-

O
mante: que agrega os atributos
da solidez (o mais duro mine-
quinto poema do Atravessemos a rua universal da Canção A seu modo, a Canção ral), do valor (pedra preciosa),
primeiro livro de amiga, mas, antes, contextualizemos o texto. amiga não deixa de ser um texto da limpidez, da transparência.
Carlos Drum- Depois da poesia bélica, engajada de engajado. Costumamos associar A seguir, uma talvez involuntá-
mond de An- A rosa do povo, e com o término da Se- o engajamento apenas à pala- ria, mas muito bela, descrição
drade, Alguma gunda Guerra Mundial, nasceu certa espe- vra em combate; aqui, o discur- do ofício de um poeta: “Apren-
poesia (1930), se chama Cons- rança na paz universal, com a derrocada do so também se engaja, mas num di novas palavras/ e tornei ou-
trução. Nele lemos: “O sorve- nazifascismo. Esperança que logo se frus- projeto de desarmamento e paz. tras mais belas”. Ressalta-se que
teiro corta a rua”. No oitavo, traria com o advento da chamada Guerra O presente do indicativo é a palavra vem sempre de um
Lanterna mágica, o poeta atra- Fria. Muitos falam da passagem brusca do absoluto em quase todo o poe- outro: o poeta é um perpétuo
vessa várias cidades; a sétima é Drummond combativo de A rosa do povo, ma, exprimindo uma ação que aprendiz, não cria do nada; de-
— pela primeira vez — o Rio de de 1945, para o Drummond “alienado” de não cessa: eu preparo agora e volve à comunidade as palavras
Janeiro: “Meu coração vai mole- Claro enigma, 1951, pleno de especula- preparo sempre. O presente é a que dela recebeu — mas as res-
mente dentro do táxi” — por- ções genealógicas e metafísicas, caracteriza- expressão temporal daquilo que titui banhadas de beleza, como
tanto, em situação de travessia do pelo cultivo das formas fixas e dos versos não quer se extinguir. um carvão subitamente trans-
urbana. O poema seguinte é A metricamente regulares. Na primeira estrofe o poe- formado em diamante.
rua diferente, com o registro das Mas há um elo perdido, uma transi- ta opta por elaborar uma canção, Na estrofe derradeira tor-
rápidas transformações da paisa- ção entre as fases. São os Novos poemas. uma vez que a linguagem da mú- na-se mais explícito o apelo
gem: “Na minha rua estão cor- Apenas 12, alguns deles obras-primas. sica independe de fronteiras para ecumênico:
tando árvores/ botando trilhos/ Certos textos prolongam o clima enga- ser apreciada. Ele sai do particu-
construindo casas”. Encontra- jado do livro anterior: A Federico García lar (“minha mãe”) para logo atin- Eu preparo uma canção
mos ainda nesse livro de estreia Lorca, Notícias de Espanha. Há um sone- gir o coletivo de “todas as mães” que faça acordar os homens
Coração numeroso — “Foi no to, Jardim, em decassílabos perfeitos, sem — não por caso, com o prono- e adormecer as crianças.
Rio./ Eu passava na Avenida rima. O último poema se chama O enig- me indefinido, a fim de que ne-
quase meia-noite” — e Moça e ma, em prenúncio ao Claro enigma. A nhuma fique excluída. Em “fale Homens, todos, para
soldado — “Meus olhos espiam/ Canção amiga é um texto-ponte na osci- como dois olhos” elabora uma além das mães, dos amigos, dos
a rua que passa”: relações inci- lação entre formas livres de 1945 e dese- sinestesia auditivo-visual: assim amantes. Há uma nítida oposi-
dentais com o espaço urbano. jo de regularidade, métrica e estrófica de como o som, a imagem é uni- ção complementar entre “acor-
Será na outra ponta de 1951. Compõe-se de quatro quadras, o versal. Um paquistanês e um dar os homens” — inseri-los
sua obra, já próxima ao fim, que remete à regularidade, e de um terce- boliviano, mesmo que não se na possibilidade de um mundo
que Drummond vai declarar o to, que a desfaz. Não apresenta rima. Os entendam linguisticamente, po- real e solidário, para o qual estão
amor mais explícito à cidade do versos iniciais de cada estrofe contabili- dem compartilhar sensações pa- de olhos fechados — e “ador-
Rio de Janeiro, e tornar esse es- zam sete sílabas — simetria; os seguintes recidas diante de um quadro ou mecer as crianças” — permitir
paço geográfico-social não refe- transitam entre sete e nove. de uma canção. que elas possam continuar a so-
rência de ocasião, mas o núcleo Na segunda estrofe, mes- nhar. Nesse quadro o verso 2 in-
do texto. Refiro-me aos poemas Canção amiga mo movimento centrífugo: o jeta um suplemento de sentido:
Retrato de uma cidade e Elegia poeta parte do específico (“uma “acordar”, além de “despertar”,
carioca, do livro (de 1977) Dis- Eu preparo uma canção rua”) que desemboca no genéri- significa “colocar em acordo”,
curso de primavera. em que minha mãe se reconheça, co (“muitos países”). Novamen- “harmonizar”, com o radical
Mas nem sempre a cidade todas as mães se reconheçam, te comparecem o visual (“vejo”) “cor”, de “coração” , e de que te-
é solar e festiva. Existe um Rio e que fale como dois olhos. e o auditivo (“saúdo”), mas sob o mos exemplo em “acorde” musi-
de solidão, em A bruxa (de José, impulso da generosidade ato ge- cal, ou no adjetivo “acorde”.
1942): “Nesta cidade do Rio,/ de Caminho por uma rua neroso, no gesto que se faz sem Por fim, uma feliz coin-
dois milhões de habitantes,/ es- que passa em muitos países. cobrança de retribuição, como cidência: Milton Nascimento
tou sozinho no quarto,/ estou so- Se não me veem, eu vejo pura dádiva: “Se não me veem, musicou o poema e em 1978
zinho na América”, e um Rio de e saúdo velhos amigos. eu vejo”. O eu também se des- gravou a Canção amiga num
desconforto, em A flor e a náusea loca da esfera consanguínea (a vinil cujo título é Clube da es-
(de A rosa do povo, 1945): “Vo- Eu distribuo um segredo mãe, a família) para o espaço so- quina nº 2. Clube remete a as-
mitar esse tédio sobre a cidade”. como quem ama ou sorri. cial da amizade. E “amiga”, ad- sociação, consórcio e “esquina”
Gostaria, porém, de pro- No jeito mais natural jetivo no título, se concretiza no traduz o encontro de duas vias;
por a leitura de duas ruas não no- dois carinhos se procuram. substantivo “amigos”. no jeito mais natural, duas ruas
meadas, presentes em dois textos A ideia de doação sem de- se procuraram, ambas oriundas
de forte carga simbólica: um de- Minha vida, nossas vidas manda de retorno abre a estro- de Minas.
les, muito conhecido, é a Canção formam um só diamante. fe 3: “Eu distribuo um segredo” Passemos, agora, ao espa-
amiga, de Novos poemas, 1948. Aprendi novas palavras — no compasso reiterado desse ço opressivo de Paredão. O poe-
Outro é o bem menos famo- e tornei outras mais belas. passar do mundo íntimo (o se- ma, conforme dissemos, integra
so Paredão, de Menino antigo gredo) ao público (segredo dis- o livro Menino antigo, de 1973,
(1973). Referem-se a ruas, que Eu preparo uma canção tribuído), na esperança de um memórias em verso de Drum-
apontam, todavia, para sentidos que faça acordar os homens espaço onde essas fronteiras se mond, que se ocupa, maciça-
e sentimentos bem distintos. e adormecer as crianças. diluíssem. Os “dois carinhos” in- mente, dos tempos de infância.
fevereiro de 2016 | | 19

ilustração: Tereza Yamashita

Paredão -paredão — que a seguir se A seu modo, a Canção amiga lo paredão: quando ela principia, o
desdobra, ou se demonstra em não deixa de ser um texto paredão a interrompe no fim (verso
Uma cidade toda paredão. camadas: paredão das casas — 1), e, quando ela termina, (verso 2),
engajado. Costumamos associar
Paredão em volta das casas. espaço fora das pessoas; almas o paredão já a bloqueava no início.
Em volta, paredão, das almas. — dentro; precipícios — fo- o engajamento apenas à palavra Tal informação não é veiculada pelo
O paredão dos precipícios. ra; familial — dentro. E ainda: em combate; aqui, o discurso conteúdo, mas pela forma do texto;
O paredão familial. paredão das casas — concreto; também se engaja, mas num para captá-la, não basta ler o poe-
das almas, abstrato; dos pre- projeto de desarmamento e paz. ma, é preciso também vê-lo em sua
Ruas feitas de paredão. cipícios — concreto; familial espessa materialidade. Entre as pon-
O paredão é a própria rua, — abstrato. Para isolar ainda tas das ruas, a presença intransponí-
onde passar ou não passar mais os homens, todos estão vel do paredão. E a primeira rima do
é a mesma forma de prisão. enclausurados não só seman- poema (paredão/prisão), reforça, pe-
ticamente pelos paredões, mas la identidade fônica, a identidade se-
Paredão de umidade e sombra, graficamente pela presença de mântica ou sinonímica entre ambos
sem uma fresta para a vida. um ponto no fim de cada linha. os vocábulos.
A canivete perfurá-lo, A sensação de empareda- Na estrofe final,
a unha, a dente, a bofetão? mento é intensificada não por
Se do outro lado existe apenas algo presente na estrofe, mas Paredão de umidade e sombra,
outro, mais outro, paredão? pela ausência de uma categoria: sem uma fresta para a vida.
o verbo, que implicaria ação; A canivete perfurá-lo,
O título se estampa com o sem ele, reina a imobilidade. a unha, a dente, a bofetão?
sufixo aumentativo “(“ão”). Se ca- Dez dos 15 versos do poema Se do outro lado existe apenas
sarão é uma casa ampliada, pare- não contêm nenhum verbo. Em outro, mais outro, paredão?
dão não é exatamente uma parede duas das três ocasiões em que
com mania de grandeza: além do surgem flexionados, o sujeito, percebe-se que a palavra “pa-
tamanho, releva o fato de ser algo ironicamente, não é o homem, redão” bloqueia os pontos extremos
deslocado do interior da habitação mas o próprio paredão (v.7; vs. do primeiro e do último versos, pa-
para uma área limítrofe do exter- 14-15). Nas demais ocorrên- ra que nada ou ninguém dele escape.
no. Atua como barreira, inviabili- cias, os verbos que poderiam O miolo da estrofe relata as inúteis
za e invisibiliza o acesso ao dentro, indicar movimento, resistên- tentativas de libertação.
na contramão da transparência da cia — passar, perfurar — vêm Descrito, no verso 1, como es-
Canção amiga. “congelados” no infinitivo im- paço de “umidade e sombra”, o pa-
Quanto à forma, porém, algo pessoal, isto é, sinalizam ações redão prolonga a ideia de prisão,
da Canção ecoa no Paredão: a con- potenciais, mas sem que nin- advinda da estrofe anterior. Tal espa-
vivência entre regularidade e des- guém a esteja deflagrando. ço de sombra opressora é o oposto do
vio. Predominam versos brancos, Portanto, a isomorfia aí se es- brilho e da luz diamantina da Can-
mas há alguns rimados. As estro- tabelece: o conteúdo opressivo ção amiga. Os versos 3 e 4 — “a ca-
fes têm número próximo, mas não da paralisia é manifesto na for- nivete perfurá-lo/ a unha, a dente, a
idêntico, de versos (5-4-6). Ca- ma do texto pela quase ausên- bofetão” — revelam a inutilidade do
torze versos são octossílabos, mas cia da categoria gramatical (o esforço humano, pela desproporção
existe um decassílabo, a impedir a verbo) que remete à ação. Ou- entre o objetivo — a derrubada — e
simetria perfeita — exatamente o tro exemplo de isomorfia é a os parcos recursos para empreendê-la.
que abre o poema. utilização gráfica do signo “pa- “Agredido”, o paredão responde com
Nesta leitura, tentarei pôr em redão”. Ele vai murando a pró- sua infinita capacidade de autopro-
evidência o processo da isomorfia, pria estrofe, cercando-a no fim pagar-se. Nos versos finais, surge, no
isto é, a correspondência entre for- (verso 1), no começo (verso 2) e “outro lado”, uma imagem multipli-
ma e sentido: a materialidade do no meio (verso 3). cada em abismo, em que paredões
poema em diálogo com aquilo que o Algo similar ocorre na es- emparedam outros paredões, inviabi-
conteúdo declara. Retomemos a pri- trofe 2: lizando, desse modo, qualquer “fresta
meira estrofe: para a vida” — vida que, no poema
Ruas feitas de paredão. de 1948, pulsava numa rua livre e
Uma cidade toda paredão. O paredão é a própria rua, universal , capaz de simultaneamente
Paredão em volta das casas. onde passar ou não passar acolher o trabalho dos homens e o so-
Em volta, paredão, das almas. é a mesma forma de prisão. nho das crianças.
O paredão dos precipícios. Por isso, neste poema de im-
O paredão familial. As ruas ocupam o começo passe, no meio do caminho tinha
do verso 1 e o epílogo do verso um paredão. E no outro, poema de
O verso 1 apresenta uma 2, mas suas duas extremidades esperança, no meio do caminho ti-
espécie de síntese — a cidade encontram-se bloqueadas pe- nha uma canção.
20 | | fevereiro de 2016

O espreitador amoral
Em Sermões, Nuno Ramos radicaliza ainda mais a escrita e o alargamento de gêneros

Edson Cruz | São Paulo - SP

A
indefinição e o alar- O título do livro remete ao gênero textual tas brasileiros Carlito Azevedo e Manuel Bandeira
gamento de gêneros “sermão”, o qual encontramos no âmbito do dis- até Drummond, passando por filósofos, artistas
parece ser a tônica curso argumentativo. Não dá pra pensar em “ser- plásticos, filmes e tantos outros escritores: a des-
do trabalho de Nuno mão” sem lembrar do persuasivo padre Antônio crição dos filmes Stalker, de Andrei Tarkóvski, e A
Ramos com as pala- Vieira e seus sermões polêmicos e críticos à colônia palavra, de Carl Dreyer; a Monadologia, de Leib-
vras. É poesia, prosa poética ou e colonos, a seus adversários católicos e protestan- niz; o eterno retorno de Nietzsche; a ode Os que
poema em prosa? tes. Tudo escrito e dito retoricamente, com um en- partiram, de Hölderlin, o poema Diante da casa,
Nuno gosta das palavras. cadeamento lógico de ideias e conceitos, mas com de Kaváfis; a ode número 4 das Odes de Duíno,
Esgarça-as, fratura-as, cospe e Sermões o autor visceralmente envolvido como um prega- de Rilke; O guardador de rebanhos, de Alberto
Nuno Ramos
esporra nelas como um artis- dor que oferece seu corpo, sua voz, seu pensamento Caeiro, e Sexus, de Henry Miller.
Iluminuras
ta que faz questão de afirmar e sua vida à assembléia fascinada. Nuno chega a explicitar no final do livro o fio
208 págs.
não estar nem aí para as catego- O livro de Nuno retoma estrategicamente esse narrativo de cada uma das partes de Sermão; uma
rias esquemáticas da literatura arquétipo do sermão, nem tanto como gênero, mas pequena concessão ao leitor, mas que sugere certa
ou dos jogos do sistema literá- como uma readequação, rememoração e reorgani- insegurança com a fatura e a recepção do livro.
rio. Se o resultado disso é bom zação da própria vida de seu narrador na tribuna da No aspecto formal de sua “poesia” é necessário
ou não, há controvérsias, mas a obra: o velho professor de filosofia aposentado, qua- ressaltar que “os versos” oferecidos ao leitor por Nu-
meu ver areja a cena e acaba fa- se obsceno e, sem dúvida, fora de cena, utópico, fo- no Ramos são recortados como pretensos enjambe-
zendo bem a todos. ra de todos os lugares, mas habitando um corpo que ments que revelam uma execução um tanto aleatória.
Foi como um intruso no ainda pulsa e vibra em rememoração. Ou seja, não se justificam enquanto potencialização
campo da poesia que ele foi ob- do sentido referido no poema, a não ser pra demar-
servado (e não lido) por alguns de Não sei o nome da cidade em que piso car uma certa “doideira” ou loucura da elocução.
nós, poetas, ou pensadores do fa- nem da árvore que me acolhe
zer poético. Até a repercussão de sob as folhas, nem da rua Girass
alguns de seus livros e, posterior- que aperta meus passos contra o muro. óis sob as pedras.
mente, dos prêmios e reconheci- o autor Não confio em placas, mapas, GPS. Como foi que levantaram
mento que abocanhou, seu nome Nuno Ramos Memória não me serve todo esse peso? Jardim
circulava com mais desenvoltura só a ponta soterrado na ladeira
no circuito das artes plásticas. Nasceu em São Paulo (SP), comida por tabaco buscando luz, infiltrando
Nuno Ramos é pintor, de- em 1960. Formado em filosofia e dente do meu dedo. p
senhista, escultor, cineasta, ce- pela Universidade de São Paulo, Com ela acho a vulva, uva étalas amarelas
nógrafo, compositor, formado é pintor, desenhista, escultor, pisada. Com ela toco a cãibra no desvão dos paralelos azuis.
em filosofia e, permeando a tu- escritor, cineasta, cenógrafo e dilatada de meu pau. Conseguirão
do, escritor. A labuta com as pa- compositor. Expõe regularmente içar toda a cidade?
lavras já se podia notar, em seu no Brasil e no exterior. Participou O livro se divide em sete partes — Tenda Terão força muscular para isso?
trabalho como artista plástico, da Bienal de Veneza de 1995 e (Parêntese. Moenda. Minha mãe nascendo.), Prédio,
como um dos componentes de das Bienais Internacionais de São Sermões, Rosário, Há. Alguém e Laje — e busca re- Apesar do mencionado acima, a fagulha poé-
seu processo criativo. Paulo de 1985, 1989, 1994 e construir com um discurso errático, enumerativo, tica está lá e algumas imagens pinceladas valem to-
Comecei a lê-lo a partir de 2010. Como escritor, publicou, repleto de justaposições com paisagens mnemôni- do o livro.
seu livro baudelairiano de con- entre outros, Cujo (1993), O cas, aquela trajetória do eu que coincide com uma
tos O mau vidraceiro, de 2010, pão do corvo (2001), O mau parte da filosofia que tem por objeto o estudo das Como foi que levantaram
e fui atrás do anterior, Ó, 2008 vidraceiro (2010), Ó (2009, propriedades mais gerais do ser, apartada da infini- todo esse peso?
(contos, prêmio Portugal Tele- prêmio Portugal Telecom Melhor dade de determinações que, ao qualificá-lo parti- [... ]
com de Melhor Livro do Ano Livro do Ano) e Junco (2011, cularmente, ocultam sua natureza plena e integral. Conseguirão
em 2009), para saber que ele ha- prêmio Portugal Telecom). içar toda a cidade?
via começado com um livro de Pergunto
poesia, Cujo, 1993. Depois, li sem cinismo No mais, Nuno busca conseguir captar com
Junco com prazer — livro com como vai o seu sua linguagem o fluxo de consciência de seu nar-
intuições poéticas e imagens que Curso? Aprendeu AL rador, ou talvez seja melhor dizer, de seus vários
saltam o tempo todo através de emão, H narradores. Suas várias identidades e experiências
uma linguagem esgarçada, sem egel? Sim? Não? Difícil é articuladas no tecido de sua narrativa.
muito apuro formal, mas mes- Kant. E estou feliz A natureza de seu texto, é necessário rea-
mo assim com muitas revelações. não conseguimos caracterizar falando do que não sei firmar, nos apresenta como resultante um des-
O livro ganhou o prêmio Portu- como poesia e não ousamos cha- nem me interessa. locamento inesperado em relação aos modelos
gal Telecom de Melhor Livro de mar de prosa. A noite é minha habituais. Uma prosa poética inacabada, com um
Poesia de 2011. Sua escritura flerta e con- a filosofia é minha matiz aventuroso, recortada em pretensos versos,
Sua escritura, mesmo a ca- duz a fatura do texto a um “esta- e os nomes que me assustaram a vida toda (Leibni que às vezes funcionam, outras não.
talogada como poesia, é essen- do de poesia”, mas fica evidente z, Lacan) formam minha família
cialmente narrativa, com um que ela não consegue prescindir agora, amigos [...]
narrador escorregadio, diferen- de um plano narrativo. Pode até de infância, cães de estimação, estirp Tomaria um chá mágico
temente do que costumamos en- lançar mão de algumas figuras tí- e, etnia que fizesse meu pau crescer
contrar na prosa tradicional. Por picas da poesia, como a alitera- porque me levam até ocupar a elipse côncava
isso, e por seu texto revelar uma ção, a metáfora, a elipse, mas tais a uma foda boa. da cúpula. Roçaria minha glande
poética difusa, estranha, sem o elementos estão subordinados ao na alta pintura
rigor formal que a tradição da ritmo ou à cacofonia alongada A começar pela ilustração da capa, o sexo, o esporrando nas torres
poesia nos exige, mas com cortes do discurso. cio, a loucura e o frenesi da “carne” permeiam todo e badalando os sinos.
nas frases que nos são oferecidas Já que mencionamos dis- o livro, texturas a demarcar a experiência corporal
como versos, fica mais fácil de- curso, deixemos nosso sermão da vida e da morte, do aconchego e do abandono, Por fim, o livro de Nuno Ramos é um enfeixe de
signá-la como prosa poética, ou eloquente de lado e falemos mais do físico e do metafísico. “sermões” a anunciar, como anjos caídos, a inexistência
proesia, essa coisa disforme que diretamente de seu livro mais re- O texto camaleônico de Nuno Ramos reve- de salvação e que a luta do homem para compreender
parece querer abraçar a tudo que cente: Sermões. la em suas tramas inúmeras referências. Dos poe- a existência será eterna. O resto é paisagem.
fevereiro de 2016 | | 21

