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João I
Contexto histórico
Fernão Lopes, nascido entre 1380 e 1390, provavelmente em Lisboa, era de origem humilde. Foi
tabelião (notário) geral do reino e, para além disso, também exerceu as funções de guarda-mor da
Torre do Tombo (arquivo geral) e “escrivão dos livros” dos primeiros reis da dinastia de Avis, D.
João I e D. Duarte, tendo igualmente sido secretário de confiança do infante D. Fernando (filho de
D. João I).
A partir de 1434, foi nomeado por D. Duarte para desempenhar o cargo de cronista do reino, com
a missão de colocar em crónica “as estórias dos reis que antigamente em Portugal foram”, bem
como os “grandes feitos e altos do mui virtuoso” rei D. João I, seu pai. Em 1454, foi substituído
pelo cronista Gomes Eanes de Zurara e supõe-se que terá morrido em 1459.
Quanto à sua obra, são da sua autoria as crónicas referentes aos reinados de D. Pedro, D.
Fernando e D. João I.
A Crónica de D. João I é considerada a crónica medieval portuguesa mais importante, quer pelos
acontecimentos que relata, quer pela qualidade literária da sua prosa. Foi publicada pela primeira
vez em 1644, em Lisboa, e encontra-se dividida em duas partes:
• a primeira ocupa-se do espaço de tempo desde a morte de D. Fernando até à eleição de D. João
I;
• a segunda relata o reinado deste monarca até à paz com Castela, em 1411.
Face ao exposto, é possível concluir que este reinado ficou marcado por um clima de instabilidade
e de incerteza, que se acentuou aquando da morte de D. Fernando, que não deixou filho varão,
pelo que a sucessão deveria caber a sua filha D. Beatriz, casada com o rei de Castela.
A nobreza e o clero eram partidários de D. Beatriz, enquanto o povo pretendia que o sucessor do
trono fosse um dos filhos bastardos de D. Pedro, meios-irmãos, portanto, do falecido rei
Fernando. Graças a uma conspiração bem urdida pelo influente burguês Álvaro Pais, o povo viria a
apoiar entusiasticamente o Mestre de Avis.
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Afirmação da consciência coletiva
Já vimos como a Crónica de D. João I representa a legitimação da dinastia de Avis. Mas importa
referir que essa legitimação adveio da força do povo, habilmente “conduzido”, é certo, por Álvaro
Pais. Na verdade, o povo, a chamada “arraia-miúda”, foi a força motriz da revolução,
representando todos aqueles que queriam preservar a independência de Portugal, todos aqueles
que manifestavam um amor à terra que os vira nascer, à terra que cultivavam e da qual
dependiam para viver.
Por essa razão, é possível dizer que a Crónica de D. João I constitui uma afirmação da
consciência coletiva, no sentido em que o verdadeiro herói que povoa as suas páginas não é um
herói individual, não é um cavaleiro, um nobre, como até então acontecera na prosa medieval,
mas antes um herói coletivo – o povo. Fernão Lopes mostra-nos com imenso realismo, vivacidade,
pormenor descritivo e emotividade o povo que se revolta, que irrompe pelas ruas de Lisboa à
procura do Mestre, que defende a cidade contra os castelhanos, que passa fome e privações por
causa do cerco.
A voz do povo, o sentir dos homens e das mulheres, dos mesteirais, dos homens-bons, é muitas
vezes transmitida através de uma voz anónima da multidão. Outras vezes, é a própria cidade que
parece revelar essa consciência do todo, assumindo quase o estatuto de uma personagem coletiva
(veja-se a cidade de Lisboa, cujo ambiente, força e vida estão tão bem descritos e narrados no
capítulo 115).
O facto de o povo ser o protagonista por excelência das crónicas de Fernão Lopes, e em particular
da Crónica de D. João I, não invalida, porém, a existência de atores individuais. Na verdade, na
crónica em questão, podemos identificar alguns e com papéis relevantes, como é o caso de:
• Álvaro Pais – o burguês que espalha pelas ruas de Lisboa que estão a matar o Mestre,
influenciando o povo a correr em seu auxílio;
Todas estas figuras são apresentadas pelo cronista na sua densidade psicológica, nos dramas, nas
angústias e nos anseios e, por isso, ainda que muito diferentes (em termos de motivações,
comportamentos, atitudes), aproximam-se pelo seu lado humano. Mesmo quando o cronista foca a
sua atenção nestes atores individuais, fá-lo, porém, apenas no sentido de os integrar num todo,
na sociedade à qual pertencem. Daí a consciência coletiva ser tão marcante na sua obra.
