You are on page 1of 90

AO REDOR DA FOGUEIRA - GG

Por Gerhard Grube

Coisas da vida.

1 - UMA HISTÓRIA PARA (NÃO) DORMIR

O petróleo esgotou-se, a mola do progresso da humanidade até então.

Sua extração reduziu-se a quase nada. O custo, altíssimo.

O pouco que ainda resta, é utilizado exclusivamente na finalidade muitíssimo mais nobre
do que simplesmente ser queimado como combustível, que são os produtos, os seus
derivados industrializados (plásticos, fibras, fios, medicamentos, adubos, tintas etc.).
Mas o preço é por demais proibitivo.

Infelizmente não existem boas alternativas. O carvão mineral está sendo usado também
nestas finalidades, mas é extremamente poluidor e também já está com os seus dias
contados.

Não é um bom substitutivo para o petróleo, em todos os sentidos, por causa do alto teor
de umidade, cinzas e enxofre. E também, porque demanda muito mais energia na
obtenção dos produtos que dantes eram extraídos do petróleo. Agravando o problema
energético mundial.

O petróleo, infelizmente, foi queimado quase todo ele levianamente, para movimentar
automóveis, que praticamente já não existem mais. Sua aplicação em indústrias,
produção de energia elétrica, aquecimento de prédios e residências nos países frios, foi
substituída pelo carvão mineral.

A energia fácil abundante e limpa, célula de hidrogênio, eólica, solar, fusão a frio etc.,
por mais que fossem pesquisadas, nunca deram resultados satisfatórios. Não
resolveram o problema global de energia. Não foi dada atenção a estas alternativas, no
devido tempo, o suficiente para que fossem viáveis e se tornassem eficientes.

Se tivesse sido pensado com antecedência, o impacto da falta de petróleo, não seria tão
grande. E talvez o mundo pudesse adaptar-se a essa nova realidade com mais facilidade.
Infelizmente, a grande esperança que a ciência e tecnologia resolvessem
milagrosamente esse problema, não se concretizou. E temos que conviver com isso,
sem alternativa.
Usou-se a biomassa. Do Brasil principalmente. O álcool combustível e o agro-diesel
substituíram praticamente todas as demais exportações agrícolas, tornando-se
prioridade nos países que possuem sol, água e terras férteis em abundância. Exportaram
para abater a dívida governamental. Que, mesmo assim, não diminuiu nunca.

Esta forma de energia renovável sempre foi insuficiente, devido à exagerada demanda
mundial. E piorou bastante com a degradação do meio ambiente, erosão, desertificação
e muitos outros problemas ambientais. A produtividade caiu muito e a produção mundial
de biomassa reduziu-se, significativamente. As técnicas agrícolas não conseguiram
resolver estes problemas. E os estudos de modificação genética neste sentido, foram
infrutíferos. A biomassa tornou-se assim também, de importância secundária, em termos
de energia.

E novamente errou-se, utilizando-a, quase que exclusivamente para movimentar veículos


automotivos.

A capacidade geradora de hidrelétricas já foi esgotada. Não existe mais como ampliar o
sistema, mundialmente. Sendo que a produção vem caindo até, por causa da falta de
regularidade na vazão dos rios. Cheias e estiagens alternam-se. Motivadas pelo
desmatamento e alterações climáticas.

Muitos rios e represas assorearam e estão quase sem água.

Utiliza-se agora, com muito mais intensidade, o carvão mineral e também a energia
nuclear, muito mais do que até então. São os últimos recursos que existem.

Acidentes com reatores nucleares têm sido, cada vez mais freqüentes. Por causa da
utilização intensiva e por causa do custo destes tipos de energia, cada vez maior. A
segurança está sendo deixada de lado, por motivos econômicos.

O lixo atômico também causa muitos problemas ambientais, principalmente no Terceiro


Mundo. Para onde são exportados, esses temíveis dejetos. Acabam por infiltrar no
subsolo, poluindo extensas áreas. Não existem métodos seguros e duradouros para
confinar estes dejetos.

Que continuarão irradiando morte, por milhares de anos.

Lutas e combates terríveis aconteceram, pela posse dos recursos energéticos, do


restante que ainda existe, e pela posse dos demais recursos considerados importantes.
Lutas cruentas mortíferas, impiedosas, injustas e egoístas. Mas, pouco adiantou. Pois,
como era previsível, e isto não poderia deixar de acontecer, tornaram-se escassos e
insuficientes, mesmo assim. E faltarão, cada vez mais.

O "EU" e o "MEU", afinal de contas, falaram mais alto. Optou-se pelo confronto e não
pelo consenso. Terríveis, as guerras e a destruição, pela posse das coisas. Muito se
perdeu com elas. Áreas enormes e muito patrimônio, simplesmente tornaram-se
imprestáveis, inúteis escombros.

A norma de conduta é, como sempre foi, mas nunca deveria ter sido: "É meu, só meu".
E pior que isso ainda: "Se não é meu, não é de ninguém!" É preferível destruir do que
deixar para os outros.

Reduzida minoria, mundialmente, elite das elites, vive ainda abastadamente, segundo os
padrões de seres humanos cultos, organizados e civilizados. Vivem muito bem até,
nababescamente, como nunca ninguém viveu antes, neste planeta. Quase nada sentem e
nada sabem, do flagelo mundial ao seu redor. Do qual não fazem parte e nem lhes
interessa.

Peritos na capacidade de apropriar-se das coisas. Especialistas em tirar dos outros.


Tornaram-se extremamente eficientes em manter como seu tudo aquilo que é sua
propriedade. Entre si, competem ferrenhamente, para não serem excluídos dessa
sociedade elitista. Que seria o pior castigo que lhes poderia acontecer. Cada vez mais
ricos e mais poderosos. Mas são cada vez menos.

Terrivelmente odiados e combatidos por todos os demais, que os consideram inimigos


mortais.

Muralharam e cercaram tudo aquilo que lhes é importante. Para garantir o seu modo de
vida. Mas, o futuro é que, também eles, sejam atingidos pelo desastre, como os outros.
Serão os últimos, é verdade, mas apenas isso. Todos estão no mesmo barco, que está
afundando. E não existe arca de Noé, salvadora de alguns poucos escolhidos. Nem de
ninguém.

Atualmente os investimentos, a pesquisa e a tecnologia estão voltadas, quase que


exclusivamente, para questões de segurança, armamento, obtenção de recursos
materiais e para garantir a posse e a propriedade destes recursos. Não se gasta mais em
outra coisa.

Nada, nada mesmo, para pesquisar e pensar como poderiam ser resolvidos os graves
problemas mundiais. Absolutamente nada, quanto à sobrevivência da vida no planeta.

Mas, na verdade, isto sempre foi assim. Mesmo quando os problemas ainda não eram
tão graves e ainda existia fartura. Pensa-se, como sempre se pensou, no imediato.
Nunca no futuro, no longo prazo. Neste aspecto, pouca coisa mudou.

Em continuidade ao petróleo, a intensa utilização do carvão, poluidor por excelência,


agravou em muito o problema de aquecimento do planeta. O enxofre, que é queimado
junto com ele, causa também as famigeradas chuvas ácidas. Teria que ser eliminado
previamente, mas ninguém faz isso. Por causa do custo que isso significa. A poluição
atmosférica aumentou drasticamente.

Nunca se soube ao certo se foi o homem ou por causas naturais, mas a temperatura do
planeta aumentou, irreversivelmente. Dizem que "o ponto de não retorno" já foi
ultrapassado, que as coisas agora acontecerão independentemente até da interferência
humana, e nada pode ser feito. Não interessa mais saber a causa deste aquecimento ou,
se é que existe, um culpado. Não há mais volta dizem, iniciou-se uma reação em cadeia.
A temperatura mais alta faz aumentar a umidade na atmosfera e está provocando o
derretimento da neve e gelo em todo o mundo. Ambos causam a elevação da
temperatura do planeta, pois a umidade do ar colabora para o efeito estufa e áreas
geladas menores refletem menos a luz solar de volta para o espaço.

Até que um novo equilíbrio, que ninguém sabe qual é, ou como vai acontecer, seja
atingido. É possível até, que o ser humano, não faça mais parte dessa nova realidade. A
vida na Terra não desaparecerá, isso é certo. Mas certo também, é que a transformação
atual, na velocidade com que está acontecendo, é inédita, nunca dantes vista na História
da vida do planeta. Entretanto, para os bilhões de anos de vida na Terra será apenas um
piscar de olhos. Transformação profunda, terrível desequilíbrio, mas transitória,
passageira.

"Ser humano": Uma experiência que não deu certo.

As espécies animais, as que puderam fazê-lo, migraram, na tentativa de encontrar


ambiente mais adequado. As outras pereceram. Insetos de clima quente foram em
direção aos pólos, espalhando doenças. Pragas, doenças, pandemias, espalharam-se de
modo incontrolável. A vegetação, que não consegue migrar em tão curto espaço de
tempo, está reduzindo-se drasticamente. Extinguiram-se muitas espécies. A falta de
cobertura vegetal alterou ainda mais o clima. Temperaturas altíssimas de dia e próximas
do zero à noite. Clima de deserto em muitos lugares, insuportável para maioria dos
humanos.

Atualmente, as florestas estão diminuindo, não só pela atuação direta do homem,


derrubadas, e queimadas, mas também devido à poluição e alterações climáticas,
rápidas demais, para que pudessem se adaptar. Estão declinando. Mesmos os "desertos
verdes", pinus, eucaliptos e tantas outras florestas artificiais, estão desaparecendo
rapidamente. E não se consegue evitar que isso aconteça.

As secas e aumento da temperatura provocam incêndios florestais espontâneos,


inéditos na sua quantidade. Devastadores. Arrasadores. Não podem ser combatidos,
pois a única solução seria fazer chover, alterar o clima. Tarefa muito acima das
possibilidades do ser humano. Que nem está preocupado com isso.

O ar está sempre fumarento, fazendo as pessoas tossir e lacrimejar, incessantemente.


"Devem ser as queimadas", dizem. Mas é assim em todos os lugares, mesmo longe das
florestas incandescentes.

A diminuição da vegetação só agravou a carência do ser humano e a destruição


ambiental aumentou, como nunca visto antes.

Nenhuma restrição existe mais. Leis ambientais, o antigo tratado de Kyoto, que nunca
tinham sido observados, nem mesmo em parte, foram esquecidos totalmente. E nunca
mais fizeram tentativas neste sentido. Nem se pensa mais, em coisas deste tipo,
atualmente.

Derreteram-se em boa parte, a neve e geleiras das montanhas mais altas. Causando
terríveis catástrofes, deslizamentos, avalanches e inundações. Milhões de vidas
perderam-se.
Muitos rios, que eram alimentados por essa água gelada, secaram. Falta água em muitos
lugares dantes povoados. As calotas polares diminuíram. Grande parte do gelo e neve
acumulados nas terras geladas derreteu. Os níveis dos oceanos subiram. As correntes
marinhas modificaram-se.

Inundaram, mundialmente, terras férteis e áreas habitadas. Reduzindo significativamente


o espaço disponível ao ser humano. Neste processo perderam-se vidas, e muito, muito
patrimônio.

Aumentaram muito, os desastres naturais, ventos, furacões, chuvas, inundações,


estiagens e ressacas. E até hoje não ficou comprovado com clareza, que isso tenha sido
causado pela interferência do ser humano na natureza. Muito foi discutido, muito se
brigou nas reuniões e conferências. Mas na verdade já nem interessa mais, é secundário
saber qual tenha sido a origem disso tudo. O que não pode ser ignorado é que estão
acontecendo em demasia, excessivamente.

Os pobres, como sempre, são os que mais sofrem. Mas a vida humana que nunca teve
muito valor, hoje em dia é totalmente sem significado. Morre-se aos milhões, e ninguém
se importa. Nem fingem mais que se importam.

As cidades estão se desagregando. Não existe mais como mantê-las funcionando.


Faltam suprimentos, energia elétrica, água. Os serviços, como coleta de lixo, deixando
de ser executados.

Estão sendo abandonadas pelas pessoas. Tornando-se cidades fantasmas, entupidas de


lixo, antro de ratos, moscas e baratas.

Epidemias, ressurgimento de moléstias, antes tidas como controladas, são cada vez
mais freqüentes. E muitas, inéditas, nunca vistam antes, estão aparecendo,
inexplicavelmente.

O temido melanoma, câncer de pele, a tuberculose resistente a antibióticos, os


nascimentos anencefálicos causados pela poluição do ar, são o dia a dia das pessoas.

A poluição e dejetos humanos nas águas doces em geral tornaram inviável sua
utilização na finalidade de dessedentar homens e animais. Assim como aconteceu com o
rio Tietê muito tempo atrás que, em apenas algumas décadas, de um rio em que se
nadava e praticava esportes náuticos, transformou-se, em um canal de esgoto e
efluentes. É assim atualmente, com todos os rios e riachos.

Abastecimento de água e tratamento de esgoto, que sempre foram insuficientes, quase


não mais existe, principalmente por escassez da essencial energia elétrica. As valetas e
as redes de esgotos transbordam o seu conteúdo. E o fétido odor, insuportável, está em
todos os lugares. Impossível fugir-se dele. E não existe o que possa ser feito.

A água potável tornou-se escassa. O pouco que existe, quase só pode quase ser usado
localmente. Transportá-la para outros lugares ficou cada vez mais caro, devido à falta de
energia. O aqüífero Guarani o maior do mundo, poluiu-se totalmente, por agrotóxicos,
dejetos industriais, humanos e animais. O seu nível baixou tremendamente pela super
utilização. Foi abandonado.

Muitos países agora estão obtendo água potável, por dessalinização da água do mar.
Muitos métodos existem. Mas a evaporação solar e osmose reversa são os mais
utilizados. Pois demandam menos energia. São, porém insipientes, ineficientes e
caríssimos, em termos de custo e equipamentos. Métodos que nunca foram devidamente
estudados no passado, para que evoluíssem para sistemas rentáveis e produtivos.

A água doce foi sempre, a substância mais utilizada pelo ser humano. Sendo o maior
problema, torná-la disponível, nos lugares em que é desejada. De qualidade, pois não é
qualquer água que serve. Nos bons tempos era normal uma pessoa utilizar em sua
residência duzentos, trezentos litros, diariamente. E mais uns quinze mil litros talvez,
indiretamente, devido aos produtos e alimentos que consumia a cada dia. Esta
quantidade enorme de água é dificílima de ser obtida, por meios artificiais.

Atualmente luta-se por míseros cinco litros de água ao dia. Para não morrer de sede.

A produção alimentar mundial diminuiu. Não existem mais áreas férteis e água em
suficiência. Não existe mais combustível para movimentar as máquinas agrícolas. A
promessa dos transgênicos, de resolver a fome mundial, não se cumpriu. Pelo contrário.
Mostrou-se prejudicial ao que restava de diversidade, acelerando a extinção de espécies.
Contaminou-se o mundo inteiro com eles em um processo irreversível já sabidamente
prejudicial, inclusive ao homem. Foi abandonado.

Mas suas conseqüências, imprevisíveis, ainda perdurarão por milhares de anos. Muito
mais talvez.

Grande parte da floresta amazônica já desapareceu. Está virando deserto.

Pois que, o substrato que faz com que ela viva, é meio metro de detritos orgânicos
gerados pela própria floresta, sobreposto a um deserto de areia estéril. Que está
reaparecendo. Por causa do desmatamento, queimadas, alterações climáticas e
poluição.

A floresta amazônica, simplesmente, está morrendo.

O cerrado não existe mais, já faz tempo, e nenhuma das espécies que o habitavam.

Já não serve mais para plantio de qualquer coisa que seja, pois a correção do solo,
adubos e a irrigação, agora imprescindíveis, inviabilizaram sua utilização. Tornou-se um
grande deserto.

O pantanal, com toda a sua incrível diversidade é apenas um espectro de sua pujança
original. O que ninguém acreditava ser possível aconteceu. Conseguiram fazer com que
secasse! E neste processo, as alterações climáticas tiveram decisiva influência.

Canalizaram-se os rios, para beneficiar o transporte fluvial e drenar as enchentes.


Diques de contenção e drenagens disponibilizaram áreas enormes para a atividade
agrícola e pastagens. O que gerou muitos recursos econômicos é verdade, e muitas
dívidas foram pagas com isso.

Mas agora a enorme quantidade de água flui, corre e escorre. Não é mais contida, pela
baixíssima declividade do terreno, nem pela vegetação original, que funcionava como
uma esponja retentora de água. Segue ela enxurrada barrenta erosiva abrindo
voçorocas, por vários caminhos, rumo ao Atlântico. E tudo praticamente secou, uma
transformação incrível, verdadeiro monumento à capacidade empreendedora do ser
humano.

A perspectiva é que a região torne-se também, desértica.

No desbravamento dessa região, muitos bichos, acuados, perdendo seu espaço, sem
alimentos, desesperados, chegaram até a atacar seres humanos. Jacarés, onças e
outros, bem mais inofensivos, também fizeram isso. Os homens, sem dúvida, reagiram.

Na ocasião, foi uma verdadeira orgia de carnes "exóticas", ofertadas nos restaurantes e
mercados da região. Capivara, veado, anta, tateto, ariranha, lontra, paca, jacaré. Até
jibóias, ratão d’água e carne de onça (a legítima) podia ser adquirido. Às vezes, até mais
barato do que o próprio frango de granja. E naturalmente peixes, muitíssimos peixes.
Que até afloravam à superfície, por causa da escassez de água e oxigênio. Mas não
durou muito.

Carne, atualmente, é artigo de altíssimo luxo, uma especiaria. Praticamente abandonou-


se a produção de aves, peixes, porcos, ovinos e gado de corte, em todo o mundo. Pois, a
criação intensiva ou confinada, demanda grãos, vegetais, ração e água, muita água, que
não estão mais disponíveis. Nunca fez muito sentido mesmo, alimentarem-se os animais
com vários quilos de alimentos, e então no final deste processo obter apenas um quilo
de carne. Hoje em dia o custo tornou isso simplesmente proibitivo.

Extensivamente também, nas pastagens, tornou-se inviável. As pastagens secaram.


Sendo o principal motivo porém, os roubos que acontecem, impossíveis de serem
contidos. Tanta gente os pratica.

Na calada da noite, ou mesmo de dia, matam o gado, ou o que quer seja que esteja
sendo criado, retiram o quanto podem de carne, e fogem. E não existe como impedir
isso. É muita gente. E a carcaça, com muita carne ainda, então simplesmente apodrece.

As plantações que existem têm que ser vigiadas dia e noite. Mas é impossível fazer isso
totalmente. Como gafanhotos as pessoas lançam-se sobre as poucas áreas que ainda
são cultivadas, assim que exibam qualquer coisa que seja comestível.

Para os que podem plantar, aqueles que ainda possuem recursos, não está mais valendo
a pena fazer isso. E os que não podem não plantam.

Fala-se muito em canibalismo. Talvez seja boato. Mas a verdade é que as pessoas estão
magérrimas, esquálidas, são esqueletos ambulantes. Não conseguem mais se alimentar
suficientemente. É possível pois, que isto esteja realmente acontecendo.

Ao que parece, mundialmente estamos sendo uma réplica da antiga Ilha da Páscoa. Que,
exaurida de recursos e alimentos, extinguiu quase toda a sua população vegetal, animal
e humana. Praticaram, como último recurso, o canibalismo. Não como um ritual, mas
como forma desesperada de sobrevivência.

Já que a ciência, a tecnologia e a racionalidade não resolveram os problemas materiais e


de sobrevivência, as pessoas voltaram-se, cada vez mais, para os deuses. Não para
salvar a alma ou ter como prêmio a vida eterna, mas para obterem recompensa já em
vida. Nesta vida tão difícil e cheia de amarguras. Para aliviar os sofrimentos terrenos
imediatos.

A religiosidade aumentou muito. E a fé, o acreditar sem ver para crer, é ainda o que está
impedindo, mais ou menos, aquilo que tem se tornado cada vez mais comum entre as
pessoas: O suicídio.

Que antes era uma rara exceção, uma anormalidade, violenta transgressão aos
princípios da vida. Agora, ao contrário, está sendo considerado como sendo panacéia,
solução para todos os problemas. É claro, nenhuma religião prega como virtude, o
suicídio. Perderia adeptos se o fizesse.

Assim, são elas, que ainda seguram, um pouco, a onda incalculável desses
acontecimentos.

A bacia amazônica foi invadida parcialmente pelo mar, assim como os estuários e deltas
dos rios, em todo o mundo. Agravou-se o problema de obtenção de água doce, das
populações ribeirinhas, que vivem nas partes mais baixas desses rios.

Ilhas de corais, paradisíacas, a maioria apenas a um ou dois metros acima do nível do


mar, desapareceram. Ficaram as vulcânicas. Mas suas praias de areia sumiram
totalmente.

Os mangues já vinham sendo dizimados pelo homem em sua demência imobiliária e por
causa da poluição. Os corais sendo sufocados pelas enxurradas, trazidas pelos rios,
conseqüência do desmatamento e da urbanização. Branquearam, restaram apenas seus
esqueletos calcários.

Mangues e corais, os grandes criadouros e berçários da vida marinha, a elevação do


nível dos mares e o aumento da temperatura deram-lhes o golpe final, mundialmente.
Morreram.

Sem eles, as espécies marinhas estão desaparecendo rapidamente. Inclusive o topo da


cadeia alimentar. Já não existem mais peixes a serem pescados.

O plâncton, a base alimentar das espécies aquáticas, devido às alterações climáticas e


poluição, está morrendo. As algas e o fitoplâncton já não são suficientes, já não
produzem mais tanto oxigênio. Falta oxigênio na água. Mortandade de peixes,
muitíssimas vezes observado em águas interioranas, agora está acontecendo também
nos oceanos.

A própria atmosfera está alterada em sua composição. Mais metano, monóxido de


carbono e dióxido de carbono. E menos oxigênio.
Os oceanos estão morrendo.

A vida no planeta Terra está morrendo!!!

Então acordei. Ufa!

Graças a Deus, foi tudo só um terrível pesadelo!


2 - O COMEÇO

Final da segunda grande guerra mundial. Tempos difíceis, mesmo para os brasileiros.

Mas nós crianças tínhamos coisas mais importantes no que pensar. Pouquíssimas são
as recordações deste conflito: Gibis enaltecendo o heroísmo dos aliados; os estranhos
gasogênios montados na traseira dos automóveis nos quais queimavam-se os dedos,
quando tocados; Repórter Esso e suas gritadas notícias, sintonizado nos rádios da
vizinhança, a todo volume; as intermináveis filas para comprar pão e outros produtos
escassos.

Nossos problemas como crianças eram outros.

Existem lugares melhores e lugares piores para se viver, sem dúvida. Tanto para
crianças como para os adultos, mas os interesses são totalmente diferentes. Mora-se
quase sempre onde é mais conveniente para os pais, em função da atividade que dá
sustento à família. As crianças nunca são consultadas. Pensa-se nelas apenas em
termos de proximidade de uma escola, transporte, segurança e coisas assim, mas na
verdade elas não querem saber de nada disso.

Crianças querem espaço, liberdade e mil coisas para fazer.

Meu irmão e eu tivemos sorte neste aspecto, pertinho de nós praia, areia e água do mar,
metade da felicidade. E muito calor, todos os dias. Nossa mãe era liberal, totalmente.
Morria de preocupação, mas não tolhia a nossa liberdade.

Mas os perigos eram poucos, tráfego de automóveis quase não existia na época. E os
poucos bondes elétricos eram até uma utilidade, serviam para moer os cacos de vidro
que colocávamos em seus trilhos. Pó fino, quanto mais fino melhor, que então,
misturado à cola de madeira, formava o famigerado cerol, a ser aplicado na linha de
nossas cafifas arraias e morcegos.

Afogar-se no mar era praticamente impossível, pois desde cedo aprendemos a nadar
como peixes. Quase nada pois, com o que se preocupar.

As casas eram poucas em Icaraí (Niterói, Rio de Janeiro), edifícios um só, de sete
andares. E não longe, iniciava-se o mato pouco denso, capoeira, nos morros que
ladeiam a praia. Onde, com as cetras (estilingues), tornávamos insegura a vida dos
pobres passarinhos. Mas nem tanto, pois dificilmente lográvamos êxito. Fugiam sempre,
assustados.

Energia, a tínhamos aos montes, sobrando, e fazíamos o possível para gastá-la toda.
Mas faltava tempo hábil para executar tudo aquilo que era desejado.

Mar, ondas, areia, sol quente e, do outro lado da baía, os imponentes Corcovado e morro
da Urca. Era esse o cenário, o nosso meio ambiente. Melhor, impossível.
Nas festas juninas, é claro, balões e fogos de artifício. Por vezes, meu irmão e eu, com
um caixote velho, colocado em pé, instaladas prateleiras em seu interior e duas
tabuinhas à guisa de telhado, improvisávamos uma barraquinha para venda de fogos de
artifício. Coberta com papel de seda colorida e no topo uma lanterninha de papel com
um toco de vela em seu interior. Tudo isso era colocado em cima de uma cadeira na
calçada. E estava iniciado o negócio.

Era muito comum, as crianças fazerem isso na época. Iniciavam um pequeno comércio
de brinquedo, com dinheiro de verdade.

Mas não durava muito, como que por ordem invisível, o assunto da moda se modificava.
Passávamos então a nos dedicar a outras coisas. E coisas existiam muitas a serem
feitas. Na verdade, faltava tempo para realizar todos os empreendimentos e,
naturalmente, o estudo é que padecia nisso tudo. Tinha que ser sacrificado, ceder
espaço físico para o turbilhão de idéias que deveriam ser colocadas em prática.
Estudávamos o mínimo, só o suficiente para passar de ano, "raspando". E mesmo isto,
só debaixo de ameaça.

O calor reinante, a proximidade do mar, a tranqüilidade daquela praia maravilhosa


ditavam as regras de nossas atividades. O meio, sem dúvida, determina o
comportamento. Nessa vida fácil de criança formam-se os gostos, as vontades e as
preferências. E adultos, são nada mais que a continuação das crianças que foram. Desde
cedo se define o futuro que, se não impedido, realmente acontece. Pelo resto de nossas
vidas procuramos ser, aquilo que sonhamos enquanto crianças. Se é que não somos
simplesmente o resultado de eventos anteriores até ao próprio nascimento, registrados
em nosso código genético.

A água o sol o mar, a aventura, as pescarias, o observar a natureza, definiram a que nos
iríamos dedicar futuramente. Se no final, não fizemos exatamente isso
profissionalmente, pelo menos na maneira de agir, de pensar, de gostar, nas conversas e
no lazer.

A sociedade exige, obriga, tolhe e assim quase nunca é possível fazer o que é desejado
integralmente, o tempo todo. Tenta-se então adaptar o inconveniente ao que se gosta, o
mais possível. A profissão sendo na maioria das vezes apenas uma aproximação daquilo
que se é verdadeiramente.

Quando crianças quase nunca tínhamos dinheiro, contrário à maioria de nossos


amiguinhos. Era uma espécie de filosofia de nossos pais, para que tentássemos resolver
nós mesmos os nossos problemas, e assim tínhamos que improvisar e, com as poucas
ferramentas disponíveis, confeccionar nós mesmos nossos dispositivos e apetrechos. O
que nos aguçou a curiosidade e o espírito inventivo. Começamos a nos interessar em
saber como funcionam as coisas e líamos bastante. E nunca mais deixamos de ser
assim.

Vão-se os tempos de criança. A vida passa e somos induzidos a acompanhar a grande


"boiada" humana que, tangida por uma varinha misteriosa e invisível, nos leva a fazer
tudo o que todos fazem. Seguimos todos, as mesmas trilhas, os mesmos objetivos, com
os mesmos conceitos. São as ações e as mentes, globalizadas.
Fazemos o que todos fazem e nem percebemos que não é o que gostaríamos,
verdadeiramente.

Uma vez ou outra paramos e pensamos para nós mesmos:

"Será que tudo não poderia ser diferente? Será que tudo que aprendemos está correto?
Será que as verdades que aprendemos, são todas elas verdadeiras?"

Por que não questionar assuntos, considerados por todos como líquido e certo, só para
ver o que acontece? Por que não ter uma opinião diferente?

Às vezes vemos multidões inteiras fazendo algo, sem nexo, ilógico e até ridículo, e
aceitamos, sem pensar muito, argumentando: "Milhões, não podem estar errados".

Tem que ser assim?

Quantos no mundo fazem o que fazem, apenas porque são "Maria vai com as outras?".

Por que não, de vez em quando, questionar e discutir as coisas um pouco mais?

A verdade, a tão soberana e idolatrada verdade, não é única. Não existem simplesmente
coisas verdadeiras e em contrapartida, as falsas.

Até as leis físicas são assim, muitas comprova-se com facilidade a sua validade.
Entretanto, no microcosmo, no zero absoluto de temperatura, perto da velocidade da luz,
algumas delas simplesmente deixam de funcionar. A verdade pois, tem a sua
abrangência e apresenta limites. E praticamente tudo, é passível ser questionado, de
uma forma ou de outra, mais cedo ou mais tarde.

Fatos históricos, relatados friamente, revelam a verdade para uns. E mentira para outros.

Solano Lopes, para os paraguaios foi um herói, para os brasileiros um crápula. Duas
verdades contraditórias. Qual seria a verdade verdadeira?

O depoimento de autoridades não tem validade absoluta. Por princípio, é errado supor
que mesmo o mais erudito conhecedor de um assunto qualquer, seja infalível. Muito
menos o "chefe", ao qual apenas foi delegado o poder de decisão. Pois nenhuma
verdade é definitiva, não existe o dono da verdade, não existe a última palavra, nunca. O
preço da verdade é o seu eterno questionamento.

Se assim não fosse, os conhecimentos estariam estagnados, já há muito tempo. Como


de certo modo aconteceu, na Idade Média.

O consenso também não é garantia de validade. Se todos, ou a maioria concordam em


determinado assunto, não significa que o mesmo seja verdadeiro. É perfeitamente
possível que milhões de pessoas acreditem piamente, em uma deslavada mentira.
Como as religiões. Onde cada qual afirma ser ela a única verdadeira. Como podem
coexistir, e isto sempre foi assim em todos os tempos, se apenas uma delas é
necessariamente a verdadeira?

A verdade pois, é dúbia sempre, incerta, fugidia. Por incoerente que seja, a verdade
torna-se então uma questão de fé, simplesmente. O que significa acreditar sem provas.
Verdade é aquilo em que se acredita, nem que seja uma falsidade. A verdade não existe
por si só, tem que ser acreditada.

Importante para alguns, sem significado para outros, a verdade nunca é universal.
Altera-se com o tempo e lugar, não é uma constante. Vivemos segundo as verdades e
mentiras que construímos e nas quais acreditamos e que não são eternas.

As pessoas devem convencer-se, ou serem convencidas. É mais importante do que


saber se a verdade é, ou não, verdadeira. E é o que sempre tem sido feito na
humanidade: Convencer as pessoas sobre as verdades, nem que sejam mentiras.

As verdades são aprendidas, e de pequenino se torce o pepino. Os costumes e a


educação formam as pessoas e desde muito cedo elas aprendem o que devem aprender.
É imposição, uma terrível opressão, da qual pouquíssimos tentam e logram escapar. Os
que conseguem libertar-se são considerados anti-sociais, delinqüentes e perigosos. São
repudiados sem exceção, rejeitados e castigados.

