Professional Documents
Culture Documents
DE SUA REUMANIZAÇÃO
55
do permanente de reivindicação, estimulada pelos meios de comunicação e diversão
(sobretudo a televisão); o ideal do desenvolvimento econômico como prioridade bá-
sica dos povos; a internacionalização, ou transnacionalização, da economia - tudo
concorre para colocar a empresa como centro do questionamento básico da socieda-
de moderna.
No conhecido Relatório Sudreau (encomendado pelo governo francês, sobre a
Reforma da Empresa, de 1975) foi dito:
"Esse papel motor da empresa é um dos traços dominantes de nosso
modelo econômico: por seu poder de proposição, a empresa é a fonte de cria-
ção constante da riqueza nacional; ela é também lugar de inovação e de pro-
moção."
E adiante:
"A empresa é, igualmente, um campo de. iniciativa pessoal. Ela oferece,
a cada um, um itinerário de promoção."
No livro Quand L 'entreprise s'éveille à la conscience sociale (paris, 1975) os em-
presários François Dalle e J. Bounine afirmam:
"No curso dos últimos anos, as sociedades industriais viram crescer seus
índices de produção a taxas jamais igualadas. Seus membros puderam benefIciar-
se de uma abundância de bens materiais e modos de vida que teriam sido inima-
gináveis há apenas quinze anos. Mas, para tanto, tiveram que consentir em vi-
ver em estado de simbiose sem precedentes com a empresa. Jamais os homens,
em atividade ou aposentados, trabalhando ou viajando, repousando ou se ali-
mentando, sentiram tão intensamente como em nossos dias os efeitos do pro-
cesso de industrialização." (pág. 37)
Já que estamos trazendo à colação o depoimento de alguns autores - dentre
os muitos, em número crescente, que se têm preocupado com o tema - invoquemos
a palavra de Francis-Paul Bénoit que, ao lançar a revista Connaissance Politique,
dedicou o primeiro número, de 1983, integralmente, ao exame da problemática da
empresa, e explicou:
"Por que a empresa é objeto deste primeiro número? Porque ela está no
coração do debate político atual."
É na empresa que se realizam - no seio de sociedades como a nossa, na
qual a economia repousa sobre o desenvolvimento das ciências, das técnicas e
da indústria - as adaptações que implicam-a evolução do saber, dos meios e
das mentalidades. Com a revolução tecnológica que vivemos, o homem criou
utilidades novas; essas utilidades mudam as condições de vida, e podem mudar
o próprio homem. São as empresas que, fundamentalmente, têm feito face aos
difíceis problemas de iniciativa, do controle - e da aceitação também - dessas
transformações.
56
É a empresa o quadro de reencontro dos homens para a ação em comum
que assegura sua existência. É na empresa - sejam patrões, executivos, técni-
cos, empregados ou trabalhadores - que os mais capazes de iniciativa, de es-
forço, de responsabilidade, os mais dotados, os mais hábeis, os mais trabalha-
dores, se põem aos serviços dos outros, para a criação de riquezas, das quais
se beneficia a humanidade por inteiro. É também na empresa que se exprimem
as tensões no que conceme à partilha dos papéis e do proveito entre todos os
que contribuem para a produção."
E, pouco depois:
"Meio de vida, lugar de criação, de adaptação, de cooperação, mas tam-
bém de confrontação, a empresa tomou-se, com a família, a instituição essen-
cial da sociedade."
3. O Estado empresário
57
4. O poder da empresa e sua correlata responsabilidade
As referências acima bastam para evidenciar que a empresa, pela sua importân-
cia econômica (unidade de produção da economia moderna) e significado humano
("quadro de encontro dos homens para a ação em comum que lhes assegura sua exis-
tência") ascendeu a um significado político e social, transformando-se no pólo de
discussão e debates dos sociólogos, dos economistas, dos politicólogos, dos juristas,
que sobre ela se debruçam em busca da inteligência e da solução dos problemas con-
temporâneos.
Essa importância econômica e social haveria que projetar-se em termos de po-
der. Com efeito, cada empresa representa um universo, integrado pelos recursos fi-
nanceiros de que dispõe e pelo número de pessoas que mobiliza a seu serviço direto.
O círculo de dependentes das decisões empresariais não se esgota aí, no entanto. As-
sim, no campo econômico-financeiro a atividade traz repercussões aos fornecedores
dos insumos, às empresas concorrentes ou complementares, aos consumidores que
se habituaram aos seus produtos, aos investidores que se associaram à empresa, e
aos mercados em geral; no setor humano, a empresa, como se disse, é campo de pro-
moção e realização individual, cuja ação (de propiciar emprego, demitir, promover,
remover, estimular e punir) ultrapassa a pessoa diretamente atingida para projetar-
se nos campos familiar e social.
Ora, decisões tão abrangentes (na pequena, média ou grande empresa, nesta es-
pecialmente) e de que depende a vida, e a realização de tantas pessoas, e o desenvol-
vimento econômico em geral, são tomadas pelos administradores da empresa - que
exercem, assim, um poder da mais relevante expressão, não só econômica como po-
lítica e social, e o das mais fundas conseqüências na vida moderna.
A existência desse poder empresarial, de tão extraordinário relevo na sociedade
moderna, importa - tem que importar - necessariamente em responsabilidade so-
cial. Este é o preço - dizia Ferdinand Stone - que a empresa moderna terá que
pagar em contrapartida ao poder que detém.
