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TEXTO
NATHAN
O ESTIGMA É O MESMO DOS ANOS 80, O QUE SÓ CONTRIBUI PARA O AUMENTO DA EPIDEMIA
FERNANDES
COM REPORTAGEM DE
GABRIEL ESTRELA
EDIÇÃO
CRISTINE KIST
FOTOS
TOMÁS
ARTHUZZI
DESIGN
FEU
A SÍNDROME DO PRECONCEITO
CORPO A CORPO
os jovens no Brasil aumentaram consideravelmente.
HIV estarão à venda a partir de agosto, a notícia
Eu sabia disso, mas, até quase enfartar no posto, sim-
que mais animou ativistas e especialistas neste ano
plesmente não prestava atenção. Alheio a mim, o pro- Entenda como o HIV
foi a de que, a partir de dezembro, o SUS vai dispo-
blema avançava: das 32.321 novas infecções por HIV se comporta no organismo
nibilizar mais uma opção de proteção: a Profilaxia
registradas em 2015, 24,8% aconteceram com pes-
• Pré-Exposição (PrEP), que consiste no uso diário
soas entre 15 e 24 anos. Muitos apontam como cau- Proteína Proteína
1 2 do antirretroviral Truvada por pessoas que não têm
sa a facilidade de obter sexo por meio de aplicati- Proteínas do HIV A membrana do
se ligam a células vírus se funde o vírus. Se a Profilaxia Pós-Exposição (PEP) fun-
vos ou o fato de que os adolescentes não conviveram de defesa do com a da CD4. É
corpo, conhecidas assim que o vírus ciona como uma pílula do dia seguinte (que deve
FONTE: Unaids
por 40% dos casos.
dia (e dos possíveis efeitos colaterais no fígado e nos
• rins), quem vive com o vírus enfrenta algo mais de- 0
1990 1995 2000 2005 2010 2015
vastador: a intolerância de uma sociedade cuja men-
talidade em relação à aids ainda não evoluiu. Por isso,
SEXO ANAL
chamei Gabriel para me ajudar a encontrar outras Diferentemente das paredes da vagina, por exemplo, as do reto são muito finas (e sem
lubrificação), porque têm a função de absorção. É por isso que usamos supositórios lá,
pessoas que também lidam diretamente com a ques- e é por isso também que o sexo anal é a forma mais fácil de transmitir HIV. Além disso,
36 tão. Você vai conhecê-las ao longo da reportagem. trata-se de uma região com grande concentração das CD4, células preferidas do vírus. 37
POR SER TRANS. FUI TRATADA COMO COISA, MAS SOU PARTE DA SOCIEDADE TAMBÉM”
“O PRECONCEITO EM RELAÇÃO AO HIV FOI PEQUENO COMPARADO COM O QUE PASSE
lógica de ver o HIV como algo destruidor, o que até foi
uma realidade durante um tempo, mas não consegui-
HUMANA
Como o preconceito
muito mais marginalizada, levando ao desenvolvimen-
to de transtornos mentais sérios como a depressão.
Antes de começar sua fala no TEDx Brasília, Ga-
ajuda a aumentar a
epidemia de aids briel Estrela precisou pedir desculpas por se ausen-
tar no início das palestras. Ele explicou que teve
• de ajudar uma amiga que vive com HIV e havia
A questão do precon-
tentado o suicídio horas antes de ele subir ao pal-
ceito não pode ser
co. “Queria que vocês entendessem que essa pes-
separada de uma sín-
soa que fala abertamente e que pode fazer carrei-
drome estigmatizante
ra a partir de sua sorologia é uma exceção”, disse
como a aids. O assunto
o artista, que já produziu uma peça sobre o tema.
é tão importante que
As matérias falavam sobre como “grupos transmi- Muitas das matérias recentes que acusam os
o Unaids criou um ín-
tiam aids de propósito”, e expunham o que chama- transmissores do vírus usam o mesmo tom alar-
dice que mede como
vam de “o dilema de soropositivos diante da dificul- mista que se via nas primeiras notícias sobre o
isso contribui para o
dade de apuração nos casos”. Em vez de informar, assunto, na década de 1980. As reportagens que
avanço da epidemia,
no entanto, muitas delas apenas reforçaram a ideia tratavam do “sombrio universo dos portadores do
o Stigma Index — que
de que quem vive com o vírus é como um bandido, vírus da aids” ajudaram a definir a forma como
deve incluir o Brasil no
numa “estranha guerra surrealista na qual o guerrei- muita gente percebe o HIV até hoje. Com uma
próximo ano. Leis como
ro seria ao mesmo tempo o campo de batalha, o ca- curiosidade mórbida, o público acompanhava (e
a que garante o trata-
nhão, o inimigo e a vítima”, como escreveu o francês continua acompanhando) histórias de persona-
mento gratuito pelo
Alain Emmanuel Dreuilhe em Corpo a Corpo: Aids, gens que se escondiam nas sombras — literalmen-
SUS e a que penaliza
Diário de uma Guerra (Ed. Paz e Terra). te, já que grande parte deles aparecia na contra-
atos de discriminação
De fato, expor outra pessoa a infecções sexualmen- luz para ter a identidade preservada.