As pessoas devem aprender desde cedo as verdades, quando ainda não as podem
contestar, pois mais tarde, torna-se mais difícil alterar o cimento já moldado e
endurecido pelo tempo. São os adultos que mais relutam em aceitar idéias novas.
Recusam-se a desmontar o edifício de credibilidade, que trabalhosamente construíram
ao longo de suas vidas.

E como convencer uma pessoa sobre um assunto qualquer, se ela não acredita?

Existem as leis que obrigam. Obrigam a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, não
importa que não se acredite nelas, ou não se esteja convencido de sua validade.
Obrigam pela ameaça de punição. E assim, não existe uma única lei em todo universo,
sem que haja castigo pelo seu descumprimento! A punição é a essência de todas as leis.

Com isso deve existir obrigatoriamente uma estrutura que fiscalize e uma estrutura
punitiva. Que podem tornar-se inviáveis, se forem muitos os transgressores. A
sociedade pode tornar-se opressiva em excesso, cruel e desumana.

O caminho das leis é um caminho caro e difícil, melhor é convencer as pessoas. Que
então farão, ou deixarão de fazer, tudo aquilo que é desejado, espontaneamente. Pois
acreditarão nisso.

As pessoas não gostam de mudanças nem de idéias novas, opõe-se a elas, mas são
maleáveis. A maleabilidade é considerada até, uma virtude. Ninguém gosta de turrões
que fincam o pé em um ponto de vista e não cedem milímetro, nem a pau. Mesmo que
essa pessoa esteja corretíssima em sua afirmação. Mesmo assim, ela deve ceder, deve
abdicar da verdade e submeter-se ao consenso. Isso é considerado virtude, é virtuoso
aceitar a mentira.

As pessoas podem ser convencidas com certa facilidade, raríssimas as exceções. É só


achar os meios para se fazer isso. Que de preferência, devem ser dissimulados, o
suficientemente, para que as pessoas não percebam que estão sendo enganadas.

E é enganação sempre, sem dúvida, fazer com que as pessoas aceitem uma idéia
qualquer. Já que nunca está em jogo transmitir a verdade. Que é sempre duvidosa.

Como a propaganda, seja ela para vender algum produto ou fazer (desfazer) uma
ideologia.

É bem mais custosa, se a idéia tem que ser martelada incessantemente por dias, meses
e anos a fio. É efetiva sem dúvida, principalmente porque nunca é mencionado o outro
lado da moeda (nunca são citadas as desvantagens do produto ofertado, nunca se fala
sobre as virtudes da idéia que está sendo combatida). As pessoas acabam achando que
é a única opção existente, e acreditam.

Mas é custosa, e demorada.

Muito mais eficiente e bem mais dissimulada, é a pretensa neutralidade. Mantém-se a


aparência de imparcialidade. Divulga-se com habilidade as duas faces da moeda,
ressaltando porém, as características que são desejadas e inferiorizando as que se quer
combater. Com naturalidade e aparente neutralidade.

E então o grande truque, o pulo do gato: Fica em aberto o "gran finale".

Deixa-se que o receptor da mensagem, ele mesmo, chegue às conclusões desejadas!

A tão almejada verdade, se ela permanece escondida, não existe, não é verdade. Como
diz o ditado: Longe dos olhos, longe do coração. Milhões de acontecimentos nada
significam, se eu os desconheço totalmente e nem sei se aconteceram. E se pouco sei
sobre eles, pouco sou afetado.

Tremendamente mais importante é a tempestade em copo d’água, que insistentemente é


esmiuçada, comentada e divulgada. Esta sim move moinhos e remove montanhas.

As verdades pois, além de muitas vezes serem deslavadas mentiras, tem ainda a sua
mentirosa classificação: Verdades importantes e verdades sem importância.

As importantes são detalhadas minuciosamente, as pessoas envolvidas têm passado,


presente e futuro, tem nome, sobrenome, família, gato, cachorro e papagaio. Vivem,
sentem e se emocionam.

As sem importância são ignoradas, simplesmente isso. Quando muito é citado um gélido
e impessoal número estatístico.
E existem os truques. Associando-se coisas, influencia-se com mais facilidade as
pessoas. Textos, falas, documentos, imagens, sons, melodias, opinião de autoridades.
Sozinhos, cada um destes tem efeito limitado. Juntos porém, são quase imbatíveis. Um
confirmado o outro, não existe como duvidar. E a idéia é aceita, sem muito
questionamento.

A música "heawy metal" que é apresentada quando um surfista está pegando uma onda,
não pode ser utilizada quando a reportagem é sobre uma criancinha que está chorando a
perda dos pais. Evidentemente.

Na verdade, a melodia não existe em nenhuma destas ocasiões, é introduzida para


influenciar (subliminarmente poderia dizer-se) o acontecimento. De certo modo
falsificando a realidade.

Um menino afogou-se. A reportagem relata o acidente e as imagens mostram o rio em


que aconteceu a tragédia. Sem dúvida acredita-se que a notícia seja verdadeira, pois
associou-se a fala do repórter com a imagem do rio. Ouvidos e olhos receberam a
informação.

Mas, o rio filmado poderia não ser aquele em que o menino se afogou, poderia ser um
outro rio qualquer. E o que o repórter disse, também poderia ser simplesmente mentira.

O que tornou a notícia acreditável, foi a associação da fala com a imagem.

Não existe muito motivo para duvidar de uma notícia dessas, como a de um afogamento.
Mas a verdade é que muitas e muitas notícias são falsificadas dessa maneira. E todas
elas, sem exceção, são adulteradas para que se tornem mais impactantes.

Selecionando-se argumentos, fotos, textos, falas e imagens, com cuidado, praticamente


qualquer verdade pode ser fabricada. Qualquer um que exponha a sua opinião utiliza
mais ou menos esse recurso. É impossível a total imparcialidade, seja qual for o
assunto, mesmo na mais técnica e científica das exposições. E a mais legítima das
verdades tem que ser defendida, com unhas e dentes, empregando-se os mesmos
métodos com que é elaborada a mais mentirosa das falcatruas.

Pois sempre o objetivo é convencer pessoas, e as pessoas não são racionais, tem que
ser convencidas, devem acreditar.

É o que fazem os editores e as agências de notícias. Sendo eles que determinam se, e
como, as notícias são publicadas, mundialmente, não importa qual seja o assunto.
Construindo assim as verdades universais.

Faz-se tanto uso disso, que já estamos acostumados, nem estranhamos mais. Mistura-se
realidade e ficção e nem notamos mais a diferença.

Ficamos a ruminar esse pensamento por algum tempo.

Então, eis que um de nós, diz:


"Mas afinal, somos o que somos porque queremos, ou simplesmente não temos
escolha? Se as verdades são forjadas por nós mesmos, não teríamos que ser totalmente
livres? Dos infinitos mundos possíveis, forjamos aquele que nos é conveniente. E se
temos liberdade para fazer isso, somos livres, totalmente livres!".

A liberdade, verdadeiramente não existe. Liberdade assim como democracia são


palavras, nada mais. Pior do que isso até, são engodos, ilusórios artefatos, ilusões
artificiais. São pontas do arco-íris, fáceis de enxergar, mas impossíveis de serem
alcançadas.

O pote de ouro que existe em suas extremidades, só é acessível àqueles que fazem os
outros acreditar que realmente seja possível chegar lá. E tiram proveito disso.

Os seres vivos, todos eles, tem uma característica comum: Estão vivos. O que é mais
que evidente. E é isso o que mais os preocupam. A vida, a sua vida, o continuar vivo. O
que também é evidente, pois se assim não fosse, morreriam. E estariam excluídos do
grupo dos viventes.

A mola propulsora de praticamente tudo aquilo que fazem, é apenas isso, um tentar
permanecer vivo. E é prioritário, sobre qualquer coisa.

Esta interminável defesa da vida, entretanto, poucas vezes acontece ser defesa a um
perigo mortal iminente. Emergência, quando então a adrenalina, ou seja, lá quais
substâncias sejam produzidas neste momento, vai ao infinito, e é máxima a
concentração para evitar ou contornar, o pior que pode acontecer na vida: A morte.

Na maioria das vezes, o perigo não é imediato, existe mais tempo para pensar, para fugir,
para evitar, para postergar aquilo, que finalmente quando chegar a hora será inevitável.

A luta pela sobrevivência sem dúvida é prioritária, mas não fazemos isso
incessantemente, o tempo todo.

Um futuro deve ser construído pelo ser vivo. Mas é um futuro sem futuro, pois não será
eterno nunca. Mesmo assim os seres vivos trabalham, ignorando a morte, como se ela
não fosse acontecer nunca. E é isso o que os mantém vivos. Desde o primeiro ao último
suspiro. Desde ao minúsculo vírus à enorme baleia. A idéia é sempre a mesma: Ficar
vivo.

Neste aspecto, como todos os demais seres vivos, não temos escolha nenhuma. Somos
prisioneiros, não temos liberdade.

E por isso somos egoístas, sem exceção. E não é uma fraqueza. Nossa vida é
importante, mais importante que qualquer coisa. Mais importante que a vida dos outros.
Mais importante que a vida de nossa própria prole.

Defendemos nossos filhos, com certeza, mas primeiramente, defendemos a nossa


própria vida. O que até é racional, pois só estando vivos, podemos proteger a nossa
prole. Prole que, sem que tenhamos consciência disso, é a continuação de nossa vida. É
assim que atuamos.

Quando temos tempo, trabalhamos para viver eternamente e quando não temos, lutamos
com unhas e dentes para continuar vivo, por mais um minuto, que seja.

Nem que tenhamos que destruir o mundo inteiro, nessa tentativa de ficar vivo mais um
instante ou de viver eternamente. De bom grado cada um de nós entregaria a vida de
todos os demais, se com isso pudesse obter a almejada eternidade. Ou continuar
vivendo por apenas mais um minuto. Em situação extrema somos extremamente
egoístas, a vida nos obriga a isso. Entre a vida dos outros e a nossa, que morram os
outros.

Mas não necessariamente a sobrevivência é mais bem atendida pelo egoísmo.


Individualmente pode ser que sim, mas não coletivamente. Onde a cooperação mostra-
se como a única estratégia verdadeiramente eficiente. O egoísmo é individual, a
solidariedade é para todos. Individualmente, competindo uns com os outros, garantimos
a sobrevivência do ser. Com a solidariedade e a cooperação garantimos a sobrevivência
da espécie.

Sórdidas e infelizes são as sociedades onde a competição é enaltecida e considerada


mais importante do que a solidariedade. Como se sobreviver individualmente fosse
suficiente para a sobrevivência de todos.

Mas sem dúvida somos egoístas, a vida nos obriga a isso, não temos escolha. Não
somos livres para deixar de ser egoístas.

Precisamos de energia, se não morreremos. Somos máquinas térmicas. Regidas pelas


leis da física e química. Reações químicas exotérmicas. É o que nos aquece. Somos
gélidas máquinas, que necessitam de combustível. Assim, obter energia é manter-se
vivo. Alimentar-se, o problema maior. Se quisermos ficar vivos temos que nos alimentar.

Sortes dos vegetais recebem luz do sol, não precisam preocupar-se com a obtenção de
energia. Entretanto os outros se alimentam deles. E, além disso, os vegetais competem
ferrenhamente, por "um lugar ao sol".

O início da cadeia alimentar não é nada tranqüilo. Nem o final também. Não existe
tranqüilidade energética na vida. Não temos liberdade neste aspecto também.

Sem saber porque, queremos procriar. Fazemos isso e quase não temos controle sobre
esse sentimento. É exigência da vida. E, novamente, se assim não fosse, não estaríamos
vivos.

Mas não é bem o procriar, a proliferação, que é desejada. Quer-se isto sim, a relação
sexual. É este o atrativo, que tem como conseqüência a gravidez, a prole, a continuidade
da espécie. Muitos seres vivos são assim, e outros já não. Alguns se subdividem,
cindem-se em dois, de um só tornam-se dois seres vivos. Na verdade, de um indivíduo
fazer muitos, é o que fazemos sempre. E não podemos deixar de fazer isso. Não temos
liberdade.
Manter-se vivo, alimentar-se, procriar. Não temos como deixar disso.

Somos escravos da vida. Não temos escolha. É a verdade que não podemos forjar.

"Mas então não evoluímos, somos bichos primitivos!", retruca um de nós. "Será que nós
humanos somos ainda apenas os irracionais que éramos há milhões de anos atrás, e
que obedeciam apenas a instintos?".

Evoluímos sim. Todos os seres vivos evoluíram. E fizeram isso, todos igualmente, por
mais diferentes que sejamos uns dos outros. O mais elementar vírus, nada mais que um
código genético, coberto por insípida capa de proteínas, e a suprema conquista da vida
na Terra, o homem, todos evoluíram igualmente.

Pois que, se a origem da vida é única, como tudo indica que seja assim que tenha
acontecido, a evolução é igual, para todos os seres vivos.

Podemos dizer que existem os seres mais simples e os mais complexos, mas evoluir,
isso todos fizeram igualmente. Um tubarão é assim como é hoje, já há milhões de anos.
Pois não foi necessário alterar-se. Atingiu cedo, um certo grau de perfeição. E
permaneceu.

Uma ostra grudada em alguma pedra qualquer é tão antiga quanto o ser humano.
Evoluiu pois tanto quanto nós.

Nossa vaidade como seres humanos no entanto, nos diz que somos mais, mais
evoluídos, sentimos isso, intimamente.

Entretanto, o ser humano é onívoro, não definiu ainda qual é o seu alimento preferido.
Não se especializou ainda. Cheio de defeitos e imperfeições, ergueu-se sobre duas
patas. Mas não se adaptou a isso totalmente. Ainda é um quadrúpede, que anda sobre
duas patas.

Resta-lhe um toco de rabo, sem finalidade. As unhas dos pés e das mãos, antigas
garras, são inúteis. O cérebro cresceu, mas sua caixa craniana não lhe deu espaço.
Invadiu a cavidade bucal, restringindo a irrigação sanguínea, provocando dentição
deficiente e vulnerável.

Como é que podemos afirmar, ter evoluído mais que os outros?

Sem dúvida a evolução mostra no todo e em detalhes seu esforço em direção à


sobrevivência da espécie. Tudo que é supérfluo acaba tornando-se peso morto e deve
ser descartado. Tudo que é útil aprimora-se. O que demanda muitíssimas gerações de
tentativas, erros e acertos. As espécies tornaram-se eficientes máquinas de
sobrevivência, se não, não sobreviveriam.

Neste aspecto a diversidade é importante. Diversidade dentro da mesma espécie,


diversidade de espécies e diversidade de ambientes ecológicos. A diversidade facilita a
evolução, protege a vida.
Se os seres vivos fossem muito semelhantes entre si eles extinguiriam. Sucumbiriam em
decorrência de uma alteração qualquer do ambiente para a qual não estivessem
preparados.

Essas máquinas de sobrevivência, por sua aparência que a evolução lhes proporcionou,
parecem estar numa luta constante incansável e sem tréguas no sentido de sobreviver.
Mas é só aparência, na verdade não fazem isso o tempo todo. Ao contrário, boa parte do
seu tempo estão sossegadas descansando ou se divertindo. Fazendo o que nós
chamamos de lazer.

Sobra-lhes sempre bastante tempo. Tempo este necessário, imprescindível até, que
possa ser utilizado para sobreviver, nas adversidades. Sem o que extinguiriam.

Tanto é que quando observamos os bichos em seu ambiente natural eles


freqüentemente estão fazendo outras coisas do que lutar pela sobrevivência. É incomum
até testemunhar estarem praticando a sobrevivência, dificilíssimo observar a predação,
por exemplo. Os que mais vemos praticando sobrevivência são os coletores. Animais
pastando, mordiscando aqui e ali algum alimento, normalmente pouco energético e que
precisam ser ingeridos em grande quantidade.

Os bichos de sangue frio necessitam pouca energia. Seu tempo disponível é muitas
vezes enorme. Podem ficar semanas sem alimentar-se, mas seu metabolismo é sensível
às variações de temperatura. Ficam impedidos de viver plenamente, o tempo todo.

Já os de sangue quente necessitam de muito mais alimentos para manter estável a sua
temperatura. O que lhes permite atuar e viver em condições adversas e portanto
alimentar-se melhor.

Mas todos sempre com tempo sobrando. Sem o que extinguiriam já no surgimento do
primeiro contratempo.

O ser humano, em nada diferente dos demais seres vivos, também vivia assim com
bastante tempo disponível, antes de tornar-se civilizado. Vida tranqüila sem dúvida.
Sobrevivência plenamente garantida. De modo nenhum é como imaginamos, que a vida
tenha sido extremamente difícil para os nossos ancestrais.

Pelo contrário, trabalhamos muitíssimo mais do que eles. Estamos constantemente


enfrentando situações adversas e perigos estranhos à nossa herança de milhões de
anos. Perigos que nossos genes não nos preparam para enfrentar.

Muitíssimos de nós trabalham exaustivamente, e meramente sobrevivem. Muitos


possuem muito, e mesmo assim trabalham exaustivamente, para ter mais. E existem
aqueles aos quais não é permitido trabalhar, os desempregados. Estes estão
condenados à morte, já que não podem usar aquilo que existe em excesso, mas
pertence a outros. Assim, devem morrer de fome e miséria, ou serão mortos, se tentarem
burlar as regras da civilização.
Trabalhamos muito, e isso se tornou tão necessário, que não podemos sobreviver de
outra forma, a não ser com muito trabalho. Qualquer adversidade nos destruirá, uma vez
que não temos tempo disponível para enfrentá-la. Como provavelmente vai acontecer
com a escassez dos combustíveis fósseis que está se alinhavando. Contamos com eles
para viver e sobreviver, e mesmo assim trabalhamos muito. O que fazer quando vierem a
faltar? Não temos como trabalhar, mais ainda do que já fazemos.

Há uns dez mil anos atrás surgiu a agricultura. Considerada como a aurora da civilização
humana. A ela atribui-se a abundância de alimentos, a proliferação humana, o
sedentarismo, a vida em comunidades maiores, a disponibilidade de tempo. E as suas
conseqüências, os conhecimentos, as leis, as artes, o lazer etc. Como sendo um salto na
evolução, para frente, para o sucesso e para uma vida mais fácil e mais humana.

O que não é verdade, necessariamente.

Nos tornamos semelhantes a um cachorro de estimação, de pedigree, paparicado,


vacinado e com ficha no veterinário. Mas acorrentado ou preso em apartamento e só
comendo ração. Castrado e com as cordas vocais extirpadas, para que não possa latir e
incomodar os vizinhos.

Em comparação, a liberdade de um cachorro selvagem. Obrigado a enfrentar as agruras


do clima, as dificuldades na obtenção de alimentos, a impotência no combate às
doenças e sujeito aos seus predadores naturais. Mas livre, verdadeiramente.

A agricultura fornece um alimento difícil, muito mais trabalhoso do que a simples coleta.
Fornece menos variedade e por isso é menos saudável. Obriga ao sedentarismo. Obriga
a ter prole mais numerosa que ajude na cansativa agricultura. Obriga a aquisição de
novos conhecimentos e o abandono das antigas habilidades. Os agricultores não podem
distanciar-se de suas plantações e assim ficaram sem a opção da coleta e da caça.

A arte, que dizem ser conseqüência da agricultura, não surgiu com ela, já existia antes.
Até entre os animais ela existe, não é privilégio dos seres humanos. E viver em grandes
sociedades, o que é também atribuído como sendo conseqüência da agricultura de
grande escala, nem sempre é vantajoso, como qualquer morador de uma grande cidade
sabe muito bem. Lixo, poluição, dejetos, água, combustível e transporte são problemas
irrisórios nas pequenas sociedades. As doenças e epidemias são muito menos
devastadoras nas pequenas aglomerações.

A tão decantada agricultura, não é só virtudes. Principalmente quando ela deixou de ser
complementar, um simples coadjuvante da coleta e da caça, e se tornou preponderante.

Muitos optaram por continuarem sendo coletor-caçadores. E por isso a prole tinha que
ser pouco numerosa. As mães tinham que esperar um filho crescer suficientemente para
poder acompanhar as mudanças de lugar mais ou menos freqüentes e só então ter
outro. A sua alimentação era rica e abundante e sua vida melhor. Mas tinham que viver
em pequenos grupos.
Gradativamente foram sendo desalojados pelos agricultores das suas fontes de
alimentos e recursos. Como hoje ainda acontece com os nossos índios. Perdem seu
espaço para a agricultura e criação. Seu habitat é destruído. Nada lhes resta fazer, a não
ser retirar-se para lugares ainda não devastados.

Os coletor-caçadores, apesar de saudáveis e fisicamente mais bem preparados, ficaram


em menor número e acabaram sendo dominados e exterminados pelos agricultores,
mais fracos, menos hábeis, menos preparados, mas em bem maior quantidade.

Sem dúvida os agricultores foram superiores aos coletor-caçadores, principalmente na


sua capacidade de matar seu semelhante. Especializaram-se numa vida competitiva, na
luta contra seu igual, que nos coletor-caçadores era enfatizada pela imprescindível
cooperação.

Ilusória superioridade do civilizado, destrutiva e exterminadora de espécies. Que no fim


será um tiro pela culatra.

A agricultura não foi uma evolução do homem coletor-caçador para um estágio superior.
Foi uma opção, mais que isso talvez, uma conseqüência. A escassez obrigando a
trabalhar mais pelos alimentos, numa cansativa e extenuante agricultura e criação de
animais domésticos.

Um exemplo disso é a pesca, hoje em dia o último alimento que ainda retiramos da
natureza diretamente. Está escasseando, tornando mais viável a criação de peixes e
marisco em cativeiro. O que sem dúvida é mais trabalhoso do que pescar simplesmente,
quando o peixe existe em abundância. Trinta por cento do marisco consumido
atualmente no mundo já é proveniente de cultivo. Estamos a repetir na pesca o que
aconteceu com a coleta e a caça, substituídas pela agricultura e pastoreio.

Estamos assumindo, cada vez mais, o controle sobre os nossos alimentos. E quando
temos sucesso, o resultado é a fartura. Como foi recentemente a revolução verde, a
criação confinada, e agora o cultivo de peixes e marisco. Mas sem dúvida é mais
trabalhoso.

E só funciona bem com algumas poucas espécies. Pelo que a variedade na nossa
alimentação está diminuindo assustadoramente.

Considerando apenas a espécie humana, sem dúvida a agricultura foi favorável a ela, em
detrimento das demais espécies. Causou uma vida artificial extremamente intricada e
complexa, onde nenhuma engrenagem pode deixar de funcionar. Provocou o extermínio
de milhares de espécies e a superpopulação da espécie humana. Rumou pelo caminho,
com destino a um beco sem saída. Pois o planeta é finito, os recursos não são eternos,
um dia irão esgotar-se, sem alternativas.
Em dez mil anos, uma insignificância, uma gota d’água na vida da Terra, a população
humana explodiu, exponencialmente. Numa glória passageira, num efêmero instante
destruidor.

O ser humano quebrou a harmonia da vida, não soube usar, não fez bom uso de sua
superioridade intelectual, e vai morrer por causa disso. Levando consigo uma infinidade
de outras espécies.

A decantada e elogiada civilização, o desvendamento dos conhecimentos, o maravilhoso


domínio e intelectualidade do ser humano, no final das contas, será apenas um
cataclismo. A agricultura sendo o marco inicial dessa catástrofe.

Mas, afinal evoluímos. E, tendo tempo de sobra, uma vez conquistada a tarefa de
sobreviver, começamos a pensar. Pensar que somos gente. Que somos superiores aos
demais.

Elogiam-se os homens em sua vaidade. Consideram-se racionais. Quando o que sabem


fazer eficientemente, é nada mais que qualquer vivo faz: Manter-se vivo. Simplesmente
isso.

Conquistamos muito, fizemos coisas inéditas na Terra. Mas sempre em função daquilo
que não podemos deixar de fazer. Somos bichos. De cérebro grande, mas apenas
bichos.

Evoluímos e temos muitos interesses, aparentemente diferentes dos outros seres vivos.
Fazemos coisas irracionais, por prazer. Porque gostamos e podemos. Adquirimos a
capacidade de fazer o que é desejado. Libertamo-nos dos grilhões da ignorância. E
fazemos coisas sem sentido.

Desenvolvemos a arte, que é uma inutilidade. E achamos que só nos fazemos isso,
quando não é verdade. Outros seres vivos também apreciam o belo. Utilizam enfeites
artisticamente, fazem isso, só por ser bonito. Talvez tanto quanto nós, só que neles
achamos que não é arte e sim instinto.

Desconfiamos que os golfinhos e baleias comuniquem-se complexamente, mas não


temos inteligência suficiente para entendê-los. Até cachorros tem sua comunicação, mas
não conseguimos compreender o que dizem. Achamos então que são irracionais,
rudimentares, primitivos. Bichos nada mais.

Somos vaidosos, ao pensar que só nós temos sentimentos "nobres" e "humanos".


Incapazes que somos para entender a vida alheia. Ficamos por vezes espantados com a
fidelidade e dedicação de um elefante ao seu tratador ou cão ao seu dono. Bichos
dedicando-se a seres de outras espécies. Incompreensível isso. E nos consideramos
superiores, e eles, apenas bichos.

A maior parte do que fazemos, é um permanecer vivo, não temos escolha, mas
conquistamos liberdades. Liberdades e poderes adquiridos pela força do conhecimento.
Distanciamo-nos das coisas naturais, somos cada vez mais artificiais. E assim vivemos,
sem saber o porquê de tudo isso. Nosso mundo é um estranho mundo, que nós mesmos
construímos.

Mas de vez em quando sentimos que algo está errado. E procuramos, mesmo que
precariamente, fazer o que nossos ancestrais faziam. Procuramos às vezes viver um
pouco como os bichos que na verdade somos. Procuramos retornar à natureza, temos
uma ansiedade incompreensível em voltar à simplicidade ancestral, nem que seja por
pouco tempo. O que só conseguimos fazer, precariamente. Não temos mais como
prescindir do conforto que a civilização nos proporciona, sem a qual já não
conseguimos viver.

E chamamos isso de aventura e lazer.


3 - O MEIO

E é por este lazer, este voltar à natureza, pela tentativa de realizar os perdidos sonhos de
criança que estávamos aqui. Juntos, reunidos na casa do Líder.

Era costume já. Fazíamos isso freqüentemente. Para jogar conversa fora, discutir e
tomar cerveja.

O Líder, o chamávamos dessa maneira, porque era isso o que ele era, um líder. Tinha um
modo todo especial de enxergar as coisas, diferente do habitual, que nós admirávamos.
E assim, sempre eram uma satisfação enorme, essas reuniões.

Discutíamos o lazer, pelo qual procurávamos concretizar o objetivo de nossas vidas.


Procurávamos no lazer dar continuidade àquilo que definimos que iríamos ser, quando
éramos crianças.

Noite fria e chuvosa, a lareira acesa. A fogueira do civilizado. Nós de pinho crepitando e
destilando sua oleosa resina, que hesita em pegar fogo. Fogo amarelo alaranjado, por
vezes até vermelho, cor de brasa. Fogo lento, mas forte. Mágica energia que induz a
pensar, inspiradora.

Sobre a lareira, objetos e armas antigas, de enfeite. Candeeiro, uma espingarda, uma
borduna, um molho de chaves enferrujadas. Mas não ostensivamente, não como
quadros pendurados. Encaixavam-se na arquitetura da sala. Tinham sido colocadas
casualmente, à vista, como se fossem objetos de uso. Como se tivessem sido utilizados
recentemente.

Como pequenos troféus, dezenas de lembretes das inúmeras viagens feitas pelo Líder,
por esse mundo afora. Exclusivamente de lugares exóticos. Pequenos objetos,
artesanato, uns extremamente bem elaborados, outros de grande valor, mas a maioria
apenas um "marco histórico". Uma concha, uma pedra, o fóssil de algum bicho
desconhecido. Cada um, resultado de uma viagem. Cada um com sua história.

Nas paredes, máscaras africanas, tailandesas, chinesas e pequenos tapetes e batiks


indianos. Era esse o ambiente de nossas conversas. Deveras sugestivo.

Amigos, já faz tempo, unidos por gostar da natureza, de acampamentos, caminhadas, de


pescarias, de descer rios em caiaques ou botes de borracha e de subir alguma
montanha.

Nada muito difícil ou trabalhoso. De jeito nenhum era um "superar limites". Nada disso.
Passeios quase. Lazer apenas. Mas sempre com um objetivo. Que fosse mais ou menos
fácil de ser alcançado.

Esforço físico sim, mas nada excessivamente. O objetivo nunca era a competição.

Nada de arriscar demais, a nossa integridade física. Machucar-se ou passar privações,


nunca estava em nossos planos. Bom era estar junto da natureza, apenas isso.
Mais importante do que provar alguma coisa, para quem quer que fosse. Nunca era a
adrenalina, o nosso objetivo.

Nenhum de nós tinha preparo físico para enfrentar grandes desafios. E não éramos mais
jovens também. Assim, sabíamos que seria inútil competir, uns com os outros, para ver
quem era o melhor, o mais incansável ou o mais rápido. Tínhamos aprendido já, que isso
não fazia nenhum sentido.

Competir com os mais jovens então, nem pensar. Os resultados seriam sempre
medíocres. Eles que se esforçassem o quanto quisessem, para alcançar ou superar
recordes. E que se matassem com isso, se assim fosse o seu desejo. Mas não nós.

Fazíamos as coisas com folga. O que dava tempo para apreciar a natureza, conversar e
descansar, sempre. Mais que o necessário até.

Aproveitávamos sempre os feriados prolongados e apenas quando previsível que iria


fazer bom tempo. Pois deveria ser sempre, apenas um divertimento.

Na maioria das vezes era o Líder que dava a idéia do que deveríamos fazer. Pesquisava,
procurava em mapas, roteiros, livros etc. e apresentava a sua idéia. Sempre uma
diferente da outra. Sempre uma novidade.

Elaborava tudo em detalhes, o que fazer, o que levar, tempos e objetivos. Estudava o
assunto sempre minuciosamente e pensava em tudo, para que nunca acontecesse uma
falta ou contratempo. Roteiro, combustível, alimentos, água tudo era calculado por ele.

E o resultado era sempre, mais que satisfatório. Fazíamos sempre passeios


espetaculares.

Assim foi por muito tempo. Fizemos coisas, pensando bem, do arco da velha.
Inacreditáveis até, pois eram sempre inéditas, idealizadas por nós mesmos e assim,
bastante originais. Nada entretanto, que fosse por demais cansativo ou perigoso.

Fizemos bastante, mas ao longo de muito tempo. E o acervo ficou enorme.

De lembranças principalmente. Pois não éramos metódicos em nossa documentação. Às


vezes fotografias, alguns relatórios, anotações e pouca coisa mais. Às vezes uma
filmadora era utilizada, que sempre era um "trambolho" a mais, que tinha que ser
carregado. Ficando por isso, na maioria das vezes, em casa.

Os feitos ficavam registrados, principalmente na lembrança. Que também ia se esvaindo,


gradativamente. Uma pena.

Nas reuniões, como essa agora, discutíamos os acontecidos. As gafes e erros


cometidos. E dávamos boas risadas. E conversávamos sobre qual e como seria, a
próxima aventura.

O Líder tinha feito uma aquisição extraordinária: Um pequeno ônibus, usado. Que
adaptou para que servisse como moradia improvisada, como se fosse um "motorhome".
Mas diferente, pela simplicidade, nada de luxo nem ostentação.
Um ônibus corriqueiro, mas para nós, excepcional aquisição. Um ônibus, como milhares
dos que existem por aí, nada de especial, mas para nosso grupo, uma novidade sem par.