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Capítulos 11, 115 e 148 da 1.ª Parte
Antes de vermos com maior detalhe alguns capítulos da 1.ª parte da Crónica de D. João I, convém
ainda salientar uma outra preocupação de Fernão Lopes, expressa logo no Prólogo: a verdade
objetiva. É com essa noção em mente que o cronista não só recolhe e compila os registos
anteriores (as crónicas), como inclusive pesquisa, confronta e recorre a documentos originais da
Torre do Tombo, de cartórios, de igrejas e a diplomas para corroborar os factos que relata.
Fernão Lopes chega mesmo a reproduzir esses documentos e a reconhecer a existência de várias
versões, algumas até contraditórias. Por essa razão, podemos falar de crítica documental e
histórica na sua obra.
Concluindo, Fernão Lopes conferiu à História uma conceção de tal modo dinâmica e à narrativa
uma tal plasticidade que colocou as suas crónicas no caminho da História e da Literatura
modernas.
Vejamos agora como o fez, em particular através da leitura e da exploração dos capítulos 11, 115
e 148.
Nota
• Optou-se pela não transcrição dos excertos, sendo apresentado um breve resumo de cada
capítulo. Para além disso, são fornecidos tópicos de análise.
• O Programa prevê apenas o estudo de excertos de 2 capítulos (11, 115 ou 148 da 1.ª Parte).
Resumo do capítulo 11
• O pajem do Mestre de Avis brada pelas ruas, a caminho da casa de Álvaro Pais, que matam o
Mestre nos paços da rainha, o que leva as gentes, em agitação, a saírem para a rua e a pegarem
em armas.
• Álvaro Pais, que já estava preparado, dirige-se com o pajem e outros aliados para os paços,
apelando à população para que se junte e corra em auxílio do Mestre.
• Chegada às portas do paço, que estavam fechadas, a multidão mostra-se ansiosa e agitada,
querendo entrar para confirmar que o Mestre está vivo.
• Aconselhado pelos que estavam consigo e atendendo ao alvoroço das pessoas, o Mestre aparece
à janela para apaziguar os ânimos. Perante esta visão, a população manifesta um “gram prazer”.
• Sentindo-se seguro, o Mestre deixa os paços e cavalga pelas ruas em direção aos paços do
Almirante, onde se encontrava o conde D. João Afonso, irmão da rainha.
• Pelo caminho, o Mestre contacta com a população, que se mostra aliviada, alegre e disponível.
• Próximo dos paços do Almirante, o Mestre é acolhido pelo conde, pelos funcionários da cidade e
por outros fidalgos.
• Já à mesa, vêm dizer ao Mestre que as gentes da cidade querem matar o bispo. O Mestre faz
tenções de o ir socorrer, mas é aconselhado a permanecer ali (o bispo é morto pela população).
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Tópicos de análise
• O episódio narrado neste capítulo enquadra-se na sequência de eventos que levaram ao cerco da
cidade de Lisboa, considerado um dos focos estruturadores da Crónica de D. João I (o outro é a
batalha de Aljubarrota).
• Neste capítulo, Fernão Lopes relata como se deu a aclamação do Mestre, após o assassinato do
conde Andeiro, as ações da população quando soube que o Mestre corria perigo e os seus
sentimentos relativamente ao futuro monarca.
• Verifica-se uma concentração espacial (rua-paço-janela) que coincide com uma gradação e um
ritmo crescentes das ações (ao apelo do pajem e de Álvaro Pais, segue-se o alvoroço da
população, que se desloca para o paço e que aí mostra o seu estado de espírito – confusão,
nervosismo), que culminam no clímax: o aparecimento do Mestre à janela.
• Após a visão do Mestre, o ritmo narrativo diminui e o estado de espírito da população passa a ser
de alegria, de satisfação e de alívio (“ouveram gram prazer quamdo o virom”).
• Os sentimentos desta “gemte” são ainda realçados através das falas transcritas, que conferem
uma tonalidade realista e expressiva a todo o episódio. Estas falas servem também para denegrir
a imagem de Leonor Teles e para fazer a apologia do futuro monarca (veja-se como sai ilibado de
ter matado o conde – “Oo que mall fez! pois que matou o treedor do Comde, que nom matou logo
<e> a alleivosa com elle!”).
