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A Capoeira e a liberdade

22/08/2018
| Autor:
Carlos São Paulo

A capoeira nasceu de uma necessidade do desenvolvimento da inteligência


corporal, forçada por circunstâncias em que os negros eram explorados como
escravos, aqui no Brasil. Assim, deixou de ser uma expressão de um povo
oprimido para ser uma expressão livre de arte.

A capoeira acontece dentro de um círculo de três metros de diâmetro e, dentro


desse círculo, encenam-se e dramatizam-se temas arquetípicos (que de acordo
com Jung, são padrões inatos de comportamento, herdados, comuns à
humanidade) e trocas de energias. É o jogo da capoeira que comporta e abriga
tudo que é do ser humano – isto é, os opostos: luminoso/obscuro, dança/luta,
sabedoria/brincadeira, etc.

O círculo é uma das grandes imagens primordiais da humanidade, e Jung


conceituou o Si-mesmo como: “a circunferência total que abrange tanto o
consciente como o inconsciente; é o centro dessa totalidade, como o Ego é o
centro da mente consciente” (CW 12, par.444). Chegou a comparar o Si-
mesmo a uma arena de luta em conflito entre opostos polares, mas, sobretudo,
a um sistema auto-regulador que buscava equilíbrio por meio da interação de
forças contrárias.

Não se pode considerar o conceito do Si-mesmo (trata-se de um conceito


empírico e não uma formulação filosófica ou teológica) sem se aproximar por
meio de sua semelhança, da “Imagem de Deus”. A necessidade de os
fenômenos psíquicos se expressarem por meio de uma imagem para poder
existir, faz com que o Si-mesmo busque, pela função que guarda, uma imagem
de Deus, enquanto o Ego se basta com a imagem do corpo. Para Jung, é por
causa da constante indiscriminação entre objeto e imago que as pessoas não
conseguem fazer uma distinção conceitual entre Deus e imagem de Deus, e
portanto pensam que quando se fala imagem de Deus, está-se falando de
Deus e apresentando explicações teológicas(CW 8. P.528).

Deus, enquanto imagem do Si-mesmo, poderá adquirir diversas faces em cada


cultura e até mesmo uma face particular para cada indivíduo que cultua aquele
seu deus. Nos anos de 1260 a 1328 o Mestre Eckhart dizia que a qualidade da
vida de um homem depende das exigências a que sua alma faz quando admira
a face de seu deus. Não se trata aqui de um deus metafísico e sim uma
metáfora de deus.

Numa perspectiva histórica da capoeira, foi roubada dos negros sua


individualidade, sua liberdade e sua independência. Subjugados pelos
senhores, extenuados pelo trabalho forçado a que eram submetidos, sujeitos
às mais ultrajantes humilhações e degradação, havia pouca ou quase nenhuma
energia à disposição para lutar contra esse estado de coisas. Não havia forças
suficientes para arrancar as correntes que os senhores lhes impuseram.
Mergulhados nessa realidade sórdida, mostravam-se como que atônitos,
vítimas do destino e à mercê dos deuses. Em certas ocasiões, esses deuses
parecem estar entediados e, querendo brincar de alguma forma, colocando
todos em situações até certo ponto desconfortáveis.
Quando a pessoa se sente acorrentada, o ego encontra-se fragilizado. Não se
reconhece as próprias possibilidades e ainda se as projetam em nossos
adversários.

Podemos dizer que nos sentimos escravos daqueles sobre quem projetamos o
poder. Em uma análise simbólica, a “corrente” nos remete à idéia de prisão.
Para sairmos desse aprisionamento, necessitamos do Outro, mas precisamos
também reconhecer nossas próprias potencialidades. Enquanto não abrirmos
mão dessa “corrente”, continuaremos invejando o Outro, projetando nele
nossas próprias possibilidades e esperando que ele desempenhe os potenciais
que ainda não integramos em nós mesmos.

Para sair da condição de escravo, por outra parte, os negros, apoiados em


seus deuses, passam a se utilizar dos recursos da natureza, procurando, dessa
forma, entrar em contato com os novos valores. Nasce então a capoeira,
inicialmente como defesa. Essa é a artimanha criada pelo escravo para
trabalhar com a experiência de oprimido, reprimido, submisso e rejeitado.
Entretanto se o escravo está se aprontando para lutar contra a opressão, não
poderia fazê-lo aos olhos do senhor. A capoeira como luta, precisava ser
disfarçada e é então transformada, como num truque, numa dança. O escravo
se utiliza desse recurso para enganar e iludir o senhor. A capoeira, como luta,
veio como uma defesa. Ela não veio para ser uma ligação mais verdadeira com
o senhor. Ela veio para matar o senhor.

Aqui, continuando a explicar com a história da capoeira o funcionamento do


psiquismo humano, em situações como aquela vivida pelos escravos, a
imagem de um deus guerreiro (a exemplo de Xangô) fará com que um
movimento criativo se insinue dentro e fora de nós. Começa agora a se
instaurar um ego mais fortalecido, a auto-estima vai sendo pouco a pouco
resgatada. Há indícios de uma fé inabalável, e o poder, que antes se
encontrava deslocado no Outro, vai sendo paulatinamente resgatado.
Entretanto, a consciência ainda não conseguiu integrar esse poder e por isso
se utiliza de uma falsa persona. Persona, de acordo com Jung, é a máscara
colocada pelo indivíduo de maneira a facilitar a comunicação com o seu mundo
externo e ser aceito pelo grupo social a que pertence.