O objetivo, segundo ele, era ter uma maneira diferente de passar as férias com a família.
Um investimento familiar, por assim dizer. Desconfio porém, que isto era apenas uma
desculpa. Que a finalidade mesmo era introduzir em nossas aventuras um novo método,
um novo procedimento.

Assim como quando ele comprou um GPS (Global Positioning System). Instrumento
maravilhoso. Que permite registrar, por meio de satélites a posição geográfica,
instantaneamente. Automaticamente vai registrando latitude, longitude e também,
infelizmente, a altitude. Com isso nova fase de aventuras iniciou-se, a das caminhadas.
Sempre incluindo cansativas subidas. Pois o recurso de registrar a altitude acima do
nível do mar do GPS, tinha que ser aproveitado, o mais possível. E assim, cansativas
subidas tinham que ser vencidas. Sempre com a mochila nas costas, por íngremes
caminhos intransitáveis.

Depois tudo era jogado no moderníssimo computador dele e, pelas tabelas e gráficos
resultantes, podíamos apreciar, o que tínhamos realizado. "Puxa vida, veja só o quanto
subimos desta vez!". E admirávamos os gráficos e tabelas indicativas dos desníveis e
das velocidades, média e máxima e outras estatísticas.

Descer rios com caiaques, que era sempre muito mais fácil, pois, mesmo sem remar,
atingiríamos fatalmente nosso destino, ficou, na era do GPS, em segundo plano. Por
causa dos desníveis, que tinham que ser registrados. E que rios navegáveis, tinham
muito pouco.

Este GPS, ele comprou, alegando ser uma necessidade. Queria topografar alguns lotes
que possuía, e para isso teria que comprar o GPS. Para que pudesse fazer esse serviço.

Nunca fez o mapeamento. Mesmo porque o GPS não era tão preciso assim. E também
porque, não era tão necessário, a topografia. Também, nada que um topógrafo pudesse
fazer, melhor e mais barato. Mas para nossos passeios ele foi decisivo.

Deste modo, a meu ver, tinha sido agora também, a compra desse ônibus.

Era previsível, estava por iniciar-se uma nova etapa, na vida de nossas aventuras.

Que, ao que tudo indicava, seria bem menos cansativa, do que as caminhadas. E com
bem mais mordomias.

Restava saber, se iria ser emocionante também. Não parece ser muito divertido, ir com o
a algum camping qualquer, fazer as ligações de água e luz e então, ficar tomando
cerveja. Pois que, nada mais resta do que isso, uma vez realizadas as pouquíssimas
tarefas preparatórias.

Talvez quem sabe, a idéia fosse usá-lo como "base de operações". Dirigir com ele até um
local estratégico. A partir do qual seriam feitas as incursões, no "terreno inimigo".

Teríamos assim um local de pernoite e para fazer as refeições, muito mais adequado do
que barracas e também, onde ficaria a maior parte da "tralharada", que então não
precisaria mais ser carregado nas costas, o tempo todo.

Se essa fosse a idéia, muitos problemas aconteceriam. Em primeiro lugar, onde


estacionar o ônibus. Sabidamente, nos nossos muitíssimos passeios, já estacionar um
carro em um lugar qualquer, sempre foi um problema. As estradas de terra e de
macadame são sempre estreitas demais. Podem-se andar quilômetros e mais
quilômetros, sem achar um lugar com espaço suficiente. Quanto mais estacionar um
ônibus.

Além disso, não estaríamos seguros. Um ônibus deve ser bem mais fácil de arrombar
que um automóvel. E a preocupação em voltar e topar com uma desagradável surpresa,
não nos deixaria fazer o passeio sossegado.

Este, entretanto, era também, o problema com as barracas. Quase nunca tínhamos
coragem de deixá-las sozinhas. De um modo geral, alguém tinha que ficar com elas. Ou
desmontá-las todas, arrumar as coisas e carregar tudo conosco. O que significava, que
nunca podíamos levar muitos apetrechos.

Enfim, duvidosa a idéia do ônibus. Mas, afinal foi idéia dele, e o dinheiro também. Assim
veríamos o desenrolar das coisas, inicialmente como espectadores.

Aconteceria, em primeiro lugar a fase em que ele com a família, iria testar a nova
aquisição. Algo parecido com fogo de palha. Muitos fins de semana seguidos, até
esgotar-se este combustível pirotécnico. E, a cada retorno, iríamos então escutar os
"causos", as vantagens e inconvenientes deste tipo de acomodação.

E então, chegaria a nossa vez. O que de fato acabou acontecendo.

Quando sua mulher e filhos começaram a insistir, que uma televisão deveria ser levada
junta nos passeios e, por isso mesmo, os lugares escolhidos teriam que ter energia
elétrica obrigatoriamente, o limite tinha sido alcançado.

A televisão, nestas ocasiões, quando "pegava" algum canal, era um canal sem graça ou
"pegava" muito mal. E assim, gradativamente, chegou a nossa vez. A família dele
começou a optar, por assistir televisão em casa.

O espírito de sobrevivência, a idéia de auto-suficiência, quando todo o necessário deve


ser levado às costas, ou em um caiaque, certamente iria mudar, com o ônibus.

As necessidades básicas de um excursionista, que se ausenta de casa por mais de um


dia, são sempre as mesmas: Cozinhar, dormir, banheiro e, com mau tempo um bom teto
sobre a cabeça.

Tudo isto, um ônibus proporcionava, satisfatoriamente, e muito mais.

Não esquecendo também, importante para nós já de mais idade, a possibilidade de


sentar-se e descansar os ossos. Pois, depois de um dia cansativo de peregrinações, é
um alívio tremendo, sentar-se gostosamente, em uma cadeira confortável. E observar a
fogueira, que invariavelmente, teria que existir. E conversar, bebericando uma cerveja.

Com barracas, tudo isso era feito, bem mais precariamente. Mas, certamente também, a
aventura era muito maior, sem dúvida nenhuma.

Com barracas, quase antes de tudo, ao montar um acampamento, cada um procurava


reservar para si, um toco, pedra ou similar, no qual pudesse sentar-se comodamente. E
fazer inveja aos outros, que sentando aqui ou ali, não se ajeitavam nunca. Sentar no
chão, normalmente inviável, por causa da umidade, e por sujar o traseiro. Impossível
acocorar, não éramos caboclos. Assim ou ficávamos em pé ou entrávamos na barraca e
sentávamos em seu interior. Mesmo assim, sentar no chão, com o tempo, faz doer as
costas. Principalmente porque não se pode apoiar o lombo. Um dia ou dois, era
suportável, mas mais que isso, a falta que fazia uma cadeira confortável, era enorme.
Principalmente depois de um cansativo dia de andanças. É claro que, carregando as
coisas nas costas, em bicicletas ou caiaques, levar uma cadeira era sempre impossível.
Por mais leve, desmontável ou dobrável que fosse.

O ônibus resolveria também, esse problema.

Nossos passeios eram muito variados. Às vezes apenas um dia. Às vezes não
cozinhávamos, almoçávamos em botecos ou restaurantes ou levávamos apenas um
lanche. Às vezes uma pescaria. Outras, descer um rio, com todo o equipamento
amarrado ao caiaque ou em um bote de borracha. Às vezes passeios de vários dias,
semanas até. Estes eram os melhores.

Às vezes uma praia, mais ou menos deserta ou alguma ilha do litoral. Por vezes o alto de
uma montanha. Às vezes uma pousada e, a partir dela, passeios a pé. Um pouco de
espeleologia, mergulhos com e sem aparelhos, e assim por diante.

Um problema quase sempre, nos passeios mais demorados, era a água e alimentos, que
tinham que ser transportados. Come-se, quase um quilo por pessoa ao dia, de alimentos.
E a água, com menos de cinco litros diários impossível.

Assim a autonomia era muito pequena e nossos passeios tinham que limitar-se a alguns
dias, se fôssemos depender apenas do que nós mesmos transportávamos. Isso sem ter
que carregar a água.

Logo descobrimos que dez quilos de apetrechos era o mínimo indispensável a ser
levado. Para que tivéssemos algum conforto. E quinze quilos, já beirava o impossível, de
poder ser carregado nas costas.

Cada grama, de excesso, pagaríamos com suor e sangue.

Comodidades pois, quase nenhuma.

Era de espantar como antigamente no Brasil, as entradas e bandeiras, conseguiam fazer


a proeza de ficar meses, e até anos, perambulando sertão adentro. Impossível levar
mantimentos para tanto tempo. Água então, nem pensar. É claro que tinham ajuda em
tudo isso. Pois caçar, com os trabucos disponíveis era, no mínimo, uma temeridade.
Ineficientes e imprecisos, deviam matar mais o caçador que a caça. E também, esgotar-
se-ia logo a munição. Não deveria ser este um meio importante na obtenção de
alimentos. Levavam por vezes gado com eles, mas nunca seria suficiente. É claro que
alguém os alimentava, fornecia a eles os alimentos. E quem, se não os habitantes da
terra, os índios?

Pode ser que os índios o fizessem voluntariamente, mas é mais provável que fossem
forçados a isso. Roubavam-lhes os alimentos. É o que os desbravadores faziam. Para
não morrer de fome. Que, aliás, deveria ser muito comum entre eles.
O que também não devia agüentar muito também era os calçados. Certamente, após
alguns meses, deveriam gastar-se todos. Andariam descalços pois, os nossos bravos
ancestrais, caçadores de riquezas e de escravos. Descalços, maltrapilhos e esfomeados.

Com certeza, lhes valia muito, nessas excursões, as armas que levavam, mas para
intimidar os índios. E forçá-los a ceder seus alimentos. Era assim que atuavam. Só
poderia ser.

A conclusões assim chegávamos, ao conversar à noite, ao redor da fogueira, baseados


em nossa experiência e cansaço pessoais. Após as agruras de uma longa caminhada.

A água então, sem a qual em uma semana morre-se de sede, um problema maior ainda.
Deveriam carregar um pouco apenas. E contar sempre com as fontes naturais que
encontravam. Nem que fossem sujos e imundos charcos.

Neste aspecto estavam mais bem servidos que nós hoje em dia. A água era mais
abundante e, principalmente mais limpa, sem poluição. Também não era preocupação
deles a contaminação da água pois, provavelmente, nem sabiam que isso poderia causar
doenças, e mortes também.

Nós em nossos passeios ao contrário, não bebíamos qualquer água encontrada no


caminho, ou apenas com muita reserva. Descendo um rio qualquer, com montes de água
ao redor, éramos obrigados a beber apenas o que levávamos conosco, nesta finalidade.
Tínhamos, como todo mundo, medo de ficar doente.

Até que compramos um filtro portátil. Que nos aliviou muito neste aspecto. Mesmo
assim alguns de nós não confiávamos nele e continuaram levando seus estoques de
refrigerantes e cervejas.

Mas quando estes chegavam ao fim, acabavam tomando água filtrada. O que nunca nos
fez mal nenhum.

Quanto à alimentação, é claro que nunca confiávamos nos peixes que iríamos pescar,
quando o passeio incluísse pescarias. Sabíamos que se fizéssemos isso com certeza, na
maioria das vezes, iríamos passar fome. Peixes, eram pois, um item à parte no cardápio,
apenas quanto tivéssemos sorte. Assim, não contávamos com eles.

Em termos quantitativos, nossas pescarias eram um fracasso. Quase nunca fizemos


boas pescarias. Quase sempre os peixes eram "só para o gasto". Normalmente
consumidos no local. A pescaria pois, um divertimento, apenas isso.

A expectativa, a incerteza é parte de uma pescaria, o não saber qual será o resultado. É o
que faz tanta gente sair de suas casas e tentar a sorte com os peixes. Será que dessa
vez, eles iriam beliscar feito doidos? Quase sempre uma decepção e, na próxima vez:
Quem sabe agora?

E assim vai-se, de pescaria em pescaria, interminavelmente. Atrativo duma pescaria é a


dúvida, a incerteza. Como no jogo, em que a sorte distribui as cartas, os dados e os
números, aleatoriamente, imprevisivelmente. Nunca se sabendo ao certo, o que vai
acontecer.
Ir pescar, tendo a certeza de voltar com o peixe, tanto quanto comprando pescado numa
peixaria, simplesmente resultaria na mesma emoção. Absolutamente nenhuma!

A incerteza é o que faz os amadores jogar a linha na água. E, quem sabe, os


profissionais também, as suas redes.

Quais as explicações que ouvimos, sobre os motivos de tanta gente gostar de


pescarias?

As respostas mais comuns e desgastadas são: Relaxar. Higiene mental. Recarregar as


baterias.

Mas, será verdade isso?

O pescador inveterado, fanático, quer pegar o seu peixe, o maior possível e bastante.
Este é o objetivo. Faz qualquer coisa, por uma boa pescaria. Mas, ficar calmo, relaxar,
isso nunca. A não ser que pesque com redes ou esperas, em que não se participe
diretamente, do pegar o peixe. Do contrário, é uma atividade muito estressante. Deve-se
ficar prestando atenção, constantemente à linha que está mergulhada na água, para não
perder a beliscada. Sossego não existe nenhum, nervos à flor da pele, reflexos rápidos.
E tédio, muito tédio, quando a linha permanece inerte. Mas sempre tem que se ficar
perto, prestando atenção, preparado. É isso o que é, uma pescaria. Nada, absolutamente
nada relaxante.

Pescar, nunca é, ficar sentado à beira de um lago, encostado a uma árvore, chapéu de
palha sobre os olhos, tirando uma soneca. No canto da boca, um capim. E a linha,
dependurada a um caniço, dentro d’água, imóvel. Ao longe, gado pastando, calmamente.
Paz, tranqüilidade. Nunca uma pescaria é assim.

Uma vez fisgado o peixe, deve-se tomar muito cuidado ao retirá-lo da água, a linha não
pode ser puxada muito rapidamente, nem muito lentamente, pode partir-se ou o peixe
soltar-se. Quando isso acontece, a decepção então, é grande. Em pé ou mal acomodado,
com os pernilongos e borrachudos atacando. E o resultado, quase sempre, apenas
medíocre. O custo, do quilo de peixe assim obtido, sempre dezenas vezes maior, do que
o peixe comprado em peixarias. Mas achamos que é divertido.

Isso quando não escorregamos e caímos dentro d’água, ou copiosa chuva nos molha até
os ossos, ou encalhamos o carro. Ou perdemos parte do caríssimo material de pesca.
Mas que é divertido, isso achamos que é.

Se fossemos obrigados a trabalhar, em circunstâncias semelhantes, certamente


procuraríamos outra profissão, rapidamente.

Mas mesmo assim, alguma coisa tem nisso tudo. Um primitivo instinto de caçador
talvez. Assim como um gato doméstico que, mesmo quando bem alimentado, espreita
um passarinho, no intuito de caçá-lo. Simplesmente não consegue deixar de fazer isso.
Assim deve ser conosco também. Mas, "higiene mental" isso não é, de jeito nenhum.

Imaginemos, que se está perambulando por uma praia, à beira do mar. À procura de
alimentos. Com fome, pois já faz tempo, não se come nada. Olhando, procurando. Eis
que, surpresa, bem à nossa frente, um gostoso sanduíche, um "chistudo"! Fresquinho e
cheiroso. Olha-se de perto, aparentemente, nada de errado com ele. Apetitoso, parece
delicioso. A fome é grande. Olha-se em volta, hesita-se um pouco e acaba-se dando uma
gostosa mordida. Repentinamente um tranco. Não tinha-se notado, mas dentro dele,
muito bem disfarçado, um gancho metálico afiado e, fixado a ele, um forte cordel,
transparente. Perfurou o maxilar, uma dor incrível. Não tem como retirar ou
desvencilhar-se dele. Uma farpa impede isso. Dor terrível insuportável.

Mas, o pior de tudo, é que o cordel começava a ser puxado, para dentro da água, para o
fundo do mar, com firmeza. Se não fosse possível soltar-se, seríamos puxados para a
água e morrer-se-ia afogado. Desespero. A dor, fortíssima, mas reunindo forças, resiste-
se, puxa-se no sentido contrário. Nos debatemos, corremos de lá para cá, tentamos de
tudo, a dor terrível. Mas, ficando cada vez mais fracos e cansados, começamos a ceder.
O cordel sendo puxado, sem parar. Finalmente, entregamos os pontos. Somos puxados
para dentro da água. Não enxergamos mais direito, pois nossos olhos não foram feitos
para ver embaixo da água. Não conseguimos mais respirar, falta ar, ficamos asfixiados.
E lentamente, vem a morte.

Desde o menor lambari ao maior marlin, esta é a contrapartida, que fica na outra ponta
da linha, em uma pescaria. E nós humanos, chamamos de sorte, quando isso acontece.
E a pescaria, um divertimento.

Existe até a pescaria tipo pesque-e-solte, em que o peixe é fisgado, trazido para fora da
água e se valer a pena, for de bom tamanho, é pesado, fotografado e jogado na água
novamente. Continuará vivendo, provavelmente. Foi só o susto. Mas que susto!

E chamamos isso de pescaria esportiva, um divertimento.

É inacreditável, que exista gente que vá pescar, em pesque-e-pagues. E se divirta com


isso. Retângulos desprovidos de paisagem e de graça. Cada um, com certo tipo de peixe
e placa indicando qual a espécie. Mesas, cadeiras, guarda-sol. Cervejas e aperitivos,
trazidos pelo garçom, proporcionam o conforto desejado. Depois da "pescaria" os
peixes são pesados e, se assim desejar o "pescador", descamados e eviscerados.

A semelhança, com uma pescaria tradicional, é o preço do peixe, muito mais caro que
nas peixarias. E também, o fato de às vezes o "pescador" de pesque-e-pague voltar sem
peixe, e ficar tão frustrado, como em uma pescaria normal. Até isso acontece.

Será que um pescador profissional gosta de pescar assim como nós, que fazemos isso,
apenas por divertimento? Será que ele gosta de pescar, ou seria apenas uma obrigação,
mais ou menos bem desempenhada, assim como nós realizamos o nosso trabalho, no
dia a dia?

Evidentemente, ninguém trabalharia, se não existisse um retorno. Podemos até alegar


que gostamos do trabalho que fazemos, "que é a nossa vida", e coisas assim, mas, certo
é que, de graça, não trabalharíamos. Fazemos, porque somos obrigados. Procuramos
muitas vezes gostar até, do que fazemos, para não desperdiçar, um terço de nossas
vidas no trabalho, inutilmente. Já que temos que trabalhar, o façamos com gosto. Muitos
pensam assim. Também porque com isso, nos tornamos mais produtivos e eficientes.
Podendo até, resultar em progredir-se profissionalmente. Mas o certo é que trabalhamos
obrigados e só o fazemos em troca de dinheiro.
O ser humano, assim como qualquer ser vivo, obedece à lei do menor esforço. E isso
significa trabalhar o mínimo. E sempre mediante recompensa.

Será que um pescador profissional continuaria a pescar, a sair com o seu barco, se ele
ganhasse repentinamente, uma quantia enorme, em uma loteria, por exemplo?

É de se presumir, que não. Com o tempo a sua embarcação ficaria encostada, quase que
certamente.

Se for assim que acontece a um pescador, por que é que nós pescamos, para passar o
tempo e nos divertir, gastando até dinheiro com isso?

Incompreensível ser humano. Muitas vezes fazemos coisas sem objetivo, sem sentido,
sem utilidade nenhuma, e nos divertimos. Ficamos satisfeitos. Plantar flores, por
exemplo. Deixar o jardim bonito e vistoso. Lida-se horas e horas na terra, cuidando e
regando para que o que plantamos, cresça com viço. E a recompensa quase nenhuma,
apenas a satisfação de olhar as flores com o seu colorido. Às vezes plantamos couve,
cenouras, beterrabas. Para então, orgulhosamente dizer, na hora das refeições: "É do
quintal, fui eu que plantei!".

Mas as pescarias eram apenas, parcela de nossas atividades.

De um modo geral, tudo corria bem, em nossas aventuras. Não passávamos privações.

Tínhamos adquirido experiência suficiente, para saber o que levar e como se comportar.
Nunca corríamos perigo ou passávamos por situações difíceis ou desesperadoras. Por
vezes uma queimadura de sol, molhar-se e passar frio, mas nada de mais grave. Sempre
tínhamos à mão o que necessitávamos. Sempre éramos cuidadosos.

Um acidente, um imprevisto poderia colocar-nos em situação difícil, por isso éramos


cautelosos sempre.

Perder-se, um perigo real que sempre nos acompanhava, ficou mais difícil, depois da
aquisição do GPS, que registrava tudo. O único cuidado a tomar, era que não se
esgotassem as pilhas, pois aí sim, poderia acontecer estarmos num mato sem cachorro.
Pois, até impermeável era. Se tudo desse errado, ele nos conduziria de volta, com
segurança, pelo mesmo caminho de ida, na pior das hipóteses.

Anteriormente, tínhamos que confiar no sentido de orientação, natural de cada um. E às


vezes, nos mapas improvisados e bússola. Que normalmente não ajudavam muito.
Precários e incompletos os mapas, e por não estimarmos corretamente a distância
percorrida. Muitas vezes tornavam-se inúteis, rapidamente.

Valia pois, o sentido de orientação interno que possuímos, em algum lugar do cérebro,
ou seja lá onde for, que esteja localizado.

Podíamos observar facilmente, éramos muito diferentes, uns dos outros, neste aspecto.

A maioria de nós nunca mais voltaria à civilização, se deixado sozinho em um lugar


desconhecido, sem caminho bem definido ou demarcado e sem ninguém para pedir
informações. Mesmo quando parecia impossível perder-se, a maioria de nós conseguia
fazer isso, mesmo assim. Era mais natural para nós perder-se, do que encontrar o
caminho.
Até na cidade era fácil observar isso. Poucos sabiam como ir e voltar a todos os lugares
e qual o melhor caminho a ser seguido. A maioria ficava em dúvida e acabava gastando
mais tempo, gasolina e quilômetros que o necessário.

É que o sentido de orientação, não é mais essencial, ao homem civilizado. Para nós não
é importante saber onde nasce e se põe o sol, que poderia nos ajudar nessa tarefa,
quase instintiva. Pontos cardeais, só sabemos o que são, por termos aprendido na
escola, quando éramos pequenos. E aprendido errado, provavelmente. Não sabemos o
que fazer com eles.

O homem moderno necessita dessas coisas muito pouco. Importante, na sua


sobrevivência, são outras qualidades. Assim devem ter proliferado aqueles que não
possuem a ancestral e natural orientação, sem a qual, primitivamente, era mais difícil
manter-se vivo. Este instinto poderia, ou não, não sei, ser adquirido, estudado ou
melhorado. Sabemos entretanto, que mesmo as pessoas que fazem cursos de
sobrevivência e similares, que estudam o assunto, não melhoram muito neste aspecto.
Continuam, sem saber para onde ir, chegada a hora decisiva. Ficam perdidos,
literalmente.

Assim, importante mesmo, é que um de nós, pelo menos, soubesse exatamente qual o
caminho a tomar, instintivamente. E novamente o Líder era essa pessoa. Sem querer,
sem saber, registrava o entorno, a paisagem, as curvas, cotovelos e bifurcações. Sabia
exatamente qual o caminho que tínhamos trilhado. E como voltar. Não que fosse perfeito
nisso, mas de nós, era o melhor. Infinitamente melhor.

Assim, neste aspecto, e em muitos outros também, tinha se tornado um líder.


Principalmente agora, sendo também dono do GPS e o único em saber como usá-lo.

A orientação, que normalmente já é difícil, tornava-se extremamente complicada,


quando, navegávamos por meandros e mangues, de estuários ou baías repletas de ilhas
e ilhotas. Todas semelhantes, em aspecto e vegetação. Verdadeiros labirintos. Já nas
primeiras curvas e voltas acontecia não saber mais, se estávamos indo ou vindo. Sem
correntezas a nos indicar o caminho. Pois poderia ser o vento ou a maré que estava
subindo ou descendo. Tempo nublado complicava mais ainda as coisas. O Líder então,
delirava em sua sabedoria. Parcimonioso em suas repostas deixava-nos sempre na
dúvida, se estávamos ou não perdidos. Se é que ele sabia o que estava fazendo. O que
muitas vezes desconfiávamos, não ser o caso. Mas as coisas acabavam sempre dando
certo.

No meio do mato, por caminhos não bem definidos, o perigo de se perder era também
muito grande. Mas, felizmente, nunca tinha acontecido. Tínhamos sorte talvez, ou
cautela excessiva.

Era assim que fazíamos. E se continuássemos, nada de ruim nos aconteceria.

Dávamo-nos bem, altercações e discussões quase não aconteciam. Pois éramos amigos.

Mas é claro que isto poderia mudar, se enfrentássemos problemas sérios, alguma coisa
de grave acontecesse. Se alguma situação, em que nos encontrássemos, se tornasse
crítica ou perigosa.

Desconhecemos o nosso comportamento nessas ocasiões, já que nunca tinham


acontecido.
É claro, nestas situações, iriam aparecer os verdadeiros defeitos e qualidades. Aí pode-
se dizer quem é quem, de verdade.

Certamente a primeira característica a se evidenciar seria o egoísmo. Impelido pela


impiedosa necessidade de manter-se vivo. Mais importante que todo o resto, mais até
que a vida dos outros. Amizade, solidariedade, tudo isso então, deixaria de existir, seria
secundário. Garantir a vida seria prioritário e, só então, sentimentos mais nobres
poderiam se manifestar. Manter-se vivo, o mais importante de tudo. Este sentimento iria
manifestar-se tão logo as necessidades primárias se evidenciassem: Fome, frio, sede.

Mas não em curtíssimo prazo, por exemplo, quando acontece um acidente.


Imediatamente a seguir, a solidariedade, pode ser muito grande. Podemos colocar em
perigo, até a própria vida, na tentativa de ajudar os outros. Mas, isto, só por alguns
instantes, enquanto ainda estamos estupefatos e aterrorizados. Logo a seguir
ajudaremos sim, mas sem arriscar-se excessivamente. O que é muito mais lógico
também. De nada adianta salvar alguém e matar-se com isso. O egoísmo já começou a
funcionar e exigir o seu primeiro tributo: O desprendimento total em ajudar os outros.

Pânico pode acontecer, pode tomar conta a manifestação irracional do egoísmo. Que
atua até, contrariamente, ao que mais é desejado: Salvar-se.

Depois o egoísmo fortalece-se, torna-se racional, começa a pensar. E fica perigoso.

Principalmente quando fica claro que a própria sobrevivência, poderia ser concretizada,
às custas dos outros. Mesmo que apenas imaginariamente.

As pessoas seriam então os bichos, que na verdade sempre fomos. Como cães a brigar
por um osso, para salvar a sua vida. O que a civilização procurou ocultar, dando-nos um
falso verniz de altruísmo e bondade, mas que nunca foi característica nossa,
verdadeiramente.

Entretanto, estaríamos despreparados, desacostumados a esse comportamento.


Principalmente, os que mais foram mimados pela sociedade e passaram poucas
privações em suas vidas. Os que, pouco ou nunca, tiveram que batalhar por coisas
elementares, como comer e dormir. Os que lutavam apenas por coisas complexas,
virtuais, como poder, conforto e fazem isso, quase sempre, utilizando-se do suor alheio.
Estes, os vencedores nas cidades, em situações de emergência, seriam fracos e
incapazes. Seriam os menos preparados.

Líderes, se acontecer algum, seriam os que podiam, apesar de tudo, raciocinar e fazer
coisas simples com efetividade. Os mais fortes fisicamente, os mais rudes, na pequena
sociedade formada pelas circunstâncias, tomariam o poder. Não para salvar a todos,
mas para salvar-se. E seriam estes também, os últimos a morrer. Não hesitariam comer
qualquer coisa, que lhes pudesse matar a fome, sem se preocupar com o aspecto, gosto
ou aparência, cobras, vermes ou minhocas. E até praticar canibalismo, se fosse o caso.
Não hesitariam tomar, à força, os últimos goles de água que restassem aos demais, ou
retirar daquele que se afogasse, a tábua de salvação, em benefício próprio.

Teriam conseguido voltar o relógio do tempo, retornar milhões de anos atrás, quando
situações críticas eram resolvidas no porrete.

Em situações extremas, muitos desistiriam. Entregariam os pontos. Principalmente os


que tivessem que enfrentar, sozinhos, situações desesperadoras. Teriam contra si, não
os egoístas companheiros de infortúnio, mas a solidão. O pior inimigo de todos. Que
facilmente os levariam à loucura. Seus inimigos sendo, não os outros, mas eles
mesmos, o maior perigo.

E desistiriam. Sobreviria uma depressão profunda e deixariam de lutar. Morreriam, ou se


matariam. A solução mais fácil, para resolver a solidão.

Solidão esta que, muitas vezes, os impedem até de enxergar o caminho, às vezes fácil,
que poderia levá-los à salvação.

Mas nós, nunca tínhamos chegado, nem perto de tudo isso, nunca enfrentamos nada
semelhante. Eram mais assuntos, comentados, ao redor da fogueira ou em nossas
reuniões.

É claro a possibilidade de acontecer alguma coisa deste tipo existia, porém apenas
remotamente.

Uma das primeiras necessidades que temos é descansar adequadamente. Dormir à


noite, suficientemente bem, para enfrentar o dia seguinte, mais ou menos bem disposto.
Isto, antes até, de matar a sede e a fome.

Certamente, desde cedo na humanidade, o abrigo das intempéries, foi um problema


enorme. E muito trabalhoso sempre, de ser resolvido.

Dizem que éramos homens das cavernas. Fazíamos isso por causa do abrigo duradouro,
que elas representavam. Mas, na verdade, nunca fomos trogloditas. O ser humano não
enxerga no escuro e assim, não habitava as cavernas, nem nunca habitou. E sim apenas
a entrada delas.

Por vezes os abrigos, por falta de material mais adequado, eram feitos até com ossos de
baleias e de outros animais como estrutura e cobertos então com peles. Mais parecido
com covas que com casas. E as coisas foram melhorando.

Pelo intermediário dos arranha-céus e casas computadorizadas, chegamos finalmente às


modernas barracas que utilizamos atualmente. Que permitem, ser novamente nômades,
como nossos ancestrais o foram.

Em nossos passeios, geralmente, evitávamos armar as barracas em campings, quase


nunca fazíamos isso. Eram organizados demais para o nosso gosto. Perdia-se o espírito
de aventura, que um acampamento improvisado proporcionava. Preferíamos fazer o que
os campistas modernos chamam, pejorativamente de "camping selvagem". Para nós era
a única e verdadeira forma de se acampar.

Poucas vezes tentamos dormir sem barracas, em redes. Apenas com uma lona esticada
por cima. Mas não era possível. Passava-se muito frio. Os bichos incomodavam demais,
e tudo ficava úmido, por causa do sereno. Abandonamos logo a idéia de dormir como
índios ou nordestinos. Evidentemente éramos feitos de outro material.

Normalmente levávamos um colchão inflável. Valia a pena sempre, carregar o peso e o


volume a mais e gastar os pulmões para enchê-lo de ar, em troca de uma noite mais bem
dormida.

Interessantes eram as barracas. Um capítulo à parte.


