Professional Documents
Culture Documents
Resumo
1. Reflexão e subjetividade
Como um pensador que desde o início de sua jornada teve Sócrates como figura inspiradora,
pode-se dizer que Kierkegaard inicia sua reflexão sobre a própria ideia de reflexão a partir de uma
resposta à proposta socrática, aquela de que “uma vida não refletida não merece ser vivida”, e à
qual o dinamarquês retrucaria, “mas uma vida refletida pode tornar-se impossível de se viver”. Esta
resposta remete a temas especificamente caros à filosofia de Kierkegaard e que dão a ela o tom
melancólico e tempestuoso característico das produções filosófico-literárias da segunda metade do
séc. XIX, como a angústia e o desespero, temas estes que ganharam a forma de tratados sob a pena
de Kierkegaard, ainda que não diretamente sob sua assinatura. Para compreendermos por quê a
reflexão pode ter este caráter negativo na sua associação com a vida de um indivíduo, e, além disso,
por quê a tarefa de viver reflexivamente, uma tarefa socrático-religiosa, por assim dizer, põe o
sujeito reflexivo numa ponte entre “dois abismos perenes”, como nos mostra o comentador Howard
Hong, “o da superficialidade irrefletida e o da dissolução refletida”, caminho este cujos
desdobramentos são permeados pelos pathos já citados, devemos percorrer brevemente o caminho
que Kierkegaard perfaz na sua confrontação com o conceito idealista de reflexão, o qual, para ele,
não se encontra à altura da tarefa exigida pelo seu tempo.
A discussão idealista em que a posição de Kierkegaard assume seu lugar é a da oposição
entre o pensamento objetivo e o pensamento subjetivo. A definição idealista do conceito como
aquilo que conforma a própria realidade a partir de uma concepção concreta do universal adquire,
na sua forma mais desenvolvida – ou seja, na formulação de Hegel – um caráter absoluto, ou seja,
por meio da experiência da consciência, a totalidade da realidade é apreendida conceitualmente por
meio da acepção do Espírito, que se constitui como a unidade absoluta na qual são abolidas as
oposições entre forma e conteúdo, bem como entre sujeito e objeto. O caráter especulativo que
determina o decorrer desta experiência da consciência, que parte do imediato de si mesma para um
estranhamento reflexivo e que passa por uma reconciliação consigo mesma na consciência de si, é
interpretada por Kierkegaard, em sua leitura da filosofia idealista, como sendo realizada em dois
movimentos. O primeiro deles é um movimento retrospectivo de recordação (Erinnerung), em que
as etapas percorridas pela consciência são apreendidas por ela própria numa dialética de
estranhamento e reconhecimento, e em que a consciência vem a apreender a si mesma na sua
atualidade conceitual – pois o conceito possui a possibilidade de tornar-se um universal concreto na
medida em que passa a ser para a consciência uma designação efetiva da sua própria atualidade. O
segundo trata-se do movimento em que a consciência passa a um novo momento da experiência, no
que é necessário realizar uma mediação, ou uma superação (Aufhebung), do momento anterior, o
que consiste na própria superação do estranhamento e na identidade desta com seu outro, e, em
termos conceituais, numa superação da dualidade anterior numa nova articulação conceitual, em
que o exterior, a expressão abstrata do conceito, é posto numa identidade com o interior, ou seja, o
conteúdo a ser apreendido pelo conceito.
A possibilidade da identidade absoluta entre interior e exterior é o que se designa por
pensamento objetivo. A primeira crítica que poderíamos enumerar que é dirigida por Kierkegaard a
este aspecto é a de que, na medida em que se trata de uma exteriorização e um tornar-se objetivo
através do conceito, a substância fundamental da própria consciência desaparece durante o
processo. O pensamento objetivo seria, para Kierkegaard, um aviltamento da interioridade da
consciência, que seria forçada a exteriorizar-se e dessa forma sacrificar na forma do Logos absoluto
aquilo que a constitui interiormente, e com isso sua própria liberdade enquanto ser-aí, ainda que de
forma não refletida e não elaborada pela razão. Nesse sentido, o pensamento objetivo que é
criticado encontra seu limite na negação da tese de que “o interior é o exterior, e o exterior é o
interior” do idealismo absoluto. Para Kierkegaard, há, na consciência que é submetida à experiência
fenomenológica, um resquício último de inapreensibilidade, um substrato último de indizível, que
abre precedente para que esta tese seja posta em questão. A subjetividade irônica, que é para ele – e
também para Sócrates – mais do que uma pantomima retórica ou sofística, mas uma possibilidade
concreta do negativo ou da dúvida, que surge a partir da cisão desta identidade como uma ruptura
reflexiva da unidade substancial do “absoluto panteístico”, tão bem dramatizado por ele em seus
escritos estéticos. A imanência do conceito, ou da substância panteística nele encerrada, é para ele a
origem metafísica do tédio e da indiferença que caracteriza o romantismo estetizante, o estágio da
existência que precede a ironia e o ponto de vista ético. Estes últimos, por sua vez, já pressupõem
um lapso de transcendência, que foi também avistado previamente por Sócrates, e que se cumpriu
plenamente no advento de Cristo.
