You are on page 1of 39

[109]

Mecking, Mecking, Mecking

Eu e Henrique Mecking

Enquanto Mecking morou no Rio de Janeiro tive alguns encontros


com ele. Fiz duas entrevistas, uma em Ipanema outra no Leblon, no
condomínio conhecido como Selva de Pedra, que foram publicadas nas
revistas espanholas Jaque e Ajedrez 6000. Eu sempre ia acompanhado de
amigos a esses encontros – no Leblon, por exemplo, estava o José Soares
Másculo e mais outro colega que não lembro – talvez Luismar Brito.

Em ambas as entrevistas eu reparei – mas não escrevi – que a


preparação técnica de Mecking era precária. O apartamento semivazio, uma
mesa cheia de revistas de xadrez, russas, alemãs, inglesas, outra mesa com
o tabuleiro, água, algumas frutas. Mecking trabalhava cerca de oito horas
por dia sozinho. Quanto a isso ele me confidenciou que no Brasil não tinha
jogador qualificado para treinamento ao nível dele – era melhor trabalhar
sozinho do que ter a companhia de enxadristas medíocres – no que
concordei. Justamente essa ausência de apoio, que os deslumbrados com
seu talento não enxergaram, é que terminaria por levá-lo à derrocada.

Certo eu dia estava participando do Campeonato por Equipes “B” do


Rio de Janeiro. O torneio era na sede do Flamengo no Morro da Viúva e
Mecking, que tinha arranjado o patrocínio do clube rubro-negro, apareceu
por lá. Cumprimentei-o, batemos aquele papo leve, circulamos pelos
tabuleiros com partidas em andamento. Pouco tempo depois ele veio se
despedir de mim:

– Vou embora. Assistir a essas partidas me dá dor de cabeça.


[110]

Imaginei que Mecking tinha razão, não se tratava de esnobismo. Isso


porque era impossível a ele deixar de ver as partidas sob a ótica de um GM,
ao passo que ali disputavam diversas categorias de amadores. Ficar
analisando e assistindo a milhares de capivaradas assim de supetão,
simultaneamente, como uma avalanche – fala sério! É pra dar dor de
cabeça mesmo.

Quando assisti ao Interzonal de Petrópolis ainda era um capivara


desconhecido, mas no Interzonal do Rio de Janeiro (no Copacabana
Palace), eu já era um capivara mais ou menos conhecido. Mas com relação
à Mecking isso não adiantou – quase não o vi em Copacabana, meu
trabalho com a organização era duro. Só o vi mesmo quando ele se
apresentou à imprensa, acompanhado do médico, Dr. Jorge Lemos, para
comunicar o abandono do Interzonal. Foi um rebuliço geral, uma loucura!
Jornalistas de todo o mundo cercando Jorge Lemos, Mecking
completamente absorto, com cara de doente mesmo.

Uma coisa em favor de Jorge Lemos, em que pese às excentricidades


e o diagnóstico que foi obrigado a assinar, é que ele no dia seguinte è
retirada do Mecking praticamente desmentia tudo.

Em manchete “Mequinho preocupa médico”, uma conversa


entreouvida de Jorge Lemos com amigos enxadristas, foi publicada pelos
repórteres indiscretos.

“Precisamos salvar Mequinho. Ele é um gênio e os gênios levam 100 anos para
surgir. É preciso que alguém de seu relacionamento lhe mostre a importância de
se dedicar a um tratamento, se abrir e deixar de ser arredio e fechado, para se
transformar numa pessoa normal. Embora seja um gênio no xadrez, como pessoa
é quase um fracasso, um rapaz cheio de problemas, os quais procura mascarar no
misticismo”.

Jorge Lemos invade um pouco a vida pessoal de Mecking, o que iria


provocar uma reação deste, mas finaliza seu pensamento com uma
observação lúcida:

“Mequinho não pode continuar se enganando, pois com o passar do tempo


agrava o choque com a realidade e esse choque pode levá-lo à
esquizofrenia”.

Por ser esse assunto por demais batido e sepultado, não irei me
estender muito, mas reproduzo o depoimento de um amigo de Mecking no
começo da carreira, Ricardo Fróes.
[111]

“Tive o privilégio de ser amigo de um gênio dos grandes: Henrique da Costa


Mecking, o Mequinho, fenômeno do xadrez que sucumbiu vítima de sua total
incapacidade para lidar com as coisas mais simples da vida. Além de amigo, fui
assessor informal durante algum tempo. Mequinho vivia xadrez, mas tinha
“inveja” de uma vida “normal” de um garoto de 18 anos como a minha. Suas
obrigações e obsessões enxadrísticas não lhe deixavam tempo para isso.