Inicialmente, em nossos primeiros acampamentos, apenas um retângulo, dobrado em
"V", invertido. De lona de caminhão. Pesada, volumosa. Sofríamos muito com esse tipo
de barraca. Não protegiam quase nada, o ar frio entrava de um lado, era aquecido pelos
nossos corpos, e saia quente do outro. E nós cada vez mais gelados. Bichos,
pernilongos então, uma festa de sangue para eles. A chuva e respingos obrigavam-nos a
dormirmos encolhidos, para não ser atingido por eles, mas no fim tudo acabava ficando
úmido, se não molhado mesmo. A própria lona, com o tempo, deixava de ser
impermeável e assim, além de tudo, ainda aconteciam goteiras. Só dormíamos bem
quando não chovesse, nem fizesse muito frio. Os dois juntos, uma raridade.

Depois utilizamos barracas já um pouco melhores. Ainda de lona, mas fechadas e com
portas, que poderiam ser abotoadas. Melhoraram muito. O frio e chuva entravam menos.

Mas era necessário sempre, escolher bem o local, em que seriam armadas. Claro, por
causa dos tocos, pedras e irregularidades que não nos deixariam dormir direito, mas
principalmente, para que em um chuvaréu, a água não penetrasse por baixo, deixando-
nos no molhado e obrigando-nos, a dormirmos sentados. Valetas tinham que ser
cavadas ao redor dela, para evitar que isso acontecesse. Assim montar uma barraca era
sempre demorado. Fazer isso à noite então, dificílimo.

Depois inventaram o zíper nas portas. Agora, rapidamente, podia-se entrar e sair delas,
sempre na tentativa de manter fora os bichos, que mesmo assim logravam entrar, e
infernizar nossa vida. Inicialmente de metal, os zíperes logo oxidavam, principalmente se
armadas em alguma praia, junto ao mar. Emperravam então e não havia nada, que os
fizesse funcionar novamente.

O tropeçar nas estacas e cordames era uma constante, ao entrar na barraca, tropeçava-
se e ao sair, tropeçava-se também. E não havia como evitar isso. Tropeçava-se sempre.

E então surgiu a grande maravilha: As barracas de nylon.

O mais importante de tudo, com um piso também de material sintético, impermeável,


costurado a ela. Zíper de plástico, que não emperrava nunca. Totalmente fechada. E
mosquiteiro costurado às aberturas. Leves, dois quilos, as pequenas. De vários
modelos. Tipo iglu, com suas varetas flexíveis, a mais comum.

Agora sim, as coisas facilitaram, de verdade. Poucos minutos para montar. Nada de
cavar valetas e estragar o terreno. Pernilongos, butucas e borrachudos, definitivamente
excluídos do nosso convívio, se cuidássemos bem, em manter os mosquiteiros
fechados. Até os terríveis mosquitos pólvora, pequeníssimos, não tinham como entrar,
dependendo é claro, do tamanho da malha. Nada mais de baratas formigas e aranhas
entrando por baixo da lona e, possivelmente até, cobras. Tudo isso acabou. Era só tirar o
calçado antes de entrar que elas ficariam também limpas, limpíssimas. Algumas, as
aluminizadas, refletem o calor, tornando mais agradável ficar em seu interior.

Até tropeçar nas estacas, praticamente acabou. Metálicas, quase um arame, enfiadas à
mão, prendem suficientemente, as levíssimas barracas ao solo.

Felicidade do excursionista.

Só que, apesar de tudo, por serem completamente fechadas, a umidade condensava-se


nas paredes frias da barraca e as goteiras aconteciam. Não muitas, mas o suficiente para
incomodar. Não é o tecido, a lona, que deixava passar água, mas sim era água
condensada do ar úmido e do ar que expiramos, em nossa respiração.
A solução foi, montar sobre esta barraca, a inicial lona, em "V" invertido, que usávamos
antigamente. Agora não mais lona de caminhão e sim de plástico leve. Resolvidos todos
os problemas. A parede da barraca ficava um pouco mais quente e a água não
condensava mais, internamente. Tinha-se agora, ainda uma pequena varanda, que
permitia fica sentado na porta da barraca e apreciar a chuva. Um pouco mais de volume
e peso, mas valia a pena.

A melhor maneira de usar barracas era, a isso tínhamos chegado à conclusão, não usar
uma grande, onde todos deveriam dormir, um trambolho, e sim, cada um levar a sua.

Cada um escolhia a que mais lhe aprouvesse, se pequena, leve, mais desconfortável ou
maior, porém mais pesada. Utilizadas quase só para dormir, e guardar as coisas. Cada
um podia assim, roncar à vontade, sem levar um cutucão do companheiro ao lado.

Cozinhar e fazer refeições, isto era feito, debaixo de uma lona esticada, nesta finalidade.
Ou ao tempo.

Estava resolvido o problema crucial, que era pernoitar, com certo conforto. Este eterno
problema do homem natural estava solucionado.

As barracas tinham acompanhado as nossas crescentes necessidades. Inicialmente


afoitos e destemidos, conseguíamos dormir de qualquer jeito e não era muito importante
uma ou mais noites sem dormir direito. Com o tempo ficamos mais exigentes. Uma noite
mal dormida já era sentida no dia seguinte e estragava a disposição. A evolução das
barracas nos fez bem, a todos. De primitivas e precárias passaram a serem
eficientíssimas. O que inventariam agora, quais seriam as próximas novidades?

Quando as coisas chegam à perfeição ou próximo a isso, quando imaginamos que nada
mais pode ser melhorado, surgem inovações. Pequenas ou grandes, mas sempre
acontecem.

Nunca estamos satisfeitos com as coisas, como elas são. Sempre existe a tentativa de
resolver os poucos ou muitos problemas que ainda existem. Nem que para isso tenham
até que ser inventados. Criam-se problemas, necessidades. E então se apresentam
soluções.

O que poderia acontecer ainda às barracas? Mais leves menos volumosas, mais fáceis
de serem armadas, mais resistentes, a durabilidade delas, tudo isso poderia ser
melhorado ainda. E naturalmente o isolamento térmico. Para permitir que possam ser
utilizadas, em condições de frio intenso.

Barracas, automóveis, computadores, tudo é modificado. Nunca deixamos as coisas


como estão.

Qual é a mola que nos impulsiona e nos faz atuar assim?

Será que os outros seres vivos também fazem isso?

Certamente! Em menor intensidade, mas com certeza, também eles, tornam as coisas
diferentes, melhoram os seus artefatos e procedimentos, continuamente.

Seria a evolução darwiniana? Pequenas alterações genéticas, que fazem com que
atuemos diferentemente e, se aprovado pela natureza, passam a serem adotados?
Seria muito lento se assim fosse! As mudanças acontecem muitíssimo mais rápido. As
alterações são testadas e selecionadas, sendo essa experiência transmitida aos demais.
Não ficam gravadas nos genes. As coisas são alteradas intensamente sem que o ser
humano, ele mesmo tenha mudado significativamente. Assim também os demais seres
vivos.

Darwin explica as coisas no longo prazo. No curto prazo vale a inteligência, a


curiosidade, o não se conformar com as coisas, como elas são. E que os conhecimentos
adquiridos sejam transmitidos aos demais.

Deve ser algo assim.

Mas, enfim, dormir comodamente já estava resolvido, é o que interessava.

Assim como o homem primitivo, resolvido o problema do abrigo, era necessário


solucionar também o problema da alimentação. Em nossos passeios, voltávamos a ser
nossos ancestrais, com suas necessidades básicas. Comer, quando a fome aparece, é
assim que eles faziam. E nós também.

Horário certo para as refeições, só existe no civilizado, é uma invenção da organização,


da ordem e do progresso. Mas não é natural, evidentemente. Acostumando-se a horários
certos, o organismo prepara-se para, chegada a hora, receber alimentos. Esteja-se ou
não com fome. Saliva-se como o cão de Pavlov, e o estômago enche-se ácido clorídrico.
Festa para as úlceras e gastrites se por algum motivo não acontecer a digestão no
horário previsto.

No mato come-se quando se tem fome. Mas é claro, não somos mais coletor-caçadores.
Somos civilizados. Não obtemos mais o que precisamos diretamente da natureza, não
sabemos mais como fazer isso. Assim temos que comprar os alimentos, já elaborados, o
mais possível. E cozinhá-los.

O que, nunca fazíamos em fogueira. Nunca. Essa maneira de cozinhar há muito tínhamos
abandonado. Pois só era mais ou menos viável em acampamentos de longa duração. E
quando alguém se dispunha a fazer isso. O problema principal era a demora em preparar
os alimentos e o pretejamento das panelas. Que tinham que ser lavadas depois.

Assim como foi adotada a praticidade das barracas modernas, tínhamos adotado
também o fogareiro a gás liquefeito, gás de cozinha. Pequenos bujões com apenas meio
quilo de gás eram mais que suficientes, para preparar todas as refeições, mesmo em
acampamentos prolongados. Serviam também para fornecer luz, à noite, pelo lampião
que lhes era adaptado.

Normalmente a refeição diária, era apenas o café da manhã e à noite, o jantar. Durante o
dia apenas um lanche pois, normalmente estávamos ocupados, com nossas andanças.

Á noite sempre, uma fogueira. Por mais cansados que estivéssemos. Para ficar olhando,
pensar e conversar.

Ao redor da fogueira é que discutíamos os assuntos do dia e o que seria feito no dia
seguinte.
Olhando as chamas, assim como provavelmente fizeram nossos antepassados, eram
discutidos os problemas e surgiam as idéias e pensamentos. Que eram então
esmiuçados.

Até que, um após o outro, íamos sonolentos para as barracas, para mais uma noite de
sono.

Magia toda especial, a fogueira. Primitivo instinto, mistério, desde que o homem passou
a dominar o fogo. Fogo adorado que aquece, ilumina. Torna macio, conserva e tempera
os alimentos. Útil para limpar terrenos e adubar a terra. Útil para cozer o barro, potes,
tijolos e telhas, endurecer pontas de flecha e até derreter metais. Ferramenta de trabalho.

Como teria sido o primeiro fogo a ser aproveitado pelo homem? Um raio ou incêndio
espontâneo. Este foi o princípio. Mas o que levou o homem a utilizar-se dele, do seu
calor, mantê-lo aceso e posteriormente, até inventar um modo, dele mesmo, dar a início
a essa reação em cadeia?

Certamente foi o fogo que permitiu ao ser humano, desprovido de pêlos, superar o frio e
permanecer vivo até hoje. Ou quem sabe, o homem perdeu seus pêlos, por ter
conseguido dominar o fogo. Fogo, que espanta também à noite os predadores,
certamente muito mais imaginários que reais. E afasta os reais fantasmas que habitam a
escuridão. Tormentos de nossa imaginação.

Perigoso também. Dolorosas as queimaduras, difíceis de curar. Quando fora de controle,


arrasa tudo, torna-se destruidor e assassino.

Alguma coisa disso tudo, nos acampamentos, nos impelia a fazer uma fogueira. Cuja
utilidade era ficar olhando e conversar. Pois, para todo o resto, tínhamos substitutos
mais eficientes. A não ser para espantar o medo. Medo da escuridão, que negamos
existir, civilizados que somos, mas que nos assalta por vezes, principalmente quando
estamos sozinhos, e algum ruído estranho, e na mata existem muitos, ativam nossa
imaginação. Aí a fogueira é o linimento. As labaredas, o estalar e o crepitar dos gravetos
fixam nossa atenção, não nos deixam pensar nos fantasmas do escuro.

Cada um de nós tinha suas peculiaridades e preferências. Pacato e sossegado uns,


outros mais conversadores. E um era incendiário. Era ele, o que mais insistia na
confecção da fogueira noturna, nem que chovesse canivetes. Logo que possível revirava
o mato à procura de lenha. Fazia isso até à escuridão total. Juntava um monte sempre.
Claro, colaborávamos também, mas sabíamos que, estando ele junto, a fogueira era
infalível. Seu desejo era fazer sempre, uma fogueira enorme, tipo de São João. E
brigávamos muito com ele, por causa disso. Não queríamos um espetáculo pirotécnico.
E sim uma fogueira para pensar. Pequena, econômica, parcimoniosa. Não estridente
barulheira, com gomos de bambu explodindo, como se acontecesse uma guerra.
Normalmente vencia a nossa opinião e ele, incendiário por natureza, inquieto, tentava
sempre, colocar mais lenha na fogueira. E não deixávamos.

Mas um dia, acampados junto à margem de uma represa, que estava já há muitos meses
com o nível d’água bastante baixo, não sei porque deixamos, e ele montou uma enorme
fogueira.

Um único fósforo; e ela praticamente explodiu. A lenha tinha estado exposta ao sol por
muito tempo, estava sequíssima. O fogo vociferou, sem que pudéssemos fazer alguma
coisa. Nada mais restou, que desmontar as barracas às pressas, e arrastar tudo para
longe. As fagulhas caiam sobre o madeirame no terreno em volta e pegava fogo
instantaneamente. Uma correria para apagar tudo. Tínhamos levado lingüiça e pão, que
seria o nosso jantar. Entretanto impossível aproximar-se da fogueira para assá-la.
Amarramos garfos, a paus de vários metros de comprimento, e espetamos neles as
lingüiças. Derretia-se porém, o fio de nylon com que tínhamos amarrado os garfos e caia
tudo no fogo. As barracas viraram peneiras, por causa das fagulhas.

Pichado severamente, o incendiário sabia que com esta batalha, tinha perdido a guerra.
E conformou-se. Nunca mais fez uma fogueira, verdadeiramente a seu gosto.

Depois da refeição, lavar pratos e panelas. Era a pior parte do acampamento, a mais
desagradável. Mas, é claro, tinha que ser feito. Assim revezávamos, nesta ingrata tarefa.
Normalmente com um de nós, tomando a iniciativa, mais ou menos voluntariamente.
Agachado junto à água disponível, riacho ou lago que fosse, este serviço era executado.
No meio do coaxar de sapos, precavendo-se para não escorregar e cair na água e
cuidando para não perder canecas e talheres na escuridão, esfrega-se, com areia ou
lama mesmo, os utensílios de cozinha. Pois era freqüente ter esquecido, sabão e
esponja. Sofrivelmente limpos, ainda cheio de gordura, este era o resultado desta
atividade.

Faziam falta as mulheres, nestas ocasiões. Mas quase nunca eram levadas juntas em
nossos passeios. Pois, ausentes, fazem falta, mas quando presentes, sobejam.

Isso tudo iria mudar, agora com a disponibilidade do ônibus. Na verdade nem tanto. Pois
o ônibus era pequeno, não comportava todos. Assim alguns continuariam a dormir em
barracas. E também, muitos passeios seriam feitos, sem que ele fosse utilizado.

Mas muita coisa iria mudar, é claro. Televisão, entretanto, nem pensar. Seria primeira
coisa a ser proscrita, nem que acontecesse briga. Nem mesmo para assistir, a
importantes jogos de futebol. Televisão, nunca, jamais. Nosso lazer era muito precioso
para gastá-lo com coisas que poderíamos fazer, ficando em casa.

Acalorada discussão. Uns totalmente contra, outros completamente a favor e ainda


outros, nem sim nem não. Quem sabe, só nos jogos, muitíssimos importantes. Não
deveríamos ser tão rígidos assim, em nossas exigências. Afinal, assistiriam apenas os
que desejassem. E que mal faria? Seria apenas uma opção a mais, só isso.

Outros já eram mais radicais. Seria o consumismo levado para o mato. Se levássemos
ao extremo, melhor seria nem sair de casa. Se fossemos almejar tudo aquilo, a que
estamos acostumados, seria melhor então, nem sair, gastar tempo, combustível e
dinheiro, para ter precariamente, o que temos em casa tranqüilamente, com muito menos
empenho e muito mais conforto.

Poderíamos até, almoçar apenas em restaurantes, bem chiques de preferência, para não
ter assim o trabalho de lavar pratos e panelas. É o consumismo invadindo nosso lazer.
Droga de idéia essa, a do ônibus. Sou contra!

Uns já achavam que seria ótimo, não perder os capítulos de tal e tal novela, muito boa,
que estava acontecendo.
Na verdade, em vão, essa discussão toda. Seríamos sempre, o que sempre fomos, nada
mais. Não mudaríamos muito por causa do ônibus e suas vantagens. Aproveitaríamos o
que tem de bom, e o de ruim deixaríamos de usar. Na verdade, apenas
excepcionalmente, a televisão poderia ser utilizada, simplesmente porque poucos seriam
os lugares, em que ela funcionaria.

Em vão a discussão também, porque o ônibus, afinal de contas, pertencia ao Líder. E ele
faria o que bem entendesse.

Veríamos o desenrolar das coisas.

Dessa polêmica sobre a televisão surgiu um questionamento interessante.

Se éramos tão diferentes uns dos outros, em nossa opiniões, o que a problemática da
televisão mostrou claramente, por que, já faz tanto tempo, fazíamos juntos sempre, as
mesmas coisas?

O que nos mantinha juntos se éramos diferentes?

Aventura, amizade, fazer exercícios, sair da rotina, ficar junto à natureza, ver coisas
diferentes, cansar-se, expor-se a situações novas, alcançar objetivos, fazer coisas
diferentes.

Um ou vários motivos, certamente. Algo comum nos impelia, mas o que seria,
especificamente?

Seria a aventura? Nem tanto. Apenas remotamente semelhante a um "Robinson Crusoé"


de Daniel Defoe, ou "Ilha do Tesouro" de Robert Louis Stevenson. Livros que eram lidos
por nós, quando crianças.

Dificuldades, situações de tensão, perigo e coisas assim, aconteciam raramente. E era


bom que assim fosse. Nosso objetivo, nunca foi a "adrenalina", tão em moda hoje em
dia. Passar medo não estava em nossos planos. Por isso nunca cogitávamos praticar
"esportes radicais". Tínhamos isso em comum.

Mas fazíamos caça submarina, que poderia ser considerado aventura, perigosa até.

Fazíamos sim, mas sempre com folga, mais que suficiente nos mergulhos, de modo que
não viesse a faltar ar nunca, de jeito nenhum. Raramente íamos a mais de dez metros de
profundidade e nunca permanecíamos muito tempo em baixo da água. Não era pois, uma
atividade deveras perigosa.

Com isso, naturalmente, os resultados também, nunca eram excepcionais. Pois peixes
grandes quase sempre só a profundidades, também grandes. Entretanto, mais
importantes que os peixes ou lagostas era apreciar o fundo do mar. E isso, fazíamos
bastante. Olhar a paisagem submarina. Uma beleza sempre.

Quantas formas de vida, que desconhecíamos completamente. Não sabíamos se


tocadas, como reagiriam, seriam urticantes, morderiam ou espetariam? Cores, uma
profusão de cores, de atordoar. Dezenas de seres estranhos. Olhando um deles de
formato e cores diferentes, logo nossa atenção era desviada por outro, mais diferente e
mais colorido ainda. Tanto, que melhor seria usar viseiras, para poder concentrar-se
melhor, em apenas um deles.

Incrível a variedade de bichos. Como é que conseguiam conviver, perto uns dos outros,
caçando e sendo caçados, devorando e sendo devorados, e mesmo assim, continuar
existindo? Como era mantida essa diversidade, sem que acontecesse uma espécie
predominar sobre todas as demais? Que leis regiam tudo isso? Não tínhamos as
respostas, discutíamos o assunto, mas sendo ignorantes, só podíamos fazer conjeturas.
Nenhum de nós era versado no assunto.

Mas que era bonito era.

Quando o frio tomava conta, saíamos da água. Chega de mergulhar. Tivéssemos ou não,
fisgado algum peixe. Quando o medo era grande, sabe-se lá por que motivo, mar revolto,
batendo nas pedras, ou água escura demais, possivelmente escondendo algum
(inexistente sempre) tubarão, simplesmente não entrávamos na água. Nunca
procuramos conhecer o limite, onde iniciava o perigo. Ficávamos sempre no lado seguro
das coisas. E por isso, nunca nos machucamos.

O Líder, já de início, desde os primeiros mergulhos, cuja finalidade era a lagosta e o


peixe, preocupou-se em desenvolver uma arma de caça submarina, simples e eficiente.

Claro, existiam no mercado várias, de elástico, mola, ar comprimido e normalmente de


preço bastante salgado. Mas para ele, e portanto para nós também, continham sempre
alguma deficiência qualquer, que poderia e deveria ser melhorada.

Estudamos cada uma delas, o mais possível. Teorias, lei de Hooke, energia cinética,
impulsão, quantidade de movimento, cálculo diferencial etc. Depois projetos e
execuções.

Problemáticos eram sempre os materiais, com os quais as armas deveriam ser


confeccionadas. Tudo enferruja, corrói e desmancha na presença da água do mar.
Metais diferentes interligados, quase que imediatamente, apresentavam corrosão
galvânica. Anodizar alumínio não tínhamos como fazer isso. Aços inoxidáveis,
caríssimos e difíceis de encontrar e de trabalhar também. Plásticos, nunca encontrados
no formato necessário. Latão ficava logo grosso de azinhavre.

Era muito divertido resolver os problemas. E aprendemos muito com isso também.
Gastávamos muito tempo nessa atividade, mas nunca foi realmente, perda de tempo.
Ganhamos muito.

Mas as armas que nós mesmos construímos, nunca deram certo. As teorias, não
ajudaram em nada, indicaram soluções erradas. Inseguras, pesadas ou um trambolho,
não tinham força nenhuma. Sempre bem piores que as compradas. As que davam mais
ou menos certo, logo apresentavam algum problema, por causa da água do mar.

Mas foi muito divertido, fazer tudo isso.

Mergulhar, quase sempre só era possível, em ilhas e rochedos afastados da costa, onde
a água era mais limpa.
Ficávamos às vezes, dias seguidos em alguma ilha deserta, acampados. Longe da costa,
confiando no pescador e sua canoa, que tínhamos contratado para no levar lá, que
também no dia marcado para a volta, nos fosse buscar novamente.

Levávamos, nestas ocasiões, verdadeira montanha de apetrechos, mas tudo


indispensável. Pois iríamos pescar, de todas as maneiras possíveis e imagináveis, e
mergulhar também. Assim, não tinha como ser pouco, o que levávamos.

Problemático era muitas vezes, o desembarcar na ilha. Com as ondas batendo nas
pedras. O pescador nunca chegava muito perto, temendo por sua embarcação.
Colocávamos então, as coisas em um bote de borracha e com ele remávamos, este
último pedacinho, até a ilha. Entre trancos e barrancos descarregávamos o material.
Nunca, uma viagem só era suficiente. Na volta da pescaria, repetia-se tudo.

Mas essa dificuldade aumentava o sentimento de isolamento. A ilha parecia com isso,
ser só nossa.

O grande problema era sempre a água potável. Por mais que economizássemos, cedo
víamos o estoque minguar assustadoramente. O sol e calor intensos faziam-nos beber
muito mais que o esperado. Não poucas vezes, chuvas providenciais, em que
lográvamos recolher água, tiravam-nos desse sufoco.

Como pouca proteção havia contra o sol logo ficávamos pretos, de tão bronzeados. Isto,
se cuidássemos no início, usando protetor solar. Se não, uma dolorida queimadura era
mais que garantida. Armar barracas, nas ilhas, sempre dificílimo. Raramente, um lugar
plano. E quase sempre bastante inclinado. Mas, eram cavacos do ofício. Lavar as
panelas era fácil, eram amarradas a uma cordinha e as mergulhávamos na água do mar.
No dia seguinte, estavam praticamente limpas. Sabe lá que bichos encarregavam-se
dessa tarefa noturna.

Fogueira nas ilhas, à noite, também fazíamos, sempre encontrávamos lenha.

Nestes passeios éramos quase, verdadeiros Robinson Crusoé.

Ao mergulhar, os perigosos tubarões, como lidávamos com eles?

Bom, na verdade, eles não existem. É essa a conclusão a que chegamos, ao praticar
caça submarina. Após muitos e muitos mergulhos, nunca vimos um sequer a não ser
pequenos lambarús, que nem tubarões direito são, pois não tem dentes. São chupadores
de moluscos, sugam com sua pequena boca, o conteúdo dessa sua fonte de alimentos.
Dificilmente poderiam causar mal ao ser humano. O medo de tubarões nos
acompanhava constantemente, mas nunca aconteceu vermos um. Nem sabemos como
reagiríamos, se fosse o caso. Medo sem fundamento, irracional, é claro. Entretanto
sabemos que ataques de tubarões acontecem. Surfistas, banhistas, mergulhadores já
morreram ou foram gravemente feridos. Desde crianças sabemos que tubarões são
perigosos. Por isso o medo.

Tem-se medo de muitas coisas, sem necessidade. E outras, potencialmente muito mais
perigosas, não evitamos como deveríamos. O problema é a espetaculosidade do evento.
Mortes e tragédias corriqueiras não nos afetam, são pouco noticiadas e comentadas.
Mas, justamente por serem corriqueiras e freqüentes, é que são perigosas. Preocupam-
nos as excepcionais, comentadíssimas nos noticiários. Detalhadamente e esmiuçadas
que são. Destas temos medo. Se quiséssemos (e pudéssemos) ser racionais, teríamos
que atuar opostamente ao que tomamos conhecimento. Aquilo que é comentado é
inofensivo. Deveríamos ter medo, isso sim, do que quase nada se fala.

Mas, quem consegue isso? Sem querer a notícia, o comentário, entra em nós, e é
armazenado. O medo já foi criado, e não conseguimos desvencilhar-se disso. Seria
melhor nem ouvir tais relatos, seríamos mais bem servidos assim. Fica pois, em melhor
situação quem pouco lê jornais e não vê televisão, sensacionalistas que são, sempre.

Assim muitos assuntos do cotidiano. Temos medo de seqüestros e assaltos, mas


atravessamos as ruas ou dirigimos automóveis, sem muito pensar. E morremos
atropelados e em acidentes. Que são pouco noticiados, pois deixaram, já faz tempo, de
ser espetacular.

O medo é irracional quase sempre. O que deveria proteger-nos a vida, um saudável


medo de morrer ou de machucar-se, normalmente faz o contrário. Entramos em pânico e
não atuamos corretamente. Não mantemos o sangue frio que a situação exige.

Dizem que, quem não arrisca não petisca. Vive-se menos a vida ao arriscar-se pouco,
mas vive-se mais tempo, pelo mesmo motivo. O problema é saber o limite. Que não pode
se ultrapassado nunca.

Na caça submarina, tubarões não são perigosos, mas temos medo deles. Cuidado deve-
se tomar, isso sim, para não ser jogado pelo mar sobre pedras cheias de cracas e
mexilhões, de ser levado pela correnteza ou afogar-se. Até enroscar-se em uma linha de
pesca perdida no fundo do mar, pode ser perigoso. Por isso uma faca é importante, mas
nunca na intenção de defender-se contra ataque de tubarões. Completamente inútil
seria, caso aparecessem e resolvessem atacar.

Mergulhávamos também com cilindros de ar comprimido. Fizemos isso principalmente,


quando já sobrava mais dinheiro em nossas vidas. E podíamos assim praticar este
custoso esporte.

Também porque os mergulhos a fôlego, na finalidade de caçar algum peixe, resultavam


cada vez mais infrutíferos. Evidentemente os peixes estavam sumindo. A olhos vistos.
Também, o que era perceptível, era que a água do mar estava ficando cada vez menos
transparente.

Lugares que eram sempre de águas cristalinas, com o passar dos anos, deixaram de ser.
Turva, sombria, suspensões estragavam a visibilidade, que antigamente era muito boa.
Alguma coisa estava acontecendo com a água do mar e não sabíamos direito o que era.
Talvez nós estivéssemos ficando mais exigentes, ou nossos olhos já não eram tão bons
assim. O fato é que a visibilidade deixava a desejar e não pescávamos quase mais nada.

Água clara só era encontrada ultimamente, longe da costa e em lugares profundos. Por
isso os mergulhos com aparelhos. Que já não tinham mais a finalidade de caçar o peixe.
Apenas olhar a paisagem submarina.

Pensávamos o que poderia ser a causa disso tudo. Sem dúvida nenhuma, a colher do
ser humano, estava temperando este desastre ecológico. Agricultura, pastagens,
desmatamento. Os rios, perdendo sua mata ciliar. O desnudamento faz com que a terra
seja carreada para os rios, pelas chuvas, e então para o mar. Rios e riachos perenes
deixaram de ser. Filetes de água quando não chove, e barrentas enxurradas quando isso
acontece. Nas cidades balneárias o esgoto lançado nos riachos e no mar, consome o
oxigênio da água, matam a vida, só algas típicas vigoram. Estradas e ruas de asfalto ou
terra, calçadas, escoam as águas rapidamente, levando consigo a sujeira.

O fundo, antes arenoso, fica encoberto por lodo. Que entope os corais, sufoca os
vegetais, não deixa a luz penetrar. A vida sufoca. Os peixes, sem alimentos,
desaparecem. Pela agitação da água, as partículas mais finas, não sedimentam nunca. E
as águas ficam turvas. Só, após vários dias seguidos, absolutamente sem vento, é que
se podia enxergar alguma coisa.

Mas os peixes tinham sumido. É claro que a pesca que fazíamos também colaborava
neste sentido. Quanto mais popular a caça submarina, mais os peixes tornavam-se
ariscos. E ausentes. Mas a impressão que se tem, é que preponderante, seja mesmo, o
estrago que o homem causa, em terra. Os dois somados, desastre total.

Na procura por água clara no mar, que era essencial para a pesca submarina, sabíamos
que teríamos que procurá-la, longe da foz de rios. Isso era certo. Vento e mar agitado
também, quase sempre indicativo de água turva. Por isso os mergulhos tinham que ser
feitos pela manhã, quando invariavelmente existe menos vento.

Nesta procura, novamente o Líder, descobriu uma novidade. Que poderíamos afirmar ser
inédita, verdadeiramente. Trabalhosamente plotou em mapas hidrográficos, todos os
lugares que tínhamos mergulhado.

Depois de demorados estudos concluiu, que o principal fator para a existência de água
clara em determinado lugar, era a inclinação do fundo do mar. Quanto mais abrupto o
declive, mais limpa a água. Quem sabe os sedimentos deslizassem lentamente por esse
plano inclinado, indo assim para profundidades maiores. E sobrava água limpa.

O fato é que dava resultado, não infalivelmente, mas quase sempre.

Lages, parcéis, ilhas rochosas, costões, longe de rios, longe de lugares densamente
habitados. Tudo isso com o fundo do mar íngreme. Eram os lugares a serem
mergulhados.

O Líder tinha descoberto isso, trabalho digno de um tratado científico!

Com aparelho de ar comprimido amplia-se enormemente o tempo de mergulho. Passa a


ser quinze minutos a profundidades maiores, e até uma hora a pouca profundidade. A
grande dificuldade o grande problema de um mergulho, foi superado, o respirar debaixo
d’água.

Respira-se normalmente com este equipamento, não existe diferença nenhuma neste
respirar submarino, e em pouco tempo habitua-se a este tipo de mergulho. Com calma
pode-se observar então, os acontecimentos subaquáticos. E pode-se ir a profundidades,
impensáveis nos mergulhos em apnéia. Entretanto o grande atrativo, o colorido, a
variedade de vida é encontrada, não lá no fundo, mas sim em águas mais rasas. A vida
perto da superfície é mais abundante. E a água profunda consome a luz solar, restando
apenas o azul. Fica tudo azulado. E, acendendo-se uma lanterna, tudo que é iluminado
por ela fica avermelhado.
Com a água, excepcionalmente clara, e estando o equipamento bem equilibrado, tem se
a impressão de estar voando sobre a paisagem submarina. Flutua-se como estando em
um balão, incrível sensação. Todos deveriam experimentar este tipo de mergulho.