sob a pele das palavras | Wilberth Salgueiro

Tostão de chuva,
de Mário de Andrade
Quem é Antônio Jerônimo? É o sitiante desabusado” etc.; [f ] as rimas internas cem, ou disfarçam, como práticas mis-
Que mora no Fundão (toantes e consoantes), como “mora / tificatórias e distantes da razão, como
Numa biboca pobre. É pobre. Dantes biboca / pobre”, “seca / batera”, “as- astrologia, adivinhação e qualquer tipo
Inda a coisa ia indo e ele possuía sim / padim”, “matutando / mando”, de religião ou credo. Afirma o filósofo
Um cavalo cardão. “bem. Porém”; [g] as aliterações e as- na tese cinco: “A superstição é conheci-
Mas a seca batera no roçado... sonâncias que contribuem para a mu- mento, porque vê reunidas as cifras da
Vai, Antônio Jerônimo um belo dia sicalidade em andamento: “CAvalo destruição que se encontram dispersas
Só por debique de desabusado CARdão”, “DEBIque DE DESABU- pela superfície social; é louca porque,
Falou assim: “Pois que nosso padim SADO”, “ME MANdem”, “MANdo com todo o seu instinto de morte, se
Pade Ciço que é milagreiro, contam, MUIta”, “VEIo uma chuVA”, “FOI aferra ainda a ilusões: a forma transfigu-
Me mande um tostão de chuva pra mim!” uma FESta”, “VEIo uma troVOada”. rada, transferida para o céu, da socieda-
Pois então nosso “padim” padre Cícero Não há, contudo, um padrão regu- de promete uma resposta que só se pode
Coçou a barba, matutando, e disse: lar, uma simetria, uma régua que im- fornecer em oposição à sociedade real”.
“Pros outros mando muita chuva não, ponha um andamento uniforme ao Noutras palavras, a existência da supers-
Só dois vinténs. Mas pra Antônio Jerônimo poema. Daí, não à toa, estar o poema tição é já um sintoma da precariedade
Vou mandar um tostão”. na seção O ritmo sincopado, em que o do esclarecimento da sociedade, que, ao
No outro dia veio uma chuva boa poeta — ademais, professor de músi- transferir para alguma transcendência a
Que foi uma festa pros nossos homens ca, com vários livros sobre o assunto solução de problemas terrenos, atrai e
E o milho agradeceu bem. Porém — procura trabalhar com quebras e antecipa a catástrofe prevista no próprio
No Fundão veio uma trovoada enorme surpresas. Talvez a maior delas seja, no pedido de solução. É o que ocorre, guar-
Que num átimo virou tudo em lagoa conjunto, exatamente a tensão entre o dadas as proporções e as metáforas, com
E matou o cavalo de Antônio Jerônimo. tom narrativo e essa série de recursos e Antônio Jerônimo. Em frase lapidar,
Matou o cavalo. elementos sonoros e poéticos. Adorno profere na tese seis: “O ocultis-
O sabido interesse de Mário pe- mo é a metafísica dos mentecaptos”.
Este poema de Mário de Andrade se las relações entre literatura e música No caso de nosso sitiante, a ironia
encontra na seção O ritmo sincopado de Clã vem desde o Prefácio interessantíssi- se multiplica, pois ele, de fato, não crê,
do jabuti, de 1927, seu terceiro livro de ver- mo, que abre Pauliceia desvairada como prova o verso que introduz sua in-
sos. Como apontou Luiz Costa Lima, em (1922), com reflexões sobre harmonia teresseira encomenda de um tostão de
Lira e antilira, há aí muitas “composições e melodia, passa pela rapsódia Ma- chuva ao além: “Só por debique de de-
narrativas”, entre as quais este quase conto. cunaíma (1928), cuja estrutura mu- sabusado”. Ou seja, só por zombaria —
Se os protagonistas são o pobre sitiante e o sical baseada na embolada nordestina e egoísmo (“chuva pra mim”) — ele se
santo milagreiro, os demais — o cavalo car- foi estudada com pioneirismo por dirige a uma instância transcendental.
dão e os “nossos homens” — completam a Gilda de Mello e Souza em O tupi e o Entra em cena, com seu próprio debi-
trama, que tem no narrador uma peça-chave. alaúde, e chega à ópera Café (1942), que, a voz do narrador, que lança mão
O espaço e o tempo da estória se desenrolam publicada postumamente, para recor- do mesmo vocábulo (“Pois”) para defi-
num Brasil rural de início de século, como dar apenas três exemplos da maciça nir duas posturas conflitantes: Jerôni-
não deixam dúvidas a data de publicação do presença da música na obra do autor mo diz “Pois que nosso padim/ Pade
livro, mas sobretudo as alusões ao cearense de O baile das quatro artes. Ciço que é milagreiro, contam” usando
Padre Cícero (1844-1934) e às moedas tos- Há, entre os desencontros en- a conjunção “pois” no sentido explica-
tão e vintém, vigentes até 1942. cenados no poema, dois que chamam tivo de “visto que, porque”, como que
Antônio Jerônimo, dono de um cavalo atenção: de imediato, o sentido de pondo em xeque a santidade do san-
cardão (de cor azulada), diante da seca no sí- “tostão” para o sitiante e para o mi- to (“contam”); o “narrador do poema”
tio e da fama de milagreiro do Padre Cícero, lagreiro e, num plano mais amplo, a repete o “pois” mas agora em sentido
“por debique de desabusado” apela ao santo relação do protagonista com a fé. No conclusivo de “logo, nesse caso”: “Pois
para que mande chuva; a chuva chega, ajuda a primeiro caso, testemunhamos que Je- então nosso ‘padim’ padre Cícero”. O
plantação de milho, mas termina por matar o rônimo pede um tostão de chuva, no que parece o mesmo — pedido e aten-
cavalo de Jerônimo. O enredo é transparente, sentido popular (também, desde en- dimento de uma graça — se desmas-
porém pleno de ambivalências e ironias. A co- tão, corrente) de “um pouco de chu- cara no uso ironicamente diverso do
meçar pelo tom narrativo, que se disfarça em va”, um “pingo de chuva”, mas Padre mesmo termo. Mas não só. Se o sitian-
versos hegemonicamente decassilábicos, en- Cícero entende — ou quer entender te duvida da fé (“contam”), entretanto
trecortados por três hexassílabos com rima em — o pedido por equivalência mone- ainda assim vai tentar se locupletar de-
“ão” e um verso final, diferente, isolado, em tária, daí, em vez dos habituais “dois la; o suposto santo não deixa por me-
redondilha menor, de arremate tragicômico. vinténs”, manda mais, isto é, um tos- nos e, feito o morador de Fundão, se
No entanto, a repetição desse verso di- tão, que se traduz em valor de “chu- faz de sonso e, “matutando”, manda
ferente — “Matou o cavalo” —, que faz par- va boa”, de uma “trovoada enorme” mais chuva do que o necessário.
te do verso anterior — “E matou o cavalo de que “virou tudo em lagoa”, tendo co- O contador desse causo faz ques-
Antônio Jerônimo” —, é a culminância de mo consequência a morte do cavalo tão de repetir que a trovoada “matou o
uma série de repetições formais que o poe- cardão do pedinte. Algo como se o ti- cavalo” de Antônio Jerônimo, exem-
ma empreende: [a] a espacialização distinta ro saísse pela culatra, o feitiço virasse plar ad hoc de certa conduta religiosa,
dos quatro versos “menores” (2, 5, 16 e 23); contra o feiticeiro. Nessa perspectiva, que grassa em campos e cidades Bra-
[b] o retorno do título “Tostão de chuva”, in- a relação do pobre sitiante do Fundão sil e mundo afora. A repetição do úl-
teiro no verso 11 e parcialmente nos versos com a fé e atitudes afins se assemelha timo verso, “Matou o cavalo”, em vez
14, 16 e 17; [c] a reiteração do nome “Antô- à das pessoas em geral; em particular, de produzir um efeito triste, acende um
nio Jerônimo” em quatro vezes; de seu “ca- aqui, à do brasileiro que se faz de re- humor incômodo, uma graça constran-
valo”, três; e do verbo mandar, em variações: ligioso em busca de proveito próprio. gedora: destruição, morte, ilusões (ter-
“mande, mando, mandar”; [d] as expressões As nove Teses contra o ocultis- mos de Adorno) acontecem quando a
que ecoam proximamente com frequência, mo, em Minima moralia, de Theodor “propensão para o ocultismo”, associa-
como em “pobre. É pobre”, “Inda (...) indo”, Adorno, assim se iniciam: “A propen- da a interesses pouco éticos, se sobre-
“padim / Pade”, “‘padim’ padre”, “Pois / (...) são para o ocultismo é um sintoma da põem à ação do pensamento e da razão,
Pois”; [e] as rimas (externas) que percorrem regressão da consciência”. Por ocultis- que tenta entender — por mais difícil
todo o poema: “sitiante / Dantes”; “Fundão mo, o filósofo compreende todas as que seja — o porquê das coisas, das
/ cardão / tostão”; “possuía / dia”; “roçado / formas de obscurantismo que se exer- chuvas e dos cavalos.
22 | | fevereiro de 2016

nossa américa, nosso tempo | joão Cezar de Castro Rocha

O que pode um museu?


Visita ao Museu Nacional de Belas Artes, do Rio de Janeiro

Museu de memória vação de alguns apetites ou desejos, dia-se bem o propósito, aliás também presente no
Desta vez, não sei muito bem por de sua natureza transitórios, mas motivo “evolucionista” dominante no Museo Na-
onde começar. sim essa escravidão moral que sub- cional: de grão em grão, a arte torna-se genuina-
Não, por favor, não se preocupe; ja- mete o homem aos outros homens. mente o próprio de si mesmo.
mais recorreria ao expediente batido do A riqueza compra até o tempo, que Numa palavra: nacional.
colunista que se descobre sem assunto. é o mais precioso e fugitivo bem
Toda a questão reside em equilibrar que nos coube. Vê aquele preto que (Aliás, palavra onipresente na mera denomi-
o desapontamento e a lucidez.  ali está? Para fazer o mesmo trajeto nação dos museus...)
Pois bem: um passo atrás.  que nós, terá de gastar, a pé, mais
No mês passado, relatei uma visita uma hora ou quase.1 O motivo conhecia uma tradução visual im-
ao Museo Nacional, da Cidade do Méxi- pactante. No final da segunda sala, conduzindo à
co, destacando a importância do acervo O vocabulário escolhido é terceira, na verdade, numa espécie de cruzamen-
e, sobretudo, sublinhando o apuro com o tanto mais perverso quanto mais to entre os dois espaços, encontrava-se o quadro
percurso narrativo meticulosamente pre- naturalizador da ordem escravo- icônico da pintura brasileira oitocentista: A primei-
parado pela curadoria. Ao mesmo tempo, crata, e também alveja Helena, ra missa no Brasil (1861), de Victor Meirelles. 
sugeri que o seu sentido — a progressi- pois, em sua condição de agrega- Pronto: tela-batismo, estrategicamente situa-
va afirmação de uma arte propriamente da, ela nunca chegaria a usufruir da na encruzilhada entre os primeiros discípulos da
mexicana — ensombrecia aspectos real- da anelada “independência abso- escola francesa e, imaginemos, os primeiros pinto-
mente singulares de algumas telas; sin- luta”. Porém, como é do tempo, res “propriamente” brasileiros; logo, essa “primei-
gularidade essa irredutível às amarras do esse “fugitivo bem”, de que se ra missa” inaugurava a ideia de uma arte nacional.
“espírito nacional”. Em todo o caso, assi- trata, Helena observa com agu- Por isso, a terceira sala girava em torno dos pintores
nalei o caráter orgânico da mostra perma- deza corrosiva o que escapa ao que consolidaram a iconografia brasileira: Victor
nente do museu. despreocupado herdeiro, embo- Meirelles e Pedro Américo. 
Enquanto percorria as salas do Mu- ra sutilmente ela saiba disfarçar o Mais: as duas maiores telas do nosso sécu-
seo Nacional, lembrava de experiência veneno, como convém à sua si- lo 19 conquistavam a atenção do visitante: A Ba-
similar que realizei inúmeras vezes no tuação social: talha dos Guararapes (1879) e A Batalha do Avaí
Museu Nacional de Belas Artes, no Rio (1877), respectivamente, de Victor Meirelles e de
de Janeiro, cujo acervo fez parte de minha — Tem razão, disse Helena: Pedro Américo.
formação como estudante da Faculdade aquele homem gastará muito mais Esqueçamos a rivalidade que os separou, ge-
de História da UERJ. tempo do que nós em caminhar. rando a chamada “Questão artística de 1879”, e que
Mas não é isto uma simples ques- tantos afetos mobilizou, com fervorosos partidários
(Mais tarde, levava os alunos de Le- tão de ponto de vista? A rigor, o de uma ou de outra tela. Pelo contrário, sublinhe-
tras ao museu. Era, hoje bem o vejo, um tempo corre do mesmo modo, quer mos o elo temático que associa os dois esforços: afir-
rito de passagem às avessas.) o esperdicemos, quer o economize- mação da nacionalidade — e isso do alfa ao ômega,
mos. O essencial não é fazer mui- isto é, na mentalidade oitocentista, da expulsão dos
Dediquei inúmeras tardes a palmi- ta coisa no menor prazo; é fazer holandeses à vitória na Guerra do Paraguai.
lhar a “Galeria dos 3 séculos”. Principia- muita coisa aprazível ou útil. Pa- Portanto, atando as pontas do passado remo-
va numa pequena sala, cujo eixo eram os ra aquele preto o mais aprazível é, to e do passado próximo.
quadros de Frans Post — se bem me re- talvez, esse mesmo caminhar a pé, Vencida a batalha decisiva do século 19, a
cordo, três telas (ou seriam quatro?) es- que lhe alongará a jornada, e lhe afirmação da nacionalidade, a quarta e última sala
tavam expostas, nas quais sempre me fará esquecer o cativeiro, se é cati- se concentrava sobretudo em telas de suas três úl-
surpreendia a falta de atividade dos es- vo. É uma hora de pura liber- timas décadas. Almeida Júnior recebia o visitante
cravos e das escravas retratados. Nos qua- dade. (p. 297, grifo meu.) com o Derrubador brasileiro (1879) — e ainda ho-
dros de Post, eles não são necessariamente je me chama atenção a ironia contida no persona-
apresentados enquanto trabalham, po- Eis o instante flagrado nos gem. Em um instante de inatividade mais do que
rém, em suas poucas horas de repouso; quadros de Frans Post! de repouso, cigarro de palha numa mão, machado
às vezes mesmo dançando, e sempre com Na sequência, eu me de- em outra, dois símbolos metonímicos de devasta-
uma linguagem corporal fascinante. tinha em alguns poucos objetos ção da natureza, esse caboclo parece não manter re-
Na quarta ou quinta visita — lem- do século 18, geralmente religio- lação alguma com a natureza que o rodeia, a não
bre-se: era aluno de graduação, numa so: oratórios; ex-votos; imagens ser como seu futuro “derrubador”.
época pré-internet; disponibilidade não de santos; uma ou outra tela.  Um Próspero caipira que nunca abrirá mão de
me faltava! — entendi a razão do espanto. Passava, então, para uma sua arte e seguirá controlando os elementos, a fim de
As cenas de Post me remetiam à reflexão grande sala, a fim de ingressar no afiançar seu domínio sobre a natureza e os homens.
de Helena. Durante um passeio bucóli- século 19 — vencia dois sécu-
co, em aparência desligado das miudezas los com um punhado de passos: (A consequência mais funesta da predatória
do cotidiano, a protagonista do terceiro nem o rico Estácio poderia tan- visão do mundo fixada por Almeida Júnior veio à
romance de Machado de Assis, lançado to assim. No início, ainda predo- tona na destruição do subdistrito de Bento Rodri-
em 1876, acompanhada de Estácio, vis- minava o caráter devocional das gues, em Mariana.)
lumbra um negro placidamente sentado, peças, mas logo se alcançava um
literalmente matando o tempo, como se ponto de ruptura: 1816 e a Mis- Um pouco à frente, parava mesmerizado
ousasse transformar um breve instante de são Artística Francesa. Na nar- diante da tela do espanhol radicado no Brasil, Mo-
descanso numa autêntica porém impossí- rativa implícita na organização desto Brocos; autor de um quadro cuja crueldade
vel experiência de otium cum dignitate! da “Galeria dos 3 séculos”, eis magnetiza o espectador, A redenção de Cam (1895),
O bem-nascido Estácio realiza de o princípio de uma futura “arte espécie de manifesto visual da ideologia à época
imediato um cálculo certeiro, porém brasileira”, sua condição de pos- dominante.
mesquinho: sibilidade, ainda que o modelo Você se recorda da tela, não?
tenha sido importado. O título se refere ao episódio bíblico da mal-
— Valem muito os bens da fortuna, Esta segunda sala reunia Nota dição do filho de Noé — no século 19, esse episó-
dizia Estácio; eles dão a maior felicidade obras oitocentistas, com desta- 1. Machado de Assis. Helena. Rio dio era comumente associado à etnia africana. Eis a
da Terra, que é a independência absolu- que para a primeira geração de de Janeiro: Nova Aguilar, 1986, p. representação: diante de uma casa pobre, localizada
ta. Nunca experimentei a necessidade; mas artistas brasileiros formada pelos 296. Nas próximas citações, indicarei no mundo rural, símbolo do atavismo que impe-
imagino que o pior que há nela não é a pri- mestres franceses. Compreen- o número de página. de a modernização, duas gerações de uma família
fevereiro de 2016 | | 23

ilustração: Carolina Vigna


norada, a Elevação da Cruz em Porto Se- ções como a Biblioteca Nacio-
guro (1879), de Pedro Peres. nal, o Museu de Arte Moderna
e o Belas Artes, entre tantas ou-
(“Galeria das Esculturas” — es- tras, exige que intelectuais ou
paço involuntariamente atravessado funcionários de carreira se
pelos princípios da “poética da emula- transformem em autênticos ma-
ção”. Trata-se duma coleção de gessos, labaristas do impossível.
cópias de peças oriundas sobretudo do Ótimas ideias e parcos re-
Louvre. No pedestal da Victoria de Sa- cursos os males da cultura são;
motrácia, por exemplo, encontra-se uma por isso, faltam verbas, sobram
placa que afirma ser esta cópia uma das problemas. E, como se não bas-
últimas cópias autorizadas pelo governo tasse, os governantes de plantão
francês da cópia anterior, feita do mol- talvez nunca tenham frequenta-
de diretamente obtido no Louvre. Eis do esses centros de arte, docu-
a novidade (boa demais para ser verda- mentação e memória.
de!): a última cópia da cópia do molde Ressalte-se, então, um da-
extraído do original possui em si mesmo do estrutural que deve ser moti-
um valor singular. Aritmética não hege- vo de reflexão crítica: no Brasil,
mônica: dois + dois = soma zero.) a cultura sempre foi vista como
adorno, mero acessório, sem dú-
Intrigante a obra de Pedro Peres, vida descartável no primeiro si-
pois à diferença de A primeira missa no nal de crise.
Brasil, na qual portugueses e indígenas O atual estado do Museu
não interagem, Peres imaginou instantes Nacional de Belas Artes é apenas
de troca efetiva. No centro da tela, um mais um capítulo dessa história.
padre coloca um crucifixo numa indíge-
na; no canto inferior, à direita do espec- (Infelizmente, em lugar
tador, um marinheiro aparece de torso de valorizar preciosos acervos já
nu e com adornos indígenas, num espe- existentes, criam-se novos mu-
lhamento pelo avesso do gesto do reli- seus. A seguir nessa toada, va-
gioso — como se o marinheiro que se le a pergunta: amanhã teremos
deixa desnudar ilustrasse avant la lettre algum museu funcionando em
a irreverência do poema de Oswald de condições razoáveis?)
Andrade, Erro de português:
Por isso, mudei o título
Quando o português chegou deste artigo.
Debaixo duma bruta chuva No mês passado indagava
Vestiu o índio “O que deseja um museu?”. Es-
Que pena! sa pergunta supõe uma estrutura
Fosse uma manhã de sol favorável à manutenção, cons-
O índio tante, de “exposições permanen-
Tinha despido o português. tes”, permitindo uma análise do
propósito subjacente à estratégia
Pedro Peres reuniu as duas possi- de exibição dos acervos.
bilidades no mesmo espaço pictórico! E A frase acima é tautoló-
isso para não mencionar a Primeira mis- gica e no limite deselegante
sa (1948), de Candido Portinari, mural — você está certa. Afinal, uma
que, numa crítica corrosiva do sentido exposição que se declare “per-
solipsista de todo projeto colonial, sim- manente” exige um nível mí-
plesmente elimina a figura do indígena nimo de constância. Ademais,
da representação. nada impede que um museu
lance mão da totalidade de
(Como se antecipasse a atual [au- seu acervo, renovando sempre
sência de] política indígena do país. Um sua “exposição permanente”.
futuro ensaio?) É o que faz com grande êxito
o Centre Georges Pompidou,
celebram o nascimento de uma Será mesmo assim? Minha leitora hesita: o museu que em Paris; aliás, na última re-
criança. A avó, negra, ergue as E bem, se alguma leitora eu descrevi e o que ela visitou possuem novação, dedicou-se uma se-
mãos ao céu, comovida por uma esteve recentemente no Museu diferenças inquietantes. ção à antropofagia e à obra de
graça muito desejada e finalmen- Nacional de Belas Artes certa- Falamos do mesmo espaço? Oswald de Andrade.
te recebida. O conjunto da cena mente duvidará de meu relato. Sim: tratamos do Museu Nacional
explica o gesto: sua filha é mula- Em primeiro lugar, onde de Belas Artes. (Tema para novo texto —
ta; seu genro, um camponês hu- se localiza a “Galeria dos 3 sécu- Não: minha leitora acabou de anoto.)
milde — pobre, mas branco. Por los”? Somente se encontra uma conhecer o Museu; eu recorri às lem-
fim, o neto, no centro da tela, é “Galeria de Arte Brasileira do Sé- branças que tenho da “Galeria dos 3 Já nos tristes trópicos, pre-
ainda mais branco do que o pai. culo 19” e outra dedicada à “Arte séculos”; memória afetiva porque tal cisei mudar o título deste artigo.
Ele olha a avó, para quem a mãe Moderna e Contemporânea”. Galeria deixou de existir. Aliás, e já há Optei pela modéstia: “O que po-
significativamente aponta, como Em segundo lugar, a lei- um bom tempo, os quadros de Frans de um museu?”.
se atestasse o “benefício” deri- tora procura, pergunta, sobe e Post permanecem em reserva técnica. No Brasil, pouco.
vado da boda, o “embranqueci- desce as escadas, entre e sai de Algumas salas do museu estão Talvez sobreviver.
mento” da família. A mensagem galerias, mas não vê tela alguma fechadas; o ar condicionado não fun- Manter as portas abertas,
é clara, embora brutal. À bata- de Frans Post. ciona em todo o edifício; o café que ainda que o ar condicionado se-
lha pela nacionalidade, seguiu-se Não é tudo. ficava na “Galeria das Esculturas” foi ja um retrato pendurado na pa-
uma guerra étnica. Entre o cai- Alguns quadros teriam sido fechado e um planejado salão de chá rede. Ainda que para tomar um
pira de Almeida Júnior e a saga deslocados? Por exemplo, A re- segue sem previsão de abertura. Ao su- simples café o visitante tenha de
familiar dos personagens de Mo- denção de Cam foi levado da úl- bir as imponentes escadas que condu- sair do museu.
desto Brocos, o caminho era ex- tima para a terceira sala. De igual zem à atual “Galeria de Arte Brasileira O importante é não deixar
clusivo e excludente. modo, a emblemática e premoni- do Século 19”, o visitante se depara de frequentar o Museu Nacional
A última sala ainda apre- tória cena de Félix-Émile Taunay, com fitas adesivas de segurança que de Belas Artes. E, claro, depois
sentava unidades temáticas: in- Vista de uma mata virgem que está envelopam o corrimão de mármore e do café e da necessária pausa,
dianismo, retratística, paisagens se reduzindo a carvão (1843), foi dão ao percurso um ar de precarieda- regressar e admirar, na “Gale-
e uma tímida transição para o levada da sala que se encontrava de que entristece. ria dos 3 séculos”, que não mais
impressionismo muito bem- na ala da “Galeria das Esculturas” Contudo, por que traduzir meu existe, as telas de Frans Post, que
comportado de Eliseu Visconti, para completar a “Galeria de Ar- desapontamento numa crítica fácil, já não estão expostas.
a par de esculturas que anuncia- te Brasileira do Século 19”. Idên- e no fundo injusta, da gestão do Mu-
vam o final do trajeto na “Gale- tico destino foi dado a uma tela seu Nacional de Belas Artes? É preciso (É uma hora de pura liber-
ria dos 3 séculos”. notável, embora praticamente ig- manter a lucidez: administrar institui- dade. Da imaginação.)
24 | | fevereiro de 2016