“Um dia Mequinho resolveu, contra meus conselhos, entregar suas economias a
um argentino indicado como mago das finanças. O resultado foi catastrófico: o
sujeito sumiu com tudo. Mequinho teve que vender o apartamento do Leblon por
não ter como pagá-lo. Daí para a pane total foi um pulo. Com o sistema nervoso
abalado, foi definhando física e mentalmente, passando a abandonar e desistir de
participar em torneios.

“Mas foi quando algum “luminar” da medicina diagnosticou que ele tinha
miastenia gravis que foi tudo pro brejo. Era evidente que seu mal era puramente
psicológico, mas Mequinho precisava de uma desculpa que não denunciasse a
sua fraqueza emocional e resolveu “adotar” a miastenia como explicação mais
nobre sobre seu estado”.
(http://toma-mais-uma.blogspot.com.br/)

Fiz questão de reproduzir o testemunho de Ricardo Fróes, porque


finalmente encontrei alguém que tem o meu ponto de vista: Mecking
jamais teve miastenia gravis – e esse fato deveria ser motivo de alegria
para ele – por não estar doente. No entanto, desde aquele dia fatídico de
26/09/1979, Mecking optou por aceitar-se doente e desse momento em
diante sua vida mudou de perspectiva: hoje, em 2015, 36 anos depois de ter
sido diagnosticado ele continua doente.

É triste constatar, mas, após esse longo período, nem Mecking nem
ninguém se dispôs a mudar esse panorama – é motivo para pensar que
talvez Mecking esteja ganhando mais dinheiro com a doença do que com o
talento que Deus lhe deu para ser um dos maiores jogadores de xadrez do
mundo.

O problema de Mecking era muito mais complexo do que se


imaginava: ele foi vítima de desamparo psicológico. Desde criança ele fez
sua carreira sozinho. Alguém alguma vez viu a família de Mecking com
ele? O pai que o acompanhava por obrigação não tinha tato nenhum para as
relações que o xadrez exigia. Quando veio para o Rio de Janeiro, pediu
ajuda às autoridades, ao Ministério da Educação e Esportes, Confederação
Brasileira de Xadrez, Federações, mas não conseguiu nada – todo mundo
tirou o corpo fora.
[112]

Portanto, nenhum médico poderia diagnosticar miastenia gravis em


doze horas, como ocorreu com Jorge Lemos com relação à Mecking – se o
fez foi debaixo de muita pressão. Ainda mais que na véspera do diagnóstico
Lincoln Lucena, Diretor Geral do Interzonal, antes da rodada iniciar,
(partida Mecking - Smejkal) declarou à imprensa que “Ele [Mecking] até
agora não fez nenhum pedido e está muito tranquilo”.

Na página do Hospital Albert Einstein, de São Paulo, vê-se que


diagnosticar miastenia não é tão simples assim:

“O diagnóstico da miastenia gravis baseia-se em critérios clínicos, ou seja,


história compatível, além de testes laboratoriais e resposta positiva aos
medicamentos anticolinesterásicos, que agem nos receptores neuromusculares
prevenindo a deterioração da substância acetilcolina e levando à melhora da
força. Testes mais específicos também podem ser solicitados, como exame de
sangue que pesquisa a presença de anticorpos responsáveis por essa condição.
Para afastar a possibilidade de outras doenças e definir o diagnóstico com
precisão, os médicos irão analisar ainda a resposta neurofisiológica da pessoa”.

O que Henrique Mecking precisou na época nunca teve nem nunca


terá no Brasil. Milhares de estudantes e gênios saem do Brasil pela porta
dos fundos porque não têm apoio oficial ou particular.

Em outro lugar deste livro já comentei sobre Simone Lemos, filha do


Dr. Jorge Lemos, ambos meus amigos de família. Ela antes dos 15 anos já
era poliglota, fez concurso e foi estudar na universidade flutuante, o “SS
Seawise University” (Mundo Campus Afloat), do magnata chinês Tung
Chao Yung. Depois se mudou para os USA, onde constituiu família, e –
que eu saiba – jamais retornou para o Brasil, a não ser para fazer o
inventário dos bens do pai, que tinha falecido.

A situação de Mecking vazou para a imprensa internacional. A


Revista Jaque teve informações diretamente de Brasília.