Os aparelhos são bastante seguros, mas a possibilidade de morrer utilizando-os, é maior


que num mergulho a fôlego. Quem está, digamos a trinta metros de profundidade ou
mais, e ficar repentinamente ser ar, dificilmente escapará disso com vida. A falta de ar,
devido a um problema qualquer no aparelho, só será notada quando tentamos inspirar.
Só então se toma conhecimento que não existe mais ar. E os pulmões estão vazios!
Dificilmente alguém conseguirá manter a calma nesta situação, procurar seu
companheiro de mergulho ou desvencilhar-se do lastro e subir rapidamente. O tempo
será insuficiente sempre, simplesmente morre-se afogado. Mas, não é só isso, se for
tentado a subida, deve-se manter a goela aberta, de modo que o restante de ar que está
nos pulmões, ao dilatar-se na subida, possa ser expelido. O instinto entretanto, faz-nos
manter a goela fechada, para não respirar água. Além disso, uma subida rápida demais,
pode provocar embolia gasosa. Aprende-se tudo isso no curso de mergulho que
obrigatoriamente deve ser feito e treinamento acontece neste sentido, para poder-se
enfrentar situações de emergência. Mas perigoso é sim, e muito. Deveria ter-se medo
sempre.

É verdade que, dos muitíssimos mergulhos que são feitos, poucas são as fatalidades. Os
aparelhos são seguros e já foram muito estudados. Poucos mergulhadores têm medo.
Mas porque?

Confia-se cegamente. É como viajar de avião. Com os freqüentes mergulhos, quanto


mais mergulhos, menos medrosos ficávamos. Já que nunca nada acontece. Confia-se
nos equipamentos, instrutores e organizadores do mergulho. Fazemos o que eles fazem.
Se eles não têm medo, porque nós iríamos ter?

Nos mergulhos com aparelhos vimos, pela primeira vez, tubarões. Mas, não sentimos
medo. Tínhamos contratado o mergulho e assim, a responsabilidade não era nossa. Os
instrutores que resolvessem o problema, se acontecesse algum. Pois, estávamos
pagando, tínhamos direitos!

Não tínhamos medo e tentávamos até nos aproximar dos tubarões. E aí víamos que os
medrosos eram eles, fugiam simplesmente. Não deixavam que chegássemos perto.

Vimos também, moréias, barracudas etc., cada um com o seu perigo particular. Normal
era, entretanto, para os instrutores, todo e qualquer tipo de bicho submarino. Perigosos?
Jamais! Era a resposta deles.

Esta cega confiança nos outros, dá coragem irracional, às pessoas. Aproximam-se de


elefantes, leões, ursos e tubarões, achando que o bom comportamento deles, faz parte
do pacote turístico, pelo qual pagaram.

O que nunca atreveríamos fazer por iniciativa própria, fazíamos sem pensar, baseando-
se na experiência de outros, que nem conhecíamos direito. Pagávamos o mergulho o
que, aliás, sempre custava uma nota preta, e confiávamos. Como fazemos, por exemplo,
ao viajar de avião.

A complexidade das coisas, a artificialidade, não permite mais que tenhamos idéia clara,
do que pode ou não, acontecer. O instinto, a lição ensinada por milênios e milhões de
anos, perdeu a sua validade. Não serve mais. Assim temos que confiar.
Quem sabe fugir disso, dessa complexidade, é o que nos unia. Voltar a ser, mesmo que
por pouco tempo, os quase bichos que fomos ensinados a ser, pelos genes que estão
dentro de nós?

Alternávamos nossos feitos. Ao sabor do não se sabe o que. Às vezes a moda era uma
atividade, feita intensamente, e depois outra, completamente diferente. De um dia para
outro mudávamos as preferências. E então, dedicação total, a esta nova atividade.

Durante algum tempo a moda era espeleologia. Aventura, verdadeira. Em princípio


perigoso, por causa dos altos e baixos, abismos, desníveis e buracos. Por causa dos
escorregões e possíveis quedas. Pois tudo é iluminado apenas precariamente, com as
minguadas luzes de nossos capacetes. Perigoso. Uma queda, em que alguém se
machucasse e não pudesse mais se locomover, seria um problema enorme. Como tirá-
lo, de lá de dentro, como prestar ajuda?

Ao entrar em uma caverna, assim que a escuridão total nos envolvia, apagávamos todas
as luzes. E ficávamos assim por uns dez minutos. Fumando um cigarro. Com isso
nossos olhos habituavam-se à escuridão, e ao acender novamente as luzes,
enxergávamos muito melhor.

Interessante é que nas fotografias, que tirávamos de nós mesmos dentro da caverna,
estávamos invariavelmente de olhos arregalados. Como se estivéssemos a ver um
fantasma.

Sensação nada agradável, aquele ambiente estranho escuro pedregoso úmido e


lamacento, com toneladas de rochas por sobre nossas cabeças. Que certamente um dia
obedeceriam à lei da gravidade e despencariam. Mas, é claro, só com muito azar, isto
aconteceria com nós lá dentro.

Mesmo assim nunca deixamos de sentir isso.

As luzes eram fixadas ao capacete, pois as mãos tinham que ficar livres. Lanternas de
mão, velas, e coisas assim, tentados por nós inicialmente, eram totalmente
impraticáveis. A luz deve iluminar o entorno, não pode atingir diretamente nossos olhos,
por causa do ofuscamento. Assim tratamos logo de arranjar capacetes e fixar neles
nossa iluminação. Tudo feito por nós mesmos, pois no mercado pouca coisa existia na
época. E o que existia, caríssimo.

Os capacetes são imprescindíveis, não por causa de pedras, que poderiam cair do alto.
Isto nunca acontecia, e se acontecesse, certamente seria um desastre, com ou sem
capacete. Eram necessários isto sim, para proteger nossos crânios das dolorosas
cabeçadas que aconteciam com muita freqüência.

Levávamos cordas e equipamentos de montanhismo, para que pudéssemos explorar


todos os caminhos e reentrâncias, alcançar buracos e passagens, acima e abaixo de nós
com certa segurança. Montanhismo dentro de cavernas, entretanto é muito diferente.
Muito mais difícil e perigoso. Por causa da falta de luz, das superfícies escorregadias e
do formato dos salões e galerias, sempre com paredes negativas. Assim, as
"possibilidades" muito difíceis de alcançar, não eram investigadas. Não corríamos o
risco.

Chamávamos de "possibilidades" as reentrâncias, fendas e buracos, ainda não


investigados, que poderiam ser, apenas um beco sem saída ou, ao contrário, uma
passagem para mais dezenas ou centenas de metros de caverna. Marcávamos assim no
mapa que fazíamos: "possibilidade". A ser investigada futuramente. Pois numa caverna,
por menor que seja o buraco, por menos promissor que pareça, nada pode deixar de ser
verificado. E o resultado pode ser surpreendente.

Quando resolvemos mapear as cavernas que conhecíamos e explorá-las intensivamente,


sobreveio uma fase em nossos passeios, em que todo fim de semana era dedicado a
essa atividade. Gastamos mais de três anos nisso.

Logo notamos que espeleologia pode ser praticado o ano todo, independe de sol, chuva,
frio ou calor. As cavernas são quase todas elas molhadas, cheias de goteiras e
enlameadas, assim sempre se volta delas molhados e sujos como porcos. A temperatura
em seu interior é constante, não muda com a estação do ano. E, normalmente, devido ao
esforço físico, sente-se calor. Nunca se passava frio.

Resolvemos desenhar as cavernas em que entrávamos, mas não tínhamos experiência


nisso. E não conhecíamos ninguém que soubesse. Livros inexistentes na época. Aliás,
desconhecíamos tudo sobre cavernas. Eram calcárias sempre, as que visitávamos.

Inicialmente retirávamos estalactites e espeleotemas, os mais bonitos, para levar como


troféus, argumentando, que se nós não fizéssemos, outros iriam fazer, com certeza. Mas,
por mais maravilhosos que fossem dentro da caverna, quando vistos em casa, perdiam
totalmente o brilho. Ficavam foscos e sem luz. A magia, a beleza, desaparecia
completamente. Tornavam-se amorfos e inertes. Como peixes brilhantes e coloridos que
morrem. Como os animais nos zoológicos. Passivos, desanimados e sem brilho.

Espeleotemas devem ser vistos, dentro da caverna, no seu local original, intocados. Aí
são luminosos, como se portasse luz interior. Faz parte da observação o entorno, a
escuridão, o mistério, a luz incerta dos capacetes, a umidade. E isto faz alguns
espeleotemas brilhar, como se estivessem incrustados, com milhares de diamantes. E
outros, ter a alvura da neve. Logo reconhecemos isto, e cuidávamos para deixá-los
intactos. Quando muito uma fotografia.

É interessante, como, dedicar-se a um assunto qualquer, pode originar perguntas, que


nunca seriam feitas, se o assunto fosse tratado apenas superficialmente. O que poderia
haver de interessante em um buraco na terra? Mas, as perguntas foram surgindo:

Como se formam as cavernas, quando aconteceu isso, quanto tempo leva?

Como se formam os espeleotemas (estalagmites, estalagtites, colunas, travertinos,


cortinas, vulcões, etc. etc.) e quanto tempo leva?

Como encontrar cavernas?

Como mapear cavernas?

Que tipo de vida existe nas cavernas?

Como fotografar cavernas e espeleotemas?

Como explorar cavernas, o que olhar, que calçados usar, roupas, iluminação etc?
Na época não existia ainda o Global Positioning System, maravilha tecnológica e nem
satélites artificiais, que os fizesse funcionar. Os GPS, entretanto, se existissem, seriam
úteis apenas para marcar a entrada da caverna, pois debaixo da terra não funcionam.

Enrolamos quinhentos metros de barbante, marcado de dois em dois metros, em um


carretel. A ponta era amarrada na entrada da caverna e íamos desenrolando a medida
que caminhávamos por ela. Uma bússola e clinômetro eram encostadas ao barbante
esticado, e a cada mudança de direção, os dados eram anotados. Os "acidentes
geográficos", desvios, bifurcações, salões, espeleotemas, riachos etc. também eram
registrados. Com uma trena medíamos as larguras, perpendicularmente ao barbante.
Fazíamos assim mapas rudimentares, utilizando convenções inventadas por nós.
Complicadíssimo o resultado. Desenhar uma caverna, dificílimo. Às vezes passagens,
uma em cima de outra, duas, três delas, superpostas. Fendas verticais, clarabóias,
riachos que cruzavam o caminho, outros que seguiam junto a ele, buracos, salões altos,
salões baixos. Tudo tinha que constar do mapa.

Estudamos maneiras de procurar grutas. Nos mapas, riachos que "somem" para
ressurgir em outro local, indicavam possibilidade de cavernas, vales sem saída também.
A nomenclatura, os nomes dos locais, por vezes eram promissores. O formato do
terreno, a morfologia, o aspecto das rochas e pedras e até a vegetação, serviam como
indicativos. Mapas geológicos, indicando as regiões com calcário. E naturalmente,
perguntar aos moradores da região.

Tínhamos adquirido uma habilidade toda especial em achar grutas. Algo semelhante a
um pescador que faz boas pescarias sempre. Que, sem saber explicar o porque, escolhe
o local, utiliza a isca e equipamentos adequados e pesca o peixe sempre, enquanto os
outros, ficam a ver navios, achando que são azarados.

"Sentíamos" quando um local era promissor de caverna. E investigávamos. Sempre


algum buraco na terra, era encontrado. Às vezes estreito demais, não permitindo entrar
por ele, às vezes apenas uma diminuta caverna, pouco atraente. Mas, vez ou outra, uma
surpresa! Uma caverna nova inédita grande ou cheia de belíssimos espeleotemas.
Objeto de vários fins de semanas seguidos.

Como íamos muito, comprávamos quantidades enormes de pilhas para lanternas, o que
começava a encarecer nosso divertimento. Estudamos então como gastar menos,
mantendo a mesma iluminação. Carbureto, gás liquefeito de petróleo, vários tipos de
iluminação portátil foram considerados e testados. Lâmpadas para bicicleta, para
aparelhos elétricos, para todo e qualquer tipo de lanterna, para instrumentos, testamos
todas. Finalmente, depois de muitos estudos teóricos, gráficos e curvas desenvolvidos
pelo Líder, e de muita experimentação, encontramos uma lâmpada no mercado, com
amperagem menor que fazia as pilhas durarem dez vezes mais! Arrematamos o estoque
da loja.

Nesta ocasião, descobrimos que os fabricantes de lanternas, que normalmente também


eram fabricantes de pilhas, os desgraçados, instalavam em suas lanternas lâmpadas
extremamente ineficientes, propositalmente. Objetivam com isso vender pilhas, que
duravam pouco, com as lâmpadas de quinta categoria que instalavam em suas
lanternas!

Tínhamos chegado à conclusão que a iluminação dentro de cavernas, tinha que ser
elétrica, lanternas fixadas ao capacete. Menos luminosa e menos romântica que a luz de
carbureto, mas era a mais racional possível.
Hoje em dia, nossa tecnologia está totalmente ultrapassada. Surgiram os LEDs (Light
Emitting Diodes), de alto brilho, luz fria, extremamente econômicos.

Calçados, experimentamos muitos, o maior problema a ser resolvido era evitar os


escorregões. Chegamos às botas de borracha, pareciam, na época, ser melhor que os
demais.

A corda de cânhamo, pesadíssima, principalmente quando molhada, que levávamos para


poder fazer descidas com segurança, a melhor maneira de acomodá-la, era em uma
sacola. Ia introduzindo-se a corda na sacola e deixava-se a ponta para fora, de modo que
não se perdesse. Fazíamos, como os pescadores acomodam a corda da âncora em seus
barcos.

Assim, muitas perguntas e problemas íamos resolvendo. Achávamos as soluções


simplesmente porque nos dedicávamos a resolver os problemas.

Assim são as coisas na vida. Se existe dedicação, alguma melhora acontece, quase
sempre. E, as pequenas coisas, somadas, podem resultar em um total grandioso.

Deve ser característica do ser vivo, agir deste modo. Mesmo uma ostra, grudada quase a
vida inteira a uma pedra qualquer, de alguma forma, deve atuar assim. Pois nada indica
que somos substancialmente diferentes delas.

Depois paramos. Não havia mais cavernas a mapear. E não conseguíamos mais
encontrar novas grutas.

Muitos anos depois, a espeleologia popularizou-se. Até cursos existiam, sobre cavernas.

Participamos de um deles e, vejam só, as soluções, que foram apresentados neste curso
eram praticamente idênticas às nossas! Tínhamos trilhado o caminho certo em nossa
tentativa de resolver os problemas. O que nos deixou muito contentes.

Firmamos a nossa amizade com o montanhismo, quando ainda adolescentes.

Montanhismo, aventura perigosa. Lembro ainda, muitas vezes termos passados por
situações difíceis. Iniciantes que éramos, por descuido. Por não prestar atenção ao que
uma escalada, com precários conhecimentos, experiência e recursos, representavam.
Valia na época mais, ser afoito. Coisas da juventude, mostrar que medo não existia, o
que não era verdade. Não dominávamos o medo das alturas, era difícil acostumar-se a
isso. Melhorou um pouco com o tempo, mas olhar para um abismo abaixo de nós, nunca
foi verdadeiramente tranqüilo. E, numa escalada, isso não pode acontecer. O medo é
para iniciantes, e é perigoso. Tremedeira, por cansaço ou medo, que fazem os joelhos
baterem como se fosse a agulha de uma máquina de costura, é tragédia iminente. Com
três apoios confiáveis, somente então, deve-se procurar o quarto. Manter-se calmo,
atitudes corretas e atos seguros. Isso é o que se necessita em uma escalada, para não
cometer erros. E muita habilidade também, talento natural. Que também não tínhamos.
Logo percebemos que escalada técnica nunca seria o nosso forte. E deixamos de fazer
isso. Fendas, fissuras, chaminés e paredões, que fossem conquistados por outros.
Desistimos, antes que algo de grave acontecesse. Tivemos sorte em reconhecer isto a
tempo.

Ficávamos assim com as subidas, normalmente no meio do mato, os caminhos


alternativos, íngremes sempre, cansativos e extenuantes sempre. Mas, pelo menos
podíamos usar as mãos para nos segurar aos galhos, raízes, paus e pedras disponíveis.
Esses caminhos, por vezes, não eram nada seguros também. Mas a falta de visibilidade,
o não enxergar o perigo, que estava encoberto pela vegetação, dava segurança. E
tranqüilidade, para vencer o obstáculo. Certamente, o que os olhos não vêem, o coração
não sente.

Com o tempo fomos verificando que também nestas subidas não éramos os melhores.
Aparentemente, muitos eram mais rápidos e experientes subidores de montanha que
nós. Mas deveria ser apenas por causa do modo de olhar as coisas. Estávamos no meio,
não éramos os primeiros, nem os últimos. Enxerga-se apenas os que passam por nós,
os mais rápidos. E isto dá a impressão, que éramos os últimos. É claro, se fosse
possível observar os retardatários, os que iam mais devagar que nós, a coisa poderia
mudar de figura.

Mais tarde fomos abandonando essa coisa de medir o tempo, para saber o quão rápido
era a subida de uma montanha. Não existia muita finalidade nisso.

Aliás, o subir uma montanha em geral, não tem muita finalidade pois, a única coisa que
pode-se fazer, ao chegar ao topo, é descer. Nada mais.

Nem a paisagem quilométrica, pode normalmente ser observada. Raríssimas vezes a


visibilidade era boa o suficiente, para apreciarmos qualquer coisa que fosse. Mas é
claro, quando acontecia, ficávamos muito contentes.

Subir uma montanha é um objetivo a ser alcançado. Inexplicável porém, o porque deste
objetivo.

Talvez para poder dizer depois: "Eu estive lá, no topo!" Apenas isso.

Mas não é pouco não. Muita gente já morreu e morre por causa disto. É só pensar nos
escaladores que tentam, todos os anos, alcançar o topo do mundo, o Everest! Centenas
fazem esta tentativa, todos os anos. E morrem uns atrás dos outros. Dão a vida para
poder dizer: "Eu consegui". A maioria não consegue, e alguns nem voltam mais. Não
poderão, nunca mais, dizer coisa alguma.

Subir o Everest é arriscadíssimo. E caro. Com o dinheiro que cada um gasta nessa
tentativa pode-se construir uma belíssima casa, tão caro que é. E chegar ao topo,
poucos conseguem.

Assim, em primeiro lugar, dinheiro tem que existir, sobrando. Mas muito mais que isso
deve existir preparo físico. Quem se atreve a tentar o Everest deve ser, no mínimo, um
escalador de mão cheia e ter experiência em alta montanha. Frio cansaço e
principalmente os efeitos do ar rarefeito são os inimigos. Edema cerebral e edema
pulmonar frio e cansaço, mesmo assim centenas fazem a tentativa, anualmente. E qual é
o prêmio? Nenhum. Absolutamente nada. Apenas poder dizer: "Eu estive lá, no topo do
mundo!".

Atualmente, a escalada que fazem ao Everest, é comercial. Encomendam a escalada ao


Everest, como se fosse um pacote de turismo. Tudo é organizado por experientes
escaladores e sherpas (moradores da região, que recebem uma ninharia pelo extenuante
trabalho preparatório que fazem). E são levados ao topo. Foi assim que subiram
Valdemar Niclewitz e Mozart Catão, os primeiros brasileiros a chegar ao topo do mundo.

A frágil ecologia local, do Nepal e Tibet, está sendo destruída. Centenas de cilindros de
oxigênio, restos de cordas, barracas e equipamentos, são abandonados perto do topo, a
cada ano. Mesmo os que morrem lá, não são resgatados. Dejetos humanos congelam e
permanecem, indefinidamente. Árvores, que levam cinqüenta anos para chegar a dois
metros de altura, são derrubadas, para fornecer o combustível necessário, para cozinhar
e aquecer água.

Difícil entender o ser humano. Arriscar a própria vida por tão pouco. Não ignoram o que
lhes pode acontecer, fazem isso voluntariamente, conscientemente. Em troco de tão
pouco!

Mas, como se diz, o que é de gosto é regalo da vida.

Competir. Na verdade essa é a resposta. Não competir com a montanha, mas sim, com
os outros. Ser o primeiro é isto o que as pessoas querem. Em tudo. No trabalho, no
dinheiro, no poder, no patrimônio. Ser o primeiro. Que no caso do Everest, já não é mais
possível. O topo foi alcançado por Edmund Hillary, há décadas, em 1953. O primeiro a
subir sem auxilio de oxigênio então, a primeira mulher a subir então, o primeiro a subir
duas vezes então, o primeiro com mais de quarenta anos de idade então, o primeiro
brasileiro então, o primeiro de uma cidade qualquer então, o primeiro, o primeiro, o
primeiro. Sempre se pode achar algum primeiro adequado. E o resto, é o resto, apenas
perdedores. A grande vantagem de ser o primeiro, é que os demais, nada são.

Subir uma montanha é como andar de bicicleta. O objetivo deve ser alcançado
rapidamente com o máximo de esforço possível. Dentro do que se pode suportar, é
claro. Levando um mínimo de carga apenas, de preferência absolutamente nada. Pois,
cada quilograma a mais, gastará outro tanto, ou mais, em suor. Por isso é que uma
bicicleta deve ser a mais leve possível.

Uma explosão de energia, e o cansaço será menor, do que numa subida feita
vagarosamente. Desde que se tenha fôlego para isso, e claro, preparo físico.

Quem sobe rapidamente faz menos força, cansa menos. Porque faz força por menos
tempo. Somos diferentes das máquinas, onde vale apenas o aspecto energético, o
trabalho realizado. Chegamos mais ou menos a essa conclusão e assim subíamos
rapidamente e fazíamos paradas freqüentes, para recuperar o fôlego. Era a nossa
técnica. Que só funcionava quando a equipe era uniforme. O que não éramos.
4 - A DÚVIDA

Das crianças que éramos, com muita vontade mas pouquíssimos recursos, nos
tornamos adultos e depois velhos. Dispomos atualmente dos meios, que tanto nos
faziam falta quando mais jovens, mas a vontade já não é a mesma. Na verdade a vontade
continua, só perdemos um pouco o fôlego e a elasticidade. O que nos faz pensar que é a
disposição que diminuiu.

As mudanças aconteceram, assim como mudaram as barracas que utilizamos em


nossos acampamentos. Gradualmente, de pequeno em pequeno passo, pé ante pé, nos
tornamos diferentes. E tudo à nossa volta também, quase imperceptivelmente.

Só a imaginação, a maneira de pensar é que mudou muito pouco, quase nada. É


verdade, descartamos as tolices de criança assim que conseguimos pensar um pouco
melhor. Abandonamos também as idiotices de adolescentes e muitos deslumbramentos
da vida de adulto. Mas de um modo geral somos e sempre fomos os mesmos.

O bairro, a praia de Icaraí de nossa infância, desapareceu. Em algumas décadas tornou-


se uma megalópole desconhecida. Da qual poderia afirmar-se tranqüilamente, nunca ter-
se estado nela anteriormente. Apenas alguns detalhes, nomes de ruas e coisas assim,
nos dizem que é o lugar ainda é o mesmo. E também a paisagem, imutável por natureza.
Que o ser humano só não modificou, por não ser do seu interesse fazê-lo. Nesse tempo
todo nosso entorno mudou bastante, mas não percebemos, por causa da aparente
lentidão com que as coisas acontecem.

De uma geração para outra então, as mudanças são imensas, e raríssimas recordações
sobrevivem para comprovar isso. O passado, mesmo recente, é um desconhecido.
Ignoramos quase tudo, sobre os nossos avós e bisavós. E muito menos como eram os
lugares dos seus tempos de crianças.

Não percebemos as enormes alterações do ambiente, nem mesmo as que acontecem


conosco, se acontecem devagar, em doses homeopáticas. Conhecemos apenas o
presente, mais ou menos. Esquecemos o passado quase totalmente, ou nem ficamos
conhecendo.

Dificílimo pois, para os seres humanos, tentar avaliar o futuro.

Temos, da curva que desejamos traçar em função do tempo, mal e mal, apenas um
ponto, o presente. Falta o passado. E assim não temos como traçar o futuro, a grande
incógnita.

Somos todos obrigados a aceitar o porvir seja ele qual for, como se fosse destino
implacável, do qual não podemos escapar, pois não temos certeza como será, nem como
é que deveria ser.

E, além disso, preocupante mesmo é o presente. Corremos sempre atrás das soluções
para os problemas imediatos, e quase não damos conta deles. Como amofinar-se com
problemas vindouros, sendo possível até que nem aconteçam? Vive-se o presente, é o
que se faz. Apesar de ninguém duvidar da importância do futuro.
Tínhamos uma amizade hoje, certamente. Como seria essa amizade amanhã, e depois
disso?

Certamente a amizade, nos unia. Fazer as coisas, juntos, conversar, já por tanto tempo, é
claro só pode ser amizade. Mas, pensando bem, não somos amigos de verdade. Somos
amigos porque temos interesses comuns, no caso os passeios. Fora disso somos
amigos também, mas bem menos. Os passeios são o aglutinante. Quando eles não
acontecem, cada um cuida dos seus afazeres, quase que, independentemente dos
demais. Pouco sabíamos da vida de cada um. Claro, uma vez ou outra, contávamos uns
aos outros, nossos problemas pessoais, mas isso não era freqüente. Temos uma
amizade, tipicamente de boteco.

Os amigos na bebida imaginam-se amigos, mas não são. Podem fazer piadas, conversar
muito, intimidades até, chorar as mágoas, uns aos outros, mas uma vez que saem do bar
ou local de encontro, é cada um por si. O interesse comum é a bebida. Amigos tornam, o
beber próprio, mais agradável. Justifica este ato que, intimamente, sabemos ser errado.
Na bebida dos outros, justificamos a nossa. Por isso, quem bebe precisa de amigos que
bebam também.

Tanto é que, se um deles resolve parar com a bebida ele é excluído, ou exclui-se do
grupo. Mudar as amizades é até condição essencial para que alguém deixe a bebida.

Mas, será que existe amizade, que não seja interesseira, pelo menos um pouco?

Aí uma boa pergunta a ser respondida: Afinal, o que é amizade?

Talvez o que nos unisse, fosse então, o querer fazer exercícios físicos, o cansar-se,
quem sabe isso. Pois nossos passeios, quase sempre envolviam alguma forma de
esforço físico. Nada exagerado, mas sempre, quase que obrigatório. Quase nunca, a
idéia era, não fazer nada. Sempre um objetivo deveria ser alcançado. Quase sempre
envolvendo algum exercício, atividade muscular. Mas, apenas isto, não justificaria
estarmos junto. Exercício faz-se, em qualquer lugar, e até sozinho. "Malhar" é uma
atividade solitária, mesmo quando realizada em grupo, em uma academia, por exemplo.
Ao fazer exercícios somos nada mais que um peixe no cardume, é cada um por si. O
todo só serve para ser acompanhado. Se fosse fazer exercício o nosso interesse, seria
totalmente insuficiente e inadequado. Pois os exercícios devem ser moderados e feitos
regularmente. O que não era o nosso caso, nunca. Os intervalos eram grandes e às
vezes fazíamos esforço excessivamente. Neste aspecto, certamente eram mais
prejudiciais do que úteis. Assim, exercitar-se, também não era o que nos unia. Deveria
ser outra coisa.

Talvez a curiosidade, conhecer coisas novas, sentir ambientes, que não são rotineiros.
Talvez seja isso, o que nos une.

Não apenas um satisfazer o sentido da visão, o enxergar as coisas. Que poderia, muito
mais perfeita e completamente ser concretizado, através dos modernos meios visuais
que se dispõe atualmente. As fotografias, vídeos, filmes, todos eles, são sempre muito
mais completos, bonitos e perfeitos, do que quando observamos, participando do
evento, diretamente. Nas imagens, as coisas são mais reais que a realidade, observa-se
melhor e com mais detalhes. Dificilmente vê-se na realidade a incrível beleza que vemos
nas fotografias.

Mas isso não satisfaz. O que desejamos não é apenas enxergar. Queremos, além disso,
sentir o calor, o vento, o cheiro, queremos estar dentro da fotografia, ser envolvido por
ela. Fazer parte dela, não apenas admirar. Queremos fazer, não simplesmente observar.

É só por isso, que existe o turismo. Por causa do desejo de participar. Se não fosse isso,
nem existiria o vocábulo.

Entretanto o turismo, quanto mais sofisticado, mais custoso, mais completo, mais
elaborado, mais ele nos afasta exatamente disso. Quanto mais perfeito o turismo, mais
segurança, mais conforto e mais tranqüilidade, mais distante ficamos do local que
estamos visitando. Hotel cinco estrelas, cardápio internacional, música internacional,
televisão a cabo, Internet, ar condicionado. Faz-nos sentir exatamente, como se
estivéssemos em casa. Estamos num lugar completamente diferente, estranho, exótico e
nos sentimos em casa! Não faz sentido!

"Sightseeing tours", com toda a segurança, ar condicionado, as janelas nem abrem,


ficamos blindados do exterior, olhamos as coisas, isolados dela. Assim como se
estivéssemos assistindo a um vídeo ou olhando uma fotografia. Para que então viajar?

Conforto, segurança, tranqüilidade. São palavras da moda. Palavras caríssimas, de


altíssimo custo. São argumentos de venda de carros de luxo, iates, condomínios
fechados e turismo de primeira linha.

Os eventos, os locais, são preparados para receber o turista, naquilo o que existe de
mais interessante para se ver, ouvir e degustar. São montagens perfeitas em tudo,
menos na naturalidade. São artificiais, foram preservados, para serem vistos e
admirados. Perderam a funcionalidade original. Presépios montados para o turista. Que
ficam maravilhados. Fotografam, filmam e compram artesanatos. A maioria destes,
quando vistos em casa, são piores que medíocres. Poderiam ter feito tudo, com muito
menos empenho e despesas, sem sair de casa.

Talvez, para fugir destes enlatados, é que fazíamos nossos passeios, programados por
nós mesmos. É claro que com isso, deixávamos de ver muitas coisas. Atrativos
"obrigatórios", muitas vezes, passavam em branco. Mas por outro lado sentíamos
intensamente o entorno, o frio, calor, insetos, o cheiro de esgoto, a pobreza, a sujeira.
Tudo aquilo que o bom turismo esconde.

Em vez de olhar um aquário marinho, com seus perigosos tubarões, moréias e


belíssimos e exóticos peixes coloridos, o que fazíamos, era entrar no mar e procurar por
eles, nós mesmos. Mais gostoso assim, mesmo que muito menos produtivo.

A necessidade de ver coisas novas, provavelmente provém de ainda sermos, na


essência, coletor-caçadores. Inquietos, não conseguimos ser sedentário
verdadeiramente. Talvez por isso o fascínio irresistível pelas máquinas que nos facilitam
o deslocamento, charretes, automóveis e aviões. A inebriante velocidade que
proporcionam, é muito superior ao que podemos conseguir andando e correndo. Não
conseguimos resistir-lhes, todos desejam um dia possuir o seu automóvel, para ver
coisas novas e fazer turismo. Inebriante velocidade.
Gostávamos da natureza, isso era certo. E bem menos, daquilo que os homens criaram.
Tanto é que, quase nunca, nossos passeios incluíam a tecnologia e similares.
Eventualmente, coisas antigas feitas pelo homem, cidades históricas, um museu, uma
arquitetura, mas não as modernidades.

Quem sabe, porque queríamos ver algo diferente do dia a dia, que afinal de contas
víamos todo dia. E, por isso mesmo, tornavam-se desinteressantes.