Henry James por Robson Vilalba

A
o sabor das décadas,

Obra de
gerações e séculos,
editores, críticos e
aficionados das le-
tras costumam rea-
lizar concursos públicos para
provimento de vagas no Insti-

mestre
tuto dos Expoentes da Litera-
tura Mundial. A cada certame
propõem ingressos, reiteram va-
lores, vetam legitimidades, e as-
sim consagram, desbancam ou
atiram na vala do esquecimento
autores que julgavam descansar
para sempre no mausoléu da gló-
ria póstuma. No centenário do
seu falecimento, Henry James
não é uma das vítimas desse re-
visionismo, em que os anseios e Apesar de não ostentar a complexidade e o cosmopolitismo que
a instabilidade dos vivos se pro-
jetam sobre os mortos. Folga em consagraram Henry James, A herdeira impõe-se como obra-prima
ser um dos premiados contuma-
zes que continuam a usufruir do
galardão da excelência na galeria Margarida Patriota | Brasília - DF
dos grandes escritores de língua
inglesa. “Autor onde o denso se
alia ao apuro, contribuiu para o
desenvolvimento da moderna
prosa de ficção”, subscrevem os do com o Henry James que defendera, em 1884, “Para se escrever bem e condignamente das
jurados que o recomendam. no célebre ensaio A arte da ficção, o romance como coisas americanas”, dissera Henry James, em 1871,
Os contemporâneos do produção independente e visão pessoal do mundo. “é preciso ser, mais do que em qualquer outro lu-
escritor admiravam seus longos Escritores da era do cinema, que procuravam cami- gar, um mestre”. Nove anos depois dessa afirmação
romances centrados no vaivém nhos inovadores de expressão literária, curvaram-se (um ano antes de publicar Retrato de uma senho-
transoceânico da alta socieda- ante um antecessor que apontava novas perspecti- ra), quando o escritor nova-iorquino já era consa-
de europeia e norte-americana, vas para o manuseio do foco narrativo e do discurso grado e morava na Inglaterra, é possível que ele se
à medida que esse fenômeno se indireto livre. As vanguardas refratárias às demandas julgasse “mestre” o bastante para escrever Washin-
desenvolvia na segunda meta- do mercado consumidor incensaram a criativida- gton Square, cuja história ele chamaria de “pura-
de do século 19 e o cosmopoli- de sobranceira da ousada e intrincada prosa do au- mente americana”.
tismo se tornava, além de tema tor de Retrato de uma senhora, As asas da pomba, Neto de imigrante irlandês que no fim da
sem precedentes na narrativa de Os embaixadores. E os pós-guerras reafirmaram, ao vida chegou a ser um dos homens mais ricos dos
ficção, valioso instrumento de lado destes longos e copiosos romances, o lume du- Estados Unidos; filho de proeminente teólogo pro-
prospecção existencial. radouro de Washington Square, que apesar de não testante de tradição liberal; irmão mais moço do
O modernismo que mar- ostentar a complexidade e o cosmopolitismo pelos futuro filósofo William James, Henry James nasceu
cou a cultura artística de inícios quais Henry James se consagrou, impõe-se como a 15 de abril de 1843, em Nova York. Contava sete
do século 20 afinou-se sobremo- obra superior. anos quando o pai, após um período em Albany,
fevereiro de 2016 | | 25

comprou a casa da Rua 14, nos cas. Estamos em um Novo Mun- O quadro dimensão dos seres, é tão rápida em se encantar amava profundamente minha
arredores de Washington Squa- do tenaz, rijo, renhido, povoado urbano por Morris Townsend quanto lenta em perce- mãe, a quem perdemos faz tan-
re, lá onde o resto de sua infância por cidadãos tão confiantes em ber seu verdadeiro caráter. De maneira que se a to tempo. Ela era bonita e cati-
esboçado
transcorreu, em meio ao aroma seus valores quanto desconfiados lucidez do médico, nessa fase, representa uma vante. Ele está sempre pensando
dos ailantos e nos limites de um dos valores estrangeiros. Tão or- a meia- virtude, a inocência da filha (que a impede de nela. Não me pareço com ela,
pequeno mundo homogêneo e gulhosos da União federativa que tinta em enxergar maldade onde há) afigura-se defeito. Tia Penniman me disse. É cla-
crepuscular em vias de transfor- estabeleceram quanto temerosos Washington “Ninguém é bom para nada se não for esper- ro que não é minha culpa. Mas
mação. O título Washington de verem-na desagregar-se às vés- Square to”, assevera o médico nas páginas iniciais. Da- tampouco é culpa dele. Quero
Square trai, sem dúvida, res- peras da Guerra da Secessão e da li a pouco, quando o narrador nos garante que dizer que a verdade é essa.” Nes-
constitui
sonâncias autobiográficas. Não revolução capitalista. Ali não se Catarina é “a mais meiga das criaturas”, isso se descortino, a dimensão irônica
por acaso James situa a obra no prezam concessões sentimentais. o pano de não soa propriamente como um louvor. da narrativa patenteia-se, consoli-
decênio de 1850, numa Nova Quando um jovem pergunta ao fundo pálido dando um percurso de evolução e
York de duzentos mil habitan- futuro sogro: “O que é possível e esmaecido Lógica afetiva involução opostas entre Catarina
tes, onde os porcos e as galinhas oferecer a uma mulher, além do diante do À medida que os diálogos conduzem a e o pai. Acompanhar o rendilhar
recreiam-se nas valas de escoa- carinho mais terno e dedicação ação, ternura e lealdade deixam de ser meros desse processo não é dos menores
mento, as casas neoclássicas vão por toda a vida?”, obtém por res-
qual se prazeres que a leitura de Washin-
sintomas de ingenuidade, para se tornarem
sendo suplantadas pelas de tijo- posta: “Pode-se oferecer outras desenvolve indícios da lógica afetiva de Catarina. Uma gton Square proporciona.
los marrons, e ainda se veem pi- coisas, além de carinho e dedi- o forte lógica afetiva não menos rigorosa do que a ló- Outra força própria a essa
ras acesas nos altares do Templo cação. Uma vida de fidelidade pigmento gica cerebral do pai, e não menos apta a de- “história puramente americana”
da Simplicidade Republicana. só se mede após o fato. Até lá, o da análise vassar, em seu próprio ritmo, a interioridade emana de uma exímia arte verbal
costume é pedir garantias mate- das pessoas. posta a serviço do silêncio. Pois
A herdeira riais”. De maneira que, ressaltan-
psicológica. Quando Morris Townsend quer ouvir entre o embate da razão cerebri-
Embora aponte com pro- do o liame entre os valores dos de Catarina o grito rebelde de: “Se me meu na e da razão afetiva que separam
priedade para a cena americana, personagens e a sociedade que pai o desaprova, não me importa”, ela o corta Austin Sloper e Catarina, imis-
Washington Square resulta, em os determina, Henry James em de chofre, exclamando: “Ah, mas importa!”. cuem-se, a todo instante, mo-
parte, num título enganoso, pois Washington Square despoja-se Não pode fingir o contrário. Não pode rejei- mentos calados, mudos, quietos.
promete oferecer ao leitor um da obliquidade característica dos tar, de repente, a aprovação de um ser que lhe Durante tais hiatos significativos
painel de costumes sócio-históri- seus romances internacionais, é fundamental. A coerência que mantém com agem os impulsos não verbaliza-
cos e de cor local que o livro em para se adaptar, quando não à seus sentimentos não só a coíbe como vai tor- dos que recheiam em profusão
verdade não preenche, ou preen- crueza do solo pátrio, pelo me- ná-la, eventualmente, autônoma. Na ocasião as entrelinhas dos diálogos, le-
che pouco, e não à primeira vista. nos às arraigadas convicções do em que a tia a encoraja a se casar em segre- vando os personagens a se cur-
A tal ponto que na adaptação pa- autor sobre a simplicidade terra do, o desejo de ser “boa filha” a impede de varem ante os vezos psicológicos
ra o teatro, em 1947, e depois pa- -a-terra da vida americana. se precipitar nesse estratagema. Será, enfim, que os comandam. Na maciota
ra o cinema, em 1949, esse título O narrador, na abertura do em lealdade à própria dor que ela se poupará, agem os estímulos inarticulados
foi substituído pelo de A herdei- relato, esboça a imagem de um mais tarde, de acreditar que Morris a largou que levam, por exemplo, o dou-
ra, mais adequado a um enredo médico nova-iorquino inteligen- pelo nobre motivo de não deserdá-la. tor Sloper a confessar que, tendo
cuja mola propulsora gira em te, probo, conceituado, brilhan- Lentamente, sem brilhantismo, Catari- ou não razão, ele não quer con-
torno de uma moça rica, cobi- te até em sua profissão. Trata-se na desenvolve uma nítida percepção da gente fiar em Morris Townsend. Da
çada por um caça-dotes. Sucede do pai da protagonista, retrata- com a qual convive, sem que o inverso acon- mesma forma, um ditame não
que o título de A herdeira pro- da, adiante, como moça de es- teça. Manipulada por uma tia fantasiosa, um expresso e sem porta-voz faz Ca-
voca reservas entre os apreciado- pírito lento e físico insosso (no namorado interesseiro e um pai que a me- tarina passar a vida como cor-
res do romance em causa. Alguns máximo simpática, no mínimo nospreza, ela virá a compreender a natureza data companheira do pai, mas,
leitores, sensíveis à semelhança glutona, para embaraço de quem manipuladora de todos eles, sem que a com- quando este lhe pede que pro-
deste com o romance de Balzac a descreve). “Pobre moça”, diz- preendam em troca. O entrecho termina com meta nunca se casar com Morris
Eugénie Grandet (no qual uma se o leitor, na esteira da voz que uma tia atônita, um ex-noivo que se indaga: Townsend, a obriga responder:
jovem ingênua se encanta por a qualifica de “pobre” reiteradas “Por que diabo não se casou?”, e um pai que “O senhor não compreende.
um refinado oportunista, con- vezes. Pobre protagonista, ade- morre na vasca de uma ignorância análoga. Não posso prometer. Não posso
tra a advertência paterna), pre- mais, sem estofo para ser uma “Sabemos o quanto o episódio do noi- explicar. Não posso prometer”.
feririam batizá-lo com o nome heroína na acepção clássica, de vado ferira Catarina de modo profundo e Vemos, então, que sobre
da protagonista: Catarina Sloper. criatura extraordinária, nem pa- irremediável, mas o médico não tinha as mes- o forro de uma cisão entre ra-
Outros, percebendo o parentes- ra ser moderna anti-heroína. mas condições de sabê-lo”, dirá o narrador no zão paterna e afeto filial, cálculo
co de Washington Square com Órfã de mãe desde tenra desfecho da trama. Nesse momento, o leitor frio e inocência traída, o tecido
Orgulho e preconceito de Jane infância, nossa personagem atin- não poderá se impedir de achar o médico um de Washington Square urde-se
Austen, no tocante à sondagem ge a maioridade venerando o pai tanto obtuso. Conquanto dispense, até o fim com o fio dos interditos que re-
da alma feminina, prefeririam re- que a criou num ambiente de se- da vida, diagnósticos clínicos dos mais certei- gem a condição humana numa
sumi-lo numa oposição de ideias gurança doméstica, estabilidade ros, em foro íntimo terá perdido a elasticida- Nova York em seus primórdios
como: Candura e egoísmo ou Hu- responsável e afeto cerimonio- de necessária para transpor a cerca de teorias citadinos, quando o sufrágio fe-
mildade e arrogância. so. Este pai se ufana de enxergar que ele mesmo ergueu ao redor de si como minino inexistia, o capital acu-
Seja como for, o quadro ur- a realidade tal qual é. Portanto, um muro de autodefesa — muro que o isola mulado constituía a prova da
bano esboçado a meia-tinta em não se ilude quanto aos atributos da empatia com o próximo. virtude de homens laboriosos
Washington Square constitui o da filha. O que esta, a seus olhos, Do começo ao fim da história o diagnósti- e austeros, e a afirmação da in-
pano de fundo pálido e esmaeci- prometia ser em criança, na idade co do doutor Sloper procede: Morris Townsend dependência individual tolhia
do diante do qual se desenvolve o adulta se confirma. Catarina, aos não passa de um caça-dotes. Bem que o avisou demonstrações de lástima pelo
forte pigmento da análise psico- vinte anos, é uma jovem saudável, à filha. Bem que ameaçou deserdá-la. Bem que calado envelhecer de uma mu-
lógica. Note-se que, aqui, o ele- simplória, sem graça, sem mui- em disposição testamentária deu cumprimento lher sozinha, ou daquela que o
mento psicológico difere do que to gosto para se vestir, bondosa a essa ameaça. Até o último suspiro, sua autori- narrador tantas vezes chamou
predomina no conjunto da obra e leal. O pai mal sabe que, a essa dade de pai não cedeu. Mas encontrou, a partir de “pobre”— pobre moça, po-
jamesiana, devido ao vínculo es- altura, a filha tampouco se ilude de dado momento, uma resistência que indica- bre Catarina.
treito que apresenta com o con- quanto a si. Subestimada, subesti- va: não que a filha fosse pouco sensível, mas que
texto norte-americano. ma-se. Acredita ter a menos a in- a sensibilidade desta pairava numa zona lumi-
A família Sloper de teligência que o seu genitor tem a nosa fora do alcance dele.
Washington Square move-se mais, num grau que o coloca fo- Ao contrário dos demais personagens,
num estilo de vida e clima mo- ra do alcance dela. E a propósito cujos enfoques, sofisticados ou primários,
ral que não são os da Paris belle daquilo em que acredita ou não, certos ou errados, permanecem fixos ao lon-
époque, os da Florença amena, o leitor aprende que Catarina não go do tempo, a protagonista reformula suas
nem os da Londres nobiliárqui- é de absorver muitas impressões, noções. Nos primeiros capítulos, chega à
ca, onde, no inverno de 1878, mas as poucas que absorve são co- maioridade confundindo a felicidade na Terra
Henry James admite ter atendido mo mossa em chaleira de cobre com o desejo de agradar o pai. Nos últimos,
a nada menos do que 107 con- — nenhum polimento apaga. conscientiza-se de que o pai se opôs ao noi-
vites para encontros sociais. Os O contraste entre vários vado dela, menos pelo desejo de protegê-la,
Slopers forjaram-se numa comu- níveis de clarividência já se deli- do que pelo deleite de ter razão. Enfrentan-
nidade que traz nas veias o san- neia nos princípios da narrativa. do a dolorosa tarefa de destronar um deus in-
gue dos puritanos do Mayflower, O médico sagaz enxerga de saída terno, compreende que o pai a estima menos NOTA
presbiterianos rigorosos que pre- o patife da história. A filha bon- do que ela pensava. Compreende, inclusive, Este texto integra a nova edição
tendiam interpretar melhor do dosa, porém simplória, e na apa- que isso não depende dele. “Não governa- de A herdeira, a ser lançada
que ninguém as escrituras bíbli- rência menos capaz de aquilatar a mos nossas afeições”, explica a Morris. “Ele em breve pela 7Letras.
fevereiro de 2016 | | 27

nará o processo mais fácil. Entre

Viver para contar


a descoberta do primeiro amor
e a primeira decepção amoro-
sa, diversos outros sentimentos
e conflitos perpassam a vida do
protagonista, que não consegue
escrever nada e se mantém an-
gustiado diante da página em
branco, a ponto de se questionar
se pode mesmo ser escritor.
Em Contar tudo, de Jeremías Gamboa, acompanhamos a vida Com o tempo e muitas
histórias depois, Gabriel retor-
de um escritor-personagem em busca de sua própria voz na ao espaço da universidade co-
mo auxiliar de um professor de
escrita criativa que lhe apresenta
Paula Dutra | Brasília - DF o universo acadêmico, agora sob
uma nova perspectiva. É então

C
que finalmente as palavras cer-
tas de apoio encontram o escri-
omo começar a do sonho de se tornar um escritor. Afinal, esta- tor e são um alento. Com isso,
contar uma his- mos perante um jovem comum, de origem hu- ele aceita as suas histórias como
tória? De onde milde, e acompanhamos todos os percalços, assim são, abandona o medo e os julga-
partir? São essas como as oportunidades, que ele encontra e que mentos, diminui a ansiedade e a
as perguntas que contribuem para o seu amadurecimento. São as cobrança que alimentava e o im-
geralmente inquietam quem se histórias da vida de Gabriel que se transformam pediam de escrever e se permite
aventura diante de uma página na matéria do romance que ele acaba por escrever acreditar apenas no sentimento
em branco. A angústia dos escri- e que está diante de nós. legítimo que trazia dentro de si,
tores na tentativa de descobrir (e Contar tudo algo que se mostra libertador.
tentar domar) seu próprio pro- A vida na universidade Jeremías Gamboa
Trad.: Joana Angélica d’Ávida Melo
cesso criativo é tema recorrente A insegurança de Gabriel Lisboa é fruto, em Sinto que o livro que eu
Alfaguara
na literatura. O escritor-perso- parte, de sua condição social, tão diferente dos de- queria escrever não é este. Este foi
536 págs.
nagem, que revela de forma apai- mais alunos ricos que frequentam a Universidade de como uma resposta, uma reação
xonada o que sente ao contar Lima, algo que alimenta a sua sensação de não per- inocente a coisas que me aconte-
uma história, e quais caminhos tencimento. Mas, por sua dedicação e esforço para ceram na vida e para as quais
e estratégias usa para escrever, é manter as excelentes notas, Gabriel consegue uma não tenho outra resposta, exceto
aquele que também contribui bolsa de estudos que lhe possibilita concluir os es- escrever. Sinto que o livro que eu
para alimentar certa aura de mis- tudos, mesmo trabalhando nas férias para ajudar os escrever depois partirá como o pri-
tério que rodeia os autores. Afi- tios com as despesas da casa. A possibilidade de es- meiro, que eu decidirei o que que-
nal, o que é preciso fazer para tágio em um dos principais jornais de Lima, ainda ro escrever, e sinto que os anos, a
escrever? Há quem diga que só que sem nenhuma remuneração inicial, descortina experiência, certas coisas que vivi
alguém com uma vida cheia de um novo universo cultural para o jovem estudan- me permitirão finalmente fazê-lo
aventuras ou tragédias seria capaz te. Na primeira parte do romance, somos apresenta- sob outra atitude, sob uma certa
de narrar as melhores histórias. dos ao dia a dia da redação de um jornal, com todas calma. É meio terrível, sim, mas
Pobres daqueles de vida comum, as suas dificuldades e encantos. É com o jornalismo o autor ao mesmo tempo há algo maneiro,
de origem humilde, cujas vidas que Gabriel Lisboa começa a ganhar confiança para Jeremías Gamboa algo desafiador, em estar metido
aparentemente não são interes- escrever e também para viver algumas experiências nisso há tantos anos e que até agora
santes. Mas as vidas e os dilemas na companhia de seus novos amigos, poetas e uni- Nasceu no Peru, em 1975. nada tenha saído bem, não acha?
comuns não seriam também versitários que lhe apresentam o cenário cultural, É formado em Comunicação
matéria rica e frutífera para a li- musical, literário e artístico de Lima. pela Universidade de Lima e Entre fronteiras
teratura? Assim como Jeremías Com o tempo, no entanto, Gabriel começa a mestre em Literatura Hispano- O grande apelo do roman-
Gamboa, acredito que sim. perceber que a rotina intensa da redação do jornal, americana pela Universidade ce, contudo, parece ser o pacto
Os questionamentos sobre espaço que aos poucos foi conquistando com talen- do Colorado. É jornalista, ambíguo entre a ficção e a au-
a escrita motivam toda a narrati- to, também lhe impede de se dedicar ao livro que professor e escritor. Em 2007, tobiografia que ele por vezes su-
va do escritor peruano Jeremías sempre sonhou escrever, mesmo sem saber por on- lançou o livro de contos Punto gere. Certa confusão entre o eu
Gamboa no romance Contar de começar. Os colegas mais velhos da redação par- de fuga e decidiu se dedicar ficcional e o biográfico, isto é,
tudo. A necessidade quase vital tilham com ele o sonho frustrado que carregam de totalmente à literatura. Contar entre o personagem e o autor,
de escrever, consciente de que não terem escrito os livros que desejavam quando tudo é seu primeiro romance. que evidencia que o tema geral
possui uma história “verdadeira” ainda eram jovens. Alguns deles serão fundamentais é o escritor-personagem, aque-
para contar, mas não encontra na formação de Gabriel, principalmente por incenti- le que se debruça não sobre as
os caminhos certos para fazê-lo, vá-lo a acreditar e a afirmar que quer ser um escritor. questões políticas e filosóficas do
é o que alimenta a vida desse es- mundo, mas sobre a literatura e
trecho
critor-personagem em forma- Entre amigos o próprio fazer literário. Nesse
ção na busca por encontrar a sua A juventude também é o tema do roman- Contar tudo sentido, Contar tudo tem como
própria forma de escrever. Pode- ce, pois, para além das angústias pela escrita, há a elemento central o narrador, Ga-
Durante muito tempo tentei
se dizer, citando o romance, que angústia e as inseguranças dos jovens que estão se briel Lisboa (nome tão sonoro
se trata da história de “um ho- descobrindo e tentando se encontrar e se afirmar inutilmente me tornar alguém que quanto o de Jeremías Gamboa),
mem que não tem nada, exceto diante do mundo. O grupo de quatro amigos do escreve um livro, ou viver como já que é através do seu ponto
uma história que lhe pertence qual Gabriel faz parte encontra nessa amizade a alguém que escreve um, ou como de vista que acompanhamos os
e a vontade de contar tudo. De força e o apoio necessários para atravessar os pro- anos de vida que ele descreve,
eu acreditava que alguém assim
uma vez por todas”. blemas enfrentados pelos jovens da geração dos desde o ingresso na Universida-
Mesmo ao tratar das an- anos 1980. Reunindo-se frequentemente nos “con- teria de viver, mas durante mais de, o início do trabalho jornalís-
gústias de um jovem peruano ciliábulos”, eles compartilham seus escritos, seus de dez anos não escrevi uma tico, a luta para encontrar o fio
recém-saído da faculdade de primeiros amores e separações, suas inseguranças e só linha que me agradasse. Até que o conduzirá às linhas dignas
jornalismo em busca da pró- medos diante do futuro que, entre os vinte e trinta de se tornarem o livro que ele
hoje. Agora há um sol morno lá
pria voz para o livro que tanto anos, para muitos ainda parece incerto. Nesse sen- tanto almeja. Em suma, é a rela-
sonha escrever, Contar tudo tido, o romance de Gamboa pode ser lido como fora, é setembro, é quarta-feira, e ção do escritor-personagem com
desconstrói a aura inacessível uma ode à amizade que atravessa a juventude e se eu estou em Santa Anita, vestido o mundo, ainda que seja uma re-
que muitas vezes paira sobre o mantém, apesar do tempo, tornando-se um ele- com uma camiseta qualquer e lação um tanto egocêntrica por
ato da escrita, ou pelo menos a mento constitutivo do que somos, do que seremos. se tratar apenas de seu olhar so-
um short, de sandálias. E agora,
questiona. Ao narrar o proces- É com nostalgia e certa dose de melancolia que to- bre o mundo. Além disso, a sua
so de formação do protagonis- da uma geração talvez se identifique com as histó- recém-saído do chuveiro, me dou convivência com os três amigos
ta, Gabriel Lisboa, um rapaz rias desses quatro amigos e da cumplicidade, até conta perfeitamente de que isto traz para o texto a nostalgia de
pobre que vive em Lima longe mesmo nas loucuras, que compartilham entre si. é, por fim, o início de algo, ou todos aqueles que já passaram
dos pais e conta com a ajuda Após uma fase intensa na qual vivencia sua pelos seus trinta anos, e tudo isso
de tudo, a chegada do dia ideal
dos tios para custear as suas des- juventude em Lima ao lado dos amigos, Gabriel acontece tendo como trilha so-
pesas, nos deparamos com uma decide largar o trabalho no jornal e dedicar todo para que algo assim sucedesse, nora as músicas de Lou Reed e
perspectiva mais humana diante o seu tempo à escrita. Mas isso também não tor- para contar tudo. Caetano Veloso.
28 | | fevereiro de 2016

