You are on page 1of 9

Desenvolvimento histórico do

processo de ensino e aprendizagem


da leitura e da escrita
Vamos iniciar nossa disciplina refletindo sobre o desenvolvimento his-
tórico do processo de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita, apon-
tando-o como prática pedagógica essencial da escola moderna.

Essa reflexão toma como marco inicial a organização do trabalho pe-


dagógico proposto por Comenius, que oferece a sistematização da apren-
dizagem da leitura por meio da cartilha, método que perdurou no longo
período de vigência do ensino tradicional.

Na escola atual, as mudanças tecnológicas dos meios e conteúdos da


comunicação, produzidas no interior do processo de expansão e globali-
zação das relações sociais capitalistas, exigem a inserção do alfabetizando
nas práticas sociais de leitura e escrita, que chamamos de letramento, ul-
trapassando a mera aquisição da técnica do ler e escrever.

A concepção de letramento como fundamento do ensino e da apren-


dizagem da leitura e da escrita, por sua vez, demanda a adoção tanto de
novos conteúdos como da metodologia de seu ensino.

Alfabetização: a cartilha desde Comenius


A produção social da necessidade de universalização do domínio da
leitura e da escrita pela via do ensino escolar tem suas raízes na moder-
nidade. Sua emergência se dá no contexto da expansão do comércio de
mercadorias, produzidas em manufatura, sob a forma do trabalho cole-
tivo e do desenvolvimento da nova ordem social burguesa, constituída
pelas classes em ascensão: a burguesia empreendedora e os trabalhado-
res manufatureiros.

Por seu turno, os reformadores protestantes, coerentemente com o es-


pírito burguês, preconizavam, desde o século XVI, o aprendizado da leitu-
ra, ainda que elementar, com a finalidade de conhecer o texto bíblico.
Alfabetização e Letramento

Nesse contexto de transformações sociais, coube a João Amós Coménio ou


simplesmente Comenius, pastor protestante, considerado o pai da Pedagogia
moderna, lançar, no século XVII, os fundamentos da escola que perdura até
nossos dias, definindo a organização do trabalho pedagógico com base nos ele-
mentos constituintes da produção manufatureira, já presentes na sociedade de
seu tempo (ALVES, 2001).

Ao preconizar o princípio bem conhecido de ensinar tudo a todos, Comenius


define em primeiro lugar o papel do professor. Nesta escola, não há mais lugar
para o sábio, que inicia cada discípulo nas fontes do conhecimento aprofunda-
do, mas o mestre capaz de promover a instrução sobre tudo pelo uso do método
que generaliza o conhecimento necessário ao cidadão comum.

Tal como a manufatura, que abandona o artesão, conhecedor da arte de


elaborar seu produto com maestria, e o substitui pelo trabalhador, que realiza
tarefas parceladas no processo coletivo de trabalho, Comenius concebe a sim-
plificação do trabalho do professor pelo emprego do manual didático como ins-
trumento do ensino. O livro didático difere dos livros científicos ao apresentar o
conhecimento não com a profundidade das fontes originais, mas compendiado
em fórmulas e definições que introduzem o aprendiz nos primeiros passos da
instrução científica.

Nessa perspectiva, Comenius propõe a cartilha de ensinar a ler, elaborada


com a preocupação didática de iniciação à leitura, ilustrada com figuras ao lado
das palavras, das sílabas e das letras do alfabeto. Nada mais parecido com as
cartilhas que ainda perduram nas nossas escolas.

Outro aspecto da escola de Comenius que cabe mencionar é a instrução si-


multânea, ou seja, a classe heterogênea, com os alunos realizando o aprendiza-
do ao mesmo tempo, embora em graus e atividades diferenciadas. Trata-se da
utilização do mesmo princípio do trabalho coletivo manufatureiro e sua conco-
mitante divisão de tarefas, que viabiliza o aumento da produção. Na escola, o
ensino simultâneo possibilita a realização do princípio do ensinar a todos, embora
sua realização só tenha sido efetivamente alcançada por meio de difícil e lento
esforço social, apresentando os primeiros resultados em meados do século XIX.

Consagrada a organização do trabalho pedagógico da escola moderna, que


com o professor e o livro didático ensinam o conhecimento sistematizado para
muitos, o aprendizado da leitura e escrita ocupa um lugar de destaque no pro-
cesso que chamamos de ensino-aprendizagem.

12
Desenvolvimento histórico do processo de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita

Alfabetização ou letramento?
A prática pedagógica do aprendizado da leitura e da escrita por meio da car-
tilha perdurou durante o longo período que chamamos de ensino tradicional.

Esse método, centrado no domínio do código, revelou-se suficiente dadas as


condições históricas próprias do aprendizado da leitura, tais como o uso privile-
giado da escrita (as cartas, os bilhetes, os registros de compra etc.) dos recursos
de comunicação entre interlocutores distantes e em razão da ausência de outros
meios técnicos.