Procurávamos voltar no tempo, sem saber. Quem sabe, a idas épocas e eras, motivados
por genes, que certamente algum, deve existir neste sentido. Uma saudade, do não sei o
que.

Por isso talvez o verde seja bonito. Deve ser por isso. O verde da vegetação que
significa e sempre significou vida, vida para todos. Bonita a água límpida e cristalina que
serve, desde muito tempo, para mitigar a nossa sede. O ar puro que respiramos
essencial à vida.

Quem sabe o nosso gostar da natureza nem era voluntário ou consciente, mas um
instinto. Quem sabe isso nos unia.

Poderia ser um outro ou vários os motivos. Mas, realmente, nada disso explica
satisfatoriamente porque fazíamos, juntos, todas essas coisas. Quem sabe nem seja
possível mesmo, uma explicação.

Sempre estamos à procura de explicações. Tudo que é desconhecido deve deixar de ser.
Os seres vivos são assim, curiosos por natureza.

A astronomia, um ótimo exemplo disso. Dificilmente existe algum objetivo prático nela.
Já é mais que sabido, que alcançar os astros, é praticamente impossível. E o sistema
solar, totalmente inóspito. Nenhum futuro existe pois, na astronomia. Mesmo assim
muitos dedicam-se a isso. É o saber pelo saber.

Talvez a causa seja, por termos indagados, por centenas de milhares de anos, o que
seriam estas luzes noturnas, lua e estrelas, ofuscadas de dia pelo sol, outro
desconhecido. Conhecer quais as regras dos seus intricados movimentos. Saber o seu
significado, ao nosso entender, responsáveis por muitas coisas, que acontecem aqui na
Terra.

A pesquisa espacial também é o saber pelo saber, para desvendar o que não sabemos.
Se bem que a finalidade desta, como está sendo feita pelo ser humano, não é conquista
do espaço, mas sim a conquista da própria Terra. Foguetes satélites e sensores
infravermelhos, radares, luz visível, quase todos voltados para este próprio planeta azul,
e não para o espaço. Proporcionando aos detentores dessa tecnologia, supremacia
sobre os que têm menos conhecimentos. Ferramentas de dominação. Satélites espiões,
o supremo exemplo.

Explicar coisas inexplicáveis, se fossem encontradas as respostas, certamente


ficaríamos mais sábios. Mas, com certeza, menos humanos também. Mais um pouco,
parecido com as máquinas. Que na verdade somos. Todos os seres vivos, não só os
humanos.

Complexas engrenagens, cujo objetivo final desconhecemos. A eterna dúvida que


procuramos desvendar. Quanto mais respostas, mais máquinas somos, mais nos
aproximamos da física química e matemática, das quais não podemos escapar.
Entretanto é a dúvida, a falta de explicação que nos mantém vivos. Não sabemos porque
vivemos e por isso vivemos. É a dúvida, que nos faz viver.

O que acontecerá o dia em que formos oniscientes, quando colhermos o fruto da árvore
da vida?

As mudanças estão acontecendo cada vez mais rapidamente. Velocidade exponencial. O


que a natureza leva milhões de anos, fazemos em cinqüenta. E inventamos coisas que
ela nunca pensou em fazer. As coisas ficaram cada vez mais difíceis de serem
entendidas. Compreendemos cada vez menos aquilo, com que lidamos diariamente.
Usamos apenas e ficamos, cada vez mais, cercados de dúvidas.

As engrenagens que movimentam a máquina, o todo, estão ficando cada vez menores e
mais numerosas. Somos cada vez mais dependentes de outras engrenagens e de um
total, que não conseguimos enxergar, muito menos entender. Quase nada mais é
intuitivo tudo tem que ser aprendido e estudado.

Quem se basear no instinto erra, está aí a ciência a nos corrigir. A não ser quanto ao
relacionamento humano. Aí não existe sabedoria suficiente, vale o porrete, a briga de
foice.

Quem sabe por isso a volta à natureza. Retornar às coisas simples. Pelo menos por um
curto espaço de tempo, que chamamos de lazer.

Voltamos, mas também ela, não entendemos mais direito. Esquecemos como se
comportar, quando envolvidos pelas coisas simples que a natureza oferece. Nem
chegamos a aprender isso, atarefados que estávamos em absorver as regras e normas
citadinas e dos civilizados. Não somos nem peixe nem pássaro. Na verdade não
sabemos mais o que somos. Gostamos da cidade, mas nos sentimos perdidos nela,
sufoca-nos muitas vezes, e ansiamos pela natureza. Que não é mais nosso ambiente.

Se necessário fosse permanecer, por um tempo prolongado, isolados da sociedade a


que estamos acostumados, certamente morreríamos. De saudades, ansiando a
artificialidade com a qual crescemos e guardamos em boa memória, pois é só o que
conhecemos. De tédio, por não podermos fazer ou apreciar aquilo que era o nosso
cotidiano. Por exposição às intempéries, frio, chuva, sol, calor, dos quais não teríamos
proteção, que nos fosse suficiente. Por inanição. A fome, a sede, quase que
imediatamente, fariam se sentir. Pereceríamos, certamente. Criamos um mundo artificial,
do qual não podemos escapar, e que somos obrigados a manter. Sem muita escolha.

Não que as coisas não pudessem mudar. Podem, e vão. A expectativa é que isso
aconteça. Mas será um retrocesso. Para bem antes do início da agricultura, que marcou
o princípio de nossa civilização. A perspectiva é essa. E não deve demorar muito. A
artificialidade construída por nós ruirá e sobrarão os escombros. Entulho, que para nada
serve. Pelo contrário, lixo que atrapalha a vida.

O planeta Terra é finito. Mas, aparentemente, ninguém se preocupa muito com isso.
Empenhados que estão, em tirar uns dos outros, o que cada um possui.
A natureza por sua vez, é de graça, sempre foi. É só pegar. Mas um dia esgotar-se-ão os
recursos que ela oferece. O que fazemos, violentamente uns com os outros, com a
natureza não poderemos fazer pois, ela sempre nos ofertou gratuitamente. Mais que isso
impossível. O que fazer então? De quem ou de onde tirar?

O mundo atual está ficando superlotado, não de gente, isto ele ainda comportaria se
fossemos racionais, mas de egoísmo. É o que está tornando este planeta pequeno
reduzido em tamanho e minguado em recursos. Jogamos fora para não dar aos outros.
Destruímos, quando nos é conveniente. O desperdício é considerado saudável. Não é só
um direito atuar assim, é lei econômica, a ser cumprida. Está escrito, no livro de Baal, o
deus do lucro. Praticamos muito mais que um simples egoísmo. "É só meu. Ou de
ninguém", é assim que fazemos.

Somos míopes. Para nós, cinqüenta anos, é quase uma vida inteira. Cem anos, é
passado distante. Para a natureza, com bilhões de anos de experiência, isso não é nada.

Preocupa-nos no entanto, apenas essa gota de água, no oceano da vida na Terra. O


futuro, cem anos, distante demais, não interessa. Assim, que perspectiva existe em
tratarmos melhor uns aos outros e sermos complacentes com a natureza, se em
cinqüenta anos já estaremos mortos? Que interessa o que irá acontecer ao mundo, já
que não vivemos eternamente?

Seria a longevidade o objetivo final do ser humano? E até, se possível, viver


eternamente?

A primeira necessidade do ser vivo, é permanecer vivo. E a segunda, manter viva a


espécie, ou seja, proliferar. Viver entretanto, é prioritário, inclusive sobre a preservação
da espécie.

Como máquinas térmicas que somos, necessitamos de combustível, que são os


alimentos. Sem os quais não só deixaremos de funcionar, como morreremos, deixando
de existir.

Permanecer vivo, alimentar-se e reproduzir são as molas propulsoras, características da


vida. De todos os seres vivos.

Outra característica que parece ser importante é o fato de, em muitíssimas formas de
vida, a vida de um indivíduo não ser eterna. Indivíduos de algumas espécies podem viver
milhares de anos, mas então, sobrevém a morte. Os seres vivos são apenas uma casca,
portadores do código genético. Este sim, vida. Eterna, se não for destruída.

O indivíduo vive, procria, e então morre. Indicando com isso que a prole é mais
importante que os genitores. Ou seja, a vida é menos importante do que a preservação
dela.

Mas, para poder ter descendentes, é essencial estar vivo. Este manter-se vivo, principal
objetivo, tornou a morte o pior evento possível, o mais temido inimigo, sobre todas as
coisas.

Sendo, possivelmente, menos traumática, quando o ser vivo já proliferou, ou seja,


quando já desempenhou a sua segunda função, a preservação da espécie.
Como é o caso dos salmões, que, após milhares de quilômetros de vigorosa luta para
atingir os locais de desova então, simplesmente morrem, inexplicavelmente, de um dia
para o outro. Depois de cumprida essa missão.

Seria assim também com o ser humano?

Envelhecemos, os cabelos branqueiam, a visão, audição, os sentidos enfraquecem, a


imunidade biológica diminui, os ossos ficam frágeis, a pele fica enrugada.

Cento e vinte anos, não mais. E provavelmente nunca, será muito mais que isso.

Mesmo com as células tronco e a engenharia genética.

Talvez os bem velhos aceitem a morte com mais facilidade. Talvez porque saibam ser
inevitável que aconteça. Ou porque seria um alívio à dor, sofrimento, tédio ou depressão
que enfrentam.

Mas bem-vinda ela nunca será. Pois a morte é dolorosa sempre, sem exceção.

E não importa muito, se temos descendentes ou não. Talvez, nem os salmões


desejassem morrer.

Pois morrer, contraria a vida.

Seria então a longevidade, o objetivo, um sinônimo de felicidade?

Pode ser que sim. Quem vive mais, sofreu menos em sua vida. Passou menos fome,
menos frio, conseguiu evitar e superar doenças, foi menos assaltado, brigou menos em
botecos, acidentou-se menos, alimentou-se melhor. Conseguiu protelar, ao máximo, a
morte, esta temível incógnita. A vida foi-lhe mais fácil.

Mas seria ele feliz só por este fato, de ter vivido mais? Difícil dizer, mas, como definir
felicidade é extremamente difícil, provavelmente a longevidade é o que melhor a
representa.

São felizes pois, os egoístas. Aqueles que conseguem impor-se, sobressair-se, pensar
no seu EU, prioritariamente. Quase sempre, em detrimento dos outros. Mesmo que com
isso destruam a vida alheia. E coloquem em risco, a própria vida na Terra.

É o egoísmo, ditado pela vida, que a coloca em perigo.

O que só não acontece por causa das limitações, da falta de poder, da incapacidade do
ser vivo de desenvolver e impor plenamente o seu natural egoísmo.

O que o ser humano está superando.

Com suas máquinas que fazem força por ele, que executam os serviços muito mais
rapidamente e eficientemente do que ele próprio poderia fazer, com seus robôs que
executam os trabalhos enfadonhos e repetitivos e até computadores que substituem o
trabalho intelectual e os ajudam, imensamente, no trabalho criativo.

O ser humano está adquirindo a capacidade de desenvolver plenamente o seu egoísmo.


E de então, ser feliz, plenamente feliz, com isso.
Pela seleção genética, orienta a vida no sentido dos seus desejos. Faz isso já há
milhares de anos. Modifica gradativamente os vegetais e animais, cria alimentos e
medicamentos. Produzindo até, cachorrinhos com aspecto e formato agradáveis.
Finalidade apenas estética. Até coisas assim ele faz, sem muitos problemas.

E, recentemente, com a engenharia genética, mistura espécies totalmente diferentes.


Alterando a própria estrutura da vida: o código genético. Inédito na natureza. Assim
como os transurânicos.

Resta saber, se terá sabedoria suficiente, para refrear esse seu poderoso egoísmo. Vital
para ele individualmente, mas mortífero para os demais seres vivos.

O que, no final das contas, será um tiro pela culatra.

Perdeu o ser humano, o direito à irracionalidade. Não pode mais viver, como o bicho que
sempre fomos. Para não destruir a vida na Terra, grande parte dela, com o seu egoísmo.

Teríamos pois, que mudar o objetivo. Aceitar a morte. Ser contrários à vida.

Para que todas as vidas possam viver.

É bom esquecer tudo. Não pensar muito nisso. Fugir, sair, fazer um passeio. Uma
caminhada, uma fogueira à noite. Aproveitar a natureza, enquanto ela ainda existe.

Certamente, o problema não é nosso, nem dos nossos filhos. Quem sabe, grave mesmo,
só bem mais tarde. Aí, já não temos mais nada a ver com isso.

Façamos as leis de proteção ao meio ambiente, cuidemos dos coalas, baleias jubarte e
tartarugas marinhas. Isso acalmará nossa consciência, se é que temos uma. E vivamos a
vida, que o dia a dia nos dita. Pois, amanhã é dia de trabalho. E se não trabalharmos,
como iremos sobreviver?

E importa qual seja, o tipo de trabalho que exercemos, o quanto este trabalho agride, ou
não, a natureza, direta ou indiretamente? Temos sorte em ter um emprego, essa é a
verdade. Fechem-se os olhos para o resto.

Quem sabe o que nos une seja, seja uma fuga, do cotidiano e de uma vida, que em
princípio não concordamos? Buscamos as coisas simples. Em vez de um
sofisticadíssimo prato gourmet e vinho importado, preferimos um reles um churrasco na
brasa, regado a cerveja. Sentimo-nos melhor assim. Procuramos tornar importante
àquilo que deixamos de apreciar, devido à complexidade em que nos metemos
involuntariamente. Nascemos e fomos criados com a artificialidade e é quase só o que
conhecemos. Quem sabe, procuramos retroceder, para verificar, se ainda somos
capazes de viver, por conta própria, independentemente da estrutura, que foi montada
pelo homem civilizado e suas cidades.
5 - A EXPERIÊNCIA

Seria interessante saber o que aconteceria, se fossemos obrigados a viver, excluídos da


sociedade que conhecemos. Assim, de repente. Com apenas alguns dias de tempo, para
escolher rapidamente o que levar, que poderia ser qualquer coisa. Que enchesse um
caminhão, ou mais de um. Num lugar isolado, na mata amazônica, por exemplo, ou ilha
oceânica, sem os recursos oferecidos pelas cidades, aos quais estamos acostumados.
Lugar desabitado, mas favorável à vida, amplo, com bastante vegetação, água potável,
terra fértil, clima ameno. Levar o que fosse desejado, sem que no entanto, aconteça
reposição. Estragando alguma coisa, conserta-se como pode, ou fica quebrado. Viver
isolados, mas não por poucos anos, muito mais que isso. Como se nunca fossemos
retornar. Criar uma nova sociedade. Desligar-se de tudo e começar vida nova.

Milhares de livros já trataram o assunto, é a ilha deserta afastada de tudo e de todos.


Ficção e realidade. E muita gente já passou por isso, voluntária ou forçadamente.

Se pensarmos nesta possibilidade, o que levaríamos?

Um caminhão de loiras e morenas é claro.

Mas, além disso, no segundo caminhão?

Tudo que fosse movido por eletricidade estaria excluído. A combustível, derivado de
petróleo também, pois sua utilidade seria, apenas temporária. Quem sabe fosse possível
instalar um moinho de vento, para gerar energia elétrica, uma turbina hidráulica ou roda
d’água. Aí poderíamos levar muitas coisas a que estávamos acostumados. Mas será que
conseguiríamos montar estes dispositivos corretamente? Será que as condições locais
permitiriam que fossem instalados e chegassem a funcionar? Roda d’água e turbina são
difíceis de instalar, e devem ser específicos, de acordo com as condições locais, que
desconhecíamos quais eram. Se é que existia alguma queda d’água. Um moinho de
vento fornece pouca energia e, apenas quando existe vento. Assim nada disso serve
plenamente. Quem sabe algo movido a lenha? Uma máquina a vapor. Mas, onde
conseguir isso será que existe ainda no mercado, algo parecido? Painéis solares,
fotovoltaicos, quem sabe? São apenas quebra galhos, fornecem muito pouca energia. E
à noite nenhuma até. Além disso, qual a durabilidade destes equipamentos, sem
manutenção adequada, dez, vinte anos?

É, pelo jeito, energia abundante e fácil, por tempo prolongado, não seria possível.
Teríamos que viver sem ela. Mas, fazer força nós mesmos, iríamos nos dar muito mal
com isso. Não estamos acostumados. Levar gado quem sabe, para tracionar um arado
que fosse, e também fornecer leite. Mas lidar com ele, nenhum de nós tinha feito isso
antes.

Provavelmente teríamos que desmatar primeiro uma área, quase que certamente.
Motosserras e roçadeiras à gasolina teriam que ser levadas também, e combustível.
Mesmo que fossem utilizadas apenas por pouco tempo. A não ser que fossemos cortar
árvores, que poderiam ser gigantescas, nós mesmos, a machado, que nem sabíamos
usar direito. Aliás, nem motosserras também.

Teríamos que pensar, nas coisas mais importantes primeiro: abrigo e alimentos. São os
que mais fariam falta, de imediato. Proteção contra intempéries, uma casa. Que não
poderia ser de alvenaria, pois nenhum de nós era pedreiro. De madeira então, pré-
fabricada. Com um telhado leve, realmente durável, e que isolasse também o calor. Só
isso, talvez já lotasse o segundo caminhão.

Água potável, a primeira preocupação. Talvez, fosse necessário até cavar um poço.
Ferramentas manuais, as mais diversas, teriam que ser levadas, pás, enxadas, martelos,
serrotes, facões, foices, machados, ponteiras, ferragens, dobradiças, pregos, parafusos.
Limas e pedras de amolar. Máquinas simples, arado e sabe mais lá o que seria
necessário. Trabalhar a madeira, a pedra, a terra, tudo isso teria que poder ser feito, com
o emprego das ferramentas que fossem levadas.

Banheiro, como seria o banheiro? Sem água corrente, o banheiro teria que ser,
obrigatoriamente a "casinha" no fundo do quintal. Será que de algum modo poderíamos
obter água corrente, uma pequena bomba elétrica, movido a painel solar, quem sabe
inicialmente isso. Água corrente é uma comodidade, indispensável quase.
Principalmente por causa do banheiro, que então, poderia ser dentro de casa. Canos
d’água, fios elétricos não poderiam ser esquecidos, caixa d’água também, conexões,
registros, torneiras etc. Mas, tudo isto funcionaria apenas por algum tempo. Cedo ou
tarde surgiria algum problema sem solução, e tudo teria que ser abandonado.

Alimentos, prioridade total. Ser autônomos, auto-suficientes. Espantar de vez, o


fantasma da fome. Teríamos que plantar, tudo aquilo que normalmente se planta, milho,
feijão, mandioca, banana, abóbora, árvores frutíferas. Enfim tudo o que previsivelmente,
pudesse ser plantado na região. Teríamos que levar sementes e mudas. Plantar,
entretanto, como se faz isso? Quando, como e quais os cuidados a tomar? Sementes
teriam que ser guardadas a cada colheita, para o próximo plantio. Verduras, tomates,
couve, alface, será que as formigas as poupariam? E como obter suas sementes?

Galinhas, porcos, ovelhas, coelhos alguma coisa teria que ser levado. Para produzir a
carne que iríamos necessitar. Mas, teriam que ser confinados, não poderiam ficar soltos.
Fugiriam, ou seriam devorados pelos predadores locais. Poderia acontecer também se
tornarem selvagens e então difíceis de serem capturados. Cercas, telas, moirões, tudo
isso teria que ser levado. E ração também, bastante ração, pelo menos até que
pudéssemos produzir, nós mesmos, o que fosse necessário para eles.

Sobre tudo isso, teríamos que juntar literatura e instruções. Para saber como fazer.

Talvez alguma coisa pudesse ser catada no mato, palmito, castanhas, frutas silvestres.
Teríamos porém, que conhecer o é comestível. E certamente não seria uma fonte
confiável de alimentos.

Pescar, quem sabe fosse possível. Linhas anzóis, redes, estoque suficiente para
décadas. Tudo isso teria que ser levado. Um barco, não podemos esquecer o barco. De
alumínio anodizado, que durasse décadas, pelo menos. Para não ter que construir
canoas, e não saberíamos como. Sem motor de popa, pois a gasolina iria acabar-se,
cedo ou tarde.

Caçar, certamente inviável. Nenhum de nós era atirador ou sabia lidar com armas.
Enferrujariam logo e também a munição esgotaria, cedo ou tarde. Se é que
encontrássemos algo que pudesse ser caçado. Teríamos que aprender, isso sim, a fazer
armadilhas, para nós mais promissoras.

Certamente a mais premente necessidade, seriam os alimentos. Por isso um estoque


inicial, farto, de não perecíveis, muito bem acondicionado, teria que ser levado, para não
morrer de fome, já nos primeiros meses.
Móveis e utensílios de cozinha, importantíssimos, tudo do melhor e mais durável que
existe. Nada de plásticos, sensíveis à luz, de durabilidade limitada. Aço inoxidável,
cerâmica, vidro, louça, isso sim. Inicialmente vários bujões de gás liquefeito, teriam que
se utilizados, para cozinhar. Até que fosse possível usar um fogão a lenha, que ainda
teria que ser construído. Uma ou várias chapas para fogão a lenha, não poderiam ser
esquecidas.

Roupas, teríamos que levar um estoque inicial, e com o tempo achar uma maneira de
confeccioná-las, nós mesmos. Um tear, quem sabe, mas que tipo de fio poderia ser
usado, se é que fosse possível produzir um, algodão, linho, como isto tudo é obtido?
Difícil vai ser, resolver isto. Impossível até, com certeza.

Teríamos que levar livros, que ensinasse como as coisas mais simples são feitas, como
construir, fabricar, executar. Tudo aquilo que iríamos necessitar, teríamos que saber
como fazer produzir e lidar. Conhecimentos, do mundaréu de conhecimentos
disponíveis teríamos que selecionar tudo aquilo que fosse interessante, e não apenas o
utilizável em curto prazo. E levar os livros, que teriam que ser bem acondicionados e
guardados. Computadores seriam inúteis, por causa da falta de energia elétrica.

Tudo aquilo que a humanidade desenvolveu no decorrer de milhares de anos teria que
ser sintetizado. As grandes conquistas, o fogo, a roda, a alvenaria em arco, a mesa
giratória dos oleiros, o torno para madeira, o tear, cozer o barro para endurecer potes,
telhas e tijolos, as leis físicas, resistência dos materiais, química, ótica, tudo poderia ser
útil algum dia, em futuro distante. Útil para nossos descendentes. Para que eles não
tivessem que esperar milhares de anos para conquistar novamente os conhecimentos e
as técnicas perdidas.

Até um simples fazer fogo. Certamente um dia qualquer, ficaremos sem ele. E temos que
saber como resolver este problema, satisfatoriamente. Nada melhor ocorre, que uma
lente de aumento. De vidro, que poderia durar, se bem cuidada, centenas de anos até.

As armas de fogo eficientíssimas, e não só estas, teríamos que saber também, como são
produzidas. Dominar esta técnica. Para futura eventualidade. Se ficássemos apenas nos
arcos flechas e tacapes, estaríamos em igualdade ou inferioridade até, a outros povos
com os quais poderíamos entrar em contato e conflito. E como dominar, conquistar,
usurpar e destruir, sem o auxílio de armas?

E se acontecesse uma doença? Medicamentos, apenas pouquíssimos poderiam ser


levados, que soubéssemos como utilizar e que não se estragassem com o tempo. E se
alguém ficasse com dor de dentes, o que faríamos? Quais conhecimentos e
procedimentos médicos teríamos que juntar, que princípios nos seriam úteis e também
aos nossos descendentes?

Ferro, aço, vidro, plásticos, alumínio, derivados de petróleo, tintas adubos.


Eletromagnetismo, eletrotécnica, física quântica. Computação, heliocentrismo,
geografia, hidrologia, biologia. Tudo isso teria que ser registrado de algum modo e
armazenado em algum lugar seguro. Para não perder esses conhecimentos
simplesmente assim, sem mais nem menos.

Teríamos que manter a escrita. Se não, de nada adiantaria preservar tudo isso. Passar
aos descendentes, todos os conceitos, sobre as coisas, que eles nunca viram ou
tocaram. Mas teriam que saber o significado.
Mas, escrever como? Se nem papel mais iria existir. O que poderia ser usado como
substituto?

Nem teríamos como ensiná-los a escrever. E perder a escrita significaria perder tudo.

Aconteceria tudo isso, em apenas uma geração, tão rápido assim. O que não fosse
passado de geração em geração verbalmente com fidelidade, estaria irremediavelmente
perdido.

E o que poderia ser transmitido, por esse precário e inconfiável método? Apenas os
conhecimentos úteis disponíveis no momento, nada mais. Ou seja, como usar os poucos
artefatos, remanescentes trazidos da civilização da qual viemos. Até que se gastassem
ou inutilizassem todos.

E estaríamos de volta ao início. Tudo teria que ser reinventado.

Restariam incríveis e inacreditáveis lendas. E talvez alguns livros, que seriam


indecifráveis hieróglifos, nada mais.

Já a simples sobrevivência, não a imediata, mas em longo prazo, seria um problema de


difícil solução. Quase certo seria o fracasso. Sabemos operar um computador, mas fazer
uma ponta de flecha, isto não sabemos. Seguir um rastro de alguma caça pela floresta,
impossível. Nunca sequer aprendemos.

Não temos mais, como viver da natureza, sem o apoio dos recursos da civilização.

Pode ser que alguns ainda consigam, aqueles que foram rejeitados pela sociedade
civilizada atual, ou que nem entraram nela direito, e assim, bem ou mal, são obrigados a
viver diretamente do seu trabalho e do que conseguem obter da natureza. Mateiros,
lenhadores, pescadores, pequenos agricultores. Os que praticam subsistência. Estes
teriam mais chance de sobreviver. E claro os nativos, primitivos habitantes, aqueles que
nada, ou quase nada, absorveram dos brancos, as suas "vantagens".

Também passariam dificuldades, pois a natureza encontra-se, mundialmente,


extremamente degrada e devastada, mas por serem menos exigentes e mais capazes,
teriam alguma chance.

Mas não nós, de jeito nenhum. Apesar de gostarmos da natureza, somos estranhos a ela.
Apesar de tudo, de todos os nossos conhecimentos adquiridos em muitos anos de
contato com a natureza, nosso mundo é totalmente outro! Nunca, verdadeiramente,
abandonamos a civilização e os seus recursos.

Evidentemente, assim de repente, sem mais ou menos, voltar a viver como éramos há
milênios atrás, só pode resultar em catástrofe. Mesmo levando tudo aquilo que
achássemos necessário para viver e sobreviver. Não seria suficiente.

As verdadeiras necessidades, a vida na natureza, e viver dela exclusivamente, isso


nenhum de nós saberia fazer. Simplesmente porque não faz parte de nossa bagagem os
hábitos e conhecimentos necessários. Porque teríamos que fazer coisas que nunca
aprendemos na vida.
Quem sabe a humanidade, prevendo que coisas assim podem acontecer e certamente
vão acontecer mais cedo ou mais tarde, antecipadamente se estruturasse no sentido de
amenizar a transição para uma vida mais simples. Vida que não inclui boa parte das
conquistas tecnológicas nem os recursos, hoje amplamente disponíveis.

Seria menos traumático. Mas dificilmente vai acontecer, este consenso não vai existir.
Somos imediatistas, não resolvemos problemas que ainda vão acontecer.

A civilização obriga-se a continuar civilizada. O Norte é para frente, sem volta, sem olhar
para os lados. Abandoná-la seria um retrocesso, não de milhares de anos, mas de
milhões, onde os mais elementares conhecimentos ainda não tinham sido adquiridos.
Tudo teria que ser reaprendido, a partir do verdadeiro início.

Seríamos iguais aos bichos, mas com cérebro grande e ativo, reescreveríamos talvez os
passos já dados, mais uma vez. Se acontecer nos ser dada essa oportunidade
novamente. Quem sabe então com a experiência adquirida de que o mundo é finito, frágil
e destrutível.

Este é o perigo, que vivemos. Alguma engrenagem importante na civilização pode deixar
de funcionar, e não existir substituto adequado. Obrigando-nos a retroceder. O petróleo
e o gás natural chegarão ao fim em breve. Os seus dias estão contados. Na verdade,
sempre estiveram, desde o início. Mas só agora está se reconhecendo, que isso
realmente vai acontecer. O que substituirá essa engrenagem? E assim tantas outras,
escondidas em algum canto da máquina, algum dia deixarão de funcionar, estragar-se-
ão. E teremos que viver sem elas. Se pudermos.

Foi justamente, a energia a primeira e insuperável dificuldade sentida, ao fazer nosso


hipotético traslado para a natureza. E nos demos muitíssimo mal sem ela.

Assim como se dará mal a humanidade, acostumada que está ao desperdício de energia.

Aparentemente, não existe garantia nenhuma, nessa explosão de conhecimentos do ser


humano, que as coisas continuem assim como vem acontecendo. Que todos os
problemas sejam solucionados sempre, a contento. Um castelo de areia está sendo
construído e suas fundações são, o retirar as coisas da natureza utilizar-se delas, e
então descartar o resto. Sem preocupar-se com a reposição. É claro que isso só
funcionará bem, por tempo limitado.

A natureza é vigorosa, sempre reagiu. Insiste em permanecer viva. Não desiste


facilmente. Todos os seres vivos comportam-se assim. Semanalmente quase, temos que
aparar a grama do jardim, para que o mato não tome conta. A vegetação, os insetos, os
fungos, as bactérias, pequenos e grandes animais têm que ser constantemente vigiados
e controlados, para que não destruam o que o homem construiu. Estão sempre à
espreita de uma oportunidade, para desfazer o que realizamos.

Um telhado, que protege das intempéries, nunca será eterno. Cedo ou tarde surgirão
goteiras, e com elas os bichos, inicialmente os microscópicos, depois insetos, liquens,
roedores, vegetação e então lentamente, mas com firmeza, a destruição. Tudo que está
protegido sob esta cobertura irá deteriorar-se.

A rocha mais dura, o concreto mais aditivado que existe, o mais inoxidável dos aços,
não resistirão ao tempo, que é eterno. Calor, frio, vento, chuva, acidez, basicidade,
abalos sísmicos, agentes físicos e químicos atuarão, fazendo a sua parte. Sempre no
sentido de não deixar pedra sobre pedra. À organização contrapõe-se o caos. Nem
mesmo os diamantes, que o homem já consegue fazer, contrário ao que se fala, são
eternos.

A natureza exige de volta o espaço que lhe foi tirado, insiste nisso, briga por isso. Mas
para isso precisa de tempo. Muito tempo. Que o ser humano não lhe concede.

A luta do homem civilizado é pois, contra a natureza. Sempre foi. É o inimigo a ser
vencido. A floresta, cheia de feras e perigos. As águas seja mar, rio ou lago, sempre
traiçoeiras. Montanhas, nada mais que obstáculos. Insetos e doenças, terríveis flagelos.

Inicialmente um combate recíproco, um ataca e o outro se defende. As armas


disponíveis, semelhantes para ambos, as inerentes aos seres vivos. Até que o homem
começou a pensar. Pensar mais do que os demais seres vivos. Conseguiu deixar de ser
imediatista e guardar memória do objetivo inicial, mesmo depois de muitas reviravoltas
de raciocínio. Em vez de comer a semente, resolveu plantá-la. Plantar hoje, para colher
amanhã. Fez isso deliberadamente. Tornou-se diferente. Moldou desde então, as coisas
a seu favor, conscientemente.