palavra por palavra | Raimundo Carrero

Ritmo narrativo ou tempo


psicológico do leitor

O
ritmo narrativo é Era um rapaz do campo,
uma técnica que de quinze anos mais ou menos,
sempre preocupa o mais alto que qualquer de nós, os
ficcionista, mesmo cabelos rentes sobre a testa, como
quando é um des- um sacristão de aldeia, um aspec-
ses artistas que nega a importância to compenetrado e acanhadíssimo.
da estratégia elaborada, jogando Embora não fosse espadaúdo, a ja-
toda a responsabilidade para a queta verde de botões pretos, muito
intuição, para a inspiração e pa- apertada nas ombreira, devia in-
ra o talento. Todos estes elemen- comodá-lo bastante. Pela abertura
tos existem, sim, mas precisam do das mangas, viam-se dois punhos
apoio do estudo sistemático, do vermelhos, acostumados à nudez.
conhecimento, da análise deta- As pernas enfiadas em meias azuis,
lhada. Faça o que quiser, escreva saíam-lhe dumas calças amare-
o que desejar, crie conforme suas ladas muito repuxadas pelos sus-
necessidades, mas não esqueça pensórios. Calçava uns sapatos
que conseguirá sempre melhores grosseiros, mal engraxados, refor-
efeitos se tiver sempre consciência çados com pregos.
de suas possibilidades.
Podemos dizer que Flau- Observem que a narrativa
bert foi um criador, por assim parou para que a descrição do
dizer, científico. Em cartas que personagem tenha destaque, im-
escreveu sistematicamente para pondo-se a presença definitiva
amantes e amigos, revelou co- de Charles, mas o fluxo narrati-
mo e por que escreveu cada pa- vo é interrompido. Ao contrário
lavra, cada cena, cada cenário, de Emma Bovary, Charles chega
despojando-se da inspiração e e se impõe. Logo em seguida, o
mostrando, humildemente, que foco narrativo é centrado ne-
precisava de um grande esfor- le novamente, fazendo o ritmo
ço para superar as dificuldades tornar-se ainda mais lento. Uma
criadoras. Isso mesmo, a maior frase de passagem lembra o to-
qualidade de Flaubert era a hu- que de uma flauta: “Começou-se
mildade. Para escrever uma pala- a recitar a lição”.
vra, precisa de muitos rascunhos. ilustração: Bruno Schier Em seguida a narrativa tor-
E dizia isso com imensa tranqui- na-se lenta, num movimento se-
lidade. Os nossos gênios, porém, dutor:
acreditam que tudo nasce da ins-
piração e do talento. Basta uma Ele era todo ouvidos, atento
caneta e um papel e as musas co- como a um sermão, sem ousar mes-
meçam a ditar palavras maravi- mo cruzar as pernas ou apoiar-se
lhosas e encantadoras, notáveis e no cotovelo. E, às 2 horas, com o
revolucionárias. toque da sineta, o professor teve de
O talento e a inspiração avisá-lo de que era preciso entrar
podem e devem ser úteis pa- um artifício literário para reunir, literário é privilegiado. A temá- em fila conosco.
ra gerar o impulso criador, mas num só ponto de vista, os narra- tica está ali, é verdade, mas sub-
além disso é preciso estar cons- dores múltiplos ou, para muitos, metida aos elementos artísticos Talvez por isso, Nabokov
ciente de cada palavra, de cada o narrador plural. Num toque — ao que Graciliano Ramos tenha chamado Madame Bo-
sinal gráfico, de cada situação. de mágica criativa, Flaubert reu- chamou de elementos essenciais vary de narrativas em camadas;
Mas nem isso é garantia de niu num só todos ou narradores da narrativa. Graciliano não dei- prefiro chamá-lo de Narrati-
grande obra. Quem acredita ou todas as técnicas narrativas xou nenhum manual de escrita va musical pela alternância dos
apenas no talento e na inspira- neste romance que se transfor- criativa, mas as ideias centrais movimentos, muito usual em
ção para criar obras artísticas mou num verdadeiro Manual de das suas preocupações com a partituras sofisticadas, embo-
sem dúvida também acredita Criação Literário — tal volume narrativa podem ser encontradas ra muitas vezes utilizadas em
em musas para estabelecer os de recursos que envolveu a nar- em Linhas tortas, livro relegado composições populares. Pre-
caminhos da invenção. rativa, dando início àquele que a segundo plano pelos estudiosos tendo aqui, justamente, aproxi-
No começo de Madame seria o divisor de águas na histó- sempre interessados em apresen- mar a literatura da música, artes
Bovary — de que já tratamos ria da narrativa universal. tá-lo como um matuto que deu em que os ouvidos têm função
aqui — Flaubert ousa recorrer à Basta lembrar que da epo- certo na literatura. muito destacada. Ler uma par-
primeira pessoa do plural, o que peia até o romance dos meados No primeiro capítulo de titura é tão inquietante quanto
causou espanto nos estudiosos do século 19, o romance era ape- Madame Bovary, por exemplo, ler um romance ou uma novela,
do texto e ainda hoje provoca os nas um ensaio disfarçado, onde fica bem clara a preocupação de cabendo ao ouvinte fazer uma
mais acalorados debates. O nós o ficcionista usava o narrador Flaubert com o ritmo narrativo, segunda leitura, por assim dizer,
é motivo de análise em Orgia e os personagens para debater dosando a velocidade dos pri- da partitura. Na literatura, um
perpétua, de Mario Vargas Llo- ideias. Tratava-se muito mais do meiros movimentos do roman- texto é lido pelos olhos e pelos
sa, que se constitui numa análi- uso do conteúdo material — te- ce. A narrativa começa célere, ouvidos; cabendo aos ouvidos
se rigorosa de Madame Bovary, mática, estudos, pontos de vista com rápida passagem pela fala esta segunda leitura. Daí a preo-
a inquietar exegetas de todo o — dispensando-se o conteúdo do diretor, mas estanca no ter- cupação imensa com os sons das
mundo. Pergunta-se insistente- literário — composição de ce- ceiro parágrafo, quando a nar- palavras e suas colisões. Tudo
mente: Como um narrador po- nas, cenários, diálogos, persona- rativa abre espaço para o perfil começa aí, com certeza. Basta
de falar por muitos? Para mim, é gens. Em Flaubert, o conteúdo físico de Charles: um estudo bem elaborado.
fevereiro de 2016 | | 29

divulgação
o autor
Jean-Paul Didierlaurent

Nasceu em 1962 e mora em


Vosges, na França. Ganhou duas
vezes o prêmio Hemingway, com
os contos Brume e Mosquito.
O leitor do trem das 6h27
é seu primeiro romance e já
foi publicado em 25 países.

Porém, duas mudanças É inevitável relacionar

Ao encontro
acontecem na sua vida: numa também a usina de descarte de
das manhãs, indo para o traba- livros encalhados com parte do
lho, é convidado por duas se- universo da literatura. Ainda que
nhoras para ler em voz alta para seja uma parte dolorosa para o
idosos em um lar; além disso, personagem (e possivelmente
encontra um pen-drive cheio de para o leitor), o autor se mostra
textos que vão alterar completa- até corajoso ao escolher a usina

do inesperado
mente seu foco e criar uma bus- como um dos cenários, afinal, a
ca para a sua vida. reciclagem das edições físicas é
o que menos se almeja alcançar
Homenagens à literatura com um livro.
Uma característica que
chama atenção na obra de Di- Enredo
dierlaurent são as pequenas ho- Ainda que possa parecer
menagens à literatura por meio algo pequeno, a descoberta do
de personagens e situações. Um pen-drive gera uma mudança con-
O leitor do trem das 6h27, de Jean-Paul Didierlaurent, personagem particularmente ca- siderável tanto no enredo do livro
tivante é o porteiro da usina de quanto na vida do personagem
é uma breve e leve narrativa sobre o amor pelos livros destruição de livros, que pas- principal. Inicialmente, Guylain
sa o tempo com textos clássicos resolve acessar os arquivos para
e, por hábito, termina por falar tentar descobrir o dono do dispo-
Gisele Eberspächer | Curitiba – PR apenas em versos alexandrinos. sitivo, mas logo fica apaixonado
Outro personagem, ex- por Julie, autora dos textos.

O
funcionário da usina e amigo Nesse momento, o livro
de Guylain, sofre um acidente tem seu ponto de virada e Guylain
s livros e a leitura de redenção ao recolher páginas na Coisa e perde as pernas, que parece ter um objetivo maior na
são temas atrati- das obras na máquina e lê-las em se juntam à massa de papel. Sua vida: encontrar Julie. Ainda que
vos para autores voz alta no trem — sim — das obsessão? Comprar todas as có- a maneira com que ele a conhece
e para nós, leito- 6h27, que pega todas as manhãs pias de um livro de jardinagem — através dos textos dela, o jeito
res. São vários os para ir ao trabalho. Esse hábi- impresso com o papel produzido dela de se criar — esteja bastan-
exemplos de obras de ficção que to peculiar parece ser o seu mo- da reciclagem do dia do acidente te relacionada ao mundo dos li-
abordam o tema: A casa de pa- mento de dar vida às histórias que e, assim, recuperar suas pernas. vros, O leitor do trem das 6h27
pel, de Carlos Maria Domin- estariam, de outra forma, com- Outra personagem, criada se afasta consideravelmente desse
guez (já resenhado por mim aqui pletamente mortas. O leitor do trem das 6h27 de maneira muito interessante, é universo em sua segunda metade
Jean-Paul Didierlaurent
no Rascunho), Livro, de José Algo curioso das suas lei- Julie, autora dos textos do pen- e se torna um romance (tipica-
Trad.: Adalgisa Campos da Silva
Luís Peixoto ou até o infantil Li- turas é que elas são fragmenta- drive. Ela trabalha com limpeza mente francês, claro).
Intrínseca
vros!, de Murray McCain e John das — são duas páginas de um 176 págs.
em um banheiro de shopping e A narrativa de Didierlau-
Alcorn, além de, é claro, inúme- livro, seguidas por outras duas usa a escrita para se expressar — rent é leve e simples. O resultado
ros livros teóricos ou de não-fic- páginas de outro. “O trecho de é sua maneira despretensiosa de é um livro muito mais contem-
ção (um favorito é Lendo Lolita uma receita podia estar ao lado lidar com o mundo. E é apenas plativo que reflexivo. O narrador
em Teerã, de Azar Nafisi). da página quarenta e oito do úl- por meio desses textos que os lei- em terceira pessoa parece apontar
O leitor do trem das timo vencedor do Goncourt, tores sabem da personagem: pelo para cenas e descrevê-las, sem co-
6h27, romance de estreia do um parágrafo de um romance jeito que escreve sobre si mesma locar muitos detalhes ou opiniões
francês Jean-Paul Didierlaurent, policial podia seguir-se a uma e pela maneira com que se repre- no que vê. Também é fato que se
é mais uma obra que pode fisgar página de um livro de história”, senta no texto. A Julie que co- deve considerar a brevidade do
leitores pelo tema (e pelo título). diz o narrador. Essas transições nhecemos é a personagem que texto — 176 páginas de um livro
No livro, o autor apresenta vá- nem sempre fazem sentido e ela criou de si mesma. tamanho pocket — e logo se vê
rios personagens e atos relacio- nem sempre se completam. Como leitores, estão prin- que sua proposta é simplesmen-
nados, de maneiras diferentes, Guylain é um personagem cipalmente os idosos, que an- te narrar uma história doce com
com a leitura. A história é sim- aparentemente simples, uma seiam pelas leituras de Guylain um forte apelo para o leitor.
ples, mas várias situações podem criatura de hábito: faz sempre trecho e por ouvir novas vozes. E nesse Muitos temas e dilemas
soar familiares. as mesmas coisas, nos mesmos aspecto, o autor cria diferentes dos personagens poderiam ser
O leitor do trem das 6h27
O protagonista é Guylain horários. Pega sempre o mes- reações aos textos apresentados, abordados de maneiras mais pro-
Vignolles, um homem de 36 anos mo trem, reparando nas mesmas Para todos os passageiros mostrando a polifonia presente fundas. O autor tem boas ideias,
que mora e trabalha em Paris. Sua pessoas e paisagens durante o entre os leitores. Os fragmentos mas optou por não desenvol-
presentes na composição, ele era
ingrata função é ligar a chamada caminho, trabalha com uma ro- recolhidos são lidos por Guylain vê-las completamente. O leitor
Coisa, uma máquina imensa que tina engessada (em parte por si o leitor, um sujeito estranho que, em voz alta para os idosos, que do trem das 6h27 é uma leitu-
trata de destruir encalhes de livros mesmo), tem sempre o mesmo todos os dias de semana, lia em reagem e interagem igualmente ra rápida, leve e bastante acessí-
(o resultado é uma massa que se- peixe no aquário. Mas sua roti- voz alta e inteligível as poucas em voz alta imediatamente após vel. Isso não resulta em um livro
rá usada para a produção de mais na tem algo de Amelie Poulain, à leitura do trecho — ao mesmo necessariamente desinteressan-
páginas retiradas de sua bolsa.
papel). Guylain sente uma certa apaixonado e fixado nas peque- tempo que um fica curioso pa- te, mas pode desapontar leitores
repulsa pela profissão de destruir nas coisas, e sua simplicidade Eram fragmentos de livros sem ra saber o fim da história, outro que preferem mais desenvolvi-
livros — e encontra uma espécie pode ter um certo charme. qualquer relação com os outros. odiou o assunto. mento e profundidade.
30 | | fevereiro de 2016

ilustrações: Theo Szczepanski

A pornografia do
horror Como os judeus enfrentaram
o silêncio pós-Holocausto por
meio da utilização de recursos
pornográficos na literatura