A Nota da Redação publicada pela Jaque é de provável autoria de


José Maria Gonzalez, diretor da mesma:

HENRIQUE COSTA MECKING INSATISFEITO – De Brasília nos chega a


notícia de que o famoso jogador brasileiro GM Henrique Mecking foi recebido
em audiência de uma hora pelo Ministro da Educação Ney Braga. Os motivos
dessa entrevista foram pedir ajuda ao Ministério da Educação e fazer numerosas
acusações à Confederação Brasileira de Xadrez, sem esperar o resultado do
recurso que tem em trâmite no Conselho Nacional de Desportos.
[113]

Mecking Entregou ao Ministro um volumoso pacote de documentos para


“provar” que as eleições da atual diretoria da Confederação Brasileira de Xadrez
foram ilegais. Ao terminar Mecking declarou à imprensa:
“Não tenho intenção de competir, quando meus inimigos são os próprios
brasileiros que estão na CBX, que me expulsam e me sabotam durante as
competições”.
Nota da Redação: Até aqui a notícia é transcrita da Agência O GLOBO. Como é
nosso costume, não tiramos nem colocamos nada, porém seria lamentável nos
encontrar com outro “caso FISCHER” que em nada beneficia o Xadrez”.

Centenas de leitores se manifestaram enviando cartas à Jaque, que


sempre foi uma revista de prestígio no mundo do xadrez. Entre a
correspondência havia uma nota de Ronald Câmara, então vice-presidente
da CBX, repercutindo as reclamações de Mecking:

“donde el Dr. Cámara aclara con singular dureza las ‘irregularidades’ de


Mequinho en los últimos años. Dice, entre otras cosas: Realmente Mequinho va
haciendo una campaña sistemática contra los actuales dirigentes de la CBX y él
tiene toda la razón para expresarse de esa forma.
Aparte de ser, desde el punto de vista técnico, el mejor ajedrecista nacional, es
también un sagaz mercenário, que trata de obtener, por todos los médios, incluso
los más inexclusables, ventajas para si, encontrando en la actual dirección de la
CBX una barrera para sus pretensiones”.

Aquela história que “roupa suja se lava em casa” é papo furado.


Ademais, como é sabido, o Cartola sempre tem razão...
[114]

Mequinho - Poluga

A delegação brasileira que acompanhava Henrique Mecking no


fundamental jogo contra Lev Polugaevsky, pelo Campeonato Mundial,
estava formada por Luiz Tavares da Silva e Abaeté Valverde. Luiz Tavares
contratou como “Segundo” o GM italiano Sergio Mariotti (2455 - 13º no
Interzonal de Manila), que foi dispensado logo depois, por
incompatibilidade com Mequinho, tendo sido substituído pelo jovem GM
espanhol Juan Manuel Bellón, que tinha se tornado amigo de Mecking.

Lev Polugaevsky tinha dois “Segundos” na delegação – Vitaly


Tseshkovsky (2600 - 4º no Interzonal de Manila) e Vladimir Bagirov
(2482), que fazia parte da equipe de treinadores de Garri Kasparov. O chefe
da comitiva era o poderoso Victor Baturinsky, um capivara infiltrado para
ser cartola, vice-presidente da Federação de Xadrez da URSS, chefe das
delegações na maioria dos eventos, macaco velho enfim, que além de tudo
era Coronel da KGB! Meus amigos, uma delegação desse porte tem só um
objetivo: vencer a qualquer custo.

Outro sinal da mutreta: logo no começo a Delegação Soviética


desqualificou Alex Crisovan como juiz principal, por ele não ser Árbitro
Internacional. A FIDE aceitou a reclamação e nomeou o AI Hans Suri para
dirigir o match. No entanto, Hans Suri não tinha condições de arbitrar o
match por estar atuando como juiz em outra competição. Diante do impasse
houve uma reunião entre Baturinsky e Crisovan, representando a FIDE,
sem a presença de representante do Brasil, chegando-se ao acordo que o
match começaria sob a arbitragem de Crisovan, mas teria como árbitro
oficial Hans Suri. O match começou e continuou assim até o final,
figurando o tal Hans Suri como um fantoche, árbitro fantasma.

De qualquer modo, o Comitê Organizador – presidido por Fugi


Fuchs, estava confiante no sucesso da organização e a cidade de Lucerna se
[115]

preparou para receber uma multidão de turistas que viriam assistir ao “mais
sensacional desafio desde o match Fischer-Spassky pelo Campeonato
Mundial em 1972 – O novo duelo entre o Ocidente e o Oriente” – como foi
largamente anunciado pela imprensa.