Adquiriu com isso uma arma, talvez inédita, nos bilhões de anos de vida na Terra.

Em vez de ceder, ser obrigado a integrar-se, agora ele pode confrontar. Tornou-se forte e
poderoso em sua luta contra a natureza, o seu inimigo mortal. Esperou por milhares de
anos ainda, desde o plantio da primeira semente, mas conseguiu. Nada mais está imune
ao seu desejo e vontade. Cria matéria que nunca existiu neste planeta. Até a própria
vida, está entregando seus segredos e sendo modificada por ele, segundo os seus
interesses. É um vencedor!

Perdedor, o seu inimigo, a natureza, os demais seres vivos. Que estão entregando os
pontos. Estão desistindo, deixando de existir, desaparecendo, tornando-se ausentes. A
natureza, anêmica, não tem mais forças, está cedendo. O ser humano está destruindo o
seu mortal inimigo que, uma vez vencido, o levará também ao túmulo.

Sabemos muito bem, que isso pode acontecer, mas como pensar diferentemente do que
pensamos por milhares de anos? Como abrir mão das armas conquistadas?
Caminhamos para uma extinção em massa, provocadas por nós mesmos. E a vida na
Terra nunca mais será a mesma. Talvez até, o próprio homem não sobreviva.

Parece não existir saída. Integrar-se novamente à natureza, não sabemos, não podemos
e nem queremos. Continuar será o desastre. Estamos num beco sem saída.

A vida, no entanto, com seus bilhões de anos de experiência, será indiferente a isso.
Efêmero episódio, um pequeno contratempo, um piscar de olhos, nada mais.

Mas enfim, isso é futuro. Não sabemos se próximo ou distante. Não sabemos nem, se vai
realmente acontecer. Como se diz, tendência não é destino. O caminho delineado poderá
não ser percorrido. Temerário sempre extrapolar, tentar prever o que vai acontecer.
Principalmente, quando a vontade, o "eu quero" do ser humano sem qualquer tipo de
racionalidade é fator determinante.

Pode ser também, que afinal de contas, a tragédia não seja tão grande assim. Pode ser
que, no último minuto, encontre-se uma forma de produzir energia farta, limpa e barata.
Pode ser que o ser humano chegue à idade da razão e mude seus valores. Mude seus
inúteis valores, e preserve a natureza, a deixe respirar um pouco, permita que ela se
recupere. O que ela sabe fazer muito bem sozinha, sem a ajuda de ninguém. É só deixá-
la em paz, e permitir que ela mesma resolva seus problemas.

Pode ser que os valores materiais, o possuir cada vez mais, ilimitadamente, deixe de ser
o anseio do homem culto, organizado e civilizado. Pode ser que abandone essa
irracional demência e se torne "humano" verdadeiramente. Pode ser que ele resolva
retirar da natureza apenas o necessário e aquilo que ela pode repor, não mais. Pode ser
que ele venha a considerar-se parte dela, e não apenas como uma inerte e servil
subordinada. Pode ser. Pode ser. Então as coisas serão diferentes.

Mas enfim, futuro é futuro. Incerto, certamente.

O presente entretanto, manifesta-se, implacavelmente: Acabou a cerveja!

"Alguém poderia comprar algumas, urgentemente!" Diz alguém.

Vivemos o presente, invariavelmente. Só podemos pensar no passado e no futuro, se o


presente não estiver incomodando. E o problema atual é a falta de cerveja, que
incomoda. Sem ela impossível pensar, falta o essencial lubrificante da goela e dos
neurônios. Que ficam emperrados e inertes. Atendemos as necessidades primeiras,
prioritariamente. Depois, satisfeitas estas, pensa-se no amanhã ou no ontem. Não tem
como ser diferente.

Assim, por este motivo, a miséria a fome no mundo, deveriam ser combatidas. Para
preservar o planeta. Pois, impossível convencer um faminto, a preocupar-se com
filosofias e ideologias distantes, ecológicas ou não, se o que ele necessita é alimentar-se
já, agora. Comeria a mais rara obra de arte ou trabalho intelectual, único no mundo,
insubstituível, sem pestanejar, se comestível fosse. Pois a fome tem que ser saciada, já,
agora. O faminto, o necessitado, é imediatista prioritariamente.

Portanto, para que os miseráveis deixem de fazer a sua parte na destruição do planeta
eles devem, em primeiro lugar, deixar de ser miseráveis. E os ricos, para que deixem de
ser perdulários e destruam o mundo com o seu lixo e desperdício, devem ser menos
ricos. Justiça social enfim. É o que teria que acontecer.

O que significa que o planeta está perdido. Pensamentos nobres, não têm espaço em
nossos cérebros. Mesmo que isto significasse salvar o mundo!

Afinal, vieram as cervejas. Já podemos pensar novamente, no que era e no que será.

E o passeio, sai ou não sai, esse primeiro passeio com o ônibus?

A falta de cerveja interrompeu a conversa, prolífica, mas um pouco fora do objetivo


inicial. Pois que, o queríamos ver, eram os preparativos e planejamento para a próxima
excursão. Desta vez incluindo o ônibus, sem dúvida nenhuma. Seria o projeto de um
passeio em que ele fosse indispensável ou, no mínimo, muito importante. E certamente
não ficaria estacionado o tempo todo, teria que ser movimentado de tempos em tempos.
Nem seria também, uma viagem por estradas, pontos turísticos e cidades, como é feito
normalmente com um "motorhome". Pois não era esse o nosso modo de fazer passeios.
Uma vez que assim, não existiriam objetivos a serem alcançados, por nós mesmos, com
esforço próprio. Enfim, expectativa.

O Líder então, traz seus alfarrábios, cálculos e tabelas. E expõe a sua sugestão. Faz isso,
como se houvesse alternativas ou opções, a serem consideradas. Mas tudo já estava
predeterminado, e com pouca folga. Como bom líder que era, deixava acontecer a
discussão, envolvendo a todos. Os considerandos eram considerados e as contestações
contestadas. Dúvidas levantadas, perguntas, questionamentos, tudo era esmiuçado. Até
que a satisfação fosse total.

A impressão que ficava então, é que a idéia tinha sido de todos, mas na verdade diferia
muito pouco, da sugestão inicial apresentado pelo Líder. Sempre tinha sido assim.

É possível até que, uma vez ou outra, ele introduzisse alguns erros, mais ou menos
óbvios, em seu planejamento, pensadamente, intencionalmente. Que eram apontados
por nós imediatamente, durante a exposição. Aceitava então as correções, sem mais
delongas. Reforçava assim, que a idéia fosse de todos. E por isso mesmo, daria mais
certo, sempre. Sendo menos criticada também, se algo não corresse bem. Por esta e
outras coisas mais, era ele o líder. Sabia como fazer as coisas.

Mesmo os passeios mais simples, eram planejados cuidadosamente. Para ele, a parte
mais importante do acontecimento. E cuidava que o plano estabelecido fosse executado,
sem modificações. Pois ele era o líder!

De longe, era o que mais se dedicava, sob todos os aspectos, aos passeios que
fazíamos. Fazia aquisições, às vezes caríssimas, quando, após muito pensar, julgasse
ser de utilidade. E equipamentos existem, para todos os gostos e preços. Mas, de jeito
nenhum, fazia isso por ostentação, que desprezava veementemente.

O seu carro era velho, "com bastante experiência", dizia ele, pelos muitos quilômetros
que já tinha rodado. E era utilizado, quase que só, em nossos passeios. Normalmente ele
fazia as coisas que tinha que fazer a pé, de bicicleta ou de ônibus. Achava mais
interessante assim. Gostava de observar o entorno, a paisagem, as pessoas, pensar. E
tudo isto, dirigindo automóvel, não era possível fazer.

Poderia comprar, se quisesse, o mais caríssimo dos veículos, mas preferia viver
modestamente. Para ele, realmente ser e saber, eram mais importantes do que ter,
simplesmente.

Tinha recursos, muito mais que nós, tudo a custo de muito trabalho, mas o dinheiro não
era o objetivo final, como para a maioria é. Teve a sabedoria de fazer o que gosta, sendo
secundário o resultado financeiro.

Na verdade, todos nós achamos que iremos fazer isto algum dia. Achamos que, quando
tivermos o suficiente, iremos fazer apenas o que gostamos, usufruiremos o que foi
conquistado e então viveremos sossegados. Quase nunca acontece. A maioria não
alcança o objetivo estabelecido. Morrem antes. Ou contentam-se com menos. E morrem
frustrados.
A verdade é que o objetivo, desde pequenos, sempre nos foi colocado, como tendo que
ser um, impossível de ser alcançado. É o que nos diz a regra da sociedade civilizada. A
mola propulsora é tentar o inalcançável. O objetivo é o infinito, mais, mais e cada vez
mais. Neste caminho poderemos até, eventualmente, ser considerado como um sendo
um "bem sucedido". Entretanto, aquele que parar é um desistente, um fracassado, um
perdedor. Poucos conseguem se contrapor a essa lei e dizer: "Chega!", contrariando a
expectativa.

Contra eles voltar-se-ão, todos. Família, parentes e conhecidos os desprezarão. E


perderão os amigos. Amigos de interesses comuns, do poder, do prestígio e
admiradores de patrimônio, os abandonarão.

Este é, entretanto, o verdadeiro filtro, que deixa passar o trigo e retém o joio a escória e
as falsas amizades. Quem deixar de possuir o que tem, verá certamente, o que lhe resta:
Pouquíssimos amigos.

O Líder tinha conseguido isso, viver dessa maneira e o admirávamos por isso, apesar de
nenhum de nós ter a coragem de fazer o mesmo.

Quem sabe, afinal de contas, era ele, que nos unia, em nossos interesses comuns, já faz
tanto tempo. Fazendo com que levantássemos nosso traseiro, da cômoda poltrona de
fim de semana, e nos movimentássemos um pouco. Sim, era isso, ele era o elo comum!

Seria ótimo, se o mundo fosse guiado por líderes, semelhantemente ao que acontece em
nosso pequeno grupo. Líderes, escolhidos naturalmente. Um grupo escolhe seu líder e o
líder faz o grupo. O líder sendo conveniente ao grupo, sempre. Não sendo, perderá
adeptos e deixará de ser líder. Uma verdadeira democracia.

Sem normas pré-estabelecidas, sem imposição e sem regras. Sem leis nem limitações,
cujo destino é, cedo ou tarde, ficarem obsoletos. Regras dividem um grupo. Não
satisfazem a todos. Regras obrigam as pessoas a fazer ou deixar de fazer coisas. É
imposição. Tolhem a liberdade. E nunca é permitido furtar-se a elas. Criam insatisfeitos.

Regras tentam substituir o líder verdadeiro, por um "líder" qualquer. Que, pensando
bem, poderia até ser uma máquina. Uma vez alimentada com as regras, exerceria suas
funções, muito mais eficientemente até.

Entretanto aceita-se, só à força, ser guiado por uma máquina, ou um falso e


incompetente líder. Necessário torna-se então o judiciário, o castigo e a repressão. Para
obrigar as pessoas, a aceitarem o que não desejam.

Quando existem regras, alguns são beneficiados, em detrimento dos demais. Pois as
regras são discriminatórias, elitistas. Nunca foi diferente. Os falsos líderes beneficiam-
se. E o que os mantém no poder, são as regras, não a sua liderança. Regras são pois,
ferramentas de manipulação. Colocadas sempre como sendo úteis à totalidade, mas
invariavelmente, deturpadas.

As "democracias" sendo o mais claro exemplo disso. Escolhe-se um representante.


Este, no poder, não é obrigado a cumprir a representatividade. E não pode ser deposto.
Pois as regras não permitem que isso aconteça. As monarquias, semelhantemente.
Regras estabelecidas por Deus. Ser rei, dádiva divina. Rei não pode ser deposto, só
Deus pode fazer isso.
Líderes naturais, com nobres objetivos. É isso o que o mundo precisa.

E teria, se as coisas acontecessem naturalmente.

As sociedades, ditas "primitivas", são quase assim. As regras são mínimas. Verbais
apenas. Mutáveis. Adaptam-se assim com facilidade às coisas novas e não existe
contrariedade.

Mas é claro, os primitivos são primitivos, atrasados, bichos quase. E exterminá-los, é


quase um dever para os civilizados.

É mais fácil, seguir alguém, no qual acreditamos, do que ter que repensar, avaliar e
criticar tudo, nós mesmos, individualmente. Pois temos deficiências, cometemos erros,
somos influenciados irracionalmente e julgamos as coisas, incorretamente. Somos
incapazes e ignorantes, quase todos. Temos que delegar, queiramos ou não, pois a
maioria, a coletividade, é medíocre.

Temos que acreditar, naqueles que são melhores que nós. Ter fé, simplesmente, sem
compreender. Temos que acreditar em coisas incríveis, na teoria da relatividade, na
teoria dos quantas. Mesmo que a poucos, é dado entender o seu significado. Para as
pessoas comuns, mais semelhantes a deslavadas mentiras.

Temos que acreditar, assim como fazem os que seguem uma religião qualquer. Sem
provas. Apenas pela força da fé. É mais fácil assim. Torna-se possível aceitar o
incompreensível.

Somos especialistas em alguma especialidade, e no resto temos que ser crédulos.

E temos incrível capacidade, neste aspecto, no acreditar sem compreender.


Acreditamos, por força da fé, em qualquer coisa. Por convicção, sem argumentar.
Mesmo contrariamente à nossa formação, ao que nos foi ensinado por décadas. De
algum modo encontramos os meios, para apaziguar os conflitos. E vivemos melhor
assim. Unimos o lógico ao ilógico e construímos a nossa estrutura de credibilidade.

Que não é universal, não é igual para todos. São diferentes os conceitos e os grupos.
Depende até de modismos. O que vale hoje, amanhã pode mudar.

Mas atuamos sempre, como se fossem verdades irrefutáveis. Contra tudo e contra
todos, se for o caso. A fé, cega que é, nos dá força. Irracional, na maioria das vezes.

Remove montanhas, realmente. Imaginárias montanhas, a maioria, criadas por nós


mesmos. A fé as remove. Até montanhas reais, de argila e pedra, são removidas por ela.
Consegue-se, pela força da fé, fazer com que pessoas e máquinas, executem esse
trabalho mecânico. Impossível, se fossemos executar isso solitariamente, ou
desprovidos da fé, que nos possibilita convencer os outros, a fazê-lo por nós.

A fé faz abdicar até, o que existe de mais precioso: A própria vida.

Colaborador ideal, esse que acredita. Melhor, impossível.

Os líderes, os naturalmente líderes, precisam de crédulos assim, muito mais do que de


pensadores. Que poderiam criticar sua liderança.
E andorinhas juntas, fazem o verão acontecer.

Povo, só ele, é massa uniforme e disforme. É quase nada.

Juntos, liderados e líderes, removem montanhas.

Ser líder é ser escolhido como tal, voluntariamente pelos demais. Só assim acontece um
líder. Cabe a ele, descobrir os segredos, os meios, o como fazer, para ser escolhido.
Quando então terá seguidores, movidos pela onipotente fé.

O líder deve ser um deus. E adorado como tal. Deverá ser humano também. Para que os
liderados identifiquem-se com ele.

E os guiará então, para onde bem desejar, sem ser contrariado. Com a força da fé,
onipotente.

Com sabedoria, para êxito do objetivo maior, que é maior até do que o desejo dos
liderados.

Pois, a vontade de um povo pode ser real e verdadeira mas, nesta sociedade a que
estamos acostumados, não é sábia. É egoísta, mesquinha e imediatista. Os anseios da
população, se atendidos fossem, mundialmente, em tudo aquilo que é desejado,
destruiria o mundo, rapidamente. Não existiria planeta Terra, em suficiência.

Com as ferramentas que o homem desenvolveu, poderia ser disponibilizado a todos,


tudo aquilo, que apenas poucos possuem. Mas o planeta seria insuficiente.

A vontade do povo não é pois, soberana. Não pode ser este, o objetivo. Irrealizável que
é.

A vontade, simplesmente, não pode ser satisfeita. Não para todos e, por extensão, por
justiça social, nem para poucos também!

As necessidades sim teriam que ser observadas. As poucas coisas que na verdade
todos desejam, mesmos os não humanos. Viver, principalmente isso.

O líder deveria ter essa sabedoria.

Um líder, como em nosso pequeno grupo, deve levar ao bom término, o


empreendimento. No nosso caso, o sucesso de um passeio.

Para povos e nações, o objetivo da liderança, deveria ser a vida, a sobrevivência, a


coexistência dos seres vivos. Em longo prazo. Muito mais, que apenas míseros milhares
de anos.

Nunca a liderança poderia produzir o egoísmo, a segregação, a destruição dos bens e da


natureza, como vem acontecendo.

O que significa que até agora não tivemos líderes, verdadeiros. E isso está destruindo o
mundo.
Soubemos controlar a matéria e as leis físicas, mas não soubemos produzir líderes, reais
ou imaginados, deuses ou humanos, que nos garantisse a eternidade sobre a face da
Terra.
6 - O FIM

Os objetivos humanos deveriam ser nobres e as normas básicas da vida deveriam ser
obedecidas. Pois, apesar de sermos quase deuses, ainda não chegamos lá. Não somos
Deus, totalmente.

Estamos ainda, na fase de auto-afirmação. Por enquanto, estamos preocupados, em


mostrar aos demais seres vivos, quem é que manda, de verdade. Arco e flecha, armas de
fogo, antibióticos, inseticidas, alterações genéticas. Tudo, apenas ferramentas de força,
imposição e dominação.

Se a vida nos contraria a destruímos, a ferro e fogo, fisicamente, quimicamente,


biologicamente, geneticamente. É o castigo que damos, por não sermos obedecidos. É o
que sabemos fazer, quase já, com perfeição. É nossa especialidade. Sabemos matar, uns
aos outros, e matar a natureza.

Procuramos ardilosamente, descobrir as tramas urdidas pela vida, que faz com que os
seres vivos, permaneçam vivos. Para então poder matá-los. É assim que combatemos
vírus, fungos, bactérias e curamos as doenças. Tanto a vida microscópica como a de
maior porte é estudada sob este aspecto para que melhor possa ser dominada, e servir
ao homem em seus propósitos.

Pouco sabemos porém, como manter vivos, todos os seres vivos.

Isto não sabemos e também não nos preocupa. Nem é nosso objetivo, ainda. Mesmo
cientes, que sem eles, sem a vida que estamos destruindo, também pereceremos.

O ser humano nunca foi muito diferente dos demais seres vivos. Temos as mesmas
ligações químicas. Se espremermos um humano, sairão dele as mesmas substâncias,
grosso modo. Os códigos genéticos são parecidos. Nosso comportamento é
semelhante. Somos tão egoístas e desprezamos a natureza, como fazem os demais
seres vivos. Fazemos parte dela e como eles, estamos invariavelmente sujeitos às
mesmas leis e regras.

Não nos preocupamos com a natureza, assim como os demais seres vivos nunca
fizeram isso. Nós conquistamos porém, aliados únicos e inéditos: O fabrico de
ferramentas, a energia, as máquinas, os conhecimentos. Nos tornamos conquistadores,
dominadores e especialistas em destruir o nosso adversário. E a natureza, que sempre
foi vigorosa e persistente, está cedendo. Os demais seres vivos estão se tornando
ausentes. As espécies estão extinguindo devido à nossa atuação, predatória e
dominadora.

Decidimos escolher algumas espécies a serem preservadas e incentivadas. Fica claro


então, a enorme dificuldade que é isso, manter vivo um ser vivo. Alguns deles
conseguimos. Promovemos sua vida, pois nos retornam lucro. Descobrimos como
reproduzi-los, guardamos suas sementes, sêmen e os clonamos. Alteramos suas
características por seleção genética e engenharia genética. Descobrimos qual o
ambiente favorável, damos a eles alimentos e fazemos com que cresçam rapidamente.
Empenho enorme, bastante trabalhoso, mas compensador, pois retornam o que
desejamos.

E outros não conseguimos, nem tentamos direito. Pandas, um dos protegidos sem
interesse econômico, recusa-se a procriar em cativeiro. A maioria dos bichos selvagens
faz isso, desistem da procriação, abandonam a vida. Como influenciar este
comportamento? Que genes regem essa incompreensível característica?

Para tranqüilizar nossa consciência fingimos estar preocupado com algumas poucas
espécies, escolhidas a dedo. As mais simpáticas e bonitinhas. Baleias e tartarugas
marinhas, estudá-las minuciosamente, é o que fazemos, com enorme empenho e
recursos, para que não se extingam.

Entretanto, milhões de espécies, nem chegamos a conhecer. O que as protegerá?

Matar é fácil, facílimo. Um machado, melhor ainda, moto-serra, faz isso em minutos.

Manter viva uma árvore, é milhares de vezes mais difícil, trabalhoso e demorado.

Estamos, na verdade, longe, muito longe ainda, de ser Deus.

Mas comportamo-nos como se já fôssemos. Nossa vontade é soberana. À nossa


vontade, tudo deve ficar de joelhos. Ou morrer.

Atuamos como se fôssemos Deus. Mesmo assim, achamos que algum milagre divino, de
algum deus desconhecido, nos irá tirar da enrascada, em que estamos nos metendo.

Temos fé nisso. Acreditamos que o mundo não será destruído por nós, como tudo indica
que vai acontecer. Temos fé que alguma coisa acontecerá e seremos salvos,
milagrosamente. No último instante, confiamos nisso. E ficamos despreocupados.

O farfalhar de folhas pelo vento, está sendo substituído por furacões do deserto. Mas
não tomamos consciência disso. Pois acontece gradualmente, lento demais para que
possamos perceber e ficar alarmados. Cinqüenta anos. Nesse prazo esquecemos o que
foi. Nossa memória é curta demais.

Gota d’água no oceano da natureza, para nós passos de tartaruga. Quinhentos nos atrás
então, passado distante, que nunca existiu. Que, já há muito tempo, não move moinho.

A enorme transformação acontecida nos últimos quinhentos anos, não preocupa.

Nem a de cem anos, quando a mata atlântica, em boa parte, ainda existia. Nem a de vinte
anos, quando o cerrado ainda estava, quase intacto.

Nossa memória é curta. Pensamos no presente, no hoje, no já, agora.

Um por cento da araucária angustifolia, o pinheiro paranaense. É o que resta dessa


maravilhosa árvore. Poderíamos imaginar que certamente, esse um por cento será
preservado, para que essa bela e utilíssima árvore, não se extinga. Todos concordam
com isso, é mais que razoável, que assim seja. Pois, é apenas, mísero um por cento.
Impossível pois, não concordar com isso.
Todos? Não! Justamente aqueles, que mais deveriam fazer isso, discordam.
Interessados estão, que essa ínfima parte, também seja derrubada. São os que têm a
propriedade dos poucos pinheirais remanescentes. Querem a renda desse patrimônio,
que é seu. Mas até os que têm apenas um pinheiro em seu terreno, querem que ele seja
derrubado. Os galhos que caem, em um vento mais forte, poderiam danificar alguma
coisa. O vizinho reclama da sujeira no seu quintal. Querem construir sua casa, mas o
pinheiro está atrapalhando.

Estas pessoas não concordam com isso. Com muito motivo até, pois para eles, é
questão de poder viver e à vezes até, de sobreviver.

Obriga-se a eles, o ônus da preservação, cuidar daquilo, que os outros não cuidaram.

Por que não, os que derrubaram os noventa e nove por cento, não têm eles, essa
responsabilidade? Ora eles, não é mais possível, serem identificados. Fizeram isso
também, quando a floresta era apenas riqueza a ser explorada, e muitas vezes até,
apenas um empecilho. Estorvo a ser tirado do caminho.

Fizeram autorizados, bem ou mal autorizados. E não existia então, preocupação


nenhuma quanto ao assunto. Não erraram pois, os que assim procederam. Estavam
colaborando com o progresso. Não podem ser responsabilizados.

O governo então, deveria assumir esse compromisso, já que autorizou a derrubada. Mas,
é claro, nunca será disponibilizada verba, nesta finalidade. Outras coisas, milhares, são
prioritárias.

Assim nada mais resta, que fazer leis, proibindo os proprietários a utilizar-se do que é
seu. E torná-los fiéis depositários. Obrigar raposas a cuidar do galinheiro.

Um por cento, pouquíssimo perante o todo, ínfimo irrisório, mas certamente muito, para
cada proprietário individualmente. Exige-se deles, que abdiquem seu muito, em
benefício do pouco de todos. É claro que tentarão, incessantemente, legalmente e
também ilegalmente, obter renda desse patrimônio, que é seu, por direito, ou eliminar o
atrapalho que é a única árvore no seu terreno. E conseguirão, cedo ou tarde, não tem
como ser diferente.

Vemos isso diariamente. Em todos os lugares os pinheiros estão ficando menos. Nada
aparentemente alarmante, devagarzinho, mas inexoravelmente.

As pessoas deveriam ser beneficiadas ao manter em pé um pinheiro. Deixar um pinheiro


crescer deveria representar um ganho e não um prejuízo. Mas de onde virá este
benefício?

O sistema não foi montado dessa maneira. Assim um pequeno pinheiro que nasce e luta
para crescer, será ceifado, para que não engrandeça o problema. A proibição de se
derrubar pinheiros tem pois, como conseqüência que ninguém, ninguém mesmo, irá
plantá-los. Ou deixar que cresçam, se nascerem por si só. Garantindo a sua extinção.

Assim as castanheiras no Norte do país. Não estão sendo preservadas. E todas as


outras espécies, animais e vegetais, mundialmente. Não existe como impedir, o rolo
compressor que é o ser humano moderno, culto e civilizado. Que pensa exclusivamente
no agora, como se estivesse a morrer, pressionado por um perigo fatal iminente. Com
isso destinando à morte, não ele mesmo, mas o futuro.
Esse pequeno um por cento de pinheiros desaparecerá. Não existe como impedir,
fatalidade. Coisas da vida, ou melhor, da morte. E nada pode ser feito, pois somos
míopes. E para essa doença, não existe cura.

Vivemos horizontalmente. Nosso ambiente é o solo, o piso, a terra. Excepcionalmente


saímos dele. Metros apenas, nos edifícios, e por pouco tempo nas alturas, viajando de
avião. As profundidades, também não são nosso ambiente. Cavernas, só as visitamos de
vez em quando, nas minas, nas minerações subterrâneas, são ambientes hostis, só
permanecemos o inevitável. Mergulhos, apenas por curtíssimo tempo. Somos terrestres,
pertencemos à superfície.

Dez mil metros de altitude ou de profundidade, para nós, é enormidade. Mas o que são
dez quilômetros? Em duas horas percorremos a pé esse trecho, e com automóvel, em
alguns minutos. Quem possui um automóvel, logo vê seu odômetro atingir os quarenta
mil quilômetros. E nem nos tocamos, que com isso percorremos o equivalente, a uma
volta completa na Terra. Quase sem sair, da própria cidade em que vivemos.

Medimos as distâncias horizontais em quilômetros e as verticais, em metros. Dez mil


metros porém, são apenas dez quilômetros.

A espessura da camada gasosa, que envolve o globo, é indeterminada, mas a oito mil
metros de altitude, míseros oito quilômetros, quase não existe mais vida. Difícil o
respirar nessa altitude.

A atmosfera pois, que nos parece infinitamente grande, não é. É apenas delgada película
que cobre o planeta. Finíssima camada, que abriga boa parte da vida que conhecemos.

Sua composição, nitrogênio e oxigênio, nem sempre foi a mesma. Mas assim como é
atualmente, é essencial à vida. Foi a vida que construiu a sua composição. É a vida
vegetal que fornece o oxigênio que possui. Vegetais terrestres e os aquáticos, as algas e
o fitoplâncton.

Se enfileirarmos os automóveis, encostando uns nos outros, daremos muitíssimas


voltas, em todo o planeta. Cada um deles, um consumidor de combustível. Que prende o
oxigênio, na forma de dióxido de carbono. Causador, junto com outros gases gerados
pelo ser humano, de efeito estufa.

É um problema, sabemos disso. Que esperamos, seja resolvido pelos vegetais. Que
estamos destruindo, pelo desmatamento, queimadas, poluição atmosférica e poluição da
água.

Estamos forçando, em poucas centenas de anos, a mudança da atmosfera, que


permaneceu inalterada, por milhões de anos. E fazemos isso conscientemente. Sabemos
o que estamos fazendo. Somos inteligentes, percebemos isso, não somos ignorantes.

As cidades, observadas do espaço, em seu colorido, assemelham-se a regiões áridas. E


é o que são, áridas, desprovidas de qualquer vegetação. Desertos artificiais, criados pelo
homem. E crescem, sem parar. Como cânceres. Proliferam, incessantemente. Criam
metástases.

Cânceres, que matarão a Terra.

Mas, não enxergamos isso, somos formigas. O céu continua sendo infinito e o mar
extremamente profundo. Somos míopes no tempo e míopes na dimensão das coisas.
Incuravelmente míopes.

Nesta cegueira toda, como vai ser a vida, o que acontecerá em digamos, cem anos?

Boa pergunta. Um século atrás não sabíamos o mundo de hoje. Podíamos apenas
adivinhar.

Do mesmo modo, não sabemos como vão ser as coisas, daqui a cem anos. Não
sabemos, nem provavelmente nossos filhos saberão. Nem cientistas, dotados de mentes
de supercomputador, utilizando supercomputadores de mentes quase humanas, podem
prever coisas assim.

Temos uma idéia do que vai acontecer, mas não sabemos se, quando, nem quanto. Pois
o futuro somos nós que fazemos, pelo menos em parte. E somos imprevisíveis. O que irá
acontecer amanhã, ou em cem anos, depende de nós. E o que fazemos hoje, podemos
deixar de fazer amanhã.

Prever o futuro é um tiro no escuro, adivinhação. As previsões que dão certo são
aquelas encontradas em romances e ficção assim como Júlio Verne, ou em falas
enigmáticas e metáforas, como Nostradamus e a Bíblia. Acertam sempre, duvidosas que
são.

Mas saber mesmo, o que vai acontecer, o futuro, não sabemos.

Mesmo assim, como seriam as coisas daqui a cem anos?

Podemos afirmar que irá faltar a maioria dos produtos derivados de petróleo e gás
natural. Inclusive o carvão será escasso. Vai diminuir consideravelmente a
disponibilidade de água potável. A temperatura ambiente e dos oceanos pode ser que
suba vários graus centígrados. A tecnologia substituirá quase totalmente a mão de obra
humana. A poluição da água, terra e atmosfera atingirão níveis insuportáveis. Os
recursos animais, vegetais e minerais estarão quase exauridos.

Chega, já é mais que suficiente, de pessimismo.

Os tempos de vacas gordas da humanidade estão chegando ao fim. O que determina


isso vai ser a escassez de recursos, sem os quais não podemos viver. Atingimos o
Olimpo e nos tornamos quase deuses. Mas não existe como impedir a queda. Que nos
levará às profundezas de Hades.

Os recursos mais importantes, já em sua maior parte nas mãos de pouquíssimas


pessoas, vão ter os seus preços aumentados espetacularmente devido à escassez que
vai acontecer. Como já está acontecendo com o petróleo. Tornarão seus proprietários
imensuravelmente mais ricos e poderosos. Para estes a catástrofe que se avizinha será
extremamente benéfica. E sem dúvida farão tudo e qualquer coisa para que essa
escassez não deixe de acontecer.