ajudam, mas não são
te transmissíveis intencionalmente é crime previsto Apesar disso, a aids ganhou um retrato famoso e
suficientes para mu-
no Código Penal e pode dar até quatro anos de pri- polêmico no Brasil quando, em 1989, Cazuza estam-
dar a mentalidade da
são. Mas, desde 2015, tramita na Câmara dos Depu- pou a capa da revista Veja com a chamada “Uma ví-
sociedade, que ainda
tados o projeto de lei 198/15, do deputado Pompeo tima da aids agoniza em praça pública”. “Apesar da
enxerga quem vive com
de Mattos (PDT-RS), que quer transformar em crime campanha antiaids do Ministério da Saúde, de 1988,
o vírus como um “me-
hediondo a transmissão deliberada especificamente afirmar que ‘quem vê cara não vê aids’, a ‘cara da aids’
recedor”. Além disso,
do HIV. Em junho, a discussão retornou à pauta e [o estereótipo] passou a ser mais valorizada do que
o acesso à saúde e à
deixou em alerta organizações como o Unaids, que nunca”, escreveu Marcelo Secron Bessa em Os Peri-
orientação não é igual
a entendem como um retrocesso. “Em pleno 2017, gosos: Autobiografias & Aids (Ed. Aeroplano).
para todos. “Pensa na
estamos vendo um projeto elaborado em 1999 que
VIVA A VIDA
travesti que vai fazer o
não leva em conta os avanços contra a epidemia”, diz
teste e enfrenta olhares
Georgiana Braga-Orillard. “Não há evidência de que “Comprimi meus lábios na mão de Musil para beijá-
e piadinhas do segu-
a criminalização seja eficaz, vários países que a ado- -la. Ao voltar para casa, ensaboei-os com vergonha
rança, da atendente...”,
taram voltaram atrás.” A diretora destaca a possibi- e alívio, como se estivessem contaminados.” Esse
exemplifica o infectolo-
lidade de erros judiciários e casos como os de mães trecho de Para o Amigo que Não me Salvou a Vida,
gista Ricardo Vasconce-
que transmitem o vírus aos filhos sem saber. do escritor francês Hervé Guibert, ilustra o desco-
los. A forma como um
Em declarações oficiais, Adele Benzaken, direto- nhecimento acerca do fator contagioso do vírus.
homem branco da clas-
ra do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais E mostra como nem um dos mais influentes pensa-
se média vai lidar com o
do Ministério da Saúde, diz que a medida pode fazer dores do século 20 estava livre da ignorância que o
vírus não é a mesma de
com que as pessoas sintam medo de receber o diag- cercava: Musil é o pseudônimo do filósofo Michel
uma mulher negra da
nóstico e se afastem do tratamento. O governo estima Foucault, morto em decorrência da aids em 1984.
periferia. Para piorar,
que 112 mil brasileiros não conhecem sua sorologia Mas a falta de informação não ficou no passa-
muitas vezes o precon-
positiva, e que outros 260 mil conhecem, mas não es- do. “Ainda hoje, tenho pacientes que recebem o
ceito vem da própria
tão em tratamento, aumentando o risco de infecções. diagnóstico com aquela cara de sofrimento da dé-
classe médica.
Projetos de lei como esse intensificam o conceito cada de 1980”, relata Ricardo Vasconcelos. O mé-
• de “pânico moral”. “Trata-se desse medo exacerbado dico lembra o caso de um rapaz que, ao receber
acerca do HIV que é a fonte de toda discriminação”,
explica o psicólogo Salvador Correa, coordenador exe-
Brunna Valin, 42 anos Casada, a orientadora socioeducativa e articuladora da Rede TransBrasil vive cutivo adjunto da Associação Brasileira Interdiscipli-
com o vírus há 20 anos. Neste ano, recebeu uma homenagem na Assembleia Legislativa de São Paulo nar de Aids (Abia). “Nós fomos criados dentro dessa 39
MAIS Apesar de fundações como a amfAR prometerem um
anúncio de cura para 2020, cientistas estimam que,
SEM TRANSMISSÃO
Estudos comprovaram
REMÉDIO DE PONTA
Desde janeiro, o SUS
VACINA DO BEM
Combinando uma vacina
V DE VIDA
Jovens com HIV que já
RATOS EDITADOS
Cientistas conseguiram
BEBÊS SAUDÁVEIS
Casais sorodiferentes que
INFOR- nas melhores previsões, a cura efetiva só deve estar que quem vive com HIV oferece o Dolutegravir a e um fármaco, cientistas fazem o tratamento têm remover o HIV da célula queiram ter filhos podem
MAÇÃO,
acessível em no mínimo dez anos. Mesmo assim, os não transmite o vírus se quem vive com HIV. É o conseguiram controlar o praticamente a mesma de ratos vivos pela pri- apenas zerar a carga viral
estudos não param e são cada vez mais animadores. ele estiver em quantida- medicamento mais reco- HIV sem necessidade de expectativa de vida de meira vez, por meio da para garantir que o bebê
POR FAVOR
Separamos as novidades mais importantes dos últi- de baixa no sangue. mendado pela OMS. medicação diária. quem não tem o vírus. ténica de edição de DNA. não tenha HIV.