Jacques Fux | Belo Horizonte - MG


fevereiro de 2016 | | 31

Sadismo não é para ser en- absurdos até então nunca vistos, Com a chegada le momento, Auschwitz passaria sociedade israelita. Inicialmente
tendido à luz da patologia sexual mesmo em momentos de guerra, de quase 70 mil a representar um sentimento de por meio dos Stalags — livretos
mas sim em relação à psicologia ocupavam a mente e a imagina- união e vínculo judaicos, mes- de conteúdo pornográfico nazis-
sobreviventes à
existencial, em que aparece como a ção das pessoas que não participa- mo diante da enorme diversi- ta — e da literatura de Ka. Tzet-
radical negação do outro, como a ram da Segunda Guerra. Diante Palestina, entre 1945 dade cultural. A mentalidade nik — sobrevivente que escreveu
negação do princípio social, assim dessas dúvidas, várias perguntas e 1948, a discussão mudaria, portanto, e Auschwitz, livros com conteúdo similar — e
como o princípio de realidade. eram levantadas: Como um aglo- acerca da memória mesmo sem ter tido uma revol- posteriormente pela exploração
Georges Bataille merado gigantesco de judeus se da Shoah começou a ta grandiosa como a do Gueto cinematográfica — nazisploita-
deixou matar por um número de Varsóvia, passaria a ser consi- tion — e artística de Boris Lurie,
aparecer lentamente
Como poderia o nazismo, muito menor de alemães? Os que derado um marco da resistência a fantasia pela Shoah caminhou
que foi representado por lamen- sobreviveram foram colabora- na sociedade e nas espiritual do povo judeu. Os pe- em uma direção distinta e ainda
táveis, maltrapilhos e jovens pu- dores dos nazistas? O que foram associações criadas quenos heroísmos, como a ajuda pouco explorada.
ritanos, como uma espécie de capazes de fazer para sobrevi- pelos sobreviventes. O mútua entre as pessoas que vi- Segundo a pesquisadora
solteironas vitorianas, hoje tornar- ver? Além disso, a própria figura assunto, ainda velado, viam nos Campos, o contraban- Marianne Hirsh, que vem es-
se em toda parte — na França, do testemunho, do sobreviven- do de comida, o toque do shofar tudando as formas de expressão
na Alemanha, nos Estados Uni- te traumatizado e calado, passou
começou a despertar da segunda geração de sobrevi-
em todo Yom Kipur, seriam tam-
dos — e em toda a literatura por- por diversas e paradoxais mudan- interesse e curiosidade bém identificados como forma ventes, há uma apropriação da
nográfica, a referência absoluta de ças: inicialmente condenada e da sociedade de uma de resistência e não mais, so- “memória” traumática dos pais,
erotismo. hoje cultuada, outrora despertou forma geral. mente, a luta armada, apesar de transferida de pai para filho, e
Michel Foucault o descrédito; hoje desperta a ad- muitos autores colocarem em que permitiria tentar entender
miração e heroísmo. Como, por- cheque essa questão “humanitá- o que aconteceu na Shoah, mas
O cenário, a memória e a tanto, entender esse pêndulo da ria” em Auschwitz (caso de Ka. que também seria capaz de fan-
segunda geração memória e do testemunho e suas Tzetnik, como veremos). tasiar acontecimentos e senti-
Em Experiência e pobreza, devidas implicações? Essa transformação do so- mentos. Essa geração chamada
Walter Benjamin discute a in- A criação do Estado de Is- brevivente, silenciado e malvis- de postmemory teria herdado es-
comunicabilidade das narrativas rael descartou, inicialmente, a to, em um herói que resistiu não sa memória traumática após ter
diante dos horrores da guerra. existência dos sobreviventes, foi simples, principalmente para recebido muitas informações
Em relação à Primeira Guerra já que muitos não entendiam a comunidade de Israel. Os fi- documentais, históricas e tes-
Mundial, escreve: “Na época, já o que de fato tinha acontecido lhos dessa geração, conhecidos temunhais, além de ter vivido
se podia notar que os combaten- ou simplesmente preferiam não como segunda geração de sobre- o julgamento de Eichmann. O
tes tinham voltado silenciosos acreditar nas evidências que co- viventes, cresceram com o mito contexto deste texto, entretanto,
do campo de batalha. Mais po- meçavam a surgir. Muitos relatos Auschwitz velado. É caracterís- é distinto, já que a criação da ex-
bres em experiências comuni- nos mostram que os judeus que tica da relação dos sobreviventes ploração pornográfica da Shoah
cáveis, e não mais ricos”. Dessa não participaram da Shoah ta- com seus filhos uma certa difi- aconteceu em virtude ao acesso
mesma forma voltaram, anos de- chavam os judeus com tatuagens culdade de relacionamento, ca- restrito às informações:
pois, os sobreviventes da Shoah no antebraço como fracos (que rinho, excesso de zelo e muito
que vivenciaram os horrores dos tinham se deixado abater) ou silêncio. Vergonha, trauma e li- De acordo com Hirsch,
Campos de Extermínio e conhe- como colaboracionistas do na- mitação para contar o que acon- postmemory é o processo pe-
ceram Auschwitz. Desejavam fa- zismo (se não, como ter sobrevi- teceu constituem paradigmas lo qual o trauma da geração an-
lar e contar ao mundo o que de vido?). O Estado de Israel deveria difíceis de serem enfrentados terior é mediado tardiamente por
fato tinha acontecido, mas per- ser forte em sua criação e consti- pelos sobreviventes. Assim, es- meio das narrativas e memórias
ceberam, com muita dor e so- tuído de pessoas que pudessem se silêncio despertou medo, ob- do próximo. No entanto, como
frimento, que só seriam capazes lutar; assim imaginava Ben Gu- sessão, invenção e fascínio nessa um espaço transgeracional de re-
de testemunhar com certas limi- rion, e, por isso, escolheu os no- nova geração que crescia sem cordações ligadas especificamen-
tações, como escreve, também, vos cidadãos da Terra Prometida. muito entender pelo que tinham te ao trauma cultural ou coletivo,
Giorgio Agamben: Ben Gurion, primeiro- passado seus pais: “seu objeto ou fonte é mediada não
-ministro de Israel, era sionista e por meio de lembrança, mas atra-
Não enunciável, não arqui- negava a Shoah e a diáspora do O desejo da juventude pela vés do envolvimento imaginativo
vável é a língua na qual o autor povo judeu. Assim, com o intui- verdade sobre fatos da vida que os e da criação”. Se o passado per-
consegue dar testemunho da sua to de criar esse Estado forte, es- adultos parecem sempre esconder, manece na maior parte incomu-
incapacidade de falar. Nela coin- colheu o hebraico como língua e a simultânea curiosidade sobre nicável, como no caso da segunda
cide uma língua que sobrevive aos oficial, desprezando o iídiche, e o fascínio em relação ao sexo e à geração de sobreviventes do Holo-
sujeitos que a falam com um fa- barrou a entrada de muitos so- violência, transformara-os em um causto, postmemory pode tornar-
lante que fica aquém da lingua- breviventes da guerra. Os que público particularmente receptivo se ainda mais criativo. Os Stalags
gem. É a “treva obscura” que Levi conseguiram entrar — e foram para as representações do que po- representam uma situação bastan-
sentia crescer nas páginas de Ce- muitos — permaneceram cala- deria ser chamado “sinceridade te diferente das narrativas de se-
lan como um “ruído de fundo”; é dos. Assim, um grande tabu e explícita”, ou seja, a manipulação gunda geração. Eles não aparecem
a não-língua de Hurbinek (mas- silêncio foram criados durante consciente ou inconsciente de leito- tardiamente, mas em paralelo e
s-klo), que não encontra lugar nas os primeiros anos do pós-guer- res e telespectadores acerca dos seus em alguns momentos até anterior
bibliotecas do dito, nem no arqui- ra nessa sociedade conturbada próprios medos pelo não dito, pelos à narrativa primária. Neste caso,
vo dos enunciados. e traumatizada. Porém, com a seus impulsos e por suas obsessões a fantasia antecipa as narrativas
chegada de quase 70 mil sobre- (Omer Bartov). fragmentadas dos sobreviventes.
Com o fim da Segunda viventes à Palestina, entre 1945 e Ao invés de um produto da post-
Guerra Mundial, uma geração 1948, a discussão acerca da me- Permeados por histórias, memory, a fantasia aqui é uma
de vítimas transtornadas, trau- mória da Shoah começou a apa- livros, relatos truncados e mui- expressão de protomemory — um
matizadas e perdidas busca por recer lentamente na sociedade e tas dúvidas, a segunda geração precursor da memória do Holo-
seus antigos pertences e mora- nas associações criadas pelos so- atinge a puberdade sem com- causto, ou melhor ainda, a sua ce-
das, mas os encontra em posse de breviventes. O assunto, ainda preender seus pais e Auschwitz. na primordial (PINCHEVSKY;
outros donos. Alguns sonharam velado, começou a despertar in- Eichmann então é capturado, o BRAND).
em imigrar para Palestina que es- teresse e curiosidade da socieda- julgamento começa e os testemu-
tava, até então, com as fronteiras de de uma forma geral. nhos finalmente passam a contar A questão, portanto, que
fechadas em virtude do domínio A grande mudança, no en- suas histórias e experiências, já se levanta aqui, não é um pro-
inglês. O mundo não conhecia tanto, em relação à memória da que o objetivo político do jul- blema a posteriori ou post, after,
suas histórias, seus traumas e a Shoah, ocorreu em 1961 com o gamento de Eichmann era exa- discutido por Hirsh. O ponto
grande tragédia dos Campos de julgamento de Adolf Eichmann. tamente esse. Os testemunhos crucial é mostrar o problema du-
Extermínio e por isso os ques- As testemunhas, até então cala- falavam catarticamente e a so- rante a liberação das informações
tionavam constantemente, per- das, foram convidadas a falar so- ciedade, assim como esses jovens acerca da Shoah. Nesse período,
guntando-os se eles se deixaram bre o que passaram. Os jovens da segunda geração, escutavam e os filhos dos sobreviventes bus-
abater e se teriam sido fracos, finalmente ouviram e começa- fantasiavam o que tinha aconte- cavam informações para enten-
entregando-se sem lutar. A igno- ram a acreditar no que de fato ti- cido. Portanto, é nesse contexto der melhor esse assunto velado e,
rância, o silêncio e o desconheci- nha acontecido e essas revelações conturbado, traumatizado por por isso, viveram uma dicotomia
mento ainda reinavam nessa Era chamaram a atenção da mídia, pais silenciados e filhos ansiosos de sentimentos: se por um lado
anterior ao testemunho. tanto em Israel, quanto em to- por carinho, por entendimento e recebiam a força e a autoridade
Questões em relação aos do mundo. Essa catarse coletiva por desejo de saber, que se cria do Estado de Israel, por outro la-
culpados, às atrocidades e aos foi unificadora e, a partir daque- esse imaginário pornográfico na do sentiam a ausência, viviam o
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trauma e a incomunicabilidade nidade e sua memória coletiva. Ka. Tzetnik, até então suas gerações futuras; como gru- tou o seu estudo sobre o “kistch
dos seus pais, esses prisioneiros Segundo Hannah Arendt, “nas um sobrevivente pos e nações retrabalham episó- and death” (“cafona e morte”)
do silêncio. Como essa geração condições do terror total, nem dios de crise e violência, criando que seria “uma sobrecarga de
desconhecido que
entendeu (ou fantasiou) o sofri- mesmo o medo pode aconselhar e superando a própria questão da símbolos: um cenário barroco:
mento — Regarding the Pain a conduta do cidadão, porque o escrevia sob esse memória; e, finalmente, como uma evocação de uma atmosfera
of Others (Susan Sontag, 2004) terror escolhe as suas vítimas in- pseudônimo, publicara entender esses traumas que tam- misteriosa, do mito e da religio-
— por que passaram seus pais? dependentemente de ações ou livros com descrições bém são influenciados pela mes- sidade que envolve uma visão da
Assim, uma forma de fan- pensamentos individuais”. sádicas, pornográficas ma violência exacerbada que se morte anunciada como uma re-
tasiar esse “sofrimento dos ou- Esse fenômeno de enfren- perpetua, mesmo sem consciên- velação que se abre para o nada
e que clamavam por
tros” surgiu inicialmente em tar o silêncio e o tabu nazista por cia completa dos indivíduos par- — nada além de atrocidade e da
Israel por meio dos Stalags. Es- meio da utilização de imagens e contar a verdade de ticipantes e da sociedade. noite”. E mostrou que, talvez, a
ses livretos apresentavam histó- recursos pornográficos também Auschwitz. melhor forma de falar sobre es-
rias com conteúdo pornográfico se estendeu para a filmografia. Stalags sa experiência seria pelo silêncio.
nazista despertando o imaginá- Seguindo essa mesma corrente Segundo Michel Fou- Em relação ao sucesso dos Stala-
rio dessa sociedade refém do si- de exploração sexual do conteú- cault (1984), a pornografia e o gs, o silêncio traumático foi um
lêncio; construída para ser forte do nazista, alguns cineastas ita- erotismo do Nazismo estariam fator importante para entender
e olhar só para o futuro, despre- lianos, no fim dos anos 1960 e presentes em todos os lugares, o problema, mas o conceito de
zando o seu próprio passado no começo dos anos 1970, pro- especialmente nos Estados Uni- Friedlander não se enquadra di-
diaspórico e de perseguições. duziram filmes sádicos, que re- dos, França e Alemanha. No en- retamente nessa questão. Já Pri-
Além disso, Ka. Tzetnik, até contavam as histórias narradas tanto, Foucault se esqueceu de mo Levi se empenhou na busca
então um sobrevivente desco- nos Stalags e nos livros de Ka. analisar (talvez por desconhe- pelo entendimento das ques-
nhecido que escrevia sob esse Tzetnik. Este texto, portanto, cimento) a pornografia e o ero- tões relativas à Shoah e, em seu
pseudônimo, publicara livros apresenta e discute a questão da tismo encontrados na série de último livro, apresentou sua
com descrições sádicas, porno- pornografia, do tabu e do sa- livretos distribuídos em Israel polêmica revelação acerca dos
gráficas e que clamavam por dismo encontrados nessas di- no início dos anos 1960, conhe- “afogados e sobreviventes” se-
contar a verdade de Auschwitz. versas formas de expressão. Em cidos como Stalags. Os livretos gundo o qual os sobreviventes
Torna-se interessante, por- um contexto mais global, pre- chamavam a atenção especial- teriam sido aqueles que recebe-
tanto, pensar as próprias bases da tende-se refletir sobre as raízes mente pela narração de cenas de ram algum tipo de privilégio, o
violência em qualquer sociedade, de violências extremas, partindo tortura, sadismo, dominação e que se aproxima um pouco com
bem como os limites, tanto da de situações limítrofes; os efei- sexo. Esses livretos apresentavam as teorias controversas de Ka.
violência per si, quanto dos efeitos tos (e causas) que tais catástro- oficiais femininas da SS vestindo Tzetnik, fonte para os Stalags.
dessas catástrofes para a huma- fes exercem sobre a sociedade e uniformes sensuais e exploran- Assim é necessário ir além des-
do sexualmente soldados aliados sas teorias consagradas, tentando
capturados durante a guerra. entender melhor o cenário cul-
Autores sugerem que a literatu- tural que permitiu o surgimento
ra foi escrita originalmente em e sucesso desse fenômeno.
hebraico (Pinchevski; Brand, A geração que se interes-
2007; Bartov, 1997; Libsker, sou pelos Stalags foi a geração
2007), porém com uso de angli- dos filhos dos sobreviventes que
cismos e personagens com no- herdou essa postmemory e que
mes americanos e ingleses com o “desejava” o conhecimento, en-
intuito de atrair maior público. tendimento e o carinho de seus
A série Stalag foi um fenômeno pais, totalmente incapazes de
de vendas durante os primeiros fornecer respostas. Além dis-
anos da década de 1960, sobre- so, essa geração viveu e sentiu a
tudo entre os filhos dos sobre- questão do poder e da força do
viventes da Shoah que estavam, recém-criado Estado de Israel
também, interessados nos teste- construído sob a insígnia de de-
munhos apresentados durante o fender os judeus, agora fortes e
julgamento de Eichmann. destemidos, e nunca mais se en-
A explicação para essa tregar como “sheep to the slau-
questão foge um pouco às teo- ghter” (“ovelhas ao matadouro”)
rias tradicionais. Foucault argu- — visão Sionista recorrente em
mentou acerca da banalização da Israel até o julgamento de Ei-
imagem nazista, da utilização em chmann. Considerada puritana
toda parte da figura de Hitler, e destemida, a sociedade israeli-
da suástica e de Auschwitz, po- ta produziu esse fenômeno lite-
rém seu estudo foi a posteriori e rário-pornográfico.
estaria mais relacionado à nazis- Trauma, falta de comuni-
plotation. Susan Sontag discutiu, cação, postmemory, lembranças
em seu famoso texto Fascinating inventadas, poder, fetiche, pu-
fascism (Fascinante fascismo), o berdade e pornografia contribuí-
fascínio e encanto do cinema na- ram, portanto, para a difusão e
zista, a partir da visão, sobretudo, o sucesso dos Stalags. Ao ler os
dos filmes de Leni Riefenstahl. Stalags e desconhecendo o que
Para ela, a erotização e o fetiche de fato tinha ocorrido durante a
estariam relacionados às relações Shoah, esses jovens eram levados
de poder. O uniforme dos SS, a se imaginarem nesses mesmos
que foi muito utilizado nos Sta- Campos, passando por torturas,
lags e nos filmes com conteúdo explorações sexuais e sadismo,
nazista pornográfico, também que culminavam com a fuga e a
foi visto por Sontag como um revanche desses prisioneiros.
signo erótico de poder e virilida- Durante o julgamento de
de. Além disso, Sontag relaciona Eichmann, em 1961, começou
o Fascismo ao sadomasoquis- a circular a primeira versão dos
mo — enquanto o Fascismo é livretos conhecida como Sta-
um teatro, o sadomasoquismo é lag 13. O livreto conta a histó-
a participação ativa nesse teatro ria de Mike Baden, um piloto
com conteúdo sexual. Apesar de inglês que fica preso em um dos
explicar alguns pontos em rela- Campos nazistas. De repente
ção ao fascínio e ao sadismo dos preso, Mike Baden se vê na mão
Stalags, as teorias de Sontag não de um regimento SS composto
sustentam as relações culturais e somente de mulheres, com rou-
complexas da recém-sociedade pas e corpos provocantes, e que
israelita. Já Friedlander apresen- o exploraram sexualmente. O
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livreto narra ainda muitas prá- para entender o sucesso dos Sta- Em relação à sociedade is- vingança. Isso só poderia ser rea-
ticas sadomasoquistas e, ao final lags é necessário compreender raelense, o que representa o sado- lizado por meio do imaginário.
de tanta exploração e tortura, os a questão do sadomasoquismo masoquismo nesses livretos é o Se por um lado aparece a
prisioneiros conseguiam se liber- (dominação e poder) e sua re- questionamento das relações de justiça oficial representada pelo
tar e passariam a ser os tortura- presentação nesse contexto con- poder, seja diante do Estado au- Estado, por outro, aparece esse
dores e exploradores sexuais das turbado da sociedade israelense. toritário e poderoso, seja diante desejo velado dos sobreviventes
SS. Aqui aparece uma relação im- Subversão, silêncio e mistério le- dos pais traumatizados e silencia- e dos que receberam essa postme-
portante: as vítimas buscavam e varam essa nova geração a se in- dos: “em tais casos, a prática cul- mory pela vingança e pelo prazer
conseguiam vingança, que perpe- teressar por essa prática: “O que tural do sadomasoquismo serve de perpetrar a dor aos carrascos
travam com extrema crueldade. aparece através do sadomaso- como uma resposta à maneira de nazistas, como narrado nos Sta-
Com o sucesso da primeira quismo é a subversão, mais que a lidar com as relações de poder so- lags: “os Stalags podem ser lidos
tiragem (cerca de 80 mil revistas afirmação de um poder social co- cialmente codificados” (Kerner). como uma reencenação de mais
foram vendidas, de acordo com dificado. Isto ocorre pela drama- O novo judeu, portanto, até um drama, o do direito de pu-
Pinchevski e Libsker), uma outra tização de momentos e situações 1961, vivia um conflito e viu nos nir. Essa questão manifestou o
série é lançada — Stalag 217, onde o poder submisso é mais Stalags uma forma de subverter a que foi rejeitado de forma con-
que clamava ser “a verdadeira, visível” (Pinchevski; Brand). ordem imposta a eles. sistente no julgamento — que
honesta e brutal história da vida Uma primeira forma de a punição seria inseparável da
dos prisioneiros confinados por analisar o sadismo é pensar na O que (re)legitimavam economia do prazer” (Pinche-
mulheres sádicas [...] mulheres possibilidade da representação era um drama social como cerne vski; Brand). Um dos Stalags,
cuja essência toda é baseada no de algo impensável ou inuma- da ideologia sionista: o confron- por exemplo, apresentava em seu
desejo transbordante pelo san- no que subverteria a moral (Ker- to entre o novo judeu israelense e epílogo uma citação do Deutero-
gue dos outros, a fim de obter ner). O termo criado a partir das o velho judeu da diáspora, como nômio que justificaria essa busca
prazer sádico de sua dor, e explo- experimentações do Marquês emerge no contexto do julgamen- pela vingança: “A mim perten-
rar a masculinidade dos prisio- de Sade, além de apresentar um to de Eichmann. O Stalags podem cem a vingança e a recompensa”.
neiros totalmente entregues”. A catálogo de perversões e liber- ser lidos como uma narrativa fic- O que se encontra nos Sta-
série continuou até 1965: tinagem, polemiza a questão e cional situando o novo judeu no lags é, portanto, mais que uma
“ilustra como o raciocínio estri- lugar do antigo, encenando assim questão somente sexual e de vio-
Títulos subsequentes incluí- to sistematizado promove uma a contradição entre os israelenses lência: é uma questão de inver-
ram Stalag 3, Stalag 7, Sta- desumanização das vítimas, nativos e geração dos sobreviventes são de ordem e poder.
lag 10, Stalag 33, Stalag 69, e elimina todo sentimentalis- (Pinchevski; Brand).
Stalag 190, até o Stalag 1000. mo humano a partir de atos de Algumas notas introdutó-
Os mesmos títulos foram substi- crueldade” (Kerner). Por meio da erotização e rias sobre o sadomasoquismo são
tuídos por alguns mais dramáti- do sadomasoquismo, os Stalags importantes. Primeiro, o sadoma-
cos como: Stalag of the Devils, representavam o imaginário da soquismo não é propriamente um
Stalag of the Holocaust Perver- relação do soldado aliado viril ato de violência, sexual ou não.
sions Wolves, Women’s Stalag, que se revoltava e se vingava dos Pelo contrário, é um ato de ence-
Death Stalag, e I Was a Stalag perpetradores nazistas. Primei- nação da violência, um jogo que
Commander. Versões posteriores ramente submetidos à tortura e se baseia em estereótipos sociais em
mudaram os cenários dos campos submissão, os soldados america- prol do prazer sexual. Krafft-E-
alemães para campos similares na nos e ingleses utilizavam da mes- bing e Freud postularam sadismo
Alemanha, Japão, Rússia, Argélia ma brutalidade e sadismo contra e masoquismo como psicopatolo-
e Síria — Geishas Stalag, Sta- esse esquadrão de mulheres SS. gias opostas, ainda que inter-rela-
lag Stalingrad, Stalag of Ex- Em uma relação de domi- cionados da sexualidade masculina
periments, e Desert Stalag. De nação feminina sadomasoquista e feminina, respectivamente. Freud
todos os mais de 70 títulos pro- o que se evoca é a primeira estru- já tinha especulado sobre a nature-
duzidos, a mania da série Sta- tura da criança em relação à do- za lúdica dessas patologias, mas foi
lag começou a declinar em 1965 minação feminina. Assim, mãe Reik quem primeiro separou maso-
(Pinchevski; Brand). e pátria-mãe são colocadas em quismo de violência sexual e apre-
pauta nesse jogo sádico apresen- sentou-o como uma dramatização
Os Stalags têm basica- tado nos Stalags, que se libertam erótica da produção de fantasias
mente o mesmo enredo. Solda- pela inversão de papéis: de poder e impotência. A realiza-
dos paraquedistas americanos ção de Reik abriu o caminho pa-
ou britânicos, que ao atacar os Aqui é o paralelo em rela- ra considerar o sadomasoquismo
exércitos nazistas, são presos e le- ção à construção do novo judeu como uma arena para a negocia-
vados aos Campos Alemães Per- em Israel: o novo judeu também ção de questões de poder, gênero e
manentes — Stammlager. Nesse foi encarregado de identificar suas identidade através da realização
local, um grupo de mulheres SS, longínquas raízes em direção a um prazerosa de fantasias sexuais. Ex-
com roupas insinuantes, seios modelo distante e abstrato de iden- plicações subsequentes desenvolve-
avantajados e uniformes seduto- tidade, que foi igualmente basea- ram a ideia do sadomasoquismo
res, torturavam e estupravam es- do numa negação ritualizada de como uma dramatização da in-
ses soldados aliados. um passado socialmente banido. O terseção da sexualidade e do poder
Pouco depois dessa série, novo judeu tinha que surgir mas- através do uso excessivo de códigos
um novo enredo é criado. Surge culino, viril e forte, descartando sociais (Pinchevski; Brand).
o livro de Gutman, I Was Colo- todos os parentescos frágeis associa-
nel Schultz’s Private Bitch, que dos à figura histórica do velho ju- A sociedade israelense, por-
apresentou a primeira relação se- deu (Pinchevski; Brand). tanto, é criada sob a névoa da
xual e sadomasoquista entre uma Shoah e a partir de suas limitações
judia e um alemão. O livro foi Será que o julgamento de de representação. O testemunho,
perseguido, proibido e queima- Eichmann clamava pelo direito à e todas as suas implicações e trau-
do pela Justiça em Israel, porém o vingança e à justiça? Segundo os mas, produziu esse fenômeno
mesmo enredo continuou sendo escritos do conhecido Caçador ainda pouco estudado, mas im-
narrado, também, no Schultz’s de Nazistas, Simon Wiesenthal, portante para entender a questão
Bitch. Poucos anos depois do alguns judeus organizaram pe- sádica do Nazismo. Entretanto,
boom de vendas, os Stalags, talvez quenos grupos com o intuito de resta estudar ainda uma outra
devido às perseguições da justiça perseguir e matar esses perpetra- fonte primária dessa questão: a li-
israelense, das reclamações dos dores nazistas. No entanto, essa teratura de Ka. Tzetnik.
sobreviventes ou da exposição fi- não era uma prática corrente e o
nalmente das “verdades” da Sho- Estado de Israel, apesar das crí- Ka. Tzetnik 135633
ah, os livretos não despertaram ticas de alguns pensadores como Antes da chegada e do su-
mais a atenção dos leitores. Hannah Arendt, desejavam tor- cesso dos Stalags, um outro autor
A geração que se atraiu nar o processo de justiça como já criava polêmica. Ka. Tzetnik
pelos Stalags encontrava lícito e legitimar politicamen- havia publicado em 1953 o livro
nas torturas, nos abusos te seu novo Estado. Não havia e House of Dolls, de forte con-
e no sadismo os seus não teria como os sobreviventes teúdo erótico, descrevia um su-
próprios pais. Assim, exigirem justiça, muito menos posto bordel que se encontrava
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em Auschwitz, conhecido como ventes — atestaram os limites Os livretos chamavam a de não têm lugar nenhum” (Milner). Discutir os
Joy Division, onde os soldados dos ambientes concentracionais atenção especialmente limites do próprio ser humano e se ver apenas co-
nazistas teriam relações sexuais nazistas e da crueldade humana. mo um sobrevivente que teve a sorte de não ser
pela narração de
com prisioneiras judias. O autor Além da literatura, Dinur um perpetrador é uma questão crucial e muito
já havia publicado, em hebraico, ficou marcado como um impor- cenas de tortura, discutida na obra de Ka. Tzetnik.
outros livros polêmicos e tam- tante testemunho no julgamen- sadismo, dominação Constrói-se, portanto, em Ka. Tzetnik e nos
bém de forte conteúdo sexual, to de Eichmann, pois o escritor e sexo. Esses livretos outros testemunhos, um paradoxo entre a necessi-
relatando sua passagem por Aus- criou, naquele momento, uma apresentavam oficiais dade e a impossibilidade de narrar, o que significa,
chwitz: Salamandra (1946) e concepção de Auschwitz como segundo Agamben, que a dificuldade faz parte da
femininas da SS
Piepel (1961). sendo “outro planeta”: “isso é própria estrutura do testemunho. O que aconteceu
Ao ser chamado como tes- uma crônica de um outro pla- vestindo uniformes se apresenta aos sobreviventes como algo verdadei-
temunho durante o julgamento neta Auschwitz”. Essa questão sensuais e explorando ro e inesquecível, mas essa verdade não deixa de
de Eichmann, o verdadeiro no- foi (e ainda é) muito discutida, sexualmente soldados ser também inimaginável: “Trata-se de fatos reais
me do pseudônimo de Ka. Tzet- já que não foi em outro planeta aliados capturados que, comparativamente, nada é mais verdadeiro;
nik foi revelado: ele se chamava que a indústria alemã conseguiu uma realidade que excede necessariamente os seus
Yehiel Dinur e era sobrevivente criar, com tamanha eficiência,
durante a guerra.
elementos factuais: é esta a aporia de Auschwitz”
em Auschwitz. A sua participa- essa indústria do extermínio. (Agamben). A dificuldade de que fala Agamben
ção no julgamento de Eichmann Giorgio Agamben, por exemplo,
foi uma das cenas chave desse problematiza a questão ao dizer
penoso processo. O sobreviven- que ainda vivemos nesse mundo
te contou sua própria história e que produziu, e é capaz de pro-
revelou ser o escritor Ka. Tzetnik duzir, novamente, Auschwitz: “a
(KZ, abreviação de Konzentra- matriz escondida e o nomos de
tionslager, prisioneiro que tinha um espaço político no qual ain-
o número 135633). Visivelmen- da estamos vivendo”.
te transtornado ao testemunhar Polêmica e contraditória
e relembrar o que chamou das em relação à nova aspiração do
“crônicas de outro planeta”, Di- Estado de Israel, a literatura de
nur desmaiou durante seu teste- Ka. Tzetnik não foi legitima-
munho e teve que ser carregado da por esse país inicialmente, já
para fora do tribunal. Anos mais que queriam mostrar apenas os
tarde, em uma entrevista conce- grandes atos de heroísmo e resis-