58
for the ratable benefit of ali the stockholders as their interest appears", enquando
o segundo aditava que o uso da propriedade privada envolvia fundamente o interes-
se público (deeply affected with a public interest"). Esse debate, dos mais esclarece-
dores, terminou com a concordância de Berle "at least for the time being" com as
teses de Dodd - como se pode ler no seu livro The 20th Century Copitalist Revolu-
tion, N.Y., 1954, pág. 169.
No estudo de Eugene Rostow, então "Dean of the Law School", Yale Univer-
sity ("To whom and for what ends is corporate management responsable?" in "The
Corporation in Modem Society", de E. Mason, págs. 46 e segs.) cita ele a manifes-
tação do Ministro Douglas, da Corte Suprema, então chairman da Securities and
Exchange Commission:
"Hoje é geralmente reconhecido que todas as companhias possuem um ele-
mento de interesse público. O Diretor de uma sociedade deve pensar não so-
mente em função dos acionistas mas também do trabalhador, do fornecedor,
do vendedor, e do consumidor último de seus produtos.
Nossa economia é como uma corrente que não será mais forte que qual-
quer de seus elos."
E, em verdade, a matéria não mais comporta divergência no direito brasileiro,
pois já foi consagrada na vigente Lei de Sociedades por Ações (Lei 6.404/76) que,
no art. 154, prescreveu:
"Art. 154 - O administrador deve exercer as atribuições que a lei o estatu-
to lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as
exig~ncias do bem público e da função saciol da empresa."
Da mesma forma, no art. 116, parágrafo único, ao disciplinar a figura do acio-
nista controlador, dispôs:
"O acionista controlador deve usar o poder com o flDl de fazer a compa-
nhia realizar o seu objetivo a cumprir suafunção social, e tem deveres e respon-
sabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham
e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente
respeitar e atender."
A satisfação desses deveres e responsabilidades há que traduzir-se na busca atenta
e permanente da conciliação do interesse empresarial com o interesse público; no aten-
dimento aos reclamos da economia nacional, como um todo, na identificação da ação
empresarial com as reivindicações comunitárias - numa palavra, na observância de
uma ética empresarial, que, aímal, é o que distingue o aventureiro do empresário.
Mas ainda, o dever social da empresa é, também, um compromisso permanente
com a reumanização da economia - como, aliás, vem sendo proposto e executado
em várias partes do mundo. Citem-se, a titulo de ilustração, alguns exemplos: a ins-
tituição das comissões de fábricas, já vigentes nos países nórdicos, com poderes para
deliberarem sobre condições do trabalho, higiene e segurança, luta contra a mono-
59
tonia de certas tarefas, etc.; a instituição dos comitês de empresa, competente para
as discussões de interesse geral, salários, planos de desenvolvimento, dispensas, etc.;
a co-gestão ou co-decisão - integrando os trabalhadores nos Conselhos das empre-
sas (modelo alemão); a participação nos lucros direta ou indiretamente; a participa-
ção na propriedade e no contrato de empresa (projeto sueco); a obrigatoriedade da
realização anual de um "balanço social da empresa (como propõe A. Chevalier, Le
Bilan Social de L 'Enterprise, Ed. Masson), para quantificar (ou tentar fazê-lo) o de-
senvolvimento de programas de caráter social, de aperfeiçoamento de recursos hu-
manos, assistência social, etc.
Ao lado da proteção direta do interesse do trabalhador, hão de ser alinhadas
as outras medidas que visam a proteger a própria empresa (e pois a sobrevivência
de sua atividade de interesse econômico e social), como v.g., tratamento fiscal para
os dividendos mínimos como "salário" dos investidores e empresários; assistência
técnica e fmanceira às empresas (criação dos chamados "hospitais de empresa"),
a alteração da lei de falências para introduzir o processo de reorganização de empre-
sa; e, talvez, a personalização jurídica da empresa, admitida a limitação individual
de responsabilidade.
O comportamento ético da empresa, sua orientação no sentido da observância
do interesse público, é, pois, um dever legal, já agora inscrito em nosso direito posi-
tivo. Mas, entre a norma genérica, enunciada como ideal a ser atingido, e a prática
da vida empresarial vai distância que só a divulgação desses princípios, com a corre-
lata ação do Estado pode - e deve - superar.
É imprescindível, e inadiável, que, de par com a atenta fiscalização da salva-
guarda desses princípios, ou standards legais, os Poders Públicos induzam as empre-
sas à sua observância, seja nas leis fiscais, sociais, ou societárias, seja no trato, ou
nos contratos, que com elas mantêm no curso de sua atividade econômica. Por ou-
tro lado, ao cumprimento desse dever social - sobretudo na fase inicial que atraves-
samos, em que poucas empresas têm consciência do problema - há que correspon-
der a ação do poder público; em reconhecê-lo e premiá-lo, de forma a criar legítimo
interesse na sua observância.
Em outras palavras, impõe-se que o cumprimento dos deveres sociais das em-
presas, e a lealdade na busca do interesse público, ascendam com a eficiência a crité-
rios básicos e distintivos entre a boa e a má corporação, entre a idônea e a inidônea
- e que se priVilegiem as boas como sanção das más.
Só agora os estudiosos se vão dando conta de que nos encontramos no vórtice
de um processo de transformação social que tem por base a cédula empresarial. O
preço dessa transformação será tanto menor quanto mais os empresários e o Estado
se anteciparem na compreensão do fenômeno, e agirem em conseqüência.
Trata-se, numa palavra, da tarefa básica do mundo moderno: reumanizar a em-
presa. Como disse Saint-Exupéry, com a revolução industrial, o homem construiu
uma nova casa - mas nã.o aprendeu, ainda, a habitá-la. Cumpre a todos, e a cada
um, tomá-la habitável.
60