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Sobre o desenvolvimento dos conceitos de infraestrutura e

superestrutura em Marx e o papel superestrutural do Estado e da


religião
Leonardo Guitton1

Quando ainda não era um ativista político comunista, mas apenas um


talentoso jovem recém-formado em Filosofia pela Universidade de Berlim e
admirador da obra de filósofo alemão Hegel, Karl Marx, nos idos de 1842, foi
bastante impactado pela cena de homens, mulheres e crianças, esfarrapados,
recolhendo galhos de árvores caídos sob perseguição violenta da cavalaria
policial; sob alegação de crime de roubo2. Era uma cena expressiva3 da
transição civilizatória entre o feudalismo [quando a coleta de lenha pelos
pobres, para fins de aquecimento, era permitida] e o advento do capitalismo,
que ensejou o fim da propriedade comunal do solo e sua consequente
apropriação privada; evento que, diga-se de passagem, deu causa a
expressiva emigração de contingentes populacionais europeus para os novos
territórios da América.
Aquela perseguição, como assinala Cristina Portela, “Não era uma
perseguição qualquer: poucos anos antes, em 1836, dos 207.478 processos
criminais abertos pelo estado prussiano, ¾ referiam-se a roubo de lenha e
outras supostas transgressões contra a propriedade florestal”4.
Ainda ressaltando a relevância dessa experiencia para Marx, Cristina Portela
detalha que:
Sobre a importância desse tema para Marx, Friedrich Engels escreveu:
“Sempre ouvi Marx dizer que foi pelo estudo da lei sobre o roubo das
madeiras e da situação dos camponeses da Mosela [região na fronteira entre
França e Alemanha] que ele foi levado a passar da política pura para o estudo
das questões econômicas e, por isso mesmo, para o socialismo”.5

Essa tomada de consciência acerca do tratamento desumano dispensado aos


pobres e a empatia a estes dirigida, é produto do conhecimento adquirido
sobre o sofrimento das massas e de reflexão filosófica no sentido de que as
coisas [as relações sociais] não precisam ser assim, marcadas pela violência
e exploração de muitos por poucos, dado “o contínuo processo civilizatório”6.

1
Professor Adjunto da Faculdade de Planaltina/UnB.
2
Cf. PORTELA, Cristina. O jovem Karl Marx. Disponível em: https://emluta.net/2017/09/10/o-jovem-karl-marx/. Acesso em: 17 jan. 2019.
3
Cena cinematograficamente reproduzida no filme O jovem Marx, dirigido por Raoul Peck e disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=2M5vo2n6G7Y. Acesso em: 17 jan. 2019.
4
PORTELA, Cristina. O jovem Karl Marx. Ob. cit.
5
Idem.
6
Cf. ANTUNES, Maria da Penha Fornanciari. O futuro de uma ilusão. Revista da Faculdade de Educação, Ano V nº 7/8 (Jan./Dez.
2007), p. 171-176. Disponível em: http://www2.unemat.br/revistafaed/content/vol/vol_7_8/artigo_7_8/171_176.pdf. Acesso em: 17 jan.
2019.

1
Esta a “epifania” que constituiu uma causa relevante em todo o esforço
analítico, no âmbito da economia, da política, da sociologia e da filosofia, de
Marx. Assim, primeiramente estabelecendo uma teoria da sociedade sob o
modo capitalista de produção, e, em segundo lugar, um prognóstico sobre a
superação do capitalismo pelo socialismo7. Este esforço cognitivo para
compreensão da realidade social sob o capitalismo foi fundamentado em dois
planos metodológicos ou referenciais teóricos: a) do materialismo dialético, e
b) do materialismo histórico.
A partir do materialismo histórico, Marx desenvolveu dois conceitos
importantes para compreensão da organização da sociedade capitalista e sua
estrutura social, apontando a sociedade como composta por dois elementos
fundamentais: a) a infraestrutura, e b) a superestrutura.8