dida ao 60 Minutos, o escritor ar- tência. Assim, casos como o de
gumentou que o mais pavoroso Jansz Korchak que morreu jun-
em Auschwitz, e que de fato revi- to às suas crianças e estudantes
veu durante aquele momento do nos Campos de Extermínio e a
seu testemunho, foi compreen- resistência armada implementa-
der que ele próprio (ou todo ser da por jovens durante o Levan-
humano) teria sido capaz de fa- te do Gueto de Varsóvia eram
zer o que os nazistas (na figura assuntos legitimados pelo novo
do temível e banal Eichmann) fi- Estado de Israel.
zeram: “Eu fiquei com medo de
mim mesmo... Eu vi que era ca- A literatura oficial do Ho-
paz de fazer exatamente isso. Eu locausto tipicamente consistia de
sou… exatamente como ele. Ei- contos quase-ficcionais de resistên-
chmann está em todos nós”. cia e sacrifício heroicos: crianças
Ao escrever sob o pseu- contrabandeando alimentos e ar-
dônimo de Ka. Tzetnik, Dinur mas para os guetos, Janusz Kor-
queria escrever em nome de to- chak indo com seus alunos para as
dos aqueles que vivenciaram os câmaras de gás, jovens heróis pre-
terríveis acontecimentos de Aus- ferindo morrer como lutadores em
chwitz e que não foram mais que vez de vítimas. Concentrando em
um número nessa grande indús- ação, o sacrifício e a morte legíti-
tria da morte. Seus livros foram ma, esses contos seguiam a linha da
os primeiros a circular em Israel ideologia sionista e, portanto, eram
com o tema da Shoah e escritos utilizados como material didático
na nova língua do povo e do Es- nas escolas. Por outro lado, os ma-
tado de Israel. Diferentemente teriais ilegítimos — os Stalags e os
dos Stalags, os livros de Ka. Tzet- livros Ka. Tzetnik — foram distri-
nik, apesar de lidos, não foram buídos de mão em mão em ​​ segredo
um grande sucesso de vendas, já e mantidos escondidos no quintal,
que a sociedade ainda se encon- longe dos olhos de adultos. Ao con-
trava no momento de silêncio trário das narrativas moralizantes
em relação a esse tema. propagadas pela ideologia sionista,
A literatura de Ka. Tzetnik, os textos apócrifos forneceram uma
a meu ver, pode ser vista como fonte de excitação ilícita por violar
uma tentativa de ampliar o cam- um tabu duplo — o do sexo e do
po de ação da literatura de tes- Holocausto, dois domínios sancio-
temunho. Assim como ousou nados por adultos e barrados aos jo-
Georges Bataille ao discutir os vens (Pinchevski; Brand).
limites da linguagem, Ka. Tzet-
nik foi além da desumanização Ao violar tabus e tratar da
do ser humano, que encontra- pornografia, Ka. Tzetnik esta-
mos nos Campos, para narrar ria tentando atingir e aumentar
acontecimentos além dos limites os limites e o alcance da língua
da linguagem e do entendimen- e do testemunho? O não nar-
to humano. O autor, ao escrever rável estaria mais próximo na
o que alguns chamam de ficção- experiência verbal descrita por
documentário, apresenta o indi- meio da perversão sexual? “Na
víduo da forma mais cruel e crua literatura representativa de Ka.
possível, capaz de realizar as coi- Tzetnik, ele é transportado pa-
sas mais absurdas e inconcebíveis ra uma terra selvagem, onde
enquanto seres supostamente ra- traços normais humanos que
cionais. Esses membros da “zona constituiriam os seus determi-
cinzenta” — afogados e sobrevi- nantes genéticos de humanida-
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torna-se explícita nos momen- dade. As narrações heroicas acerca Trauma, falta de te o julgamento de Eichmann e “estas superfícies deram pistas
tos em que se duvida dos fatos dessa essência humana que ainda comunicação, os livros de Ka. Tzetnik relata- sobre as mentalidades e as histó-
apresentados: “Hoje — neste seria preservada, mesmo diante vam a visão particular do autor rias que as narrativas oficiais não
postmemory,
hoje verdadeiro, enquanto es- das grandes tragédias e privações, enquanto sobrevivente de Aus- podiam” (Krecauer).
tou sentado frente a uma mesa, foram refutadas veementemente lembranças chwitz, esse filme apresentava O termo Nazisplotation
escrevendo — hoje eu mesmo pelo polêmico escritor: “de fato, inventadas, poder, cenas de torturas e exploração é, no entanto, mais abrangente
não estou certo de que esses fatos nos livros de Ka.Tzetnik, os ca- fetiche, puberdade sexual supostamente inspiradas e engloba qualquer tipo de fil-
tenham realmente acontecido”, sos mais extremos de estudo da e pornografia em um personagem nazista real, me, desenho animado e propa-
como escreve outro sobreviven- existência darwinista são aqueles que já teria sido estudado his- ganda que utilize o Nazismo e a
contribuíram, portanto,
te, Primo Levi em É isto um detentores de função que, ansio- toricamente. O nome Ilsa seria violência como pano de fundo.
homem?. Ka. Tzetnik leva a sos para preservar as suas posi- para a difusão e o uma referência à criminosa de Recentemente o filme de Taran-
questão de Levi ao extremo, mis- ções, perdem todos os restos de sucesso dos Stalags. guerra Ilse Koch, conhecida co- tino Bastardos inglórios foi bas-
turando as possibilidades fic- empatia e solidariedade e cruel- mo “The Bitch of Buchenwald” tante discutido e rendeu muitas
cionais e testemunhais (além mente atacam colegas de cela (Die Hexe von Buchenwald — “A polêmicas, mostrando como es-
de pornográficas) da língua. Há que representam um obstáculo puta de Buchenwald”), esposa se tipo de abordagem ainda atrai
sobreviventes de eventos-limite ao seu status” (Milner). do SS Karl Koch que comandou muito o público e a crítica, mas
que veem na ficção o caminho Dinur havia escrito e pu- Buchenwald e Madjanek. Segun- que é questionável enquanto fic-
para escrever sobre o horror por blicado um livro de poemas antes do testemunhos e provas, Ilse uti- ção histórica. De acordo com
eles experienciado — eles acredi- da Shoah. Após a Shoah, even- lizava, por exemplo, pele humana os pesquisadores Daniel Magi-
tam que “apenas a passagem pe- to que marcou profundamente para construir suas lâmpadas e low, Kristin T. Vander, Elizabeth
la imaginação poderia dar conta seus escritos, sua vida e a cria- golpeava frequentemente prisio- Bridges e Natalio Pagés e Nico-
daquilo que escapa ao conceito” ção de um novo personagem — neiros que a olhassem enquanto lás Rubi, uma grande lista de fil-
(Seligmann-Silva). Ka. Tzetnik —, Dinur dizia que ela desfilava trajando minissaia e mes de exploração sexual nazista
Quando publicou seus li- seu livro de poemas não tinha sem calcinha. Apesar dessa nota foi lançada na década de 1960
vros, Ka. Tzetnik polemizou e mais sentido algum e que deve- “explicativa” apresentada no iní- e 1970: La caduta degli dei (Lu-
agitou a conservadora e silencia- ria ser queimado. Assim, pegou cio do filme, a construção desse chino Visconti, 1969, Itália);
da sociedade israelense: emprestado seu próprio livro na trash não representava um docu- Love Camp 7 (Lee Frost, 1969,
biblioteca e devolveu apenas as mentário ou uma ficção histórica. EUA); 5 per l’inferno (Gianfran-
Nas décadas de 1950 e cinzas do seu passado, das suas A maioria desses filmes de co Parolini, 1969); Il portiere di
1960, jovens israelenses frequente- crenças e das suas próprias pala- exploração sexual nazista apre- notte (Liliana Cavani, 1973, Itá-
mente liam Ka-Tzetnik porque ele vras. Relendo a famosa frase de sentava o mesmo enredo: todos lia); Eine Armee Gretchen (Erwin
era a única fonte legítima e sexual- Adorno — “escrever um poema os alemães eram nazistas e todos C. Dietrich, 1973, Suíça); Salò o
mente excitante da literatura sádica após Auschwitz seria um ato de os nazistas eram criminosos de le 120 giornate di Sodoma (Pier
em uma sociedade ainda puritana barbárie”—, Dinur desconside- guerra e pertenciam à SS. Além Paolo Pasolini, 1975, Itália); Il-
e fechada, como resultado de que o rou a própria poesia escrita antes disso, remetendo à figura mitifi- sa, She Wolf of the SS (Don Ed-
Holocausto, de alguma forma, ain- da Shoah já que, para ele, as pala- cada de Josef Mengele, todos os monds, 1975, EUA); Salon Kitty
da era enredada em suas mentes, vras antes da Shoah não significa- SS realizavam experiências mé- (Tinto Brass, 1976, Itália); La-
repelindo e fascinando através das vam absolutamente nada. dicas e sádicas com prisionei- ger SSadis kastrat kommandantur
imagens pornográficas (Bartov). Assim, a literatura de Di- ros. Retomando o “fascínio do (Sergio Garrone, 1976, Itália);
nur, ainda pouco estudada, é im- fascismo”, as comandantes da SS lager 5: l’inferno delle donne
A fascinação pela imagem portante para entender toda a SS também eram sempre mos- (Sergio Garrone, 1976, Itália);
pornográfica, pela desumaniza- questão do testemunho, dos pró- tradas com uniformes e botas Le deportate della sezione specia-
ção do ser e pelo sadomasoquis- prios limites do ser humano e co- insinuantes e seios avantajados. le SS (Rino Di Silvestro, 1976,
mo como forma de desacordo mo uma forma de ligação entre Esses filmes de baixo orçamen- Itália); Liebes lager (Enzo Giacca
diante do poder, levou os jovens essa pornografia sadomasoquista to e tecnicamente malfeitos fo- Palli, 1976, Itália); Helga, la lou-
a se interessarem secretamente dos Stalags e os novos filmes de ram lançados e comercializados ve de Stilberg (Patrice Rhomm,
por esse tipo de literatura: exploração sadiconazista, que se- principalmente na Europa e nos 1977, França); Elsa Fräulein SS
guiriam nessa mesma linha. Estados Unidos, mostrando uma (Patrice Rhomm, 1977, Fran-
Ka. Tzetnik apresenta as- importante distinção entre Sta- ça); Pasqualino settebellezze (Lina
sim a desumanização como uma Sadiconazista filmes lags e os livros de Ka. Tzetnik. Wertmüller, 1977, Itália); Ca-
redução dos seres humanos e de ou Nazisplotation Produzidos e comercializados na sa privata per le SS (Bruno Ma-
seus mais íntimos valores a nada, É possível reconstruir os in- Europa e nos Estados Unidos es- tei, 1977, Itália); Kaput lager: gli
a objetos negociáveis no ​​ sistema teresses, atitudes e valores de uma ses filmes foram quase descon- ultimi giorni delle SS (Luigi Bat-
de câmbio do Campo. A diferen- sociedade perdida a partir do seu siderados em Israel, pois, nesta zella, 1977, Itália); L’ultima orgia
ça entre o humano e a matéria foi próprio lixo? Talvez devêssemos nova nação judaica, os jovens já del III Reich (Cesare Canevari,
eliminada nesta zona cinzenta em dar uma olhada em alguns dos li- tinham recebido o mesmo tipo 1977, Itália); La svastica nel ven-
que uma política de escassez total xos que estão passando em nossas de conteúdo de forma diferente. tre (Mario Caiano, 1977, Itália);
leva à exploração das partes huma- salas de cinema hoje. Você gosta- A questão aqui é interes- La bestia in calore (Luigi Batzella,
nas e de seus restos (Milner). ria que um historiador do futuro sante: se por um lado a segun- 1977, Itália); KZ9: lager di ster-
especulasse sobre sua vida baseado da geração de sobreviventes em minio (Bruno Mattei, 1977, Itá-
Qualquer tentativa de em uma impressão musguenta de Israel convivia com o silêncio, lia); Le lunghe notti della Gestapo
manter alguma sombra de hu- uma cópia, por exemplo, do Ilsa, com o trauma e com essa heran- (Fabio De Agostini, 1977, Itália);
manidade e de solidariedade, She Wolf of the SS? ça da memória que ia aos pou- Bordel SS (José Bénazéraf, 1978,
compaixão, lealdade e amizade é cos sendo revelada a partir do França); Convoi de filles (Pierre
descartada nas obras de Ka. Tzet- Ilsa, She Wolf of the SS (Ilsa, julgamento de Eichmann, es- Chevalier - Jesús Franco, 1978,
nik, já que, segundo o autor, o a guardiã perversa da SS, dirigido sa mesma segunda geração fo- França); Nathalie rescapée de l’en-
“poder absoluto” desumaniza as por Don Edmonds) foi lançado ra de Israel receberia, anos mais fer (Alain Payet, 1978, França).
vítimas: “O Poder Absoluto lan- em 1975 e o crítico do New York tarde, esses filmes em meio ao Há ainda uma distinção
ça seres humanos a um estado Times Vincent Canby teceu os boom da literatura de testemu- entre os filmes trashes e/ou gar-
natural, um universo hobbesia- comentários acima acerca do que nho e dos relatos e escritos cada bages, como são considerados os
no de roubo e corrupção, des- chamou de lixo ou dejeto dessa vez mais frequentes dos sobrevi- filmes da série Ilsa, os filmes SS
confiança e animosidade, a luta nova categoria de filmes. O enre- ventes da Shoah. Talvez esse ti- Experiment — Love Camp, SS
de todos contra todos” (Sofsky). do do filme apresenta uma histó- po de questionamento, trauma Girls, SS Camp Women’s Hell, en-
Ka. Tzetnik construiu seus ria muito similar ao dos Stalags, e enfrentamento de gerações, tre outros, e os que a pesquisado-
personagens de uma forma que lançados quase uma década an- que foi discutido nos Stalags em ra Annette Insdorf, por exemplo,
ninguém desejava ver e acreditar tes. O filme trata da personagem Israel, tenha atingido a Europa chamou de avant-garde. Segundo
ser possível. O ser humano, sim, Ilsa, uma comandante da SS, e os Estados Unidos em pro- Insdorf, os filmes Il portieri di no-
seria capaz de chegar ao fundo, à voraz e sexualmente insinuante, porções menores, mas com um tte (The Night Porter, 1974, Lilia-
desumanização total, à categoria que estuprava e praticava ativi- atraso de alguns anos. na Cavani) e Salò o le 120 gionare
de Muçulmano totalmente entre- dades sadomasoquistas todas as Portanto, estudar esses fil- di Sodomo (Salò, or the 120 Days
gue. Mas, segundo o autor, o ser noites com algum prisioneiro e mes, assim como estudar os Sta- of Sodom, 1975, Pier Palo Paso-
humano ainda seria capaz de algo logo em seguida os matava. En- lags e os livros de Ka. Tzetnik lini) seriam novas representações
muito pior: perder qualquer capa- quanto os Stalags eram basea- seria uma forma de compreen- sadomasoquistas e de uma certa
cidade de discernimento moral, dos em alguns momentos chave der o que estaria velado na lite- qualidade, que tinham o intui-
de companheirismo e de humani- e revelações que surgiam duran- ratura e nos documentos oficiais: to de quebrar tabus e representar
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metáforas do Fascismo. Entre- Logo depois, abandonou o es- O que se encontra nos mória midiática de finalmente Lurie, é a capacidade, tam-
tanto, algumas críticas poderiam tilo figurativo e sob a influência Stalags é, portanto, escutar os outros testemunhos, bém, de se comunicar com o
ser tecidas em relação a essa avan- de Picasso, Pollock, De Koo- e, claro, a suas próprias lembran- outro, com receptor/leitor. Ao
mais que uma questão
t-garde cinematográfica: ning e dos abstracionistas, con- ças. A recepção de sua obra, di- trabalhar, por um lado, com as
cebeu o Feel Paintings que seria somente sexual e ferentemente da recepção dos pinups, Lurie está sim se comu-
Uma das principais razões uma forma de se trabalhar com o de violência: é uma testemunhos que estavam sen- nicando com o contemporâneo,
que os detratores ignorassem filmes fascínio americano por símbolos questão de inversão de do ouvidos pela primeira vez, foi com o que aparecia na mídia
Nazisploitation é que eles violam femininos burlescos e sensuais, ordem e poder. polêmica e conturbada: desde os anos 50. Por outro la-
um tabu central da representação apresentando pela primeira vez do, ao expor fotos de corpos e
do Holocausto: eles mostram e exa- as pinup girls. Naturalmente, em 1959, campos de extermínio, Lurie
geraram nas atrocidades de forma Em conjunto com Sam as imagens justapostas da porno- questiona o poder da imagem e
a torná-las compreensíveis, mesmo Goodman e Stanley Fisher, fun- grafia e do nazismo, das pinups e como ela toca o imaginário e re-
que os sobreviventes do Holocaus- dou o No!art Movement em das carroças da morte, das vulvas vive os fatos (terríveis) vividos.
to insistam que não-participantes 1959, trabalhando com temas e das câmaras de gás de Lurie, pro- Porém, ao fazer as justaposições
simplesmente nunca poderão com- e colagens que discutem a posi- vocaram espasmos de choque e in- das imagens, Lurie adentra por
preender já que não estiveram lá. ção contemporânea da Shoah e dignação: ele deu voz às indizíveis um caminho novo, difícil de se
Esse tabu desperta debates sobre a da pornografia. O grupo propõe semelhanças entre o sexo e o sadis- entender e de explicar e muito
propriedade da representação dos uma ruptura radical com Expres- mo, entre a volição e a violação, duro de conceber. Assim, ques-
crimes do Terceiro Reich no cine- sionismo e com Pop-art, trazendo entre o prazer e o tormento, entre tionando os limites da arte e das
ma e em outros meios de comu- de volta “a vida real” para a arte. amor e morte. (Katz) atrocidades nazistas, Lurie revela
nicação. Alegações como Theodor Seu Manifesto mostra a luta con- e inventa seu polêmico e distinto
Adorno de que “escrever um poe- tra a institucionalização da arte e Vivendo ainda na épo- testemunho traumático.
ma depois de Auschwitz é ato de de seu aspecto mercantilista. As- ca do silêncio, mas prestes a ex-
barbárie” ajudou a estabelecer o sim, com intuito de afrontar as plodir na mídia internacional o Bordéis e abusos sexuais
chamado Bilderverbot, uma “proi- normas preestabelecidas, assun- testemunho dessa grande catás- Um mito do pós-guerra, por
bição do uso de imagens” em re- tos como repressão, depravação, trofe, Lurie expõe a negação da vezes explorado e sensacionalista,
lação ao Holocausto (Magilow; censura, sexo, colonialismo, im- obra arte ou talvez a própria ne- considerava que as mulheres judias
Lugt; Bridges). perialismo, racismo e sexismo, gação da poesia e da linguagem tivessem sido obrigadas a servir co-
juntamente com suas implicações discutidas por Adorno, Levi e mo prostitutas em bordéis SS, além
Essa exploração pela ima- psicológicas, tornam-se temas K. Tzetnik. Porém, é justamente de terem sido frequentemente estu-
gem do Nazismo ultrapassa as importantes do grupo. um pouco depois de Eichmann pradas. Embora tais casos tivessem
questões históricas e documen- Logo, para Lurie principal- que o trabalho mais marcante de ocorrido sem dúvida alguma, não
tais. Se por um lado existe a cor- mente, a Shoah assume um papel Lurie surge: era norma e caracteriza um desvio
rente Bilderverbot, que descarta central na sua arte. Resgatando macabro do pós-guerra do Holo-
o uso das imagens com o intui- suas memórias e incorporando No entanto, o mais revelador, causto para fins de excitação popu-
to de não criar uma fotografia e seus antigos trabalhos da fase Feel se não revoltante das cenas de sedu- lar (Milton apud Shik).
um entendimento dos terríveis Paintings, Lurie trabalha com ção de Lurie é o Railroad Collage
acontecimentos da Shoah, por corpos femininos nus e cadáveres 1963. Ele sobrepõe uma imagem A questão dos abusos se-
outro lado filmes trashes explo- encontrados nos Campos. Reco- de uma mulher se despindo pro- xuais durante a Shoah é um
ram o conteúdo nazista de uma loca em pauta o que desejava ser vocativamente sobre a foto de um assunto delicado e por vezes po-
forma sádica, muito próxima ao esquecido ou, pelo menos, lem- vagão de trem com cadáveres em- lêmico. Segundo a maioria dos
fenômeno dos Stalags e da lite- brado de outra forma: “Na arte, pilhados nus nos campos de exter- estudos oficiais sobre o assunto
ratura de Ka. Tzetnik e que me- o tema Holocausto é proibido mínio. Ao falar sobre suas garotas não existiu um abuso sistemáti-
recem um estudo sob um viés (...) muitos judeus nem querem pinups, que muitas vezes aparecem co por parte do exército alemão
diferente: o de revelar o que es- ouvir falar sobre isso”. Assim, ao vestidas com roupas sadomasoquis- em relação às prisioneiras judias,
taria escondido em relação aos abordar esses assuntos em suas tas, Lurie argumenta que, para os apesar de casos esporádicos te-
desejos e obsessões dessa geração exibições, Lurie e seus compa- oficiais nazistas nos campos de con- rem sido relatados. Também, em
que buscou nesse gênero alguma nheiros foram os primeiros a dis- centração, existia um espetáculo de relação ao livro de Ka. Tzetnik,
forma de prazer e entendimento. cutir e expor essa questão ainda voyeurismo e sadismo sexual de vá- Piepel, que relata o abuso de um
velada e censurada. Entretanto, rias maneiras. Em seu livro de me- garoto judeu por um Kapo (que
No!art como se poderia analisar o uso mórias de Auschwitz, Ruth Kluger Ka. Tzetnik diz ter sido seu ir-
Se, como vimos, sadismo conjunto das fotos femininas e caracterizou da melhor forma este mão), narrado também por Elie
é capacidade de pensar na possi- dos corpos sem vida? De acordo submundo humano, onde luxúria Wiesel, não há muitos testemu-
bilidade da representação de al- com alguns de seus críticos, seria se transforma em tortura e assassi- nhos de abusos sistemáticos ou
go impensável ou inumano que uma forma de tentar reconstruir nato, como uma “pornografia da de um lugar nos Campos onde
subverteria a moral, como po- o próprio corpo de sua mãe, ex- morte”. É um reino no qual carni- isso era praticado “oficialmente”,
deríamos discutir a arte (ou a terminada pelos nazistas: ficina total e a libidinosa crueldade como seria o caso do Joy Division.
não-arte) de Boris Lurie? O que tornaram-se um. O espectro desta Este problema em relação
gostaria de trazer à tona esse so- Em um nível psicológico, perversidade primal recentemente aos abusos sexuais é bastante pe-
brevivente? Despertar o inumano a coleção de imagens do Lurie de ressurgiu nos campos de prisioneiros culiar, já que alguns estudiosos
ou o demasiadamente humano? corpos femininos também pode ser de Abu Ghraib, no Iraque, devasta- sugerem que isso acontecia com
Nascido 18 de julho de interpretado como uma lembran- do pela guerra, como Lurie apon- muito mais frequência do que
1924, em Leningrado na Rús- ça do corpo de sua jovem mãe, que tou. No entanto, em contraste com é verificado nos testemunhos,
sia, Lurie, juntamente com seus talvez tivesse sido estuprada e que, os presos envergonhados e submissos principalmente em relação às
pais, mudou-se para Riga, em certamente, foi assassinada nos nas prisões e nos campos, sua pinup mulheres judias. De fato, ao se
1925. Em 1941 foi capturado campos. “Como poderíamos preen- senhora vira a mesa diante seus trabalhar com essa questão, mui-
pelos alemães e passou por vários cher de medo os ossos estilhaçados sarcásticos algozes ao ostentar sua tas mulheres têm vergonha de
guetos e campos de concentra- de uma mãe”, diz um dos poemas nudez, transformando assim a hu- contar o que realmente aconte-
ção nas cidades de Riga, Salapils, lastimosos de Lurie, projetados na milhação da vítima em excitação de ceu. A Shoah já foi um aconte-
Stutthof e Buchenwald-Magde- tela. “Oh, Mama, Liberdade? ”, um triunfante vampiro. (Lubich) cimento terrível demais, agregar
burg. Conseguiu sobreviver jun- pode ser lido em outra linha de a isso abusos sexuais tornaria a
to a seu pai, perdendo toda sua uma de suas colagens. (Lubich) Talvez essa colagem de questão ainda mais complicada
família. Finalmente emigrou pa- Lurie resuma a questão toda tra- e mais difícil de ser enfrentada.
ra os Estados Unidos em 1946. Em entrevista concedida a balhada neste texto. As pinups Também, por causa desse silên-
Seus primeiros trabalhos Estera Milman (2000), a entre- girls — objetos de sedução e de- cio em relação à questão sexual,
artísticos, já em 1946, discuti- vistadora questiona sobre o sur- sejo — em contraste com os tra- os livros de Ka. Tzetnik e os fil-
ram questões relativas à Shoah gimento da ideia de se trabalhar jes oficiais dos SS, e o imaginário mes sadiconazistas despertaram
e suas próprias lembranças da de forma tão inusitada e questio- de uma geração calada que cria tanta curiosidade e tamanho
guerra. Apesar de o assunto ser nável com a Shoah. Essa questão histórias e fantasias para enten- desprezo por muitos.
um tabu, principalmente entre foi proposta por Lurie na mesma der o trauma, seja a própria obra No entanto, abusos morais
os sobreviventes, Lurie não se época em que o Julgamento de de 1963. Tormento, sadismo, em relações às mulheres foram
incomodou em tratar disso nos Eichmann estava acontecendo, nudez, crueldade, pornografia comuns e significativos durante
seus trabalhos intitulados Back porém nem o próprio artista é da morte desperta e desencadeia a Shoah. Segundo testemunhos,
from Work, Roll Call in Con- capaz de dizer se foi uma questão sentimentos até então recalcados. a maioria das mulheres, ao che-
centration Camp e Entrance. consciente ou se herdou essa me- Arte, segundo o próprio gar aos Campos, tinha que fi-
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car despida em frente a homens, ou em uma praga que poderia Relendo a famosa frase Casos de estupros em massa não
que as olhavam com desprezo e (e deveria) ser eliminada. Essa de Adorno — “escrever aconteceram nos Campos Alemães
muitas vezes as ridicularizavam. questão ainda era mais percepti- como aconteceram, por exemplo, na
um poema após
Também, ao chegarem aos Cam- va no corpo e no desejo contra- União Soviética entre os anos de 1942
pos, as mulheres tinham seus ca- ditório que as mulheres judias Auschwitz seria um ato e 1945. Os alemães, entretanto, per-
belos raspados, privando-as de exerciam sobre os carrascos e de- de barbárie”—, Dinur petraram estupros quando estavam
qualquer apelo sexual. tentores de poderes naquele am- desconsiderou a própria em terras russas e em campos de bata-
Para combater, ainda, biente específico: poesia escrita antes da lha. Nesses “espaços” considerados co-
qualquer forma de atração sexual mo sem lei ou “espaços bárbaros”, que
Shoah já que, para ele,
com as prisioneiras, os alemães Enquanto o processo de de- eram habitados por pessoas de raça in-
criaram várias leis de higiene que sumanização também aplica- as palavras antes da ferior, o estupro era aceitável, fato que
os proibiam ter relações sexuais va aos homens, para as mulheres Shoah não significavam era condenável em ambientes alemães.
com mulheres de grupos inferio- foi unida a visão dual nazista do absolutamente nada. Nos Campos de controle alemão, as
res, entre eles as mulheres judias: corpo feminino judeu. Por um la- leis de higiene e de conduta eram cla-
do, tinham que ser exterminadas ras, e impediam a relação sexual dos
Líderes nazistas e propagan- por causa de sua capacidade de alemães com os judeus.
distas trabalharam para desen- ter filhos (judeus). Por outro lado, Porém, apesar de não se tratarem
corajar assassinos alemães e seus após a sua humanidade, a psique, de prisioneiras e prostitutas judias, co-
capangas de considerarem mulhe- e a individualidade ter sido to- mo o suposto Joy Division narrado por
res dos grupos marcados para eli- mada, o corpo da mulher judai- Ka. Tzetnik, existiram bordéis em al-
minação como objetos de desejo ca mantinha um recipiente sexual guns Campos alemães. Esses luga-
sexual (Shik). totalmente aberto, permitindo res foram criados por Himmler para
explorá-lo e semear a destruição aumentar a produtividade do traba-
A questão da mulher judia nele (Shik). lhador e para premiar alguns pre-
nos Campos é bastante compli- sos. Quando escreveu seu livro Mein
cada. Se por um lado os judeus, Kampf, Adolf Hitler aboliu a prosti-
de uma forma geral, eram desu- tuição, vendo-a como uma desgraça
manizados e desprezados, por para a humanidade e, durante os pri-
outro lado o corpo da mulher, meiros anos em que esteve no poder, o
mesmo mal nutrido, sem ne- governo alemão perseguiu essas práti-
nhum apelo sexual, ainda per- cas na Alemanha. Porém, com o início
manecia como um objeto de da Guerra, os Nazistas não aboliram a
desejo e de exploração. A proibi- prostituição: apenas tinham controle
ção, o desprezo e o jogo de po- total do que estava acontecendo. As-
der, despertava o interesse em sim, todas as prostitutas na Alema-
alguns soldados alemães e, prin- nha e nos territórios dominados pelos
cipalmente nos Kapos. Nazistas deveriam ser registradas e os
bordéis supervisionados por autorida-
A ideologia nazista tinha des responsáveis.
uma atitude conflitante em rela- O caso de bordéis em Campos
ção à sexualidade e à maternida- Nazistas é estudado pelo pesquisador
de das mulheres judias. Por um Robert Sommer e, segundo ele, havia
lado, as mulheres judias eram um sistema complexo de liberação de
submetidas a um processo de des- Prämienchein (bônus voucher) pa-
sexualização, além, claro, da desu- ra os prisioneiros premiados que po-
manização. Os nazistas anularam deriam frequentar esses locais. Tudo
a essência feminina das mulheres. era controlado pelos oficiais nazistas,
Por outro lado, o corpo feminino com tempo e “posição” rigidamente
permaneceu como um objeto se- definidos:
xual — fato evidenciado por uma
diversidade de práticas de explo- O tempo dentro do quarto era li-
ração sexual. Em outras palavras, mitado. Em Auschwitz, geralmente um
em Auschwitz o corpo feminino prisioneiro do sexo masculino era auto-
judaico tornou-se só matéria, des- rizado a permanecer por 15 minutos
provida de humanidade, mas ain- na sala. Só era permitido “sexo normal”
da continha características sexuais na posição papai-mamãe. Era proibi-
e ameaçava a ideologia nazista do subir na cama com sapatos. Através
pela capacidade reprodutiva. As de buracos de espionagem na porta, os
diferenças de gênero em Auschw- guardas da SS asseguravam que os pri-
tiz-Birkenau permaneceram visí- sioneiros obedeciam às regras. Após o
veis dentro e sobre o corpo (Shik). tempo estipulado um sino tocava e o
homem tinha que sair da sala. Se ele
A estrutura nazista nega- não saísse rápido o suficiente, um guar-
va o outro, aquele que não era da iria jogá-lo para fora. Antes de dei-
membro da raça ariana que fun- xar o Sonderbau, o visitante tinha que
daria o Terceiro Reich. Assim, o voltar para a sala médica para receber
sistema concentracional sub-hu- uma injeção profilática.
manizava principalmente o ju-
deu, transformando-o em nada