› Álvaro Pais – avisado pelo pajem, e também ele pronto (“que estava prestes e armado cõ huũa
coiffa”), pegou no seu cavalo e, com os seus aliados, foi até ao paço, espalhando igualmente o
alvoroço e influenciando o povo a correr em auxílio do Mestre;
› Mestre de Avis – atua segundo o conselho dos que o rodeiam; de início, parece ter receio da
multidão; depois, mostra-se à janela e, sentindo-se seguro, abandona o palácio e percorre as ruas
da cidade a cavalo até aos paços do Almirante.
• Quanto ao narrador, detetamos a sua subjetividade (“era estranha cousa de veer”, “era
maravilha de veer”), a sua simpatia pelo povo e a sua defesa do Mestre (legitimação da nova
dinastia).
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Linguagem e estilo
• Começa-se a preparar a defesa da cidade: primeiro, pensa-se na defesa ao nível dos muros
(muralhas) e das torres, tarefa que o Mestre delega nos fidalgos e cidadãos honrados, que contam
com a ajuda de besteiros e homens de armas. Mostra-se preocupado com a guarda da cidade e ele
próprio passa em revista os muros e as torres, durante a noite. As gentes que aí se encontram
estão alerta e são diligentes.
• Depois, analisa-se a defesa ao nível das portas da cidade: quantas eram, quem as vigiava e os
cuidados que eram tidos.
• Passa-se para a ribeira, zona onde foram construídas estacas para impedir e/ou dificultar a
passagem dos castelhanos.
• Para além disso, é dito que todos estavam em sintonia e a pensar no bem comum, o que leva o
cronista a concluir o capítulo num tom elogioso. Com efeito, no final, Fernão Lopes menciona a
superioridade do rei de Castela (“tam alto e poderoso senhor como he elRei de Castella, com
tamta multidom de gemtes”), mas apenas com o objetivo de realçar a postura da cidade de
Lisboa, que, perante um adversário tão feroz, está “guarnecida comtra elle de gemtes e darmas”.
Tópicos de análise
• Neste capítulo, o leitor/ouvinte, a quem o cronista desde logo se dirige (“que avees ouvido”),
começa por ser convidado a presenciar:
› a descrição da cidade de Lisboa, quando o rei de Castela a cercou (“de que guisa estava a
çidade, jazemdo elRei de Castella sobrella”);
› a preparação da defesa da cidade pelo Mestre de Avis, juntamente com a população (“per que
modo poinha em ssi guarda o Meestre, e as gemtes que dẽtro eram, por nom rreceber dano de
seus emmiigos”);
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› o esforço, a valentia, a determinação que a gente de Lisboa mostrava (“e fouteza que comtra
elles mostravom”).
• Continuando a interpelar o leitor/ouvinte (“Omde sabee que”), o cronista passa a relatar o que
foi feito relativamente aos mantimentos (2.º parágrafo), focando depois (a partir do 3.º
parágrafo) a sua atenção numa outra preocupação: a defesa da cidade.
• Porém, à medida que o cronista vai descrevendo o que foi feito para proteger a cidade, vai
também mostrando os grupos sociais – os atores coletivos – que participaram nestes preparativos.
Desta forma, vemos como os lavradores se recolheram à cidade, como a defesa das muralhas foi
entregue aos “fidallgos e çidadaãos homrrados”, aos “hom˜ees darmas”, aos “mesteiraaes”. Até
as mulheres tiveram um papel a desempenhar, apanhando pedras e cantando (“e as moças sem
nehuũ medo, apanhamdo pedra pellas herdades, camtavom altas vozes”).
• Mas não são só as gentes da cidade que têm um comportamento digno de louvor. Também o
Mestre de Avis – ator individual – merece uma caracterização favorável, destacando-se a sua
diligência e determinação, bem como todo o apoio que deu à população (“E hordenou o Meestre
com as gemtes da çidade, que fosse rrepartida a guarda dos muros”, “ho Meestre que sobre todos
tiinha espeçiall cuidado da guarda e governamça da çidade, damdo seu corpo a mui breve
sono”, “boom rregimemto que o Meestre hordenava”).