Entretanto, o processo crescente de expansão e globalização do capital, ao


intensificar as relações sociais recíprocas de interdependência entre sujeitos
de classes sociais, comunidades, regiões e países diversos, produziu também
novos processos de comunicação quanto aos seus meios e conteúdos. Trata-se
de um processo comunicacional dotado de tamanha rapidez, de tal simultanei-
dade entre a produção e a recepção de um grande número de informações que
passou a exigir novos patamares de leitura e de escrita, denominados pelos es-
tudiosos de letramento.

Segundo Soares (2003, p. 20) “só recentemente passamos a enfrentar esta


nova realidade social em que não basta apenas saber ler e escrever, é preciso
também saber fazer uso do ler e escrever, saber responder às exigências de lei-
tura e escrita que a sociedade faz continuamente”.

Para ampliar a concepção de letramento, recorremos às reflexões de Klein


(2000, p.11), que assim explica:
Não há dúvida que o letramento é, hoje, uma das condições necessárias para a realização
do cidadão: ela o insere num círculo extremamente rico de informações, sem as quais
ele, inclusive, nem poderia exercer livre e conscientemente sua vontade […] o homem
contemporâneo é afetado por outros homens, fatos e processos por vezes tão distantes de seu
cotidiano que somente uma rede muito complexa de informações pode dar conta de situá-
lo, minimamente, na teia de relações em que se encontra inserido. Neste universo, tão mais
vasto e complexo, a escrita assume relevante função, registrando e colocando ao seu alcance
as informações que podem esclarecê-lo melhor.

Sendo assim, podemos compreender que o processo educacional de acesso


à leitura e à escrita modifica-se, pois o educando é convidado a inserir-se nas
práticas sociais de leitura e escrita, ultrapassando a mera aquisição da “tecnolo-
gia do ler e escrever” (SOARES, 2003, p. 21).

13
Alfabetização e Letramento

Em primeiro lugar, do ponto de vista da complexidade da interlocução, faz-


-se necessário um leitor capaz de compreender o significado dos discursos, in-
terpretando os elementos históricos, científicos e ideológicos que o constituem.
Para isso, precisa dominar os elementos de textualidade que constroem o âmbito
discursivo oral e escrito, como também os elementos materiais de sua codifi-
cação (letras e sons). Por outro lado, cabe salientar que os meios tecnológicos,
que viabilizam simultaneidade à comunicação, conferem menor função prática
à escrita manual, dispensando o aprendizado de vários conteúdos relativos ao
domínio específico do código, como se procedia no passado, no ensino sistema-
tizado por meio das cartilhas. Em resumo, as mudanças apontadas implicam a
adoção de novos conteúdos do ensino da leitura e da escrita, pois, enquanto os
conteúdos relativos à textualidade se tornam cada vez mais relevantes, alguns
aspectos pertinentes ao código perdem sua predominância (KLEIN, 2000).

Entretanto, no que se refere à alfabetização, como momento inicial do pro-


cesso educativo do ensino e da aprendizagem da leitura e da escrita, cabe enfati-
zar, ainda segundo Klein, que esta etapa se caracteriza pelo fato de desenvolver,
junto com os conteúdos relativos à textualidade (coesão, coerência, unidade te-
mática, clareza, concordância – que o modelo tradicional de alfabetização não
levava em conta), também os conteúdos pertinentes à codificação/decodifica-
ção (letras, sílabas, famílias silábicas, direção da escrita, segmentação etc.).

Por fim, como decorrência da adoção de novos conteúdos dos processos edu-
cativos do ensino da leitura e da escrita, pressupõe-se também novos processos,
metodologias e estratégias para seu ensino-aprendizagem.

Podemos concluir que, compreender o desenvolvimento e as mudanças do


processo do ensino e da aprendizagem da leitura e da escrita, pressupõe refletir
sobre os determinantes históricos que produziram formas diferenciadas de or-
ganização do trabalho pedagógico em momentos distintos.

Também cabe examinar o processo social de comunicação, cujos avanços


tecnológicos criam necessidades próprias de produção de um leitor e de um
escritor capaz de se apropriar e de interpretar as informações que circulam na
intensa rede de relações que se estabelece na sociedade.

Como decorrência, cabe à escola considerar a importância e a necessidade de


fundamentar sua prática pedagógica numa clara concepção desses fenômenos
sociais e de suas diferenças e relações. Assim, o caráter histórico da comunicação

14
Desenvolvimento histórico do processo de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita

e do papel que a leitura e a escrita desempenham neste contexto é o ponto de


partida para a formação do educador-alfabetizador, que pretende desempenhar
sua função docente no desenvolvimento de processos educativos de ensino e
aprendizagem, da leitura e da escrita.