• Infraestrutura - de acordo com Bodart (2016), para Marx, a


infraestrutura constitui o conjunto onde está a base econômica da
sociedade; portanto a economia, as formas de produção, as relações de
produção e as relações de trabalho, estas marcadas pela exploração da
força de trabalho no interior do processo de acumulação capitalista. A
infraestrutura, assim, constitui o conjunto formado pela matéria-prima,
pelos meios de produção e pelos próprios trabalhadores (onde se dá as
relações de produção: empregados-empregados, patrões-empregados).9

• Superestrutura - é a projeção, a expressão cultural, das formas e


relações de produção; ou seja, é a expressão cultural da infraestrutura.
Assim, a superestrutura é fruto de estratégias dos grupos dominantes para
a consolidação e perpetuação de seu domínio [econômico, político e
social]. É composta pela estrutura jurídico-política e a estrutura ideológica
(Estado, Religião, Artes, meios de comunicação, etc.).10

Sobre o Estado, enquanto elemento da superestrutura, e seu papel, Bodart


leciona:
"Para essa consolidação e perpetuação da dominação das classes
dominantes estes (sic) utilizam de estratégias que demandam ora uso da
força, ora da ideologia (MARX, 1993). Um exemplo de um instrumento de
uso da força é o Estado, o qual possui o uso da força legitimado pela

7
Prognóstico, diga-se de passagem, abalado pela “maré tecnológica”; nos termos abordados por André Quaresma. Cf. QUARESMA,
Alexandre. A ambivalência da sociedade tecnocientífica. Filosofia, ciência & vida. São Paulo, ano VII, No. 83, junho 2013, pp. 55-61. No
mesmo sentido ver: [a] FUKUYAMA, Francis. Nosso futuro pós-humano: conseqüências da revolução da biotecnologia. Rio de Janeiro:
Rocco, 2003. [b] HABERMAS, J. O futuro da natureza humana: a caminho da eugenia liberal? São Paulo: Martins Fontes, 2004.
8
Cf. BODART, Cristiano das Neves. Infraestrutura e superestrutura em Marx. Disponível em:
https://www.cafecomsociologia.com/infraestrutura-e-superestrutura-em-marx-2/. Acesso em: 17 jan. 2019.
9
Idem.
10
Idem.

2
ideologia. Para Marx, o Estado está sempre à serviço da classe dominante,
buscando manter o status quo."11 (grifo nosso)

Já sobre a religião e seu papel ideológico, Lenin aponta sua


instrumentalização para o controle e a submissão das classes dominadas
(conjunto daqueles que vivem do trabalho) pelas classes dominantes
(conjunto dos proprietários dos meios de produção):
"A sociedade contemporânea assenta toda na exploração das amplas massas
da classe operária por uma minoria insignificante da população, pertencente
às classes dos proprietários agrários e dos capitalistas. Esta sociedade é
escravista, pois os operários «livres», que trabalham toda a vida para o
capital, só «têm direito» aos meios de subsistência que são necessários para
manter os escravos que produzem o lucro, para assegurar e perpetuar a
escravidão capitalista. A exploração econômica dos operários causa e gera
inevitavelmente todos os tipos de opressão política, de humilhação social, de
embrutecimento e obscurecimento da vida espiritual e moral das massas. Os
operários podem alcançar uma maior ou menor liberdade política para lutarem
pela sua libertação económica, mas nenhuma liberdade os livrará da miséria,
do desemprego e da opressão enquanto não for derrubado o poder do capital.
A religião é uma das formas de opressão espiritual que pesa em toda a parte
sobre as massas populares, esmagadas pelo seu perpétuo trabalho para
outros, pela miséria e pelo isolamento. A impotência das classes exploradas
na luta contra os exploradores gera tão inevitavelmente a fé numa vida melhor
além-túmulo como a impotência dos selvagens na luta contra a natureza gera
a fé em deuses, diabos, milagres, etc. Àquele que toda a vida trabalha e
passa miséria a religião ensina a humildade e a paciência na vida terrena,
consolando-o com a esperança da recompensa celeste. E àqueles que vivem
do trabalho alheio a religião ensina a beneficência na vida terrena, propondo-
lhes uma justificação muito barata para toda a sua existência de exploradores
e vendendo-lhes a preço módico bilhetes para a felicidade celestial. A religião
é o ópio do povo. A religião é uma espécie de má aguardente espiritual na
qual os escravos do capital afogam a sua imagem humana, as suas
reivindicações de uma vida minimamente digna [...]".12