O surgimento, nessa etapa da história, de heróis como Zumbi alude à


emergência de novos valores que estão surgindo das profundezas de nosso
inconsciente. É o convite para uma jornada redentora e criativa, para que
possamos nos beneficiar dos tesouros escondidos dentro de nós, como a
liberdade. Os heróis trazem as qualidades que não estavam integradas em
nossa consciência, como por exemplo, o poder. Em outras palavras, das
profundezas do nosso íntimo começa a insinuar-se lentamente uma dança, a
dança da libertação. É nessa fase que estamos com um ego mais forte e já não
estamos tão vulneráveis. Na história da capoeira, essa fase corresponde ao
surgimento do Quilombo de Palmares que resiste bravamente ao poder
colonial.

Com a abolição da escravatura, os escravos livres levam a capoeira para a


marginalidade e aprimoram as técnicas de ataque e defesa. Eles agora
estavam soltos e desempregados pelas ruas. Começaram a promover
badernas e ganharam cada vez mais habilidades. O berimbau agora ganha
mais um anexo-a navalha- tendo agora duas funções: uma, a de avisar a
aproximação da polícia, e a outra, de funcionar como uma foice para enfrentar
os soldados.

Nosso destino quer se expressar, e o universo, por sua vez, traz os objetos e
situações externas para um encontro que se propõe a fazer nossa consciência
crescer e perceber partes não vividas até então. Agora, portanto, em contato
com o nosso lado escuro, libertamos o potencial oculto de nossa natureza. É o
confronto real com a sombra. Sombra, Jung a definiu como “a coisa que uma
pessoa não tem o desejo de ser” (CW 16, par.470). O ego está, nesse
momento, mais preparado para ver os aspectos umbrosos da personalidade. O
resultado desse confronto é imprevisível, é arquetípico. A única certeza é a de
que ambas as partes serão transformadas.

O ego necessita agora viver a perda, abrir mão de alguns aspectos e integrar
outros para, então, transcender esse estágio. Não será possível avançar na
sua trajetória sem perder muitos membros. Isto é, algumas partes do ego
precisam morrer para dar lugar a outras, mais criativas.

No governo de Vargas, a capoeira é apresentada como arte. A sua prática é


liberada e transforma-se num esporte nacional, ensinada em academias e
fazendo parte dos programas de governo para o turismo. Agora, a capoeira
verdadeiramente livre lança seu corpo no espaço e vive a harmonia dos seus
opostos. Não é mais necessária a persona falsa, o berimbau não tem mais a
função de alertar para a presença da sombra, isto pertence ao passado.

Este momento que foi transformado é a sugestão de vida e de aspectos antes


negados pela consciência que passam a ser símbolos criativos estruturantes
da personalidade, trazendo sentido para nossas vidas.

O que a capoeira vem nos mostrar é que a vida é tudo isso: uma dança, um
jogo, uma luta, um ritual, um processo em permanente mudança, um
movimento.

Como luta, é o aspecto que nos leva a enfrentar as adversidades que se


interpõem em nossa jornada, podendo ou não nos desviar de nossa missão.

Como jogo, aprendemos a ganhar ou perder num propósito de seguir nosso


destino sem nos permitir a paralisia de não jogar. Muitas vezes pensamos que
estamos perdendo e na realidade estamos ganhando a possibilidade de
seguirmos nosso verdadeiro caminho. Em outras ocasiões acontece o
contrário.

Como dança, descobrimos que apesar de nossa caminhada ser solitária,


precisamos nos relacionar com o outro desconhecido dentro de nós, que só
poderá ser despertado por meio da relação com o Outro. Para isso, precisamos
aprender a dançar com esse Outro, ser uma dança que para possuir harmonia
precisa adquirir mais sabedoria do que conhecimento. É a sabedoria do viver e
entregar-se nas mãos de um Deus que habita as regiões abissais da nossa
natureza.

Como ritual, nos aproximamos de Deus. Protegidos pela divindade,


encontramos o sentido do viver e, através dos mistérios que nos arrodeiam
buscamos uma meta inatingível que nos faz desfrutar da caminhada em sua
direção, pois aí está o sentido do viver. É como se aproximar do horizonte, o
belo está em apreciá-lo e não em chegar lá.

Bibliografia

Areias, Almir (1983). O que é capoeira. São Paulo. Brasiliense. V. 1


Jung, C. G. (1990). Psicologia e alquimia. CW 12. Rio de Janeiro: Vozes.
Jung, C. G. (1996). A natureza da psique. CW 08. Rio de Janeiro: Vozes.
Jung, C. G. (1971). Abreação, análise dos sonhos, transferência. CW 16. Rio
de Janeiro: Vozes.
Carlos São Paulo – médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto
Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica,
Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br / www.ijba.com.br

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