Linguagem e estilo
• Registo coloquial – evidente nos apelos ao leitor/ouvinte e no uso da 2.ª pessoa do plural; a
transcrição da cantiga, ao reproduzir uma linguagem popular e carregada de insinuações,
contribui também para o tom coloquial.
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• As esmolas também escasseiam e já não há como socorrer os pobres. Então, estabelece-se quem
deve ser posto fora da cidade: as pessoas miseráveis, os que não combatem, as prostitutas, os
judeus. Inicialmente, os castelhanos acolhem estas gentes, mas, quando percebem que tal ato se
devia à fome, também eles as expulsam do seu acampamento.
• Na cidade, há carência de todo o tipo de alimentos, como trigo, milho e vinho. O preço destes
produtos é elevado e, por isso, os hábitos alimentares mudam e até há quem procure apenas grãos
de trigo na terra ou quem beba tanta água que acabe por morrer. A carne e os ovos são outros dos
alimentos em falta e muito caros.
• As crianças não têm que comer e andam pela cidade a pedir; as mães não têm leite para os seus
filhos e veem-nos morrer. Toda a cidade está envolta num ambiente de tristeza, de pesar e de
morte. As pessoas dirigem preces a Deus. O desespero é tal que há até rumores de que o Mestre
vai expulsar da cidade todos os que não têm que comer. Porém, esse rumor é desmentido.
Tópicos de análise
• Mais uma vez, o capítulo inicia-se com uma interpelação ao leitor/ouvinte (“Estamdo a çidade
assi çercada na maneira que ja ouvistes”), através da qual se estabelece uma ponte com o
capítulo anterior e se transmite uma ideia de continuidade e de ligação a um dos centros
nevrálgicos da narrativa: o cerco de Lisboa.
• Mais uma vez também, o protagonismo é dado às gentes de Lisboa (ator coletivo), que vivem
momentos atrozes por causa da fome que assola a cidade, devido ao grande número de pessoas
que nela se acolheram.
• O Mestre de Avis (ator individual) aparece-nos neste capítulo como o chefe que tem de tomar
decisões (“Meestre mamdou saber em çerto pella çidade que pam avia per todo em ella”),
algumas difíceis até, a bem da comunidade, como a expulsão dos inaptos. Por outro lado, mostra-
se solidário com as suas gentes (“Sabia porem isto o Meestre e os de seu Comsselho, e eramlhe
doorosas douvir taaes novas”).
Linguagem e estilo
• Rigor do pormenor – patente, por exemplo, na descrição detalhada dos que saíam à noite de
barco e iam buscar trigo; na informação precisa sobre o preço de alguns alimentos, como o trigo,
o milho, o vinho, a carne – recurso à enumeração.
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• Conjugação de planos – por um lado, é-nos dado um plano geral da cidade; por outro, são-nos
apresentados planos de pormenor (por exemplo, quando a atenção se foca nos pobres, nos que
foram expulsos da cidade, nos homens e nas moças cheios de fome que esgaravatavam a terra).
(1) António José Saraiva, Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa, Porto Editora, 2001
Síntese de conteúdos
Crónica de D. João I
Autor Fernão Lopes (1380-1390?-1459?)
Género Crónica – narração histórica pela ordem do tempo em que se deram os factos
• 1.ª parte – da morte de D. Fernando até à eleição de D. João I
Estrutura
• 2.ª parte – do início do reinado de D. João I (1385) até 1411 (paz com Castela)
• Morte do rei D. Fernando e crise de sucessão dinástica
• Batalha de Aljubarrota
• O povo manifesta o seu patriotismo, o seu apoio ao Mestre, garante da
Afirmação independência de Portugal: pelas ruas da cidade de Lisboa, após o assassinato do
da conde Andeiro; durante o cerco à cidade, suportando os ataques dos castelhanos, a
consciência fome, a miséria
coletiva
• O povo é o verdadeiro herói da revolução e da crónica de Fernão Lopes
• Atores individuais – figuras históricas como o Mestre de Avis, Álvaro Pais, D. Leonor
Atores
Teles
individuais e
atores
• Atores coletivos – as gentes de Lisboa, quer como uma massa, uma coletividade,
coletivos
quer como grupos sociais (ex.: os lavradores, os homens-bons, as mulheres)
• Descrição viva e dinâmica (visualismo) – sensações visuais, auditivas; ritmo
acelerado; uso de recursos expressivos (comparação, enumeração, adjetivação,
personificação)