Em conformidade com Marx e Lenin, Sacha Calmon (2010) leciona no sentido


de que “a Religião, a Ética e o Direito são técnicas normativas. Visam todas
elas ao regramento dos comportamentos humanos nas sociedades
politicamente organizadas”; e de que “as três religiões semitas, o judaísmo-
tronco e seus ramos, o cristianismo e depois o islamismo”, apresentam-se, no
palco da História, “como sistemas antropomórficos, ou seja, como sistemas
de controle social, altamente repressivos, construídos à imagem e

11
Idem.
12
Cf. LENIN, V. I. O socialismo e a religião. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1905/12/03.htm. Acesso em: 17 jan.
2019.

3
semelhança das ideias, crenças, noções e interesses radicalmente humanos
[...]”.13
Mas é em Freud que o papel ideológico da religião se desnuda de forma mais
radical, ao postular sua insustentabilidade racional e, consequentemente, seu
relevante papel politico de contenção social. Para o autor, as idéias religiosas
só possuem significação psicológica; não existindo nenhuma ideia ou
argumento que a razão possa aceitar como prova de veracidade das
doutrinas religiosas. Com efeito, as igrejas têm de sustentar que as doutrinas
religiosas estão fora da jurisdição da ciência ou da razão.14
Neste sentido, detalha Antunes (2007), com fundamento em Freud, que:
As idéias religiosas têm origem psíquica. São ilusões dos desejos do homem
de, na vida adulta, continuar a receber proteção de alguém que possua força
para garanti-la como seu pai o fazia na infância.
Como a vida terrena é dura e acompanhada de muita injustiça nas relações de
toda natureza, os homens encontram forças para suportá-la acreditando na
existência da justa e benevolente providência divina.15

Nos termos da teoria freudiana, portanto, as ilusões religiosas compõem a


classe das ilusões de tipo pernicioso, "especialmente quando pretendem
disputar com a ciência o terreno do conhecimento. As religiões o fazem ao
criar suas cosmogonias e ao pretender que tais mitos tenham valor de
verdade, e ao pretender que a revelação seja uma “fonte” do conhecimento,
igual ou até superior em dignidade à trabalhosa, porém segura, forma
científica de pensar"16.
Assim, à diferença de Freud, para quem um afastamento da humanidade da
religião a libertaria da submissão aos [supostos] poderes divinos17, Marx e
Lenin defendem que o abandono da religião constitui fator fundamental para
que a humanidade viva o concreto, a realidade da vida. Esse afastamento da
religião constituiria, pois, um passo fundamental para a libertação política e
econômica da exploração burguesa; classe, portanto, que explora a religião
como fator de manutenção da passividade e da submissão, como meio de
controle social, empregando a religião como um ópio para povo, induzindo-o a
viver em estado hipnoide.

13
Cf. CALMON, Sacha. A história da mitologia judaico-cristã. São Paulo: Noeses, 2010, p. XIII.
14
Cf. ANTUNES, Maria da Penha Fornanciari. O futuro de uma ilusão. Ob. cit.
15
Idem.
16
Cf. MEZAN, Renato. Que tipo de ciência é, afinal, a Psicanálise? Natureza Humana, 9(2): 319-359, jul.-dez. 2007. Disponível em:
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/nh/v9n2/v9n2a05.pdf. Acesso em: 25 jan. 2019.
17
ANTUNES, Maria da Penha Fornanciari. O futuro de uma ilusão. Ob. cit.

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