Texto complementar

Cartilha de alfabetização e cultura escolar:


um pacto secular
(MORTATTI, 2000)

Necessidade apontada desde o final do século XIX no Brasil, o processo


de nacionalização do livro didático – produzido por brasileiros e adequado à
realidade brasileira – acompanha pari passu o anseio de organização republi-
cana da instrução pública; e, simultaneamente, faz-se acompanhar do surgi-
mento e da expansão do mercado editorial brasileiro, que na escola encontra
espaço privilegiado de circulação e público consumidor de seus produtos.

No entrecruzamento desses anseios e iniciativas, o ensino inicial da leitu-


ra é tomado como problema estratégico, tornando-se um importante índice
para medir a eficácia da escola em relação ao cumprimento da promessa
com que acena às novas gerações e que a caracteriza e justifica: o acesso ao
mundo público da cultura letrada.

Inicia-se, assim, um movimento de escolarização das práticas culturais de


leitura e escrita e sua identificação com a questão dos métodos de ensino.
Lugar de destaque, passam, então, a ocupar as tematizações, normatizações
e concretizações sobre esse ensino e sobre um tipo particular de livro didáti-
co, a cartilha, na qual se encontram o método a ser seguido e a matéria a ser
ensinada, de acordo com certo programa oficial estabelecido previamente.

Embora já na segunda metade do século XIX encontrem-se cartilhas pro-


duzidas por brasileiros, o impulso nacionalizante nessa área se faz sentir, es-
pecialmente em alguns estados, a partir da década de 1890, solidificando-se

15
Alfabetização e Letramento

nas primeiras décadas do século XX, quando se observa o engendramento


de fenômenos correlatos: apoio de editores e especialização de editoras na
publicação desse tipo de livro didático; surgimento de um tipo específico de
escritor didático profissional – o professor; e processo de institucionalização
da cartilha, mediante sua aprovação, adoção, compra e distribuição às esco-
las públicas, por parte de órgãos dos governos estaduais.

Acompanhando o movimento histórico das tematizações, normatizações


e concretizações sobre a questão dos métodos, as primeiras cartilhas brasi-
leiras, produzidas, sobretudo por professores fluminenses e paulistas através
de sua experiência didática, baseavam-se nos métodos de marcha sintética
(processos de soletração e silabação).

Dever-se-ia, assim, iniciar o ensino da leitura com a apresentação das


letras e seus nomes, de acordo com certa ordem crescente de dificuldade.
Posteriormente, reunidas às letras em sílabas e conhecendo-se as famílias
silábicas, ensinava-se a ler palavras formadas com essas sílabas e letras e, por
fim, ensinavam-se frases isoladas ou agrupadas.

Quanto à escrita, esta restringia-se à caligrafia e seu ensino, à cópia, di-


tados e formação de frases, enfatizando-se a ortografia e o desenho correto
das letras.

2.ª lição
va ve vi vo vu
ve va vo vu vi
vo vi va ve vu
vai viu vou
Vocábulos
vo-vó a-ve a-vô o-vo
vi-va vo-vo ou-ve u-va
ui-va vi-vi-a vi-ú-va
Exercícios
vo-vó viu a a-ve
a a-ve vi-ve e vô-a
eu vi a vi-ú-va
vi-va a vo-vó
a a-ve vo-a-va

Exemplo 1- página da Cartilha da Infância, de T.A.B. Gabardo. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
189?, p.11
(Centro de Referência para Pesquisa Histórica em Educação (Unesp-Marília)

16
Desenvolvimento histórico do processo de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita

As cartilhas produzidas, sobretudo no início do século XX, por sua vez,


passaram a se basear programaticamente no método de marcha analítica
(processos de palavração e sentenciação), a partir das contribuições da pe-
dagogia norte-americana, divulgadas inicialmente no estado de São Paulo
pelas reformas da instrução pública na década de 1890 e posteriormente
disseminadas para outros estados brasileiros, por meio de missões de profes-
sores paulistas.

Atividades
1. Quais elementos da organização do trabalho pedagógico da escola moder-
na permanecem presentes até os dias atuais?

17
Alfabetização e Letramento

2. Que competências o contexto de interlocução próprio da sociedade atual


propõe como exigências para a formação escolar do leitor?

3. A alfabetização – como momento inicial do processo do ensino e da aprendi-


zagem da leitura e da escrita – comporta conteúdos relativos à textualidade
e conteúdos pertinentes à codificação/decodificação, que são:

a) ensinados isoladamente.

b) vistos ao final do processo.

c) desenvolvidos em conjunto.

d) trabalhados posteriormente.

18
Desenvolvimento histórico do processo de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita

Dica de estudo
Para ampliar a compreensão da origem da concepção de alfabetização,
que herdamos do nascimento da escola moderna, recomendamos a seguinte
leitura:

BARBOSA, J. J. A herança de um saber. In: Alfabetização e Leitura. São Paulo:


Cortez, 1994. 2. ed. rev. (Coleção Magistério, 2.º Grau. Série Formação do Profes-
sor. v. 16).

19

You might also like