Conforme Bellón conta em seu artigo na Revista Jaque (exibida na


íntegra ao fim deste volume), o garfo oficial ocorreu assim:

“Está perto de terminar o controle de tempo para a jogada 40. Mecking tem
clara vantagem, porém está com a seta levantada: tudo se limitava a passar o
controle do tempo e a vitória dificilmente escaparia. Parece que, por essa
circunstância, Polugaevsky estava muito nervoso – melhor pensar assim – e
colocava as peças mal centralizadas na casa, o que obrigou Mecking a recorrer
algumas vezes ao “j’adoube”, arrumando com ajuda da caneta a peça no devido
lugar – sempre usando seu próprio tempo”.

“Em certo momento, quando caberia a Mecking fazer a jogada, ainda com a seta
levantada, o soviético estende os dois braços e olha para o árbitro [como que
reclamando] e a este não ocorre outra coisa senão dirigir a palavra a Mecking –
que continua com a seta levantada e o relógio andando – para falar num mal
inglês “You lost” – o que quer dizer “Você perdeu”.

“Mecking naturalmente ficou atônito com aquilo, não sabia o que se passava
nem o que fazer. Ficou nervoso e cometeu um erro e outro mais em seguida,
completamente desconcentrado – passando, em consequência, de uma posição
vantajosa para outra completamente perdida!”

“Passado o controle do tempo, começou uma discussão e o árbitro alegou que


quis dizer “Last time” em vez de “You lost”, tendo em vista que não falava
inglês corretamente. Desculpas pra lá, desculpas pra cá, a partida foi suspensa
com Mecking em posição inferior que depois se transformou em derrota. Não sei
até que ponto está facultado ao árbitro falar com o jogador que tem a vez do
lance, ainda mais quando se encontra com a seta levantada”.

“Repito que esta foi a única partida que não terminou empatada e por isso cabe
aqui se fazer uma pergunta: é justo que Mecking tenha sido eliminado do
Torneio de Candidatos por uma derrota nas circunstâncias acima relatadas?”

“O senhor Crisovan, volto a dizer, que nasceu na Hungria, [e não é Árbitro


Internacional] perturbou Mecking no momento decisivo da partida para ajudar
Polugaevsky ou por desconhecer o Regulamento? Armaram para Mecking uma
guerra de nervos fazendo as coisas que sabiam que o perturbam durante o
jogo?”
[116]

Assim Bellón sentiu e descreveu o momento para a Revista Jaque.


Mas não foi só ele: toda a imprensa publicou no dia seguinte, as mesmas
ocorrências! Todo o noticiário dos jornais questionava também a situação
estranha da partida e a atitude da arbitragem. Eis um resumo do que se
noticiou em Lucerna e nas revistas especializadas:

O match Mecking - Polugaevsky


“A segunda partida do match entre Mecking e Polugaevsky já começou
complicada. O primeiro jogo tinha sido muito nervoso, mas chegou-se ao empate
e seria normal que a cabeça dos jogadores se acalmasse um pouco, mas não foi
assim. A partida foi adiada por duas vezes: Mecking sentiu ‘dores estomacais’
[conhecida no Cachambi como cagaço] e Polugaevsky teve que extirpar um
dolorido abscesso das costas, que precisaria operar depois”.
“Não é fácil saber exatamente o que aconteceu nesta partida (e nas posteriores),
mas o que se seguiu deve ser tomado como um grão de areia. Mecking teve
posições vencedoras três vezes: 23. f4, 24. f4 e 40. Txd4, mas estava também com
problemas de tempo. Próximo ao fim do controle de tempo (lance 40),
Polugaevsky começou a colocar as peças na borda das casas, obrigando a
Mecking reposicionar as peças corretamente, usando a expressão j'adoube”.
“Polugaevsky reclamou ao árbitro Crisovan que Mecking estava tocando as
peças de modo irregular e Mecking recebeu uma advertência de Crisovan com a
seta do relógio levantada e o seu tempo correndo. As palavras ditas por
Crisovan [que não falava inglês fluente] foram "last time" (última vez) [que
Mecking poderia arrumar a peça], mas Mecking entendeu como "you lost" (você
perdeu) e não soube como reagir”.

Mecking – Polugaevsky
2ª Partida

23. f4
[117]

40. Txd4

“A partida foi suspensa, com as desculpas de Crisovan, mas Mecking


estava em posição inferior por causa de seu último movimento (42. Rf1)”.
[118]

Bellón & Mecking

Depois disso tudo alguém ainda duvida que Mecking tenha sido
garfado no match contra Polugaevsky? Pois foi sim, não resta dúvida.
Ocorre, como se viu, que as ‘autoridades’ brasileiras não deram um pio
nem um pum de apoio a Mecking. Ele se queixou em muitas entrevistas.
Foi a Brasília falar com o Ministro da Educação Ney Braga e voltou de
mãos vazias. Não tinha uma pessoa de proeminência ao lado dele no match
que enfrentou Polugaevsky. A CBX, então, nem se fala!