FOI TENTAR ENTENDER QUE ELE NÃO ERA UM VILÃO, MAS OUTRA VÍTIMA DA AIDS”
“FUI INFECTADA PELO MEU MARIDO, QUE MORREU. MINHA MAIOR DIFICULDADE
terminou com o namorado e foi para a consulta.
“Eu falei: ‘Então, você liga já para o chefe e para o
namorado e avisa que vocês precisam conversar’. FONTES: HPTN 052 e PARTNER, IrsiCaixa, Universidade de Bristol, Universidade de Pittsburgh, Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos
Silvia Almeida, 53 anos Depois de receber o diagnóstico, há 23 anos, a então telefonista precisou se entender como “pessoa normal” para descobrir
40 como cuidaria de si e dos dois filhos. Hoje, além de ter um “namorido” e dois netos (e uma nora, à direita), ela é consultora em prevenção ao HIV
“EM A HORA DA ESTRELA, CLARICE LISPECTOR FALA DO DIREITO AO GRITO, ENTÃO VAMOS
GRITAR. O SILÊNCIO É UMA FORMA DE FALAR, ELE É ELOQUENTE, ELE DIZ MUITAS COISAS
po ao qual eu pertenço. Por isso, o termo usado
para definir a parte da população em que a epi-
ALTO-FALANTE
Pioneiro na luta contra a estigmatiza-
demia se concentra mais e que de fato é deter-
minante para ajudar a conter seu avanço é “po-
pulação-chave”. Ela é composta por homens que
ção da aids vai ganhar biografia
fazem sexo com homens (não, nem todos se de-
• finem como gays), travestis, mulheres trans, pes-
O ativista brasileiro Herbert Daniel soas que injetam drogas e profissionais do sexo.
morreu em decorrência da aids, em Por serem o grupo mais estigmatizado, a vulne-
1992. Mas deixou uma série de obras rabilidade acaba sendo maior nesses casos. O Mi-
importantes, que refletem a questão do nistério da Saúde estima que na população geral
preconceito — os entretítulos desta re- a prevalência do HIV é de 0,4%. Enquanto isso,
portagem fazem referência ao seu tra- algumas pesquisas apontam prevalências de até
balho. Conversamos com o historiador 15% entre gays e outros homens que fazem sexo
norte-americano James Green, que vai com homens, e mais de 30% em mulheres trans.
lançar sua biografia em 2018: São porcentagens altas demais para serem igno-
UI
carga viral indetectável não transmitem o
AT
fote direcionado ao tema dos relacionamentos soro-
IS SOBRE HI
vírus. Ou seja, fazer o tratamento também
RA
diferentes — quando uma pessoa do casal tem HIV Para Ozzy Cerqueira, 30, a revelação pública de sua
DA N I E L BA
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é uma forma de impedir novas infecções.
e a outra não. A maneira delicada com que Peeters sorologia é como o palavrão que procede à vitória: “Já
narra suas descobertas me convenceu a gentilmente me silenciei por coisas como a minha sexualidade, e •
MA
obrigar o meu amigo a ler o livro. Assim como Cati, não foi bom”, diz o advogado, que recebeu o diagnós- REDUÇÃO DA
RR
IA
OS
ele achava que sua vida sexual estava “fadada à me- tico na época da faculdade, quando estava envolvi- TRANSMISSÃO VERTICAL LE
diocridade” porque se tornaria “sujo” e “perigoso”. do com os movimentos negro e estudantil. Para ele, Cuba foi o único país que conseguiu atingir
a descoberta foi encarada como um chamado para a a meta da OMS de zerar os casos de trans-
militância, e expor sua condição sorológica virou uma missão entre mães e filhos. Fazer o pré-na-
necessidade urgente. “O silêncio é uma forma de falar, tal completo é fundamental.
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ele é eloquente, ele diz muitas coisas, ele consente.”
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