Não é, portanto, verificada, a


partir da constatação histórica, as
perversões sexuais apresentadas nos
Stalags, na literatura de Ka. Tzetnik
e nos filmes sadiconazistas. Entre-
tanto outros tipos perversões, tortu-
ras e sadismos muito mais terríveis
aconteceram e se encontram nos li-
mites da incompreensão e da lin-
guagem. O estudo dos fenômenos
analisados neste texto revela o que
estaria escondido na sociedade que
criou e que recebeu esse tipo de in-
formação velada e, por isso, merece
ainda estudos posteriores.
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Essa mudança inesperada, e na verda-

O conforto
de nunca desejada, transforma a vida de Sto-
ner completamente. Até então, o plano era
cursar Ciências Agrárias e, ao fim de quatro
anos, retornar à fazenda dos pais para con-
tinuar ajudando-os. Agora, o retorno não é
mais uma opção, e esse novo rumo impacta
não apenas Stoner, mas também seus pais e

no infortúnio
tudo o que eles haviam planejado.
Apesar desta demonstração de firme-
za, e de mais algumas poucas durante o li-
vro, Stoner é essencialmente estoico — na
acepção de “conforto no infortúnio” que
consta no Aurélio —, e não se permite aba-
lar por nenhuma adversidade. Ou melhor:
não consegue se abalar. Ele não consegue se
insurgir contra (quase) nada. Aceita (quase)
Publicado originalmente em 1965, Stoner, de John Williams, tudo passivamente, desde a frieza e a ira de
sua esposa até as imposições feitas pela di-
esperou quarenta anos para ter o merecido reconhecimento reção do seu departamento na universidade
em relação às matérias que irá lecionar —
em horários nada amigáveis.
Rafael Rodrigues | Feira de Santana - BA
Avançar sempre

Q
Assim como a vida de Stoner, é sim-
ples a prosa de Williams. É um romance
uando foi lan- para uma amante e para os tam- tradicional, sem inovações estéticas ou es-
çado, em 1965, bém raros desafetos. Para seus tilísticas, uma obra límpida e sem sobres-
Stoner, romance alunos, a relevância de Stoner foi saltos, quase como a vida do protagonista.
do norte-america- tão grande quanto fugaz. Para Devido ao tradicionalismo do autor e a falta
no John Williams além de seu universo particular, de maiores reviravoltas no enredo, Stoner
(1922-1994), não teve grande ele realmente não deixou nenhu- pode dar a impressão de que é um roman-
repercussão. Décadas depois, ma marca. Ao narrar a vida or- ce monocórdico, o que pode levar o leitor a
após duas reedições — uma em dinária de William Stoner, John imaginar, inicialmente, que sua leitura será
2003, na Inglaterra, e outra em Williams nos faz perceber, de Stoner um estorvo. Porém, graças à extrema habi-
John Williams
2006, nos Estados Unidos —, a maneira dura e crua, que a vida lidade narrativa de John Williams, o leitor
Trad.: Marcos Maffei
obra começou a ter o reconheci- da maioria de nós é assim, sem é inevitavelmente impelido a avançar cada
Rádio Londres
mento que merece. Hoje, Sto- qualquer significado maior. Nos 316 págs.
vez mais, e os poucos lampejos de vontade
ner é considerado um grande faz perceber, também, que po- própria a que Stoner se dá o direito são co-
livro não apenas em língua ingle- demos viver décadas e décadas e memorados como grandes reviravoltas — e
sa, mas também em outros idio- não fazer qualquer diferença pa- de certa forma o são.
mas — já foi traduzido em pelo ra além dos que gravitam ao nos- Algumas passagens são memoráveis,
menos vinte e um países. so redor, não importando quais como o momento em que Stoner se dá
Nos diz o parágrafo de sejam os nossos sonhos, os nos- conta de que não é capaz de demonstrar, a
abertura do romance: sos desejos, os nossos esforços, os seus alunos, toda a empolgação que guar-
nossos sofrimentos. da dentro de si pela literatura, ou a conver-
William Stoner entrou na sa brutalmente sincera que tem com seus
Universidade do Missouri como Passividade e estoicismo dois amigos, Gordon Finch e David Mas-
calouro no ano de 1910 com a ida- Filho de pequenos fazen- ters, pouco antes de ambos se alistarem pa-
de de 19 anos. Oito anos depois, no deiros, Stoner começou a ajudar ra lutar na Primeira Guerra Mundial, ou
auge da Primeira Guerra Mun- os pais desde cedo: “Aos 6 anos, o autor quando ele finalmente desafia o seu maior
dial, recebeu o diploma de douto- ordenhava vacas magras, ali- John Edward Williams desafeto, Hollis Lomax.
rado e assumiu um cargo na mesma mentava os porcos no chiquei- De uma maneira muito peculiar,
universidade, onde lecionou até a ro a uns poucos metros da casa Nasceu em 1922, em Clarksville, um Stoner é um livro assombroso, forte, mas
sua morte, em 1956. Nunca su- e coletava os pequenos ovos das povoado no interior do Texas. Serviu também delicado, preciso. A emoção e o
biu na carreira acima da posição galinhas magrelas”. Aos 19 anos, na aviação militar americana durante a ímpeto reprimidos pelo protagonista são
de professor assistente, e poucos es- após terminar o ensino médio, Segunda Guerra Mundial, na China, na angustiantes. Curiosamente, essa angústia
tudantes se lembravam dele com foi comunicado pelo pai de que Birmânia e na Índia. Recebeu o bacharelado sentida pelo leitor é amenizada pela sereni-
alguma nitidez após terem cursado iria cursar Ciências Agrárias na em Literatura Inglesa na Universidade de dade com que Williams conduz sua obra.
suas disciplinas. Quando morreu, universidade. Ficou sabendo, Denver e o doutorado na Universidade do Somente grandes escritores conseguem es-
seus colegas doaram à biblioteca da também, que moraria com um Missouri, em 1954. Voltou para Denver crever dessa forma.
universidade um manuscrito me- primo da mãe, e que trabalharia no mesmo ano, onde trabalhou como Após uma primeira edição repleta de
dieval em sua memória. Esse ma- para ele e sua esposa em troca de professor assistente de Literatura Inglesa erros de revisão, a editora Rádio Londres
nuscrito ainda pode ser encontrado moradia e comida. até sua aposentadoria, em 1985. Faleceu lançou uma segunda, corrigida, que traz
no “Acervo de Livros Raros”, com Pode-se dizer que seu pri- em 1994. Além de Stoner, é autor de mais um posfácio do também escritor norte-a-
a seguinte inscrição: “Doado à Bi- meiro ano na universidade foi três romances: Nothing but the night, mericano Peter Cameron. Nele, Cameron
blioteca da Universidade do Mis- tranquilo. Stoner trabalhava, Butcher’s Crossing (a ser publicado afirma que, mesmo tendo lido Stoner três
souri. Em memória de William frequentava as aulas e, apesar do pela Rádio Londres) e Augustus. vezes, não está “absolutamente certo de ha-
Stoner, departamento de Inglês, cansaço, passava nas matérias. ver compreendido o livro de verdade”.
por seus colegas”. Foi no primeiro semestre do se- E parece ser mesmo esse o caso. Sto-
gundo ano que algo mudou. To- ner é o tipo de obra que não se encerra nu-
Essas poucas linhas fazem dos os alunos eram obrigados a ma primeira leitura. Tampouco é o tipo de
o leitor imaginar que Stoner não frequentar o curso semestral de trecho livro que é esquecido após lida a última pá-
deixou marcas por onde passou. Introdução à Literatura Ingle- Stoner gina. Ele ressoa não apenas na mente do
Que sua vida não teve relevân- sa, e essa disciplina “o inquietou leitor, mas também em seu coração. Impos-
cia, que ele não foi um homem mais do que qualquer coisa até Embora lhe coubesse apenas ensinar os sível não se perguntar: “sou um Stoner?”, e,
importante a ponto de merecer então”. Tanto que, “no segundo fundamentos da Gramática e da Redação em seguida, decidir: “não serei um Stoner”.
ter sua vida narrada. Mas, à me- semestre daquele ano, William para um grupo misto de calouros, ele se No entanto, é quase impossível não se afei-
dida que as páginas avançam, Stoner parou de cursar as disci- çoar ao protagonista.
preparou para a tarefa com entusiasmo e
essas suposições vão sendo dei- plinas de Ciências e interrom- Stoner é uma obra inquietante,
xadas de lado. peu seus estudos de Ciências forte senso de responsabilidade. Planejou transformadora, inspiradora. A literatura
Assim como a maioria de Agrárias”, e decidiu se inscrever o curso durante a semana anterior ao não é nem precisa ser sempre assim, é ver-
nós, pobres mortais, Stoner foi em matérias ligadas às Ciências início do semestre de outono, e se deu dade. Mas, sem livros como esse, ela não
importante para algumas pou- Humanas e à Literatura. Isso fez seria fundamental para alguns de nós. E,
conta do potencial e das dificuldades
cas pessoas muito próximas. Para com que ele tomasse “consciên- de fato, livros como Stoner nos faz pen-
seus pais, para sua esposa, para a cia de si mesmo de um jeito que associadas à preparação do material e sar que a literatura deveria ser fundamen-
sua filha, para seus raros amigos, nunca lhe ocorrera antes”. dos assuntos do compromisso assumido. tal para todos nós.
fevereiro de 2016 | | 39

fora de sequência | Fernando Monteiro

Pier Paolo Pasolini: 40 anos da


morte do poeta mais vivo (3)

O
poeta Pier Paolo Também não se pode ig-
Pasolini queria ex- norar o fato desse poeta ter rea-
plodir a realidade lizado o seu primeiro filme em
baixa dos medío- 1961. Com ele, estava aportan-
cres que se acoco- do ao cinema “uma nova for-
ravam para seguir ordens (tudo ma de fazer poesia”, enquanto
sempre precisa das “ordens” pa- recebia, da antigamente cha-
ra seguir rolando em miséria & mada Sétima Arte, uma espé-
aviltamento), porém seu grito cie de oitava maravilha: o meio
se tornava ainda mais dramático brutalismo (hã?) de uma lin-
pelo sentimento de impotência guagem imersa no dia a dia de
diante de paradoxo como o dos gente vivendo suas vidas, entre
jovens carabinieri de origem ope- bicicletas e sonhos roubados
rária lançados contra estudantes por ladrões de objetos e cons-
herdeiros talvez de tédio. ciências. Isso — exatamente is-
Para ele, seriam possíveis so — torna Pier Paolo Pasolini
“vítimas” ainda mais lamentá- um poeta “diferente”, um bar-
veis do que os rapazes bem de do com um recado urgente, o
vida que nunca iriam verdadei- homem que eu pessoalmente
ramente compreender a traje- vi, em 1969, causando impac-
tória de um jovem camponês to enorme numa plateia maci-
encontrando uma farda e taxati- çamente do Terceiro Mundo
vas ordens escritas na chefatura, que ele amava.
sob as ordens do prefeito, que “O que vocês estão fazen-
se curva diante do governador do aqui?” — perguntou, logo
que baixa as calças para os em- ao iniciar uma palestra agôni-
presários financiadores das cam- ca, sentado no estrado sobre o
panhas políticas abençoadas por qual estava uma pesada mesa
bispos que fedem dentro dos ornada de flores (não eram ro-
confessionários da Itália ainda sas) à frente das “autoridades
pia quando se trata de observar universitárias” presentes para
a cor da fumaça da corrupção do honrarem o conferencista PPP.
Vaticano penetrado pelas lojas Que rejeitou o assento entre
maçônicas, sob o comando das seus pares, e desceu do praticá-
máfias das sociedades doentes. vel com a mesa festiva, para nos
A face reflexiva do visitan- falar diretamente e não por trás
te do túmulo de Gramsci (existe de arranjos de floristas e copos
uma foto de Pasolini que justa- de água filtrada. É a lembran-
mente o mostra, assim, diante ça pessoal que guardo dele, nu-
do túmulo do filósofo marxista ma tarde romana já distante:
num dia cinzento de chuva), o essa do poeta e cineasta bem
tom, circunspecto, do lamen- à nossa frente, italiano de es-
to do poeta antes mansamente tatura mediana e enxuto de
político, iria se transformar em carnes como um camponês
invectiva, lamentação vigorosa, friulano provado na vida, tra-
denúncia cadente, insatisfação jado esportivamente (os óculos
e não-acomodamento disposto escuros das fotos, mocassins
a se transformar em militância brancos — e a intensidade dos
corsária, a partir principalmen- seres de exceção)...
te dos poemas em forma daque- Aquele “camponês” era
la “rosa” de uma beleza letal e de um sólido e atormentado ho-
um difícil perfume. forma de rosa tenta formar im- medieval penetrado do misticismo cristão mem de muitas artes, militan-
O Pasolini que adentra a plicava, praticamente, em ten- (sem descartar os ecos fortes do chamado “pa- te do PCI (do tal foi expulso)
década de 1960 está transfor- tar provocar um ACV (sadio) ganismo” — que nunca existiu, em termo), e perseguido da Igreja, naquele
mado, e já não é o duro inte- nas mentes europeias — e, par- a Rosa se forrou de significados esotéricos e momento, pelas “provocações”
lectual ainda compassivo, mas ticularmente, italianas — agora populares — assim como ocorrera com a flor do seu filme Teorema. Essa ain-
uma consciência desesperando- atraídas pelo canto de sereia (fa- do lótus — desde o culto de Ísis até a Rosa da hoje instigante e enigmáti-
se em face da nova anemia co- tal) do fascismo da sociedade de Alquímica misteriosa na elaboração tardia de ca obra de misticismo moderno
letiva instalada numa sociedade consumo massivo que Pier Paolo mitos já meio “seculares”. que também nos inquire, como
antes capaz de “marchar sobre irá denunciar, apostrofar, anate- Os poemas pasolinianos tornaram-se, o seu criador o fez, naquela al-
Roma” (ainda que levada pe- mizar até o final trágico da sua então, secularíssimos na urgência de gritar tura, sobre “o quê” estávamos
la bandeira equivocada do Fas- vida de poeta e cineasta trans- contra as consciências mortas, para desper- fazendo ali, jovens de outros
cismo sem respostas reais para formado em profeta do Kaos. tar as consciências vivas. O elemento erótico continentes numa Europa já
as “massas” manipuladas entre Arquétipo junguiano da Mãe, a que corresponde a Ísis-Afrodite, em ponte da quase totalmente dominada (em
discursos e tochas acesas para o rosa-símbolo se tornou também cultura egípcia para a grega antiga, reveste-se 1969) pelos fascismos da socie-
orgulho pátrio que não enche sanguínea nos poemas gritados, da modernidade de um poeta que pretende dade de consumo de massa —
panelas, nem repara — de fato por PPP, entre reflexões políticas falar para multidões de carne e osso — e tal- repetindo o “bordão” dos seus
— as mais longas injustiças da e filosóficas, que não poderiam vez mais de carne, acima de tudo, na certeza últimos anos de desespero, an-
Casa Grande contra a Senzala mais ser apenas murmurados, um tanto melancólica, “pós-cristã”, de que a tes de ser trucidado, na praia das
dos campos de Itália). num mundo em franca (e peri- vida é aqui e agora, enquanto se passa, com a (CONCLUI cercanias de Roma, por “ragazzi”
O “coágulo de sentido” gosa) desordem. Desde o Egito duração de uma rosa, maio de 1968 (e outros NA PRÓXIMA cumprindo ordens de alguma(s)
que o Pasolini dos poemas em antigo, passando pelo mundo meses e anos)... EDIÇÃO) voz(es) até hoje impune(s).
40 | | fevereiro de 2016

Tracy K. Smith
Don’t you wonder, sometimes?

1.
After dark, stars glisten like ice, and the distance they span
Hides something elemental. Not God, exactly. More like
apresentação e tradução: Bruna Dantas Lobato Some thin-hipped glittering Bowie-being—a Starman
Or cosmic ace hovering, swaying, aching to make us see.
ilustração: FP Rodrigues And what would we do, you and I, if we could know for sure

That someone was there squinting through the dust,


Saying nothing is lost, that everything lives on waiting only

T
To be wanted back badly enough? Would you go then,
Even for a few nights, into that other life where you
racy K. Smith, nascida em da criação. Deus toma a forma de uma And that first she loved, blind to the future once, and happy?
1972 em Massachusetts, é estrela do pop, um ser cósmico, uma al-
uma das poetas norte-ame- ma que atravessa o céu, um astronauta. Would I put on my coat and return to the kitchen where my
ricanas mais importantes de Esses poemas lançam personagens para Mother and father sit waiting, dinner keeping warm on the stove?
sua geração. Formada pe- o espaço sideral, de onde se consegue Bowie will never die. Nothing will come for him in his sleep
las universidades Harvard e Colúm- admirar a Terra à distância. Os movi- Or charging through his veins. And he’ll never grow old,
bia, Smith é autora de três coletâneas mentos das vidas terrenas são caracterís- Just like the woman you lost, who will always be dark-haired
de poemas e um livro de memórias. ticos de nossos tempos, tempos esses de
Ganhou, entre outros, o prêmio Ca- dúvida e curiosidade, violência urbana, And flush-faced, running toward an electronic screen
ve Canem de poesia afro-americana proezas tecnológicas, referências à cul- That clocks the minutes, the miles left to go. Just like the life
em 2002 e o prêmio Pulitzer de me- tura pop e questionamentos sobre os li- In which I’m forever a child looking out my window at the night sky
lhor poesia em 2012 pelo seu tercei- mites do corpo humano. Thinking one day I’ll touch the world with bare hands
ro livro, Life on Mars. Atualmente, é Smith é uma escritora de va- Even if it burns.
professora de criação literária da Uni- riedade e ambição extraordinárias, e
versidade de Princeton. também de grande precisão e rigor 2.
Ambos os poemas aqui traduzi- técnico. Escolhi dois poemas longos, He leaves no tracks. Slips past, quick as a cat. That’s Bowie
dos pela primeira vez para o português mas de estilos e temas diferentes: o pri- For you: the Pope of Pop, coy as Christ. Like a play
foram originalmente publicados em Li- meiro cheio de expectativa e brilho e o Within a play, he’s trademarked twice. The hours
fe on Mars. Neste livro, o território da segundo mais íntimo e vulnerável, car-
ciência não é tão diferente do território regado com a dor da perda. Plink past like water from a window A/C. We sweat it out,
Teach ourselves to wait. Silently, lazily, collapse happens.
But not for Bowie. He cocks his head, grins that wicked grin.

Time never stops, but does it end? And how many lives
Before take-off, before we find ourselves
Beyond ourselves, all glam-glow, all twinkle and gold?

The future isn’t what it used to be. Even Bowie thirsts


For something good and cold. Jets blink across the sky
Like migratory souls.

3.
Bowie is among us. Right here
In New York City. In a baseball cap
And expensive jeans. Ducking into
A deli. Flashing all those teeth
At the doorman on his way back up.
Or he’s hailing a taxi on Lafayette
As the sky clouds over at dusk.
He’s in no rush. Doesn’t feel
The way you’d think he feels.
Doesn’t strut or gloat. Tells jokes.

I’ve lived here all these years


And never seen him. Like not knowing
A comet from a shooting star.
But I’ll bet he burns bright,
Dragging a tail of white-hot matter
The way some of us track tissue
Back from the toilet stall. He’s got
The whole world under his foot,
And we are small alongside,
Though there are occasions

When a man his size can meet


Your eyes for just a blip of time
And send a thought like SHINE
SHINE SHINE SHINE SHINE
Straight to your mind. Bowie,
I want to believe you. Want to feel
Your will like the wind before rain.
The kind everything simply obeys,
Swept up in that hypnotic dance
As if something with the power to do so
Had looked its way and said:
Go ahead.
fevereiro de 2016 | | 41

Você não se pergunta, às vezes?

1.
Ao cair da noite, estrelas cintilam como gelo e a distância que elas cobrem
Oculta algo elementar. Não Deus, exatamente. Mais como
Um ser estreito, magrelo, com o espírito reluzente de Bowie — um Starman
Ou craque cósmico pairando, se remexendo, se doendo para que possamos ver.
E o que faríamos, você e eu, se pudéssemos saber com certeza

Que alguém estava ali espiando através da poeira


Dizendo que nada está perdido, que tudo vive apenas da espera
Para voltar a ser querido o suficiente? Você iria, então,
Mesmo que por algumas noites, para esta outra vida em que você
E aquele primeiro que ela amou, uma vez cegos para o futuro, e felizes?

Quem sabe eu colocaria meu casaco e retornaria à cozinha, onde minha


Mãe e pai esperam sentados, jantar esquentando no fogão?
Bowie nunca morrerá. Nada vai o acometer em seu sono
Ou se apressar por suas veias. E ele nunca vai envelhecer,
Assim como a mulher que você perdeu, que sempre terá cabelos castanhos

E cara corada, correndo em direção a uma tela eletrônica


Que conta os minutos, as milhas que falta seguir. Assim como a vida
Em que sou sempre uma criança olhando pela minha janela para o céu noturno
Pensando que um dia tocarei o mundo com minhas próprias mãos
Mesmo que queime.

2.
Não deixa rastros. Desliza, rápido como um gato. Isto é Bowie
Para você: o Papa do Pop, recatado como Cristo. Como uma peça
Dentro de uma peça, duas vezes marca registrada. As horas

Pingam como água do ar condicionado. Nos aturamos com suor,


Nos ensinamos a esperar. Silenciosamente, preguiçosamente, acontece o colapso.
Mas não para Bowie. Ele apruma a cabeça, sorri aquele sorriso perverso.

O tempo nunca para, mas ele acaba? E quantas vidas


Antes da decolagem, antes de nos encontrarmos
Além de nós mesmos, todos glamour de glitter, todos faísca e ouro?

O futuro não é o que costumava ser. Até mesmo Bowie tem sede
De algo bom e gelado. Jatos piscam no céu
Como almas migratórias.

3.
Bowie está entre nós. Bem aqui
Em Nova York. De boné de beisebol
E jeans caros. Se enfiando em
Uma deli. Deslumbrando com todos aqueles dentes
O porteiro ao retornar.
Ou ele está chamando um táxi na Lafayette
À medida que o céu se nubla no crepúsculo.
Não tem a menor pressa. Não se sente
Como você acha que ele se sente.
Não se empertiga ou se exalta. Conta piadas.