Já por ocasião do Torneio de San Antonio em 1972, jogando contra


Petrossian, Mecking estava em apuro de tempo e o macaco velho batia com
o pé na perna da mesa, sacudindo as peças e todo o tabuleiro – tirando a
concentração necessária ao jogo. E Petrossian agiu assim durante toda a
partida, conforme Mecking declarou em entrevista à Jaque. Quando os
russos se referiam a Mecking tratavam de cunhá-lo de problemático,
instável e outras bobagens. Interessava aos outros GM cunhar Mecking de
‘instável’, justamente para que suas reclamações caíssem no vazio e a
ameaça à hegemonia soviética no xadrez se prolongasse mais um pouco.

Mas as atitudes antiéticas de Petrossian tinham antecedentes: em


1971 no match contra Robert Hübner [que, segundo vi no Interzonal do Rio
de Janeiro, era meio estourado] os problemas levantados chegaram a um
impasse. O GM alemão – que era mais doidão do que Mecking –
simplesmente abandonou a competição, embora o match nem tivesse
chegado à metade, devido às catimbas e atitudes irregulares de Petrossian.
Nenhum árbitro tinha coragem de repreender ou punir o russo pela postura
antiesportiva – como punir um Campeão Mundial? Tigran Petrossian deu
trabalho também a Fischer e ao ex-compatriota Viktor Korchnoi.

É como eu disse aqui mesmo em nota neste livro: no xadrez não


existem anjos.
[119]

Não se trata de cavoucar o passado de maneira infrutífera, sem razão.


Tudo que se refere a Henrique Mecking antes do Interzonal do Rio de
Janeiro é importante para conhecer de fato o que ocasionou o colapso que
ele teve e redundou no abandono da competição. Mecking àquela altura era
imbatível, verdadeira ameaça à hegemonia soviética no xadrez. Convém
relembrar que naquele tempo o xadrez soviético não era dirigido por uma
Federação de Xadrez e sim pelo membro da KGB Viktor Baturinsky.

Portanto, Mecking e Bellón tinham razão em se queixar: a única


partida que Mecking perdeu contra Polugaevsky foi um tremendo garfo. Ou
mais claramente: um roubo extra tabuleiro. Bellón, é claro, alivia a cara da
equipe russa que cercava Polugaevsky, como se também não fosse
responsável pelas catimbas que fizeram a Mecking. Se Bellón fosse
agressivo e verdadeiro – como Ricardo Calvo – decerto teria sua carreira
prejudicada.

Juan Manuel Bellón, que foi convocado às pressas para dar


assessoria a Mecking, narra com detalhes as pilantragens de Polugaevsky e
sua equipe de técnicos, assessores e segundos. Anos depois seria Fischer a
reclamar, mas com esperteza – ele usou das mesmas artimanhas e catimbas
para tumultuar o match com Spassky e funcionou! Tudo começou com a
escolha de um árbitro desqualificado. Esse fato comprova que Mecking
tinha razão em procurar apoio de peso das autoridades brasileiras. Seria o
mínimo necessário para enfrentar a forte influência das autoridades
soviéticas no território do xadrez naqueles tempos, em que mantiveram
hegemonia durante muitos anos.

Para saber tudo isso desfrute o artigo de Juan Manuel Bellón


intitulado “Venció Polugaevsky, pero... NO VI PERDER A MECKING –
El árbitro – sin título internacional – principal protagonista”.
[120]

Quase epílogo
Afinal, o que aconteceu com a trajetória de Henrique Mecking, o
maior jogador de xadrez do Brasil – verdadeiro Campeão Mundial – foi de
responsabilidade desses governantes e dirigentes. Dezenas de anos depois a
coisa continua da mesma maneira, embora com outras nuances. Tirando o
futebol (máfia criminosa assimilada pelo governo), as ‘autoridades’ estão
cagando e andando para o atleta brasileiro – o enxadrista em particular. Em
sendo assim, são milhares de gênios, atletas e jogadores excepcionais cujo
talento é morto no nascedouro.