A subjetividade especulativa é, portanto, pautada por um tipo de reflexividade objetiva, que
pressupõe o télos do absoluto e a mediação deste como uma tarefa da reflexão, ou seja, tornar o
imediato infinitamente mediatizado, objetivamente concretizado no conceito. Aqui Kierkegaard
aponta mais uma insuficiência na formulação idealista de sistema, a saber, a de que, ainda que ele
seja capaz de apreender conceitualmente toda a conformação e a atualidade histórica de uma época,
o sistema carece de um registro ético fundamental que possa orientar a ação individual. O sistema
não pode possuir uma ética, pois esta diz respeito ao indivíduo e sua relação subjetiva com uma
prescrição, e essa relação subjetiva é suplantada pela reflexão objetiva. É nesse sentido que se
cumpre a assertiva kierkegaardiana de que a recordação, enquanto um movimento retrospectivo,
não é suficiente para tornar concreto o norteamento da liberdade humana, pois, ainda que seja
perfeitamente correto compreender a vida olhando-a para trás, deve-se vivê-la para frente. O
movimento que instaura a reflexão subjetiva é portanto o inverso do movimento especulativo, mais
exatamente, trata-se do mesmo movimento porém em direção oposta, como Kierkegaard afirma no
texto “Repetição”. A reflexão subjetiva, do ponto de vista abstrato, deve romper o limite do
desdobramento imanente do absoluto para delimitar o seu registro de verdade, e, por assim dizer,
sair de si mesma para que possa então retornar a si mesma numa auto-asserção. Dito de outro modo,
a reflexão é subjetiva quando é capaz de não esquecer a si mesma enquanto existente e enquanto
efetividade concreta, e de assim não ser obrigada a reencontrar-se na abstração da recordação. O
tipo mediativo de auto-reflexão termina por cancelar a si própria, segundo Kierkegaard, num
ceticismo aporético, pois a identidade absoluta, a identidade entre ser e pensar, é atingida apenas
abstratamente, ou seja, no puro pensar.
Este ceticismo representa, no registro do pensamento, o mesmo que o desespero corporifica
na existência; e é esse registro que antecede o momento em que a reflexão transcende efetivamente
os seus limites num movimento cujo operar não é uma mediação conceitual mas uma escolha, uma
decisão efetiva na atualidade. Trata-se, portanto, de um movimento de caráter ético, e não
simplesmente uma abstração teórica. Não se trata, por outro lado, de reduzir a nada o pensamento,
de cancelar a validade de toda relação especulativa com relação ao conhecimento. Trata-se, antes,
de saber que, diante de uma decisão de caráter individual, todo conhecimento termina por ser posto
em suspenso, e o que subsiste é a validade da verdade subjetiva. Quando Kierkegaard afirma que
“todo saber essencial diz respeito à existência”, ele pretende enfatizar que todo saber deve
permanecer relacionado àquele que sabe, aquele indivíduo existente que o profere, e não se pode
atribuir tal estatuto a um tipo de saber que não é apropriado pelo seu possuidor. O caráter prático do
saber permanece numa primazia, e a certeza interior que significa também a posse de si mesmo
nesse saber, um saber que sabe a si mesmo, é o que caracteriza uma transcendência subjetiva. Por
transcendência entende-se este movimento absolutamente subjetivo, que Kierkegaard interpreta de
modo religioso, e que constitui o cerne da sua filosofia. Desse modo, a vinculação do religioso com
a subjetividade é representada através de um entrelaçamento de conceitos que apontam, todos eles,
para o religioso como expressão nuclear do movimento interior. Cada pseudônimo lança mão de
uma articulação conceitual distinta que aponta para o mesmo movimento transcendente; entre eles
constam as expressões “movimento paradoxal em virtude do absurdo”, como em Temor e Tremor,
salto, repetição, reduplicação, redobramento, etc., e também dupla reflexão, que interessa a nós
imediatamente.
Dupla reflexão indica, nesse sentido, a subjetividade existente que sabe a si mesma como tal,
e que na sua atividade reflexionante “saltou” para além de si mesma e apreendeu a si própria como
tal reflexivamente, e por conseguinte esgotou a atividade reflexiva como tal, e foi capaz de atingir
um estágio posterior de agência para além da reflexão, ou seja, o ético, sem contudo abandonar a
própria reflexão, que passou a subsistir a ele subordinada. Tal movimento pode, na sua apreensão,
beirar os limites do impensável, e o fato de Kierkegaard nunca ter construído um sistema de
pensamento que realizasse objetivamente uma dissecação conceitual objetiva, indica que a sua
equivocidade é constitutiva e não pode prescindir desse caráter abstruso para a própria reflexão.
Cabe lembrar que a reflexão pode vir a tornar-se, do ponto de vista da existência, um “espinho na
carne”, e ainda assim subsistir enquanto tarefa, e por isso ela deve ser de alguma forma dominada
por um interesse prático. Mas o que importa a nós é como essa injunção possibilitou a Kierkegaard
lançar as bases para um diagnóstico do seu tempo que se vincula a todo instante com uma apreensão
ético-religiosa da existência e da liberdade humanas, sem que seja posta de lado a tarefa do filósofo
– num sentido socrático – de compreender a si mesmo como uma individualidade historicamente
orientada e à altura de seu tempo.