Morei aqui durante todos esses anos


E nunca o vi. Como não saber distinguir
Um cometa de uma estrela cadente.
Mas aposto que ele brilha incandescente,
Arrastando uma cauda de matéria quente e branca
Do jeito que alguns de nós criam rastros de papel
da privada. Ele tem
O mundo inteiro sob seus pés,
Ao seu lado, somos pequenos,
Ainda que haja ocasiões NOTA
Tracy K. Smith, “Don’t You Wonder, Sometimes?”
Quando um homem desse tamanho pode encontrar and “The Speed of Belief” from Life on Mars.
Seu olhar por somente um bipe de instante Copyright © 2011 by Tracy K. Smith. Reprinted
E enviar um pensamento: SHINE with the permission of The Permissions Company,
SHINE SHINE SHINE SHINE Inc. on behalf of Graywolf Press, Minneapolis,
Diretamente para a sua mente. Bowie, Minnesota, www.graywolfpress.org.
Quero acreditar em você. Quero sentir
Sua vontade como vento antes da chuva.
Do tipo que tudo simplesmente obedece,
Embalado naquela dança hipnótica
Como se algo com o poder de fazê-lo Leia o poema The speed of
Tivesse olhado na sua direção e dito: belief (A velocidade da crença)
Vá em frente. em www.rascunho.com.br
42 | | fevereiro de 2016

Monstro

Marieta Boimel sentenciou o médico, qual ma- eu batucava na careca brilhante.


gistrado; nenhum recurso, nem Eu ainda não existia e ele, meu
ilustração: Hallina Beltrão apelação ao Supremo, qualquer avô, em longos devaneios me en-

U
que fosse: o lá de cima ou o cá xergava no berço, envolto pelo
de baixo...Que lástima!, resmun- quase transparente mosquiteiro,
m estrondo produzido pelas enormes gou o feto de dentro da barriga. uma nuvem a proteger-me.
pedras lançadas pelo coveiro batia Nem pôde acalentar-me, nem Ao longe, o assobio de
primeiro na tampa do caixão que ja- me dar o remedinho que acal- Moris, repetindo o refrão de Rei-
zia no fundo da cova. Seguiu-se o ruí- masse minhas cólicas. Quando zale (canção do folclore judai-
do da terra molhada pela chuva que, eu estiver lá fora o mundo estará co), avisava a Rute que era hora
intermitente, caía desde a véspera, escorrendo pe- mais sem graça. Havíamos com- de deixar a tesoura, moldes, teci-
los espaços entre as pedras. Uma infinidade de coi- binado que seria ele a me dar a dos. Prevenida, sabia com preci-
sas para decidir, previstas e imprevistas. Nada que primeira papinha de frutas, que são o que viria a seguir: “Vamos,
pudesse ser postergado. me ensinaria a bater palminhas, Ruth. Afiei tão bem as lâminas
O branco dos olhos amarelento como se ti- a me encorajar a dar o primei- de teus sapatos de esquiar que
vesse recebido gotas de iodo. As unhas sugeriam um ro passinho que me apresenta- penetrarão na neve tão profun-
mergulho na água com açafrão. Diacho!!!, berrou ria ao mar, que faria exercícios damente que você não corre-
Moris. Teria socado o espelho. Dos talhos jorraria com minhas perninhas para rá risco de cair. Nem precisará
sangue amarelo. Tão escura a urina, mais lembra- que eu tivesse coordenação pa- fazer força para equilibrar-se”.
va coca-cola. Adoecer logo agora??!! Canais entupi- ra pedalar o tico-tico, depois o Tentava assim, Moris, persua-
dos e a bile não tinha por onde circular, abrigava-se velocípede. Que me levaria de dir Ruth a acompanhá-lo no de-
onde houvesse qualquer espaço. Um ano, se tanto, cavalinho nos ombros enquanto licioso passeio sobre a neve. O
fevereiro de 2016 | | 43

rio Styr era uma pista natural Operária”. Não apanharam da te e Ruth gostaria muito de re-
propiciando deliciosas arranca- Polícia, nem foram presos... jeitar toda a encomenda. Mas
das no declive natural. Fácil pa- Ruth apenas permitiu que cada tostão era tão importante...
ra ele, amante do esporte, desde terminasse o convite, obsessi- Tão cara a passagem para o Bra-
a infância, exímio no trato com va e doentiamente voltada ao sil. Impossível chegar a um país
os esquis. Amante das sensações trabalho. Além do mais, detes- estranho sem alguma reserva de
que percorrem a espinha dorsal e tava o frio. Trauma das longas dinheiro. Nem podia esquecer
derramam uma enxurrada de en- horas de espera nas madruga- que era preciso assumir as des-
dorfina. Um pouco desengonça- das geladas para visitar a irmã, pesas da vida diária. Helga de-
do no caminhar, ganhava leveza Helga, no presídio Dolnebro. sempregada e o advogado que a
de bailarino equilibrando-se so- Tantas esperas frustradas. (A ve- defendera cobrara uma fortuna.
bre as finas lâminas grudadas no lha Tonia, nem tão velha assim, Ruth bancara tudo.
solado do calçado especial. Nem a pele do rosto, um plissê, in- Mesmo previdente e cal-
se aborrecia com as obrigações flava-lhe a idade, vivia apavora- culista a reserva se esgotara. Por-
que o aguardavam. Queria apro- da). Helga nem se preocupava tanto, nada de recusar trabalho,
veitar a luz natural dos dias tão com o desespero da mãe. Fizera mesmo se esforçando para re-
curtos do inverno. Esperar que da despensa subterrânea um es- ceber aquela peçonhenta cobra
a água dos enormes tachos de conderijo diurno para Miguel, com delicadeza e um falso sor-
cobre fervesse para nela dissol- fugitivo da polícia, convicções riso. O inverno ainda escorria,
ver o pigmento que tingiria pi- políticas contrárias às que o po- tempo suficiente para toda a en-
lhas de tecidos. Nem doeriam os der público adotara. Quando comenda. Mas como amansar a
braços fazendo deslizar o pesado as trevas encobriam tudo, ia na ansiedade de Ruth? A imagina-
ferro de passar em cujo interior frente, vigiando o caminho pa- ção tinha que trabalhar. Disfar-
ardiam brasas. Tinha que tomar ra o cemitério onde Miguel pas- çar as pelancas que balouçavam
muito cuidado para que nenhu- sava a noite. Até que um dia, a na hora das provas e o papo que
ma fagulha danificasse qualquer polícia que a vigiava havia tem- fazia o pescoço emendar-se ao
peça de roupa a ele confiada e pos apanhou Helga e aguardou corpo, mal mostrando o con-
que chegava ensebada, cheiran- que o amigo chegasse ao túmu- torno do queixo. Teria ainda o
do mal. Paletós, coletes, calças lo que lhe servia de abrigo. Ela, desprazer da viagem a Varsó-
de grossa lã, usados por longos menor de idade, berrou, esper- via acompanhada pela “senhora
períodos não poderiam estar em neou tentou morder os “tiras”. coronel” para a compra dos te-
outras condições. Banhavam-se Ele, por muito pouco, escapou cidos. Melhor não se debruçar
pouco, conjecturou Moris. Os de ser amarrado ao rabo do ca- sobre as dificuldades. Determi-
colarinhos postiços tinham na valo que conduzia o comandante nada, sabia que, como na corrida
parte interna uma linha de gros- da operação. Teria sido arrastado de obstáculos, transporia a to-
sa sujeira. Deveriam retornar a por uns bons quilômetros até o dos e a vitória seria inquestioná-
seus donos alvos, brilhando por “Beco das Torturas”. Helga no- vel. Dar-se-ia o milagre e aquele
causa da goma de amido de mi- vamente de castigo. Desafiara o amontoado de banha pareceria
lho. O ferro desamarrotava as carcereiro procurando cuspir- a elegância personificada. Que
roupas, mais pelo peso do fer- lhe na cara. Visitas proibidas, o mundo sem graça aqui fora... E a
ro fundido que pela quentura. primeiro castigo. Outros mais terra molhada acabara de preen-
Tarefas cumpridas sem sentir viriam...O pacote caprichosa- cher o espaço da cova...
o esforço que exigiam. O fo- mente feito por Ruth contin-
gão à lenha mantinha-se aque- ha delícias doces e salgadas que
cido pelas poucas brasas ainda a mãe indormida preparara para
não transformadas em carvão. que chegassem fresquinhas, uma
No forno, repousava o prato de blusa bem grossa espantaria o
alumínio que a mãe, Ida, deixa- frio da cela onde não penetrava
ra preparado. Ovo cozido, mui- nenhum fiapo de sol. Tudo nas
to bem triturado, cebola frita, mãos do carcereiro escarnecen-
agregavam-se ao purê de bata- do a jovem rebelde... Tão bom se
tas, maciez que afagava a língua Moris desistisse daquele esporte
e o céu da boca e que só a man- maluco. Não seria melhor o chá
teiga caseira conferia. Um copo “pelando no copo”, que de tão
de chá ordenhado do samovar quente amolecia os cubinhos de
completava a tardia refeição. maçã verde que boiavam na su-
No dia seguinte, revisar perfície? Teimosos ambos. Ca-
peça por peça, um retoque aqui, da qual achando-se com razão.
outro acolá. O paninho bran- Uma arte transformar tempe-
co sempre sob o ferro para evi- ramentos tão diversos em con-
tar que o calor deixasse manchas vivência harmoniosa. Além do
brilhantes sobre a lã. Desde mui- mais, a exigentíssima esposa do
to cedo, Moris aprendera com coronel Wachenko, aquele mes-
o pai o ofício de tintureiro. Um mo que comandara a prisão e
artista, mesclando cores, acres- o enforcamento de Miguel e
centando pitadas de pigmentos que se comprazia soltando es-
produzindo cores inusitadas. tridentes gargalhadas expondo Marieta Boimel
Do negro ao branco, perpas- os dentes tão grandes que pa- Nasceu em São Paulo
sando tonalidades impensadas. reciam de cavalo, faltando-lhe (SP), em 1940, e viveu
Um artista, abonado pela sorte, contudo a dignidade equina, em Assis até os 18 anos.
assim se sentia, não por inteiro, balançando o corpo de Miguel, Licenciada em Letras
beliscado pela realidade dos inú- com um galho seco para que se Neolatinas pela Universidade
meros amigos: trabalho pesado, enrolasse cada vez mais a corda Mackenzie, é co-autora de
sem hora para terminar, salário no pescoço do condenado. Té- Dicas culinárias para
miúdo. Não fosse a repressão. trica brincadeira... a também deficientes visuais (2003),
Olhou as fotos do último 1º de odienta esposa do coronel ha- pela Fundação Dorina Nowill
maio penduradas na parede. Ele, via encomendado a Ruth, cole- para Cegos. É consultora
Max, Stela, Telma empunhan- ção completa para a primavera de acessibilidade para
do cartazes: JORNADA DE 8 que breve se instalaria, incluída deficientes visuais
HORAS, SALÁRIO JUSTO, a roupa de gala, para a solenida- em espaços culturais
DIREITO A FÉRIAS. Arnon de na qual o coronel seria con- em Museus Acessíveis
puxava a fila, orgulhoso exibin- decorado pela prisão de Miguel. e vice-presidente do
do a manchete do jornal “Voz Não fosse a necessidade premen- Grupo Retina São Paulo.
44 | | fevereiro de 2016

Eugenio De
Signoribus
apresentação e tradução: Patricia Peterle

E
ugenio De Signoribus (Cupra Ma- Mottetto 1
rittima, 1947), ao lado de Milo de
Angelis, Cesare Viviani, Enrico Tes- Lontano dalle genti eppur tra loro
ta, Patrizia Cavalli, é uma das vozes aspetto la chiamata ad una fonte
mais significativas da poesia italiana forse mai vista o forse ritrovata
nos dias de hoje. Desses poetas, o único que está
traduzido no Brasil é Enrico Testa, com o livro aspetto l’adunanza…
Ablativo (Rafael Copetti Editor). Em 2014, se troverò chi chiama
o Rascunho publicou alguns de seus poemas. se giungerà la voce
Agora, publica poemas inéditos de Eugenio De
Signoribus. Na verdade, mais do que poemas Motete 1
soltos, os quatro textos apresentam uma forma
precisa: a do Motete, que na tradição poética Longe das pessoas porém entre elas
do século 20 italiano não pode deixar de lem- espero o chamado junto a uma fonte
brar do nome de Eugenio Montale. talvez nunca vista ou talvez achada
Autor que preserva muito a sua intimida-
de e privacidade, teve toda a sua poesia reunida espero o adunar...
no volume de 2008 intitulado Poesie (1976- se eu encontrar quem chama
2007), publicado pela Garzanti. Casas per- se a voz assomar
didas (Case perdute) é um dos emblemáticos
títulos desse poeta que lê a contemporaneidade
também como ausência desse espaço protetor e
aconchegante: a casa. Tal temática permeia seus
versos, inclusive para falar do atual problema da Mottetto 2 Mottetto 3
imigração e do tratamento dado a quem chega.
Não é uma mera coincidência que um de seus Nel gorgo delle menti rivoltate È ora necessario lacerare
personagens poéticos seja o senzacasa (sem-ca- di ritrovare cerco la mia luce l’esile velo tra mente e infinito
sa), aquele caracterizado pela muitas ausências, come nel buio il credo da bambino e sulla soglia snudata restare
inclusive a de não ter um lar, com tudo o que
essa simples e familiar, mas também complexa, la luce che da sola sospeso due istanti…
palavra pode e poderia implicar. orienta la parola poi il corpo sfinito
A ideia de “perder-se no céu e o que fazer” e torno al mio mattino all’indietro o in avanti
recuperada de um dos versos de Mandelstam
é uma das epígrafes escolhidas por De Signo- Motete 2 Motete 3
ribus, que aponta justamente para o descon-
forto, o medo e tantas outras incertezas que No vórtice das mentes revoltadas É agora preciso lacerar
poderiam nos lembrar outros nomes, como o reencontrar procuro a minha luz o tênue véu entre mente e infinito
de Paul Celan ou ainda o de Giorgio Caproni. como no breu o credo de outrora e no limiar desnudado ficar
A série Belliche, de 1991, em seu conjunto, de
um lado traz Celan para a escritura do poeta e, a luz mesmo sozinha suspenso um duplo instante…
do outro, por meio da evocação da fagulha e a palavra encaminha inda o corpo haurido
da luz dialoga com a mais rica tradição italia- e volto à minha aurora para atrás ou para adiante
na, isto é, com Dante Alighieri, como aponta
Giorgio Agamben, em Categorias italianas.
A luz nos versos de Eugenio De Signoribus é
desamparada, queima num mundo inóspito,
onde inclusive o farol é hipócrita. Em relação Mottetto 4
à forma escolhida, pode-se dizer que ao lado do
uso de formas tradicionais e célebres da poesia Urge sparire nell’intasamento
é possível encontrar alternância e hibridez com di quest’alloggio tutto corporale
formas irregulares. Nesse sentido, a experiência dove non passa un cristallo di sale
poética de De Signoribus pode ser vista como
uma experiência da e com a linguagem, com a provo a staccarmi in volo
palavra, mas sobretudo uma experiência do fo- ed è già preso il suolo…
ra, um atento e meticuloso trabalho de obser- prego m’arruoli il vento
vação, de sentir esse fora, que se traduz num
imbricado exercício de escuta. Uma voz, a de Motete 4
De Signoribus, como escreveu Giorgio Agam-
ben, que soube “na noite do século”, nomear a Urge desvanecer no entupimento
“oblíqua face do mundo”. E continua “fala tal- dessa hospedaria toda corporal
vez o maior poeta civil da sua geração, a poesia onde nem passa um cristal de sal
italiana que vem — aquela que, por certo, de-
verá abster-se da luz — voltará incessantemente tento em voo a liberação
a se confrontar”. Uma escritura, portanto, que e, já tocado o chão ...
se apresenta também exercício ético. rezo, me recrute o vento
fevereiro de 2016 | | 45

hq | ramon muniz
46 | | fevereiro de 2016

Tom Clark
tradução e seleção: André Caramuru Aubert

N
ascido em Chicago em 1941, admirado por poe- One
tas como Allen Ginsberg e Robert Creeley, Tom
Clark tem escrito uma poesia cuja marca prin- Light spray over a daisy chain of days.
cipal é o lirismo. Ou, se assim se preferir, um Many wives, brought on rocking boats,
“neolirismo”, de versos nada óbvios, contempo- Dissolve into one loved damsel.
râneos, com referências, aqui e ali, aos surrealistas franceses, Jury of sighs, it is Time
aos clássicos ingleses (como no poema Trindade, aqui traduzi- To load the back with groceries
do, que remete a John Donne) e aos seus colegas norte-ame- With my brother and my wife
ricanos. Apesar de louvada por seus pares, a poesia de Clark Because life is family.
ainda está por obter o devido reconhecimento por parte de Did I drive right? Risky slopes.
um público mais amplo. Deer start across, hushed timber
Além de escrever poemas, que aparecem com alguma fre- Cool and the engine smoking.
quência em publicações como o jornal New York Times e a Lon- When mouths of fog cover the truck
don Review of Books, Clark é dramaturgo, biógrafo (é dele uma Pushed by wind, the ocean sends
excelente história sobre a vida de Charles Olson), e foi editor Us violet shrouds, bears
de poesia, entre 1963 e 1973, da Paris Review. Ele vive atual- Brush us in the dark eucalyptus.
mente na Califórnia, onde segue escrevendo. E, salvo engano, Where the hawk dives, a flowing zone
Tom Clark ainda não havia sido traduzido para o português. Lights the road. A brown head whispers
In the restless advance of trees
And cars, friends of lonesome men
In the brunt of a huge wave.

Um

A luz se espalha por sobre uma corrente de dias de margaridas.


Muitas esposas, trazidas em botes que balançam,
Se dissolvem em uma única donzela.
Provisórios suspiros, é Tempo
De se carregar o porta-malas com mantimentos
Com meu irmão e minha esposa
Porque vida é família.
Eu dirigi bem? Declives arriscados.
Veados na pista, matas silenciosas
Frio e o motor fumando.
Quando bocas de neblina cobrem a caminhonete
Empurradas pelo vento, o oceano envia
Para nós mortalhas violetas, ursos
Esbarram em nós em escuros bosques de eucaliptos.
Onde o falcão mergulha, uma área alagadiça
Ilumina a estrada. Uma cabeça marrom sussurra
Sob o indócil avançar das árvores
E carros, amigos do homem solitário
Na crista de uma pesada onda.
The last poem (after Robert Desnos)

I’ve dreamed so much of you


Walked so much
Talked so much made love to your shadow
So much that there’s nothing left of you
What is left
Of me is a shadow
Among shadows but 100 The blue dress O vestido azul
Times more shadowy than the rest
A shadow that will come I close my eyes Eu fecho os meus olhos
To rest and see you at the age of 30 e vejo você aos 30 anos
In your life in which the sun beyond the mist of affect além da névoa do afeto
Is so much. in your blue dress em seu vestido azul
so slim and Viennese tão elegante e vienense
O último poema (depois de Robert Desnos) in the Sharons’ picture gallery na galeria de arte de Sharon
at Tissa’s party na festa de Tissa
Eu tenho sonhado tanto com você a stormy night in 1974 uma noite de tempestade de 1974
Caminhado tanto with the ocean roaring com o oceano rugindo
Falada muito feito amor com sua sombra against the breakwater contra o quebra-mar
Tanto que não sobrou mais nada de você I find you there with eu a encontrei lá com
O que sobrou all my projections todas as minhas representações
De mim é uma sombra withdrawn at last por fim retiradas
Entre sombras mas 100 and what appears is e o que aparece é
Vezes mais sombria do que o resto you and your blue dress você e seu vestido azul
Uma sombra que virá in this bewildering recurrent neste desnorteante recorrente
Para repousar intensified mind garden intenso jardim da mente
Na sua vida na qual o sol I call creation que eu chamo de criação
É tanto. because you created it for me porque você o criou para mim.
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All

For Robert Creeley (1926-2005)

With Bob and Joanne then, rounding


the cliffs from Wharf Road
to the beach one idle late summer A lamp Uma lâmpada
afternoon, as if time were endless,
sitting down to rest A lamp too near the floor Uma lâmpada bem perto do chão
as if at home, at water’s in the dim light thought love old letters sob a luz opaca pensamento amor velhas cartas
phone calls telefonemas
edge, the seabirds swooping,
the beach empty, the talk lapping, turn to water se voltam para ondas
inconsequential, nothing brings waves of matter like cups and chairs de água de sentidos como xícaras e cadeiras
consequence, all happens, all this Memories Lembranças
sweet nothing. The moment flood back,
a blurring tide, and then withdraw of places we will never return to and few de lugares para os quais jamais voltaremos e alguns
of us living in isolated apartments de nós vivendo em solitários apartamentos
again into the ever will speak to each other again in the night falarão entre si novamente na noite
accumulating pool of ebbing
attentions, lost hopes, forgotten so far apart and with our hands over our faces longe uns dos outros e com nossas mãos sobre nossas faces
called dreams. No longer here to live, asleep and looking at the ceiling adormecidos e olhando para o teto
simply to snatch another breath. under a borrowed blanket sob um cobertor emprestado
Three sat talking on the beach, one
doesn’t know what was meant,
one doesn’t know what was
said. But the faces, the voices
come for a moment clear. There, in
that light. Here. The tide incoming.
So it was then as the sun went down.
Trinity Trindade
Tudo
That early Trinity, my soul, my Aquela Trindade original, minha alma, minha
Para Robert Creeley (1926-2005) Mother and my father whom I am Mãe e meu pai, de quem eu
Advancing past his age to become Estou ultrapassando a idade para me tornar
Com Bob e Joanne, então, contornando As I remember him, fleeing from myself, Como o que eu me lembro dele, fugindo de mim mesmo,
os penhascos desde a Wharf Road Is still with me, hidden beneath hot eyelids. Está ainda comigo, escondido entre minhas pálpebras.
até a praia em uma tarde vadia de fim In dreams she too speaks to me invisibly Em sonhos ela também fala comigo invisível
de verão, como se o tempo fosse eterno, But from above, getting fainter now as more Mas lá do alto, ficando mais tênue agora conforme
nos sentando para descansar And more of her children die unborn, unloved Seu filho mais e mais nasce morto, sem ser amado
como se em nossas casas, na beira In the broken hands of awful father earth. Nas mãos rachadas do horrível pai Terra.
Batter my heart, three-person’d pronoun Sova meu coração, tríplice pronome
d’água, as gaivotas mergulhando, For the first part of the life sentence pieces Porque as sentenças da primeira parte da vida
a praia vazia, a conversa rolando, Equally with the last part, never Se igualam às da última parte, nunca
inconsequente, nada traz Harkening to the parenthesis between. Ouvindo o parêntese do meio.
consequência, tudo rola, todo esse Whatever agonies the body suffers pass. Seja qual for a dor que o corpo sinta passa.
doce nada. O momento recua para o mar,
a maré indefinida, e então se recolhe

de novo para a piscina


que sempre acumula as atenções,
esperanças perdidas, sonhos por assim
dizer esquecidos. Aqui não mais para viver,
apenas para agarrar mais um suspiro.
Três sentados conversando na praia, não Moving out
se sabia o sentido, não se sabia o que
era dito. Mas os rostos, as vozes Ten years is a long time. They thought of that,
ficaram por um instante claros. Ali, Then they loaded the furniture on. The sky
naquela luz. Aqui. A maré crescendo. Disappeared under iron. They said
E foi então que o sol se pôs. Their separate goodbyes to the flowers
And the trees, then they drove away.
Behind them, the place dissolved
Into memories and palpable otherness
But they left in it something that might stay,
Afternoons Tardes The years they had spent making a life
They could not carry away with them, leaving,
it’s fine to wake up and hug your knees é gostoso acordar e abraçar seus joelhos But that the house could hold, a residual trace
my knees meus joelhos For as long as it continued to stand in that place.
when I have run out of fire fluid quando acabou o fluído do isqueiro
I rush back to bed eu volto correndo pra cama De mudança

the feeling of paws on my knees a sensação de patas nos meus joelhos Dez anos é muito tempo. Eles pensaram nisso,
petals and wings pétalas e asas Então eles carregaram os móveis. O céu
little hair pouco cabelo Desapareceu sob o aço. Eles disseram
why have you gone por que você se foi Separadamente seus adeuses para as flores
E para as árvores, então eles foram embora.
I sing that in my head eu canto aquilo em minha cabeça Atrás deles, o lugar se dissolveu
being alone is a song estar só é uma canção Em memórias e outras palpáveis diversidades
a cigarette in bed um cigarro na cama Mas eles deixaram ali alguma coisa que ficaria,
it’s better not to touch the ceiling é melhor não tocar o teto Os anos que passaram construindo a vida
but if love attaches a band aid mas se o amor grudar um band-aid Eles não poderiam levar embora com eles, indo embora,
from the ceiling to your head do teto na sua cabeça Mas a casa poderia conservar, traços residuais
there’s nothing to do but recognize it nada haverá a fazer senão admiti-lo. Pelo tempo que ela continuasse a existir naquele lugar.
ARTES VISUAIS, MÚSICA, DANÇA, TEATRO,
CINEMA. O MELHOR DA CULTURA
VOCÊ ENCONTRA DE GRAÇA
NO ITAÚ CULTURAL.

AS GUERRILHEIRAS ESPAÇO OLAVO SETUBAL


Foto: Ivson Miranda

Foto: Andre Seiti

HUGO LINNS MOVIOLA, DE MARCIO AMBROSIO


Foto: Christina Rufatto

Foto: Andre Seiti

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