Mecking jamais recuperou o nível de jogo, nunca alguém ofereceu


meios qualificados para que pudesse readquirir seu potencial, nenhuma
ajuda nem contribuição foi dada por quem quer que seja, a CBX silenciou,
assim ele nunca pôde se reafirmar como grande enxadrista. As ofertas
acessíveis foram mais voltadas para milagres do que para a realidade e
como Jesus anda muito ocupado com outras coisas, também o deixou de
lado...

É preciso que os atuais jogadores – e os jovens que começam a jogar


xadrez hoje – conheçam essa história e busquem entender o porquê da
derrocada de um gênio como Mecking. Leiam também as notícias que
saíram na Revista Jaque vindas de outras fontes, a acusação de Mecking
aos dirigentes do MEC e da CBX, a defesa da própria CBX, a análise dos
jornais. Saibam também como José Mª González – grande conhecedor dos
bastidores do xadrez – defendeu, com garra de brasileiro, o caso em favor
de Mecking: ele sabia do que se tratava... Tá tudo aqui!

A grande maioria dos atuais MI e GM brasileiros cresceram sabendo


dessas mutretas, das sujeiras que se escondem nos bastidores do xadrez, e
existem em todos os níveis. Eles aprenderam a não confiar nas autoridades
federais, estaduais e municipais, muito menos nos dirigentes das
Federações e Confederações. Protegem o talento das deformidades e têm a
carreira profissional mais ou menos equilibrada. Procuram evitar serem
picados pela muriçoca do poder e se transformem em Cartola (como ocorre
a alguns) e passem a cometer as mesmas violências de que foram vítimas.
[121]
[122]
[123]
[124]
[125]

Dossiê Mecking
[126]
[127]
[128]
[129]
[130]
[131]
[132]
[133]
[134]
[135]
[136]
[137]
[138]
[139]
[140]
[141]
[142]

As dívidas do esquecimento

Com Claude Fisch no CXG

O nosso xadrez vive de reclamação, de falsa mendicância, como a


imagem do Brasil de outrora, que passava ao mundo um estado de
miserabilidade para pechinchar esmolas. Guardadas as proporções,
vivemos no xadrez a mesma situação de outros esportes: dirigentes que
reclamam, reclamam, em vez de exercitar a criatividade procurando os
inúmeros recursos que existem para valorizar o nosso xadrez.

O dirigente do xadrez, desde os clubes, as federações e


confederações, merece ter e ser tratado com mais respeito, mais visão
profissional. Enquanto o diretivo for tratado como amador, enquanto a
direção da entidade for a segunda ou terceira opção profissional, enquanto
o empreendedor não invadir a administração das entidades, o xadrez, será
para sempre pobre, sem valor, atividade secundária.

Aqui eu ofereço minha singela homenagem, pequena, mas de


coração, ao dirigente, jogador, colaborador, que fez do xadrez a segunda
opção de vida, mesmo tendo que enfrentar a tudo e a todos –
principalmente os conflitos familiares – aquilo que mais dói no ser
humano. Vontade não falta, mas querer não é poder. Gostaria muito de
falar de todas as pessoas que conheci e fiz amizade através do xadrez.

Teria que relembrar de Claude Fisch, dono de uma das maiores


coleções de livros de xadrez do Brasil – que me introduziu na Diretoria do
Clube de Xadrez Guanabara. O Claude era francês ou de origem francesa,
tinha cerca de 1,90m de altura, esbelto, fala macia como a voz dos anjos.
Um apaziguador e fautor das coisas corretas.
[143]

Claude Fisch morou no Flamengo, naquele espigão que tem na


confluência da Avenida Ruy Barbosa e Morro da Viúva, uma das poucas
vezes em que estive lá fui testemunha de desavença familiar, coisa comum.
Mas depois Claude resolveu sair dali e mais tarde se mudar em definitivo
para Brasília onde moravam seus pais. Sendo a discrição em pessoa,
Claude sumiu de circulação, pelo menos para mim.

Meu último contato com ele foi justamente para me conseguir uma
cópia da partida Alekhine ½–½ Bogoljubow, que usei no artigo sobre o
conto Schachnovelle, de Stefan Zweig. Naqueles tempos, sem internet, só
Claude Fisch mesmo poderia me conseguir essa informação, como de fato
aconteceu. Dias depois do pedido, recebi pelo correio fotocópia de uma
versão da partida em espanhol, comentada por um mestre argentino.
Atualmente não mais consegui fazer contato com o Fisch, mas vi que seu
sobrenome anda já dando renome a alguns artistas da Capital Federal.

Quantos mais eu teria que lembrar? Muitos, muitos, muitos, muitos.