Assim como os diamantes são raros, extremamente raros. Uma raridade que foi
construída artificialmente. Para enriquecer os que lidam com eles, detentores dos
monopólios do diamante.
Em 1859 foi perfurado o primeiro poço de petróleo. Uns cento e cinqüenta anos atrás.

Em breve esta fonte de energia estará esgotada, mundialmente. Não existindo substituto,
o que acontecerá?

O benefício do petróleo é o transporte, muito mais de mercadorias do que de pessoas.


Mas, importantíssimo mesmo, é a movimentação de máquinas agrícolas e barcos de
pesca, pois significa alimentos. Significa também boa parte do aquecimento de prédios e
residências, nos lugares frios.

Grande parte da geração de energia elétrica, que movimenta cidades e indústrias,


provém de combustíveis fósseis. A falta dessa energia portátil é o primeiro passo, para o
fim do mundo. Fim do mundo organizado e civilizado que conhecemos.

Que nem é tão civilizado nem organizado, assim como gostamos de afirmar.

A água, importantíssima, só é sentida, quando faz falta. Uma semana e estamos mortos
de sede. Mas em sua abundância, nem ligamos para a sua existência. Fala-se que o
próximo problema a ser enfrentado pela humanidade é a água. Isto significa que sua
falta, já está se fazendo sentir.

É o "produto" mais utilizado pelo homem. Quinze mil litros per capita, diariamente, é o
necessário para os processos industriais, limpeza, irrigação e outras finalidades. É o que
indiretamente consumimos de água, cada um de nós. Gastamos trezentos litros diários,
em nossas residências, por pessoa, o mínimo recomendado sendo cento e cinqüenta
litros. Cinco litros o indispensável absoluto, para não morrer de sede, já semana que
vem.

A água nunca deixará de existir, é claro. O problema vai ser a dificuldade em obtê-la
limpa e potável, para irrigação, dessedentação de homens e animais, a custo reduzido,
ou seja, com pouco empenho, nos locais em que dela se necessita. Tratar esgotos e
efluentes, despoluir rios e lagos, dessalgar água do mar, bombear por longas distâncias,
nada disso é impossível. A água pode sempre ser recuperada. Requer entretanto,
recursos imensos, materiais, mão de obra e energia.

Quanto mais difícil for sua obtenção, menor será a disponibilidade. E pior a vida.

Aparentemente está acontecendo um aquecimento global, numa velocidade incrível, sem


precedentes. Se isso for verdadeiro, a causa só pode ser a atuação do homem nos
últimos séculos. Naturalmente, por si só, não aconteceria. Não de modo a provocar
extinção em massa como dizem que vai existir, se o planeta aquecer repentinamente.

Existem fortes indícios, que o ser humano, é parte importante nesse processo. Altera-se
com isso, o clima, a regularidade dos ventos e das chuvas.

Mas, importante mesmo, é que esse aquecimento está sendo muito rápido. Rápido
demais, para que a vida selvagem possa se adaptar. A migração de espécies é lenta e
tem que ser feita gradualmente. Se não, simplesmente, deixarão de existir.
Derretendo a Antártida, Groelândia e as geleiras, o nível dos oceanos subirá. Destruindo
mangues e corais, berçários da vida marinha. Tornando a Terra menor ainda, do que já é,
significativamente. Destruindo patrimônio dos homens, que terá que ser reconstruído, à
custa de mais e mais natureza.

A tecnologia, cada vez mais inteligente e racional, está dispensando a mão de obra
humana. O trabalho humano está se tornando secundário, na obtenção de produtos,
sejam eles materiais ou intelectuais. Tudo que é rotineiro é passível de ser substituído
pela máquina. Cada vez mais a automação, a robotização, a informatização, está tirando
o emprego das pessoas. E não existe como evitar isso. Irracional seria até, não fazê-lo.

O sistema atual, que é trabalhar como empregado para viver deixará de existir.

Os ambientes estão sendo contaminados. A água, a terra, o ar. Dejetos industriais e


humanos estão empurrando a vida para os espaços ainda não degradados. Que estão
sumindo. A vida na Terra está desaparecendo, cada vez mais.

Os recursos ficarão cada vez mais difíceis de serem obtidos. Mesmo os renováveis
serão insuficientes. As áreas cultiváveis, não darão mais conta do recado. Se antes
existia o desperdício, no futuro, nem mesmo sendo extremamente racional, deixará de
existir carência.

A humanidade continua crescendo, como fazem todos os seres vivos quando as


condições são favoráveis. Até que se esgotem os recursos. Então a população mundial
estagnará e acontecerá a regressão. Mas não será um processo indolor, pelo contrário,
extremamente traumático. Com todos os sintomas que uma superpopulação apresenta.
Que é a pior forma de extermínio.

Acontecerá como provavelmente foi, na ilha da Páscoa. Fome, fome e mais fome.

Canibalismo, sendo o último e desesperado recurso.

A superpopulação já é um fato. Explosão silenciosa que não pode mais ser contida.

Existiram propostas neste sentido. E ainda trabalha-se nisso, através da legalização de


abortos, esterilização das pessoas, eutanásia, anticoncepcionais, incentivo à
homossexualidade, movimentos feministas, por meio da desagregação familiar, do
combate aos conceitos religiosos etc. Mas é uma guerra que já está perdida.

É um empreendimento sem perspectiva de sucesso, querer que as pessoas abdiquem do


instinto de preservação da espécie, do ato sexual. E, além disso, Deus disse: "Crescei e
multiplicai". Como mudar tudo isso, no exíguo tempo que resta?

Nós, como qualquer vida, proliferamos quando as condições são favoráveis, e deixamos
de procriar em condições adversas. Tanto é que a quantidade de filhos que cada mulher
tem atualmente está reduzindo-se significativamente. Bem diferente, uma centena de
anos atrás. Quando ter muitos filhos era vantajoso.

Infelizmente, todas as propostas de controle demográfico são e foram sempre resolver o


problema, não melhorando o mundo para todas as pessoas, mas sim tendo em vista
apenas a preservação dos interesses de grupos privilegiados.

Nada mais que a continuação da dominação de poucos sobre muitos. Para que a estes
grupos, não faltem os recursos naturais. Para que eles possam continuar, sem
empecilhos, o seu modo perdulário de vida.

Os pobres, já que são muitos e dispõe de poucos recursos, devem abster-se também de
ter filhos. É o mais lógico, dizem os ricos. Os pobres não devem ter filhos, já que não os
podem sustentar. Mesmo aqueles que habitam extensas áreas com pouquíssima
população. Como é o caso na Amazônia. Mesmo lá os pobres deveriam abster-se de ter
filhos, pois são pobres.

São os pobres pois, que devem resolver o problema da superpopulação mundial. E, se


fizerem isso o que receberão em troca? Nada. Sua recompensa vai ser, não ficarem mais
pobres ainda, do que já são. Poderão continuar sendo pobres e viver na pobreza,
normalmente. Os ricos por sua vez, não precisam restringir-se, podem ter quantos filhos
quiserem. Pois são poucos, e os podem sustentar, folgadamente.

É claro que atuar assim é egoísmo, discriminação. E como desta maneira as coisas não
se resolverão, restará a violência a força. E a fome. A morte, o espectro com a foice será
protagonista, a resolver este problema.

Mas a vida não se extinguirá totalmente, talvez nem o homem desapareça. Acontecerá
porém, uma profunda alteração nas espécies. Será uma extinção em massa sem
precedentes. A vida continuará, de outra forma. A partir de um novo começo. Para a vida
na Terra um piscar de olhos apenas.

Extinção em massa essa, que será um inexplicável acontecimento, para futuros


estudiosos. Se acontecer, existirem novamente estudiosos.

Sem querer acertar nas previsões, como poderiam ser as sociedades, no futuro?

Certamente muito semelhante à atual, nada mais que uma continuação dela, com
algumas diferenças importantes. Não existirão mais Estados, no sentido territorial ou
organizacional.

Obedecendo à carência de recursos e de energia, deverá acontecer uma estratificação


da sociedade, que já está se delineando, mundialmente. Já faz muito tempo até.
Pequenos feudos, poderosíssimos, extremamente bem protegidos, cercados por
multidões que nada possuem. Certamente será assim. Pequena quantidade de gente terá
tudo que os riquíssimos de agora possuem e muito mais até, dada a evolução da
tecnologia. E do outro lado, multidões enormes, que nada têm. Nem o mínimo
necessário à vida.
Era o Líder que falava assim. Era a opinião dele que estávamos escutando.

A produção de bens, extremamente eficiente e automatizada estará voltada para os ricos


exclusivamente. Só produzirá o que os ricos necessitam. Pois os pobres, cada vez mais
desempregados, cada vez menos competitivos e com cada vez menor poder aquisitivo,
deixarão de ser importantes comercialmente. Nem alimentos mais poderão comprar,
pois não possuem dinheiro, absolutamente nenhum. Sua mão de obra sendo totalmente
desnecessária. Não possuindo nada a oferecer, em troca daquilo que necessitam.

Assim como, já atualmente, não existe quase mercado para os que nada têm. Moradores
de rua, sem teto e sem terra, os extremamente pobres, o que compram eles, o que
poderiam eles comprar? Quase nada. Não existe pois, motivação para produzir o que
lhes é necessário.

Os produtos baratos, que custam atualmente, quase que centavos a tonelada, soja,
cimento e centenas de outros mais, ficarão sem compradores. Não porque as pessoas
não os necessitam, mas sim porque simplesmente não podem pagar. A sua produção
reduzir-se-á e atenderão, a preços bem mais elevados, apenas aos ricos.

Estas mudanças acontecerão gradualmente num tempo mais ou menos curto, à medida
que as pessoas percam seus empregos e o seu poder de compra fique reduzido a nada.
As empresas então mudarão de atividade e muitas falirão, acelerando o processo.

Hoje, os que quase nada têm, alguns poucos, ainda estão sendo amparados pelo Estado.
Mas acontecerá cada vez mais precariamente e com cada vez menos boa vontade. Trinta
por cento da população brasileira é paupérrima e deveria ser amparada pelo Estado. Que
faz isto precariamente, e fará cada vez menos. E não adianta lutar por isso. Em breve
serão noventa por cento os miseráveis. E mais até.

A porcentagem dos escolhidos, dos poucos riquíssimos, será determinada pelos


recursos disponíveis mundialmente. Energia, matérias primas e áreas férteis, tudo isso
deverá existir em abundância, para esses pouquíssimos, exclusivamente para eles. É
isso que determinará quantos serão. E o mundo poderá continuar seu curso
normalmente, dessa forma. Mas apenas para os escolhidos.

A igualdade entre as pessoas, que nunca verdadeiramente existiu, deixará de ser


totalmente, mesmo na teoria. Nem mais no papel, as pessoas serão iguais.

Será uma dicotomia, como nunca existiu na Terra. Poucos ricos e muitíssimos
paupérrimos. De fato e por lei. Na verdade, nada mais que uma continuação do que, já
faz algum tempo, vem acontecendo.

A porcentagem de ricos será ínfima, décimo ou centésimo de um por cento da população


mundial. Serão detentores, dos importantes recursos, que proporcionam o bem estar à
vida do rico.

Morrerão bilhões. Em termos biológicos, uma catástrofe. Acontecerá o gargalo genético


que poderia no futuro, determinar até a própria extinção da espécie humana.

Entretanto, com esse genocídio, não haverá mais falta de recursos. Pois a quantidade
das pessoas a utilizar-se deles, será extremamente reduzida. Assim como são poucos,
os riquíssimos que existem atualmente.
Petróleo e seus derivados, energia, alimentos, metais e materiais, lixo, poluição, tudo
deixará de ser um problema. Para os ricos. Que terão tudo em abundância.

Mas, homem, o que estás a dizer!

Não é possível separar o homem em duas classes tão distintas assim. Como fazer
distinção, separar, se a espécie é única? Os genes são idênticos. Como dizer quem
pertence a qual lado, de antemão, uns tendo direitos quase que ilimitadamente ou outros
simplesmente nada? Qual o argumento para fazer essa distinção?

Claro não é fácil, mas sempre foi feito isso. A cor da pele sendo argumento. A religião
outro. A superioridade intelectual, a ascendência, ideologias, linguagem, linhagem,
costumes, tradições, desígnios divinos. Sábios e leigos, senhores e escravos, nobres e
servos, religiosos e hereges, escolhidos e não escolhidos. Sempre foi feito isso, sem
real argumento, é claro. Mas sempre foi feito.

Entretanto, o que era escolha, arbitrariedade, deixará de ser. Será imposição da falta de
recursos. Os ricos, não mais serão ricos, porque isso lhes convém ou lhes é de gosto,
mas sim por necessidade. Impiedosa necessidade que lhes ditará que os recursos
devem ser sua propriedade, exclusivamente.

Não será mais o poder, a grande mola mestra do egoísmo humano, e sim a
sobrevivência. Como sempre fizeram os bichos em situações extremas. Pois os recursos
estão ficando escassos.

E não existe mais nenhuma América ou África a ser desbravada. O mundo em que
vivemos, é limitado. E só reservando para si, o que ainda existe, permitirá a
sobrevivência.

Impossível a sobrevivência de todos. Será então, apenas a sobrevivência de poucos que


vai acontecer.

A grande força do trabalhador, em outras épocas explorado também terrivelmente, era a


sua mão de obra, imprescindível. Os que dela se aproveitavam, tinham que obtê-la, seja
por persuasão, seja pela força. Mas necessitavam dela. E com isso, tinham que ceder um
pouco. Pelo menos, para manter vivos, aqueles que forneciam a eles, o trabalho que
desejavam.

Entretanto as máquinas substituíram o esforço humano, tanto braçal como o intelectual.


E farão isso cada vez mais. Tornaram as pessoas dispensáveis. Elas deixaram de
possuir o seu mais forte argumento: A sua força de trabalho. E com isso perderam o
direito à vida.

O Estado existe atualmente, apenas na finalidade de por meio de impostos e outros


mais, retirar recursos da população, que é ainda economicamente importante. E então
transferi-los para os ricos. Separando as sociedades. Os ricos ficando mais ricos e os
pobres, mais pobres. É a tendência mundial.

Mesmo nos países, que ainda oferecem benefícios sociais significativos para a maioria,
tenderão para essa dicotomia. Ditada pela disponibilidade de recursos materiais e
energia. Dobrar-se-ão a essa força. Que não é imposta pelo homem e sim pela
exigüidade dos recursos.

Nos países que ainda têm alguma igualdade social, este processo será mais demorado e
a reação à mudança será maior. Sendo os meios de comunicações, a televisão, revistas
e jornais as ferramentas, para que terminem aceitando a idéia da redução de seus
direitos.

Acelerar-se-á assim que, por exemplo, faltar energia. Esta, imediatamente, será
canalizada para os escolhidos, e os demais ficarão sem. As interrupções no
fornecimento serão cada vez mais freqüentes e os preços aumentarão terrivelmente,
exaurindo os recursos das pessoas. Abdicarão do automóvel e supérfluos. Depois das
outras coisas, tornando-se pobres. E o consumo de energia e produtos cairá, por falta de
compradores.

Mas nunca faltará para os ricos, nem para a produção daquilo que os ricos consomem.

Nesse proceder, o próprio Estado enfraquecer-se-á. Ficará cada vez mais impotente,
pois arrecadará cada vez menos de uma população, que nada mais tem para dar. Sugará
até a última gota o seu sangue, e isto determinará também, a sua própria morte.

Para honrar seus compromissos, as dívidas assumidas, o Estado desmantela sua


estrutura, terceiriza, perdendo mais arrecadação. E privatiza sem que isso traga
benefícios.

O Estado, simplesmente, deixará de ser. Deixará de existir.

Deixará de ter o controle sobre as pessoas, individualmente. Que já não interessam


mais, pois nada mais tem a oferecer. O Estado perderá noção de quantos são e quem
são. Deixarão de ser registrados os nascimentos e óbitos. As pessoas, elas mesmas,
não poderão pagar o que lhes será cobrado por esse serviço. E o Estado não terá
recursos. E as leis que obrigam, serão inúteis.

Todas as leis serão inúteis. Custará excessivamente fazer com que sejam cumpridas e
não será possível aprisionar ou castigar todos os infratores. Leis inúteis, para qualquer
tipo de crime ou contravenção.

O controle das pessoas será feito genericamente, por monitoramento. Satélites, e


câmaras espalhadas em pontos estratégicos. Controlarão as pessoas assim como é
controlado o gado nos pastos, a vegetação, o clima e os animais selvagens. Sem nomes.
Assim como controlam as queimadas. Os focos de incêndios sociais serão identificados
e extintos, não pela água, mas pelo fogo das armas. Cortando o mal pela raiz.
Os potencialmente criminosos e os mais perigosos serão marcados, com um chip
introduzido em seu organismo. Provavelmente nem saberão que isso tenha sido feito e
será impossível removê-lo. Serão acompanhados amiúde, espionados por
supercomputadores. Serão espiões involuntários. É assim que acontecerá o controle da
turba. O castigo dos infratores será sempre a morte, que acontecerá com extrema
facilidade, sem critérios de justiça ou legalidade. É menos custosa e irretratavelmente
definitiva.

Para os pobres a vida será terra sem lei. Como já é praticamente nas favelas, por
exemplo. Mas isso será considerado sem importância, secundário, desde que os ricos
não sejam afetados. Enquanto ainda houver recursos, será atribuição do Estado atuar
assim. E depois dos ricos. Exaurido o Estado, os ricos, eles mesmos farão a sua
segurança. E farão isso ao seu modo.

Habitação, saúde pública, educação, saneamento, transporte público, estradas,


alimentação, segurança, nada disso o Estado faz satisfatoriamente, já hoje em dia. E
abandonará de vez, pois, sem recursos, mesmo que quisesse, não poderia.

E o que quase não existe, deixará de existir totalmente. Inclusive nas leis. A população
sem recursos, não será mais atribuição do Estado, nem nas aparências. Somente terão
direitos aqueles que podem pagar. A minoria, os ricos. E para estes o Estado é
desnecessário, indesejável até.

O Estado então, já terá exercido sua função, que é promover a profunda separação entre
ricos e pobres, e será extinto.

Os ricos serão pouquíssimos. Mas não serão eles a fazer as coisas e sim as máquinas.
Que devem ser projetadas, construídas operadas e mantidas. As indústrias devem
produzir e ficar cada vez melhores. A medicina deve progredir e curar doenças.

Existirá pois, gente capaz de realizar estas tarefas. Gente inteligente competente criativa
estudada, trabalhadora. Que terão suas escolas, universidades, farão pesquisas e
experimentos. Em todas as áreas. Trabalharão para os ricos. Serão eles que
proporcionarão aos ricos, os meios de obterem e manterem as suas riquezas,
longevidade, saúde e divertimento.

Subespécie humana, extremamente especializada. Desde a tenra idade preparada


intelectualmente para suas futuras funções, genialidades artificiais. Muito bem pagos,
terão uma vida excelente. Não serão tratados pelos ricos com desprezo, mas nunca
deixarão de ser escravos. Elitizados escravos da elite.

Estarão tão longe dos ricos, tanto quanto estes dos pobres. E só terão vida tranqüila
enquanto forem úteis, produtivos e criativos. Se não, serão descartados, ficarão
desempregados. Passarão a serem pobres também. O pior castigo que lhes poderia
acontecer.

Uma continuação do que já acontece hoje em dia e mais ou menos sempre aconteceu.
Os gênios vendem a sua intelectualidade, criatividade e trabalho para os ricos. E são
recompensados por isso, bem recompensados. Como é o caso da maioria daqueles que
trabalham como empregados em profissões bem remuneradas. Proporcionam aos ricos
a sua riqueza. E se isso não acontece ficam sem emprego.

Os pobres, nunca serão competidores, nem mesmo excepcionalmente, a essa elite de


trabalhadores, ignorantes e analfabetos que são.

Esta equipe será cuidadosamente vigiada, muitíssimo mais do que a grande massa dos
pobres. Pois estes sim representam perigo verdadeiro para os ricos. Competidores à sua
posição. Por isso nunca será permitido que acumulem riquezas ou que adquiram poder.
Existirão nesta sociedade, leis, bastante severas. Não para os ricos, mas para estes seus
auxiliares. Sempre com o fantasma do desemprego a ditar-lhes total submissão.

Deverá existir ainda, temporariamente, uma classe de trabalhadores, os que executam


serviços simples, mecânicos e rotineiros, de paga miserável. Serviços que as máquinas
não podem realizar, ainda, por falta de tecnologia adequada. Como hoje em dia as
empregadas domésticas, jardineiros, serviços de limpeza, coleta de lixo e outros. Serão
porém, cada vez menos.

A própria segurança do patrimônio dos ricos, deixará de ser feita por pessoas,
totalmente. As máquinas são confiáveis. Os seres humanos não.

Cara, você está realmente sendo pessimista! Não seria possível, acontecer a igualdade e
justiça social? Todos apertando o cinto igualmente. Será que não existe saída?

Quando as pessoas tinham recursos, aos montes, faltava-lhes os meios para explorá-
los. Utilizou-se do seu semelhante, escravizando-o. Vieram o fogo e as ferramentas, que
facilitou a vida, mesmo assim continuou a escravidão. Inventaram a agricultura e
utilizou-se de animais domésticos, mas não abdicaram da escravidão. Vieram as
máquinas, os escravos permaneceram.

O que faz pensar, que agora, justamente agora, quando o problema é a falta de recursos,
que antes existiam em abundância, o homem será benevolente com o seu próximo?

Um amplo bem estar, a idéia fordista, de pagar bem aos empregados para que eles
mesmos possam comprar os produtos que fabricam, é verdadeira, no sentido que eles
sejam essenciais à produção. Com bons salários, produzem bastante. E podem também,
comprar.

Entretanto, as coisas mudaram. Os recursos não existem mais em abundância, não


podem mais, ser distribuídos amplamente. As máquinas trabalham melhor, mais
rapidamente e com menor custo do que os trabalhadores. Assim o único caminho é
demiti-los. E se eles não podem mais comprar os produtos fabricados, estes produtos
serão alterados, para aqueles que podem adquiri-los.

Mas, a turba tem que ser controlada. Se não acontecerá a revolta. E tudo virá por água
abaixo.
Pode ser, é uma possibilidade. Entretanto os recursos estarão cada vez mais,
firmemente nas mãos dos ricos, é sua propriedade. Tudo que se refere a materiais,
animais e vegetais importantes estarão sob o seu rígido controle. Nada que for
importante, mundialmente, deixará de ser sua propriedade. E, na inexistência, de leis que
protegem os pobres, estes serão dizimados, se fizerem tentativa de apoderar-se desses
recursos. Os ricos, sempre estarão mais preparados em um confronto. Terão meios e
armas, que os pobres não têm.

Apenas excepcionalmente terão êxito em sua tentativa. Que é o que já acontece hoje em
dia. Os "bandidos" de hoje, dificilmente vencem os ricos, num enfrentamento. Quase
sempre são eles que levam a pior. Os que se rebelarem lutarão com armas toscas e
desesperadas, como é o caso dos homens-bomba. E rígido controle será executado,
para impedir que melhorem a sua combatividade. Cada vez mais, a alta tecnologia da
morte, pertence a menos pessoas. Cada vez maior a impotência dos fracos.

É claro, as extensas áreas particulares e do Estado se não cuidadas, serão invadidas.


Como deixará de existir mercado para grandes quantidades de produtos animais e
vegetais, estas áreas perderão valor. Não valerá mais a pena protegê-las. Serão
invadidas. Servirão de subsistência, apenas isso, aos invasores. E os invasores não
poderão fazer mais que isso, subsistência. Não estarão disponíveis para eles as
ferramentas e máquinas que permitem produzir eficientemente. Não terão dinheiro para
comprá-las. Não existirá mercado para seus produtos. Não serão nunca ameaça aos
ricos.

As áreas importantes, de valor, estas sim, serão defendidas a ferro e fogo pelos ricos.
Minérios, água, terras férteis, materiais, metais e energia, tudo isso será mantido a
qualquer custo, pois é o que gera riquezas.

E esta defesa será feita pelos próprios proprietários e a seu modo. Permanecerão pois,
certamente, em suas mãos.

Os pobres, os poucos que sobreviverem, ficarão alienados do mundo moderno. Serão


analfabetos totalmente, em uma geração. Desaprenderão o pouco que sabem,
esquecerão. Para eles a modernidade, que nunca conheceram direito, a não ser através
da televisão, será memória distante e irreal.

Terão para seu uso, apenas algumas poucas ferramentas e, gastas essas, terão que
fabricá-las, com os materiais disponíveis ao seu redor. Mas nunca metais, plásticos e
empregando métodos modernos. É assim que viverão.

Deixarão de invejar os ricos, pois desconhecerão o significado das coisas que os ricos
possuem. Serão como cães, que farejando um "chip", processador central de
computador, de milhões de megahertz, não sabem o que fazer com ele, ou para que
serve. Serão mansos, pertencentes a um mundo diferente. Como os indígenas
brasileiros, que desconhecem o conteúdo da civilização.

As armas que eventualmente consigam produzir serão inofensivas. Dificilmente serão


ameaça aos ricos. Viverão, sendo uma espécie, diferente da dos humanos.
As cidades esvaziarão, tanto ricos como pobres as deixarão. Serão inabitáveis, pois
faltará água, energia elétrica, coleta de lixo e alimentos. Algo semelhante ao que deve ter
acontecido com os Maias, no México. Os ricos irão para seus refúgios seguros e
protegidos e os pobres para o campo. Conflitos acontecerão muitos, nessa migração,
em que perdedores serão quase sempre, os pobres. Os automóveis comuns deixarão de
existir. Apenas pouquíssimos superautomóveis blindados, trafegarão por estradas
cuidadosamente construídas, vigiadas e monitoradas. Helicópteros e artefatos voadores
serão o principal meio de transporte dos ricos. E suas propriedades extremamente
vigiadas.

Mas, existem forças contrárias e poderosas, pessoas e grupos antagônicos aos ricos,
como os traficantes de drogas e de armas o são atualmente! Competem com os ricos,
poderão ameaçá-los e até derrubá-los!

Não deve acontecer. Os traficantes, os mais poderosos, nada mais são que eles
mesmos, ricos também. Fornecerão os entorpecentes, que nada mais é que mercadoria
de alto valor.

Estão inseridos, não estão do outro lado. Não combaterão os ricos. A imoralidade das
drogas nunca existiu, nunca foi real, não entre os ricos. A droga é um produto de
consumo. Que só os ricos poderão comprar. E os pobres, sem dinheiro, deixarão de ser
mercado para elas. As armas, provenientes do tráfico também, nunca chegarão às mãos
dos pobres, pois simplesmente não poderão comprá-las. Não existem pois, forças
contrárias ao ricos.

Conflitos armados acontecerão certamente e muitos. Para tirar dos povos mais fracos os
recursos que ainda possuem. Mas não serão conflitos, país contra país, e sim uma luta
dos ricos pelos recursos. Que poderão até valer-se do Estado para os seus intentos.

Beneficiado não será o país vencedor, o seu povo, e sim apenas os ricos, que incitaram
o conflito.

As fronteiras não existirão mais. Os Estados deixarão de existir. Patriotismo será apenas
uma palavra sem significado para os pobres. E para os ricos também, pois sempre foram
cosmopolitas e apátridas.

Nada diferente pois, do que está se delineando. Nada diferente.

Mas, terá que ser assim obrigatoriamente? Não existe nenhuma possibilidade de evitar
isso, uma conscientização das pessoas?

Veja, atualmente no mar do Norte é praticada a pesca. Pesca intensiva. Vários países, os
mais avançados do mundo, Noruega, Japão, Inglaterra, Alemanha pescam nestas áreas.
Mas o pescado está ficando escasso.
Estudos comprovam que, se fossem observadas algumas diretrizes, tamanho de malha
das redes de pesca, preservação das épocas de reprodução etc., a pesca neste local,
seria cinco vezes mais produtiva. Pescar-se-ia cinco vezes mais do que se pesca
atualmente! É só um acordo a ser feito, um simples acerto. Que todos deveriam
observar.

Não conseguem. O homem sabe o que deve ser feito, mas não consegue deixar de ser
irracional. E assim atuam países, os mais civilizados que se pode imaginar!

Assim como o Líder expunha os seus argumentos, ficava realmente difícil a contestação.
É claro, talvez no fundo, todos nós sentimos que é deste modo que as coisas estão se
encaminhando, mesmo sendo otimistas. Entretanto um estranho sentimento de
preservação nos diz, que não vai acontecer. Olhamos para o precipício, caminhamos em
sua direção, mas achamos que não vai acontecer. Pois temos medo, não queremos
morrer. Temos uma inexplicável fé, que nos diz que alguma coisa vai acontecer e
permaneceremos vivos.

Nós mesmos, apesar do saudosismo, da procura em continuar sendo eternas crianças,


na tentativa de deixar as coisas como sempre foram, mudamos e muito.

Nossos brinquedos e divertimentos de crianças nada custavam. E nem poderia ser


diferente, já que nunca tínhamos dinheiro mesmo. Mas com o tempo isso foi mudando.

À medida que íamos "vencendo na vida", e isto quer dizer que estávamos a ter
rendimento cada vez maior, além do estritamente necessário para sobreviver, também o
desperdício aumentava, com total naturalidade. Como nem poderia deixar de ser.
Rotulamos supérfluos como sendo essenciais e trabalha-se com afinco para suprir estas
necessidades. É assim que fizemos, nunca fomos verdadeiramente diferentes do resto
do mundo.

Ninguém, ninguém pensa só na sobrevivência, a não ser aqueles aos quais não se deu
chance alguma de fazer outra coisa. Ou os índios, que encaram as coisas da vida
diferentemente de nós.

No início dinheiro era uma dificuldade enorme. Se quiséssemos dispor de algum,


voltávamos a pé da escola, para economizar os cinqüenta centavos de bonde que os
pais nos forneciam. Foi assim a nossa juventude. Tudo improvisações e criatividade,
com os parcos recursos disponíveis.

Hoje não pensamos duas vezes para fazer uma custosa viagem de automóvel ou de
avião, estando disponível o numerário necessário. Viajar, sem dúvida é agradável, mas é
consumismo. Com ela joga-se fora muita coisa indiretamente, cujo destino final é o lixo,
a poluição de um rio e do ar. Restando na natureza, menos recursos.

Caminha-se com a humanidade, mesmo a contragosto ou discordando. Não existe como


evitar isso, pois fazemos parte dela. E também o planeta Terra vai envelhecendo junto
com a humanidade, ou mesmo até por causa dela.
Implacável destino. Que afinal de contas, diz que o terrível pesadelo de destruição, não
será apenas um pesadelo e sim triste realidade. Em pouco tempo. O planeta é finito, tudo
se acaba.

Droga, novamente acabou-se a cerveja. Desta vez ninguém estava disposto a buscar
mais. Já era tarde também, muito tarde. Nossa conversa estava também, ficando cada
vez mais infrutífera e taciturna. Entrávamos, a cada assunto, em um beco sem saída. Não
conseguíamos mais sair dos impasses. Tudo resultava apenas em desastre. Estávamos
todos ficando deprimidos com isso. Deve ser por causa do excesso de bebida. A qual,
inicialmente liberta, mas depois abate e deprime.

O fogo na lareira tinha se apagado. E com ele a vontade de conversar.

Iniciamos alegres, discutindo passeios, natureza, pensamentos, vida, céu e sol. E


terminamos com desespero e a morte. De tudo.

Estava na hora de parar, ir embora, descansar.

FIM

Gerhard Grube, Dezembro de 2009.

email: gerhardgrube@ig.com.br

You might also like