Dr. Luciano Belém e seu filho Herman; Darcy Lima (pai) e o chato do filho
– hoje GM; Djalma Caiaffa, uma doçura de pessoa que parecia ficar
chateado ao vencer o adversário; Henry Levinspuhl, um furacão de cabelos
desgrenhados, para quem perder um ping era motivo para disputar duelos
mortais; João Batista Cúrcio – que se autoproclamava o jogador mais forte
de Niterói (devido ao peso pesado que era), além de ser alegre e brincalhão,
sempre disposto a um papo; Norma Snitkowsky, que acolheu e deu suporte
ao MI Luís Bronstein no Rio de Janeiro; Vince Toth, inventor, produtor e
distribuidor do melhor relógio de xadrez brasileiro – pai do Piteko (como
Jorge Lemos apelidou o Peter).

Tem também o Carlos Eduardo Gouveia, sempre conversando e


ensinando – analista emérito; José Cristóvão Kubrusly, um Mestre e PhD
em muitas coisas; Jerônimo Pimenta, que sumiu do Clube de Xadrez
Guanabara e bandeou para a ALEX; Luís Loureiro, não sei onde anda e,
pior, teve a ousadia de negar meu pedido de amizade do Facebook; Marcos
Roland, que também se mudou para Brasília, onde publicou uma revista de
xadrez; Roberto Stelling – herdeiro do Félix Sonnenfeld em defesa do
problema brasileiro; Michel Bessler, violinista, spalla da OSB e fundador
[144]

do Quarteto Bessler-Reis, que gravou todos os Quartetos de Cordas de


Heitor Villa-Lobos (eu tenho!); Oliveiros Litrento, escritor de belos
romances nordestinos; tinha o Maestro e Compositor Ermano Soares de Sá;
os veteranos Dr. Carlos Vinhas, Enguelberto Berlingozzo e Roberto Porto
da Silveira; o Zélio Bernardino, engenheiro, com quem joguei várias
partidas e veio a ser um Mr. Pizza. Como se vê, uma mistura de três ou
quatro gerações do xadrez brasileiro convivendo num só espaço – o CXG!

É muita gente pra pouca cabeça...

A essas lembranças se junta outro magote de pessoas daqui e de fora


do Rio de Janeiro, espalhadas pelo Brasil. O catarinense Adaucto Nóbrega,
hoje dono de uma das maiores bases de partidas do mundo; André Cajal,
Antonio Rocha, Auriberto Ticianelli, Dirk Dagoberto, como eu
colecionador de selos de xadrez; Eduardo e Marco Asfora, Francisco Trois,
Hélder Câmara, sobrinho, não o Arcebispo; Herbert de Carvalho, Hermann
Claudius van Riemsdjik, que onde estiver me dará a alegria de vir trocar
um abraço amigo.

Conheci também Lincoln Lucena, que um dia sonhou ser presidente


da FIDE; Luismar Brito, Campeão de Gamão nos USA; Máximo Macedo,
que transmitiu o vírus do xadrez para seus garotos; Otacílio Veloso,
Rubens Filguth, Vitório Chemin, Alberto Mascarenhas, Eduardo Limp,
Eunice de Aquino.

Outro que considero um Mestre é Hilton Rios, que só não conseguiu


a titulação devido à forma irregular com que participa dos torneios. Mas,
certo dia, no tempo em que eu estava hospedado com minha irmã na Rua
Djalma Ulrich, às 10hs da manhã encontrei o Hilton em Copacabana
tomando umas e outras. Atravessei a Barata Ribeiro para cumprimentá-lo.
Fiquei surpreso quando ele recusou a mão e me disse:

– Porra Salomão, você largou o Guanabara arrasado, roubou tudo,


até o telefone!

Fiquei espantado e em silêncio. Pensei bem: não era hora de arrumar


discussão alguma. Apenas debitei essa fala à má qualidade da cerveja
[145]

brasileira depois que virou Ambev e à minha incapacidade de fazer


inimigos. Mas ainda consegui responder a Hilton que era (e sou) um cara
pobre – como o próprio clube é pobre. Disse-lhe também que o telefone do
CXG é o mesmo há mais de 50 anos, portanto não fora roubado nem por
mim nem mais ninguém.

Ademais, só deixei a presidência do CXG após a posse da Diretoria


que iria me suceder, presidida por Antonio Carlos Gomes Siqueira, sócio
do clube, enxadrista e cheff (na época era um dos sócios do Restaurante
Mandrake, em Botafogo). Foi uma acusação injusta, mas alguns dias depois
eu estaria cumprimentando Hilton Rios num dos torneios em que ele
participou...

E devo falar, e muito, do maior amigo de todos (junto com


Waldemar Costa, Claude Fisch e Félix Sonnenfeld), o veteraníssimo,
Friedrich Alfred Salamon, que assinou a minha carteirinha da Federação de
Xadrez do Rio de Janeiro!

Encontrei o Salamon no Clube Municipal, nos abraçamos, eu disse:

– Pôxa, pensei que já íamos fazer o Memorial Friedrich Salamon!

Ele riu e respondeu:

– Eu é que ainda vou participar do Memorial Salomão Rovedo...

Que tenhamos muitos memoriais é o que desejo, caro Friedrich.


Falando do Salamon relembro um fato que me ocorreu, coisa assim do
outro mundo, que jamais imaginaria acontecer. Certa vez andei com um
dente siso me incomodando (depois de velho ter dor de dente é dose!). Fui
a uma clínica dentária na Av. Nª Sª Copacabana. Uma doutora, vestida com
uma bata alvíssima, trazendo a minha ficha nas mãos veio me examinar:
Dra. Maria Luiza, uma senhora de cabelos brancos, simpática, sorridente.

– Sabe Sr. Salomão, o meu marido também é Salomão. Mas o nome


dele se escreve Salamon, não como o seu.
[146]

Quem senta em cadeira de dentista sabe que isso é conversa para


esquecer a agulhada, os boticões, o ruído terrorista da broca! Conversa vai,
conversa vem – meu siso foi condenado à morte. Dra. Luiza, com base
nessa psicologia, continuava conversando enquanto eu horrorizado
encarava o boticão. Porque meu marido é isso, meu marido é aquilo. Ela
me contou também como eles se conheceram:

– Meu marido havia morrido e o Salamon tinha ficado viúvo


recentemente, e nós sempre fomos muito amigos. Assim, de repente tivemos
a mesma ideia: por que a gente não se casa e vamos viver juntos?

Pronto! Simples assim... Se fossem os jovens de hoje teriam dito: –


Por que a gente não fica? E foi assim que eles ficaram, de modo singelo
como deve ser a vida, tão genuína como deve ser a felicidade. Depois a
Dra. Maria Luiza comentou:

– A princípio, eu não sabia das manias que o Salamon tem: depois


descobri que ele é metido nesse negócio de xadrez, sabe aquele jogo, ele é
Diretor, Jogador, Juiz – essas coisas...

Afastei os apetrechos da boca e falei:

– Péra lá, Dra. Maria Luiza, o seu marido NÃO É o Friedrich


Alfred Salamon, É?

Êita mundo pequeno! O próprio!

Poizé, quero relembrar de tantos nomes e mais os novos amigos que


chegam agora, tem até um pernambucano chamado Velimirović. Nunca
contei a ele, mas eu conheci o original Dragoljub Velimirović,
representante da Yugoslávia no Interzonal do Rio de Janeiro, de quem era e
sou fã, por reconhecer nele o verdadeiro artista do xadrez, uma fera, tanto
pelo vigor no ataque, quanto pela beleza dos sacrifícios.

Eu costumo comparar Drago Velimirović com outro combinador


insuperável: o austríaco Rudolf Spielmann, conhecido no seu tempo como
“o mestre do ataque” e autor do livro “A arte do sacrifício”, que viria a
[147]

falecer no ano em que eu e Dragoljub Velimirović nascemos – somos de


1942. Drago Velimirović tem a minha idade, mas faleceu em 2014, ainda
jovem.

Lembro também o Haroldo Cunha, Hermes Amílcar, José Thiago


Mangini – que tentou me criticar porque não selecionava partidas
brasileiras para a Revista Jaque (na verdade eu enviava os boletins dos
torneios e eles faziam a seleção); Márcio Miranda, Márcio Baeta, Ricardo
Mercadante, Ricardo Teixeira, Sadi Dumont, Oliveira Maia – é um mundo
sem fim!

A todos esses citados e não citados, aos lembrados e aos esquecidos,


a todos que ainda vejo de vez em quando – declaro que foi para mim um
prazer ter convivido, seja por alguns minutos ou por mais tempo, em
frações repartidas da vida cotidiana, unidos por essa coisa chamada jogo de
xadrez.

PS: É também possível que algum “esquecimento” resulte daquela


triagem mental que Stefan Zweig explica na frase: “Tudo o que se esquece
de nossa própria vida, na verdade já estava condenado, por um instinto
interior, a ser esquecido”.

You might also like